Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P2124
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
PODERES DE COGNIÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
TRANSCRIÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
FISCALIZAÇÃO ABSTRACTA
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REJEIÇÃO DE RECURSO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
BURLA AGRAVADA
RESTITUIÇÃO
REPARAÇÃO DO PREJUÍZO
CONSUMAÇÃO
Nº do Documento: SJ200210240021245
Data do Acordão: 10/24/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 9202/01
Data: 03/14/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 301 ARTIGO 313 N1 ARTIGO 314 C.
CPP98 ARTIGO 410 N2 N3 ARTIGO 412 N2 A B N4.
CPC95 ARTIGO 722 N2.
CONST97 ARTIGO 204 ARTIGO 281.
Sumário : 1 - Se, em recurso da matéria de facto e de direito o Tribunal da Relação, perante a não indicação, pelo recorrente, das provas documentadas a transcrever entendeu que, face à não transcrição dessa documentação, derivada em primeira linha do incumprimento do ónus imposto pelo n.º 2 do art. 412 do CPP, só conheceria do recurso como de revista ampliada previsto na versão originária do Código, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP, essa posição é tributária não (ou pelo menos não só) de uma mera não transcrição (que eventualmente poderia ser suprida pela audição dos suportes sonoros de gravação), mas da compreensão de que o labor do Tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida [art. 412.º, n.º 2, als. a) e b) do CPP] e levam à transcrição ( n.º 4 do art. 412.º do CPP).

2 - Se o recorrente não cumpre aqueles deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência às provas e respectivos suportes.

3 - quem não requereu oportunamente em sede de documentação da prova, em ordem a poder solicitar o seu reexame em 2.ª instância, não está em posição de poder equacionar a questão da constitucionalidade do regime do recurso em matéria de facto, pois seria colocar, em abstracto, a questão da constitucionalidade, cuja fiscalização não pertence aos tribunais judiciais (art. 204.º da CRP) mas ao Tribunal Constitucional (art. 281.º da CRP).

4 - Se o recorrente impugna a decisão da primeira instância, quando é recorrido um acórdão da Relação, é como se não houvesse impugnação deste último.

5 - Para que o STJ possa conhecer de violação de regras de prova, questão já suscitada perante a Relação necessário se tornava que se verificasse alguma das situações previstas no n. 2 do art. 722 do CPC, aplicável ao processo penal (art. 4.º do CPP): ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

6 - É jurisprudência pacífica do STJ que não lhe cabe conhecer, em recurso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, salvo quando se trata de recurso directo de decisão final do Tribunal de Júri, por maioria de razão quando já a 2.ª instância deles conheceu.

7 - É assim manifestamente improcedente o recurso para o STJ que tem por objecto a decisão da primeira instância quando esta já foi apreciada em recurso pela Relação, designadamente quando se persiste na discordância da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância e acatada na sua integralidade por um Tribunal da Relação, que sobre ela se pronunciou por via de recurso.

8 - O que funciona como circunstância que modela o tipo agravado no art. 314.º, al. c) do C. Penal de 1982 é a circunstância de se tratar de prejuízo consideravelmente elevado evidenciando mais elevada ilicitude, sendo que o segmento final dessa alínea "e não for reparado pelo agente, sem dano ilegítimo de terceiro, até ser instaurado o procedimento criminal" visa antes afastar tal agravação quando, por virtude da reparação sem dano ilegítimo de terceiro, se tiver reduzido a ilicitude e logo a razão da gravação ditada pelo primeiro segmento da norma.

9 - A reparação do prejuízo não equivale a restituição, como o reconhece o legislador do C. Penal de 1982 no art. 301 a restituição visa essencialmente o furto e a apropriação ilícita, e a reparação integral os restantes casos e mesmo o furto ou apropriação ilícita quando não for possível a restituição.

10 - O crime de burla dos art.s 313, n.º 1, e 314, al. c), do C. Penal, redacção de 1982 é um crime que se torna perfeito com a existência do prejuízo patrimonial do "burlado" ou de terceira pessoa, pelo que o momento da consumação no crime em questão é o da prática do acto de onde vem a resultar o prejuízo patrimonial (por via de regra, o da entrega jurídica ou material da coisa.

Decisão Texto Integral: Supremo Tribunal de Justiça:

I

1.1. O Tribunal Colectivo da 2.ª Vara Mista do Tribunal de Sintra (Proc. n.º 708/93.5.GLSB) condenou, como co-autores de um crime de burla agravada dos art.ºs 313.º, n.º 1 e 314.º, al. c) do C. Penal de 1982, os arguidos RNSP e EMCS, cada um, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, e o arguido LJVP, com os sinais nos autos, na pena de 3 anos de prisão, todas estas penas suspensas na sua execução por 2 anos.

1.2. Para essa decisão partiu da seguinte matéria de facto:

a) "LJVP tomou posse, na categoria de Escrivão-Adjunto, do então 4.º Juízo, 1.ª secção do Tribunal da Comarca de Sintra em 21/9/81, funções que cessou em 29/5/91, por ter sido transferido para o tribunal de Cascais.

b) Por determinação do respectivo Escrivão de Direito, LADVE, a LJVP competia a movimentação dos processos cíveis da Secção, designadamente as execuções por custas, as providências cautelares e as deprecadas para penhora.

c) Entre os processos cíveis cuja movimentação lhe estava confiada, constava a Execução por custas n.º 354/A/87, em que era exequente o MP e executada a empresa "X", que correu seus termos naquele 4 Juízo, 1ª Secção, por apenso à acção ordinária n.º 354/86, em que eram autores LMBFF e outros, e Ré a aludida empresa.

d) A execução em causa destinava-se a obter o pagamento da quantia de 65.898$00, proveniente de custas em dívida na acção principal.

e) Nela foi então ordenada, por despacho de 19/5/88, a penhora do prédio urbano sito na zona ...Rinchoa, Rio de Mouro, Concelho de Sintra, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob o n.016001, a fls. 65 v.º do Liv.º B, 49, ficha 01148- Rio de Mouro (fls.18), oportunamente nomeada à penhora pelo exequente.

f) Tal penhora veio a efectivar-se, por termo em 23/5/88 (fls.19), sendo devidamente registada, na referida Conservatória, em 22/11/88 (fls. 23).

g) Junta aos autos a certidão dos encargos que oneravam o imóvel penhorado, dela constava ser ele omisso na matriz e que era composto por sub-cave, cave, r/c e 7 andares (direito e esquerdo) com a área de 179,40 m2, com o valor venal de 10.000.000$00.

h) Sobre ele recaíam, não só duas hipotecas a favor do Banco Pinto & Sotto Mayor, EP, no montante global de 72.545.000$00, como uma outra penhora efectuada e registada anteriormente (fls. 25 e seg.).

i) Por lapso foi então ordenado o cumprimento do art. 864 do CPP (fls. 29).

j) LJVP, porém não citou como a lei e o dever impunham, o credor hipotecário, BP&SM, EP, nem a própria executada foi oportuna e pessoalmente notificada nos termos e para os efeitos dos artigos 838 e 927, n.º 3 do C PC, vindo a sê-lo por editais apenas em 11/5/89.

k)

l) Constatando-se o lapso a que se aludiu no art. 13, foi então ordenada em 17/5/89 a sustação da execução, nos termos do art. 871.º do C PC, e a remessa dos autos à conta.

m) Apresentando-se posteriormente o credor hipotecário já referido a pagar a quantia exequenda e as custas prováveis, nos termos do art. 916, n. 1 do C PC e 174 do CCJ.

n) Em 20/4/90, foi proferido novo despacho, ordenando a sustação da execução e a remessa dos autos à conta.

o) Desta ficando a constar que continuava em dívida de custas a quantia de 25.481$00, e que as respectivas guias deveriam ser passadas "ao depositante",

p) Sendo este a empresa executada e não o credor hipotecário " Banco Pinto & Sotto Maior EP".

q) O correspondente aviso de pagamento foi, então enviado à firma em causa pela escriturária Judicial MAF, e não ao credor hipotecário que se apresentou a pagar a quantia exequenda e as custas prováveis.

r) A empresa "X", era revel e estava sem a devida representação.

s) Factos que a aludida escriturária cometeu apenas por ser profissionalmente inexperiente e por LJVP - que a deveria supervisionar pela distribuição de serviço que ocorria naquele juízo e secção não o ter feito.

t) Supervisão que também não foi feita pelo escrivão de direito LADVE, superior hierárquico de ambos.

u) Em virtude de não ter sido enviado ao credor hipotecário o aviso para pagamento das custas ainda em dívida, tendo-o sido apenas a executada revel e sem representação, aquelas não vieram a ser pagas.

v) Em consequência os autos foram remetidos para rateio da conta, continuando, em dívida de custas 25.481$00.

x) Apresentados os autos ao magistrado MP, junto do 4.º Juízo, Dr. VM este, tomando como correcto o processado anterior e verificando a existência de guias passada à executada, e não pagas, tomou a atitude processual correspondente a esta situação, promovendo o prosseguimento da execução até integral pagamento das custas em dívida.

z) Fê-lo - apesar da execução estar sustada - por estar colocado havia poucos dias naquele 4º Juízo, por ter constatado a referida existência de guias "não pagas" e por Ter confiado na competência e dever de lealdade dos funcionários de justiça que ali exerciam, há muito, funções, designadamente o escrivão de direito LADVE e LJVP, que o não alertaram para a situação processualmente incorrecta que preexista e para a necessidade de rever o processado.

w) De seguida, aberta "vista" no processo, LJVP dirigiu-se ao gabinete ocupado pelo Dr. VM, sugerindo-lhe que a melhor forma de efectuar a venda era na modalidade de negociação particular, afirmando-lhe textualmente. "aquilo é um barraco degradado, o Sr, Dr. Havia de lá ir ver..."

k) Tal promoção foi deferida pela Juíza Dr.ª MJS, também há poucos dias colocada como auxiliar junto daquela 1ª secção do 4º juízo, a qual assim, procedeu pelas mesmas razões que motivaram o Dr. VM.

x) Não sendo magistrado experiente em matéria cível e confiando, uma vez mais em LJVP, o Dr. VM aceitou a sugestão por ele feita, promovendo em conformidade.

aa) Promoção que foi deferida pela juíza MJS - também ela induzida em erro, pelas razões já expostas - a qual, no mesmo despacho, encarregou da venda a empresa "Y". como era prática habitual naquele Juízo e Secção e a indicação ou sugestão de LJVP ou do escrivão LAVDE, dado que o pouco tempo em que exercia funções na Comarca lhe não permitia conhecer aquela prática (fls. 51 v.º).

bb) Em 26/7/90 é apresentado pela encarregada à venda, "Y", um requerimento dirigido ao Juiz do 4º Juízo de Sintra em que refere ter desenvolvido múltiplos contactos e efectuado inúmeras diligências para a venda do bem de que havia sido encarregada.

cc) Informando ainda haver conseguido a oferta de 5.700.000$00, que considerava de aceitar por haver na zona grande oferta e pouca procura de imóveis.

dd) E, no sentido de dar urgência à tomada de posição, a mais informou que o proponente se encontrava ocasionalmente em Portugal, estando a sua partida dependente da aceitação ou não da proposta apresentada.(fls 55).

ee) Tais actos, porém não correspondiam à verdade.

ff) Com efeito em data e circunstâncias que não foi possível apurar, LJVP, EMCS e RNSP decidiram, em comunhão de esforços e intentos e em atitude concertada, fazer com que o imóvel penhorado fosse adquirido - na fase processual adequada - por RNSP, por valor manifestamente inferior, sequer ao valor venal.

gg) Para tanto tornava-se essencial a colaboração activa e decisiva de LJVP, funcionário de Justiça em exercício de funções no Juízo e Secção a que estava distribuído o processo em que a penhora foi efectuada e a quem incumbia a respectiva tramitação, no decurso da qual se iria proceder a respectiva venda.

hh) Colaboração que ele LJVP se prestou a dar nas circunstâncias já descritas.

ii) Assim, no desenvolvimento e concretização de tal plano, LJVP, induziu em erro o Magistrado do MP Dr. VM quanto à qualidade do imóvel penhorado, determinando que aquele promovesse a sua venda por negociação particular.

jj) Para a qual os quatro tinham fortes expectativas de ser nomeada a empresa "Soleilões Antiguidades, Lda" de acordo com o relatado na al. aa), o que aliás veio a suceder .

11) De tal empresa era sócio maioritário, à data, EC, sendo EMCS o respectivo gerente (fls. 161 e Seg. e 186).

mm) Tendo os quatro aproveitado a circunstância de o aludido Magistrado do MP , bem como da Dra Juíza MJS, estarem colocados muito recentemente no juízo e secção em causa, factor determinante de uma confiança acrescida de ambos na lealdade e competência de LJVP, que ali exercia funções há vários anos.

nn) Confiança que, por aqueles motivos, determinou que não procedessem à revisão de todo o processado e assim os impediu, na prática, de constatarem as irregularidades e ilegalidades cometidas.

oo) Após o LJVP Ter levado a cabo a sua primeira e decisiva intervenção em ordem à consecução do referido plano, ECS fez dar entrada na Secção Central do Tribunal de Sintra o requerimento a que se alude na al. bb ), o que ocorreu, como referido em 26/7/90 (fls. 55) ou seja, em pleno período de férias judiciais de Verão.

pp) Nessa data, quer o LJVP, quer os restantes elementos da l.ª Secção do 4.º Juízo, não se encontravam de turno.

qq) Na verdade, este havia sido estruturado, pelo Secretário Judicial em cumprimento das normas legais vigentes à data.

rr) Competindo à referida 1.ª Secção do 4.º Juízo, o turno de 16/8/90 a 31/8/90.

ss) Os factos constantes do requerimento a que se alude nas als. bb) e dd) não correspondiam à verdade, apenas pretendiam crer que a única proposta para a compra do imóvel penhorado - a RNSP - tinha sido possível conseguir e era de aceitar, com natureza urgente.

tt) O preço proposto era significativamente inferior, ao próprio valor descrito na certidão de registo predial, que era de 10.000.000$00, (fls 26).

uu) Também não correspondia à verdade que proponente comprador se encontrasse ocasionalmente em Portugal, estando a sua partida dependente da aceitação ou não da proposta apresentada, visando tal afirmação fazer inocular de modo auspicioso a ideia de que se tornava urgente aceitar tal proposta, dadas tais circunstâncias.

vv ) O proponente em causa era e foi sempre o arguido RNSP, o qual nunca residiu no estrangeiro.

xx) Pelo contrário era cliente assíduo da "Y" amigo do arguido EMCS, e além disso, prestava àquela empresa, embora pontualmente, serviços de natureza jurídica, na sua qualidade profissional de advogado.

zz) O mesmo veio a adquirir em 23/9/91, uma quota de 40% do capital da sociedade, sendo nomeado nessa data sócio gerente da mesma,(fls 163).

kk) Na concretização e desenvolvimento do plano referido e não obstante tal requerimento ter dado entrada em pleno período de férias de Verão numa altura em que não se encontrava de turno a 1.ª secção do 4.º Juízo do Tribunal de Sintra, (incluindo LJVP) - procedeu no próprio dia á sua juntada no processo por termo.

ww) Na mesma data ainda, (26/7/90) dirigiu-se de seguida com o processo, no qual abrira "vista" ao magistrado do MP que se encontrava de turno Dr. H, solicitando-lhe e sugerindo-lhe que promovesse no sentido da não oposição do MP a venda do imóvel penhorado, nos termos do requerimento subscrito pelo encarregado da venda.

yy ) A este magistrado reiterou que o potencial comprador se encontrava temporariamente em Portugal, de onde iria partir dentro de dias.

aaa) O magistrado em causa, porém não atendeu à solicitação e sugestão do LJVP, por entender não ser tal processo de natureza urgente, e por ter constatado que o imóvel em causa não tinha sido sujeito a avaliação, facto que lhe referiu

bbb) Mais lhe disse que o apresentasse ao magistrado do MP afecto àquela secção e juízo Dr. VM após férias judiciais.

ccc) Perante tal recusa, LJVP - tendo conhecimento que o Dr. VM se encontrava nesse dia no tribunal - dirigiu-se com idêntico propósito.

ddd) A este solicitou que promovesse no sentido de deferimento, não só omitindo o contacto que tivera o magistrado do MP de turno Dr. H, e a recusa deste em promover no processo, como dizendo ao Dr. VM "que já tinha procurado por ele, (Dr. H), mas que este não se encontrava no tribunal".

eee) Mais lhe referiu que, estando o Dr. VM afecto à secção e juízo em causa, até seria conveniente a efectuar tal promoção

fff) Também a ele afirmou que havia urgência na realização da venda do imóvel penhorado, já que o comprador se encontrava ocasionalmente em Portugal, e se ausentaria dentro de dias para o estrangeiro, repetindo-lhe ainda as restantes razões invocadas no requerimento elaborado pelo encarregado da venda.

ggg) Apesar de não estar de turno, o Dr. VM encontrava-se no tribunal a elaborar acusação num processo de inquérito com arguidos em prisão preventiva (inquérito n. 4071/89), despacho que foi ultimado a 27/7/90.

hhh) No dia 26/7/90, o Dr. VM, encontrava-se em plena elaboração do referido despacho, extenso, complexo e urgente - coro a inevitável pressão psicológica e de serviço daí decorrente( fls. 301 e Seg).

A confiança profissional que lhe merecia LJVP, e as circunstâncias atrás referidas, levaram o Dr. VM, a promover no sentido de não oposição ao :MP , a venda do imóvel penhorado ao comprador, e preço propôs

jjj) Perante a não oposição do exequente, (MP) e existência de despacho judicial anterior, autorizando a venda por negociação particular, aliado ao facto de se tratar de período de turno em férias judiciais, numa comarca de intenso movimento, como é Sintra, e tratar-se de processo algo volumoso a Juíza de turno Dr.ª FCL, proferiu despacho ordenando a venda d penhorado pelo preço e ao comprador propostos.

lll) Em "conclusão" que ainda na mesma data 26/7/90, lhe foi aberta por LJVP

mmm) Despacho que de imediato (a sempre a 26/7/90) foi pessoalmente notificado ao legal representante da encarregada da venda, EMCS, a quem foram , também de imediato, entregues guias do produto da venda.

nnn) O qual (EMCS) se encontrava presente nesse dia, nas instalações do Tribunal de Sintra, l.ª secção do seu 4.º Juízo, apesar desta não estar de turno.

ooo) Notificação e entrega efectuadas por termo que o LJVP lavrou no processo.

ppp) A venda do imóvel realizou-se no dia imediato, ou seja 27/7 /90, data em que o respectivo produto foi depositado (fls. 58), sendo o duplicado da guia comprovativa desse depósito junta aos autos em 30/7/90, por via de requerimento da encarregada da venda, e termo de juntada elaborado por LJVP, nessa data, (30/7/90).

qqq) A respectiva escritura de compra e venda foi celebrada em 6/9/90, no 1.8 Cartório Notarial de Vila Franca de Xira, e ainda em férias judiciais, nele sendo outorgantes, EC (vendedor, e RNSP) comprador, e pelo preço anteriormente proposto e autorizado, de 5.700.000$00, sendo o valor de cada fracção de 300.000$00. Valor que o vendedor declarou haver já recebido do comprador (fls. 62 e seg).

rrr) Em 10/10/90 foi ordenado de todos os ónus ou encargos que recaiam sobre o bem objecto da venda, por negociação particular .

sss) Tal prédio era composto por um edifício inacabado e degradado de 9 andares e lojas, rés-do-chão, cave e sub-cave, 9 fracções com 4 assoalhadas e 9 fracções com 3 assoalhadas, e uma fracção para loja, com o valor nunca inferior a 20.000.000$00.

ttt) Tendo sido alertada para o facto da venda ter ocorrido em férias judiciais, e por preço incomensuravelmente inferior, sequer ao valor venal do imóvel, a Sr.ª juíza MJS reexaminou o processado.

uuu) Consequentemente, em 2/11/90, proferiu despacho de anulação de todo o processado a partir de fls. 80 da referida execução por custas, ordenando se não procedesse ao anteriormente decidido cancelamento de ónus e encargos.

vvv) De tal despacho foram interpostos agravos por RNSP, vindo no entanto o mesmo a ser confirmado por Ac. da Relação de Lisboa de 21/1/93 e do STJ de 23/9/93, ambos já transitados (fls. 326 e Seg. e 336 e Seg.)

xxx) LJVP, EMCS e RNSP, agiram livre voluntária e conscientemente, em comunhão de esforços e de intentos, no desenvolvimento de plano previamente concebido entre todos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

zzz) Deste modo proporcionaram a RNSP a obtenção de enriquecimento ilegítimo, traduzido no diferencial entre o valor por que adquiriu o imóvel e o que ele efectiva e objectivamente tinha, quer venal quer de mercado.

kkk) 0 credor hipotecário BP&SM, viu alienado, sem sua intervenção e por preço irrisório, o imóvel que lhe havia sido dado como garantia hipotecária pela executada - no montante máximo de setenta e dois milhões e quinhentos e quarenta e cinco mil escudos - quanto a obrigações que não veio a cumprir (o que determinou a penhora do imóvel e respectivo registo em seu nome), vendo ainda ordenado o cancelamento da hipoteca a seu favor constituída.

www) a executada "X" viu subtraído ao seu património os diferenciais entre a dívida de custas, o preço da venda e o valor real do imóvel.

yyy) O Estado viu-se defraudado no diferencial entre os impostos que foram cobrados por aquela venda - designadamente a sisa, o imposto de selo e demais despesas - e os que seriam realmente devidos se a referida venda se tivesse efectuado pelo real valor do imóvel.

ab) O arguido RNSP veio adquirir em 23/9/91, 40% da Sociedade "Y".

Ac) O arguido LJVP apenas admitiu a prática dos factos objectivos relacionados com a movimentação do processo, mas considerando-a dentro da normalidade e em estrito cumprimento das suas obrigações, negando qualquer conluio com os demais co-arguidos. Nunca sofreu qualquer condenação criminal anterior. Sofreu por causa dos factos relacionados com estes autos um processo disciplinar, na sequência do qual veio a ser suspenso e aposentado compulsivamente das funções de escrivão de direito. Actualmente trabalha como vigilante na "Prosegur" onde aufere o salário mensal de 150.000$00. Habita em casa arrendada, com a mulher e um filho de 21 anos de idade, paga a renda mensal de 9.000$00 e possui o curso geral dos Liceus.

ad) O arguido EMCS, mostra-se alheio a qualquer irregularidade na compra e venda do prédio em causa, negando que estivesse conluiado com os demais co-arguidos ou tivesse obtido qualquer enriquecimento ilegítimo. Nunca sofreu qualquer condenação criminal anterior. É dono de 60% do sociedade "Y", disse auferir em média cerca de 150.000$00 mensais; habita em casa própria, tem dois filhos, de 18 e 16 anos de idade, e possui o 7.º ano liceal.

ae) 0 arguido RNSP, é advogado, dedica-se à compra e venda de imóveis, é dono de 40% da Y., disse auferir em média cerca de 150 a 400 contos mensais, habita em casa própria e tem 2 filhos com idades de 9 e 12 anos. Negou qualquer conluio ou acordo prévio com os demais co-arguidos, e que tivesse obtido um enriquecimento ilegítimo com a compra do imóvel.

1.3. Inconformados os arguidos recorreram para a Relação de Lisboa (Rec. n.º 9202/01) que, por acórdão de 14.3.2002, negou provimento a tais recursos.


II

É desta decisão que é trazido recurso pelos arguidos RNSP e LJVP.

2.1. O primeiro recorrente (RNSP) pede a revogação e substituição do acórdão recorrido por outro que o absolva, ou pelo menos considere prescrito o procedimento criminal, e conclui na sua motivação:

Sobre o erro na apreciação da prova:

1ª - O arguido considera de facto incorrectamente julgado, por erro notório na apreciação da prova, que o Tribunal a quo o tenha considerado incurso na situação de não ter reparado o valor do prejuízo, sem dano ilegítimo de terceiro, até ser instaurado o procedimento criminal.

2ª - Isto é, o Tribunal a quo fez uso pleno, em toda a extensão do texto, do dispositivo da alínea c) do artigo 314° do Cód. Penal de 82, para considerar o arguido autor de um crime de burla agravada.

3ª - Mas julgou mal, porque não tomou em conta (factos que o processo exuberantemente fornece) que, concretamente, não havia prejuízo, nem houve para ninguém, e o prédio, formalmente, nunca esteve na disponibilidade efectiva do arguido: a venda foi anulada e os registos nunca possibilitaram que o arguido pudesse dispor do prédio.

4ª - Por tal razão, o agente nunca poderia proceder a qualquer reparação do prejuízo.

5ª - O Tribunal a quo não podia aplicar, ao arguido, nem exigir dele, o que a alínea c) do artigo 314° do Cód. Penal de 82 estabelece.

6ª - Daí o incorrecto julgamento dos factos, reportados à alínea c) do artigo 314° do Cód. Penal de 82, que atribuiu ao arguido um delito (burla agravada) que ele não praticou.

Quanto à matéria de direito:

7ª - O Tribunal a quo violou as seguintes regras de direito:

a) O art. 314° do Cód. Penal de 82, mais especificamente a sua alínea c);

b) O art. 313° do mesmo Código, por omissão.

Com efeito, não podendo ou não devendo, aplicar ao arguido o dispositivo do artigo 314° alínea c) de Cód. Penal de 82, quando muito o Tribunal a quo, poderia considerar o arguido incurso no artigo 313° do citado Código.

c) O Tribunal a quo, concluindo pela existência de crime, que seria o do artigo 313° e não o do artigo 314°, deveria considerar prescrito o procedimento criminal, ao abrigo da alínea c) do n. 1 do artigo 117° do Cód. Penal de 82, julgando caducado o disposto no n. 1, alínea a) do artigo 120° deste Código, face ao novo regime do Cód. de Processo Penal que extinguiu a instrução preparatória.

d) O sentido em que o Tribunal a quo interpretou a alínea c) do artigo 314° do Cód. Penal de 82, foi no de que o agente podia e devia reparar o valor do prejuízo, quando tal procedimento não lhe era acessível, nem possível, isto porque o que estava em causa era a posse ou a propriedade dum prédio (e na sua restituição consistiria a reparação do prejuízo) que estava não na disponibilidade do arguido, mas sim e só na disponibilidade do Tribunal a quo, que a tempo e horas o chamou a si.

2.2. O segundo recorrente (LJVP) pede a revogação e substituição do acórdão recorrido por outro que o absolva ou, caso assim o não entenda, convole a acusada acção criminosa em tentativa, declarando a prescrição do respectivo procedimento criminal, e conclui na sua motivação:

5.1. QUESTÃO PRÉVIA:

5.1.1. A norma constante no n.º 4 do art. 412 do CPP, com a interpretação efectuada nos autos de que, "não estando transcrita a totalidade da prova produzida em audiência, não pode o tribunal apreciar a matéria de facto" deve, ser considerada inconstitucional, por violação do princípio de exigência de duplo grau de jurisdição em matéria de prova inscrito no n.º 2 do art. 31 da Constituição da Republica Portuguesa.

5.2. ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA:

5.2.1. Existe erro notório na apreciação da prova, quando se afirma que os magistrados do Ministério Público promovem por sugestão dos funcionários.

5.2.2. Há erro notório na apreciação da prova, quando se afirma os deveres impostos ao arguido como mais relevantes que os impostos aos senhores Procuradores envolvidos porque tal é inconciliável ou irremediavelmente contraditório com o estatuto e com a posição processual de responsabilidade assumida por estes intervenientes.

5.2.3. Verifica-se erro na apreciação da prova quando se decide que um funcionário se dirigiu a Magistrado do Ministério Público, apenas com folhas soltas pretendendo que este promovesse uma venda, porquanto se afirma "... algo que não pode ter-se verificado.."

5.3. DO DIREITO:

5.3 .1. O crime de burla exige causalidade entre a acção do agente; a prática de actos pela vítima; e o prejuízo patrimonial.

5.3.2. A causalidade pressupõe que, a acção do agente seja causa do acto da vítima:

5.3 .3. O facto de se apresentar um requerimento, mesmo que contendo afirmações falsas, não constitui causa adequada de promoção por Agente de Ministério Público, e posterior despacho do Mmo. Juiz do processo.

5.3.4. O efectivo prejuízo patrimonial constitui elemento do tipo de crime de burla, p.p. no art. 313 do CP. de 1982.

5.3.5. A falta de prejuízo patrimonial impede o preenchimento deste tipo de crime.

5.3.6. A celebração de escritura de compra e venda, sem que se mostrem cancelados os registos de hipoteca e penhora impede que o bem fique na disponibilidade do agente.

5.3.7. A disponibilidade do imóvel pressupõe ainda que o mesmo se encontre registado definitivamente a favor do adquirente.

5.3.8. Não tendo sido cancelados os registos de penhora e efectuado o registo a favor do agente, não se verificou efectivo prejuízo patrimonial.

5.3.9. Tendo sido praticados actos de execução sem que se verifique o prejuízo patrimonial e correspondente enriquecimento mostra-se preenchido o tipo legal da tentativa e não o tipo do crime consumado.

5.3.10. O juízo técnico, cientifico ou artístico inerente à prova pericial impõe-se ao julgador, que o tem que aceitar.

5.3.11. Se dele divergir terá de fundamentar a sua discordância.

5.3.12. Não o fazendo, viola o art. 163 do CPP.

5.3.13. E, ao violar o critério lógico de valoração das provas, resultam violados os comandos conjugados dos art.s 410 n. 2 e 97 n.º 4 do CPP.

5.3.14. Ao crime de burla p.p. 313 e 314 do CP. na forma tentada, corresponde a pena máxima de 3 anos e 4 meses, e a mínima de dois meses.

5.3.15. Os crimes puníveis com pena de prisão até 5 anos prescrevem no prazo de cinco anos. art. 117 alínea c) do C.P. de 1982.

5.3.16. Tendo este prazo decorrido em fase de inquérito encontra-se extinto por prescrição o respectivo procedimento criminal.

2.3. O Ministério Público não respondeu às críticas dos recorrentes, limitando-se a pedir a confirmação da decisão recorrida.


III

Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pelo prosseguimento do processo para audiência, admitindo a rejeição parcial dos recursos.

Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP.

Colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência no decurso da qual foi produzidas alegações orais.

Nelas, o M.º P.º retomou o parecer constante da vista a que se refere o art. 415.º do CPP e contrariou as pretensões assumidas pelos recorrentes, uma vez que os crimes estavam consumados, depositados os valores e presente a co-autoria com todos os seus elementos, propugnando a manutenção do julgado. Os recorrentes mantiveram as posições constantes das suas motivações.

Assim, cumpre conhecer e decidir.


IV

E conhecendo.

4.1. Como vimos, o primeiro recorrente, RNSP, pede a sua absolvição ou, pelo menos, se declare prescrito o procedimento criminal.

E nas conclusões da sua motivação, começa por abordar o que apelida de erro na apreciação da prova:

Teria ocorrido erro notório na apreciação da prova uma vez que as instâncias o consideraram incurso na situação de não ter reparado o valor do prejuízo, sem dano ilegítimo de terceiro, até ser instaurado o procedimento criminal (conclusão 1.ª), uma vez que foi feito uso pleno do dispositivo da al. c) do art. 314 do C. Penal de 82, para o considerar autor de um crime de burla agravada (conclusão 2.ª).

Quando não tomou em conta que, concretamente, não havia prejuízo, nem houve para ninguém, e o prédio, formalmente, nunca esteve na sua disponibilidade efectiva: a venda foi anulada e os registos nunca possibilitaram que o arguido pudesse dispor do prédio (conclusão 3.ª), pelo que nunca poderia proceder a qualquer reparação do prejuízo (conclusão 4.ª), e, assim, ser-lhe aplicado a al. c) do art. 314° do C. Penal de 82 (conclusão 5.ª).

Daí o incorrecto julgamento dos factos, reportados à al. c) do art. 314° do C. Penal de 82, que atribuiu ao arguido um delito (burla agravada) que ele não praticou (conclusão 6.ª).

Na sequência entende este recorrente, quanto à matéria de direito, que as instâncias violaram: a al. c) do art. 314° do C. Penal de 82 [conclusão 7.ª, a)] ; o art. 313° do mesmo diploma, por omissão [conclusão 7.ª, b)];

E que deveria ter sido, assim, considerado prescrito o procedimento criminal, a al. c) do n.º 1 do art. 117.° do C. Penal de 82, julgando-se caducado o disposto no n.º 1, al. a) do art. 120°, face ao novo regime do CPP que extinguiu a instrução preparatória [conclusão 7.ª, c)].

A al. c) do art. 314° do C. Penal de 82 foi interpretada no sentido de que o agente podia e devia reparar o valor do prejuízo, quando tal procedimento não lhe era acessível, nem possível, isto porque o que estava em causa era a posse ou a propriedade dum prédio (e na sua restituição consistiria a reparação do prejuízo) que estava não na disponibilidade do arguido, mas sim e só na disponibilidade do Tribunal a quo, que a tempo e horas o chamou a si [conclusão 7.ª, d)].

4.2. O segundo recorrente (LJVP) pede a sua absolvição ou a convolação para a tentativa, declarando-se a prescrição do respectivo procedimento criminal.

Mas desdobra, da seguinte forma, as questões que suscita:

Uma questão prévia: a norma constante no n.º 4 do art. 412 do CPP, com a interpretação efectuada nos autos de que, "não estando transcrita a totalidade da prova produzida em audiência, não pode o tribunal apreciar a matéria de facto" é inconstitucional, por violação do princípio de exigência de duplo grau de jurisdição em matéria de prova - n.º 2 do art. 31 da CRP (conclusão 5.1.1.).

Erro notório na apreciação da prova, ao afirmar-se que os magistrados do Ministério Público promovem por sugestão dos funcionários (conclusão 5.2.1.); que os deveres impostos ao arguido como mais relevantes que os impostos aos senhores Procuradores envolvidos porque tal é inconciliável ou irremediavelmente contraditório com o estatuto e com a posição processual de responsabilidade assumida por estes intervenientes (conclusão 5.2.2.); quando se decide que um funcionário se dirigiu a Magistrado do Ministério Público, apenas com folhas soltas pretendendo que este promovesse uma venda, porquanto se afirma "... algo que não pode ter-se verificado.." (conclusão 5.23.)

O crime de burla exige causalidade entre a acção do agente; a prática de actos pela vítima; e o prejuízo patrimonial (conclusão 5.3.1. e 5.3.2.).

A apresentação de um requerimento, mesmo que contendo afirmações falsas, não constitui causa adequada de promoção por Agente de Ministério Público, e posterior despacho do Mmo. Juiz do processo (conclusão 5.3.3.).

O efectivo prejuízo patrimonial constitui elemento do tipo de crime de burla, p.p. no art. 313 do CP. de 1982 (conclusão 5.3.4.), impedindo a sua falta o preenchimento deste tipo de crime (conclusão 5.3.5.).

A celebração de escritura de compra e venda, sem que se mostrem cancelados os registos de hipoteca e penhora impede que o bem fique na disponibilidade do agente (conclusão 5.3.6.) que pressupõe ainda que o mesmo se encontre registado definitivamente a favor do adquirente (conclusão 5.3.7.), pelo que não tendo sido cancelados os registos de penhora e efectuado o registo a favor do agente, não se verificou efectivo prejuízo patrimonial (conclusão 5.3.8.).

Tendo sido praticados actos de execução sem que se verifique o prejuízo patrimonial e correspondente enriquecimento mostra-se preenchido o tipo legal da tentativa e não o tipo do crime consumado (conclusão 5.3.9.).

O juízo técnico, cientifico ou artístico inerente à prova pericial impõe-se ao julgador, que o tem que aceitar (conclusão 5.3.10.), e se dele divergir terá de fundamentar a sua discordância (conclusão 5.3.11.), sob pena de violação do art. 163.º do CPP (conclusão 5.3.12.), e, violando o critério lógico de valoração das provas, resultam violados os comandos conjugados dos art.°s 410 n.º 2 e 97.º n.º 4 do CPP (conclusão 5.3.13.).

Ao crime de burla p.p. 313.º e 314.º do CP. na forma tentada, corresponde a pena máxima de 3 anos e 4 meses, e a mínima de dois meses (conclusão 5.3.14.), pelo que a prescrição do procedimento criminal ocorre em 5 anos - art. 117.º al. c) do C. Penal de 1982 (conclusão 5.3.15.), já decorridos em fase de inquérito (conclusão 5.3.16.).

4.3. Comecemos, pois, pela questão apresentada como prévia pelo segundo recorrente: a de saber se a norma constante no n.º 4 do art. 412.º do CPP, com a interpretação efectuada nos autos de que, "não estando transcrita a totalidade da prova produzida em audiência, não pode o tribunal apreciar a matéria de facto" é inconstitucional, por violação do princípio de exigência de duplo grau de jurisdição em matéria de prova - n.º 2 do art. 31 da CRP (conclusão 5.1.1.).

A decisão recorrida inicia a apreciação dos recursos interpostos para a Relação, da forma seguinte:

"Os recorrentes impugnam a decisão quanto à matéria de facto e de direito.

Quanto à matéria de facto invocam os vícios do n.º 2 do art.º410.º do CPP.

A audiência decorreu perante o Tribunal Colectivo

Embora tenham sido gravados os actos da audiência, o certo é que não se procedeu à transcrição das mesmas.

O art.º 412 do CPP refere que quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) os pontos de facto que considera incorrectamente julgados

b) as provas que impõem decisão diferente da recorrida c) as provas que devem ser renovadas.

O n.º 4 do referido preceito diz que" quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior, fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.

Não estando transcrita a totalidade da prova produzida em audiência, não pode o tribunal apreciar a matéria de facto.

Assim esta Relação apenas poderá apreciar os recursos quanto à matéria de direito, sem prejuízo do disposto no art.º 410, n.s 2 e 3 do CPP, conforme decorre do estipulado no art.º 428.º do referido diploma legal.

Ora mesmo que esta Relação não conhece da matéria de facto, isso não impede a possibilidade deste tribunal usar da faculdade conferida pelo preceito referido, o que de certo modo implica apreciação de matéria de facto, mas que não cabe rigorosamente na previsão do art. 428.

Na hipótese da Relação detectar vícios referidos nas alíneas do n. 2 do art.º 410 e deva conhecer de facto e de direito (art.º 430 do CPP) procederá à renovação da prova se se afigurar que a renovação perante ela permite evitar o reenvio do processo para novo julgamento.

Parece, assim, pode concluir-se que sendo o recurso circunscrito à matéria de direito, detectando-se um dos vícios do n. 2 do referido art. 410 do CPP, haverá que determinar o reenvio do processo para novo julgamento, visto a renovação da prova na Relação só ser admitida quando este tribunal conheça rigorosamente de facto e de direito."

É neste contexto que tem de ser integrada e, de acordo com ele, interpretada a expressão de que parte o recorrente para a falada questão prévia.

Ou seja, embora tenha interposto recurso de matéria de facto e de matéria de direito, o recorrente, não obstante o teor do n.º 2 do art. 412 do CPP, não indicou quais as provas documentadas a transcrever. Daí que o Tribunal da Relação tenha entendido que, face à não transcrição dessa documentação, derivada em primeira linha do incumprimento do ónus imposto pela Lei às partes interessadas, só conheceria do recurso como de revista ampliada previsto na versão originária do Código de Processo Penal (e mantida para o conhecimento pelas Relações de recursos versando estritamente matéria de direito) e que prevê o conhecimento desses recursos, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP.

E compreende-se essa posição que é tributária não (ou pelo menos não só) de uma mera não transcrição (que eventualmente poderia ser suprida pela audição dos suportes sonoros de gravação), mas de um outro entendimento. Da compreensão de que o labor do Tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida [art. 412, n. 2, als. a) e b) do CPP] e levam à transcrição ( n.º 4 do art. 412 do CPP).

Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência às provas e respectivos suportes.

É, assim, este entendimento que está presente no segmento da decisão recorrida atacado com a questão prévia.

E, como tem entendido este Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, o sistema de "revista alargada" a que se fez referência, satisfaz a exigência de duplo grau de jurisdição exigível à luz da constituição.

Por outro lado, importa ter em atenção a forma como na sua motivação o recorrente suscita esta questão, em ordem a concluir se tem este Tribunal de conhecer dela.

Foram os seguintes os termos usados pelo recorrente:

"2. QUESTÃO PRÉVIA

2.1. FALTA DE TRANSCRIÇÃO DA PROVA:

2.1.1. No recurso em processo penal, tem o arguido um prazo extremamente curto para poder apreciar a decisão ou deliberação que pretende impugnar, mormente que lhe permita formular um raciocínio claro de impugnação da decisão que se lhe apresenta desfavorável.

2.1.2. No recurso em matéria de facto, essa dificuldade resulta acrescida designadamente pela dificuldade e custo económicos de, em processos com o presente obter uma transcrição total da prova produzida num espaço de tempo tão reduzido.

2.1.3. Por outro lado, encontrando-se a prova devidamente gravada a audição dos depoimentos é tão fácil e porventura mais esclarecedora do que a sua transcrição. Qualquer pessoa com um gravador de cassetes vulgar, devidamente acomodada, eventualmente com auscultadores, pode ouvir e confirmar a prova produzida.

2.1.4. Nestes termos, a norma constante no n°. 4 do art. 412 do CPP, mormente com a interpretação efectuada nos autos de que, "não estando transcrita a totalidade da prova produzida em audiência, não pode o tribunal apreciar a matéria de facto " deve, ser considerada inconstitucional, por violação do princípio de exigência de duplo grau de jurisdição em matéria de prova inscrito no art. 31.º da Constituição da Republica Portuguesa."

Ora, este Tribunal já decidiu, no caso paralelo do art. 363.º do CPP, que quem não requereu oportunamente em sede de documentação da prova, em ordem a poder solicitar o seu reexame em 2.ª instância, não está em posição de poder equacionar a questão da constitucionalidade do regime do recurso em matéria de facto, pois seria colocar, em abstracto, a questão da constitucionalidade, cujo fiscalização não pertence aos tribunais judiciais (art. 204 da CRP) mas ao Tribunal Constitucional (art. 281 da CRP). Que, em matéria de inconstitucionalidade em recurso penal, o STJ só pode conhecer de questões concretas, ou seja, daquelas em que se aplica uma norma alegadamente inconstitucional ou em que se recusa a sua aplicação com base na sua pretensa inconstitucionalidade. Fora disso, estamos diante de uma fiscalização abstracta da constitucionalidade, que escapa à competência própria do Supremo (Ac. de 28-06-2001, proc. n.º 1188/01-5, do mesmo Relator)

No caso, o recorrente não cumpriu os deveres impostos por lei para ser admitido o recurso em matéria de facto, o que significa, como concluiu a Relação, que o recurso não seria conhecido nessa dimensão apesar de ter sido gravada a prova.

O que vale por dizer que também aqui, a Relação não estava colocada em posição de ultrapassar os limites impostos pela lei ao conhecimento de facto e que não deixou de conhecer da matéria de facto, por via da interpretação que lhe é atribuída pelo recorrente.

O que só por si, afasta o interesse em agir por banda do recorrente. É que mesmo na sua óptica sempre acabaria por ser inútil a decisão da questão de constitucionalidade, por não conduzir a uma alteração da posição quanto ao conhecimento do recurso em matéria de facto, por fundada noutros pressupostos.

Mas também no recurso para este Supremo Tribunal, como se viu, o recorrente não formula nenhum pedido ou desenha uma posição processual quanto ao recurso em matéria de facto que situe a questão de constitucionalidade que suscita, no domínio concreto.

Na verdade, pede que se declare inconstitucional a interpretação que sustenta ter a Relação feito do n.º 2 do art. 412 do CPP, mas não extrai daí qualquer conclusão em sede dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. Ou seja, pede-se a este Tribunal um julgamento abstracto que lhe não compete.

Como é sabido, os Tribunais Judiciais, nos processos que lhe são submetidos, devem recusar a aplicação de normas que consideram violar a Constituição ou os seus princípios - art. 204 da CRP -, numa fiscalização concreta da constitucionalidade.

Mas já não lhes cabe a fiscalização abstracta, mesmo que sucessiva, das normas, tarefa cometida ao Tribunal Constitucional - art. 281 da CRP.

Ora, não se tendo colocado o recorrente processualmente em situação de poder questionar a amplitude de reexame da matéria de facto pela 2.ª instância, o julgamento que pede acerca do sistema de recurso em matéria de facto, enquanto respeitador ou não do princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, apresenta-se como um pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade das normas que a regulam, que nem ele tem legitimidade para formular - art. 281, n.º 2 da CRP - nem os Tribunais Judiciais tem competência para conhecer.

Daí que se não possa aqui, por tais razões, dele conhecer, sem embargo de reconhecer que a expressão atribuída à Relação deve ser interpretada da forma referida, não tendo o sentido absoluto que lhe é atribuído.

Isso mesmo decidiu já este Tribunal ao escrever: "em matéria de inconstitucionalidade em recurso penal, o STJ só pode conhecer de questões concretas, ou seja, daquelas em que se aplica uma norma alegadamente inconstitucional ou em que se recusa a sua aplicação com base na sua pretensa inconstitucionalidade. Fora disso, estamos diante de uma fiscalização abstracta da constitucionalidade, que escapa à competência própria do Supremo." (Ac. de 10-10-96, proc. n.º 699/96, do mesmo Relator).

4.4. Ambos os recorrentes, como se viu, impunham a matéria de facto provada, abordando nas suas motivações o erro na apreciação da prova que imputam à decisão recorrida. Quer o primeiro recorrente, RNSP (conclusões 1.ª a 6.ª), quer o segundo recorrente, LJVP (conclusões 5.2.1. a 5.23.). Este último tem ainda por violados os art.ºs 163.º, 410 n. 2 e 97.º n.º 4 do CPP, por se ter afastado do juízo inerente à prova pericial, sem fundamentar a sua discordância (conclusões 5.3.10. a 5.3.13.).

No que se refere a este último aspecto, o recorrente impugna a decisão da primeira instância, como se não tivesse colocado a questão à Relação e este Tribunal Superior não tivesse proferido um acórdão sobre o respectivo recurso.

Não impugnou, pois, o recorrente a posição que a Relação tomou (ou não) sobre essa questão, ou seja, não impugnou nessa parte a decisão da Relação, a decisão recorrida, mas continuou a impugnar a decisão da 1.ª instância eu não era recorrida.

E face a essa ausência de impugnação da decisão recorrida quanto ao sentido em que decidiu tal questão, ou a não decidiu, não pode agora este Tribunal dela conhecer.

Aliás, para que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse conhecer desta questão, tratando-se, como se trata de um tribunal de revista, necessário se tornava que se verificasse alguma das situações previstas no n.º 2 do art. 722 do CPC, aplicável ao processo penal (art. 4 do CPP): "ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova".

O que não é sequer sustentado pelo recorrente.

Quanto ao erro na apreciação da prova invocado pelos recorrentes, mais uma vez se apresenta como impugnada a decisão da 1.ª instância como se a Relação não tivesse proferido já um acórdão (esse sim aqui recorrido) que se pronunciou sobre a questão.

De todo o modo, como é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, não lhe cabe conhecer, em recurso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, salvo quando se trata de recurso directo de decisão final do Tribunal de Júri (cfr., por todos, os Acs de 29.3.01, Proc. n.º 874/01-5, 21.6.01, Proc. n.º 1294/01-5, de 11.10.01, Proc. n.º 1952/01-5, de 15.11.01, Proc. n.º 3258/01-5 e de 18.4.02, Proc. n.º 1082/01-5, do mesmo Relator).

Por maioria de razão quando já a 2.ª instância deles conheceu.

É assim manifestamente improcedente o recurso para o STJ que tem por objecto a decisão da primeira instância quando esta já foi apreciada em recurso pela Relação, designadamente quando se persiste na discordância da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância e acatada na sua integralidade por um Tribunal da Relação, que sobre ela se pronunciou por via de recurso (Ac. de 28.6.01, proc. n. 1188/01-5, do mesmo Relator)

"Tratando-se de matéria de facto, mesmo sob a invocação do vício de erro notório na apreciação da prova, tem entendido o STJ, a uma voz, que lhe não cabe pronunciar-se, pois tendo a natureza de tribunal de revista não lhe cabe reapreciar a questão de facto, por maioria de razão quando já foi exercido efectivamente um duplo grau de jurisdição de matéria de facto pela Relação." (Ac. de 6.6.02, proc. n.º 1874/02-5, do mesmo Relator).

Nesta parte se rejeitam os recursos, por serem manifestamente improcedentes, o que logo no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pôde concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudência sobre essa questão que o recurso estava nessa parte votado ao insucesso.

4.5. No domínio da matéria de direito, sustenta o recorrente RNSP que foram violados a al. c) do art. 314, o art. 313 do C. Penal de 82, devendo ter-se convolado para o crime de burla simples e declarado prescrito o procedimento criminal, ao abrigo da alínea c) do n. 1 do art. 117 do mesmo diploma.

Pois que aquela al. c) do art. 314°, foi interpretada no sentido de que o agente podia e devia reparar o valor do prejuízo, quando tal procedimento não lhe era acessível, nem possível, por estar em causa a posse ou a propriedade dum prédio (e na sua restituição consistiria a reparação do prejuízo) que não estava na sua disponibilidade, mas sim na disponibilidade do Tribunal.

Decidiu-se, quanto a este ponto, no acórdão recorrido:

"Referem os recorrentes que por falta do elemento prejuízo patrimonial, não se verifica a prática do crime de burla..

O art. 313 n. 1 do CP de 1982 (versão original aplicada ao caso sub judice) refere que " quem com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a outra pessoa, prejuízo patrimonial, "

O art. 314 al. c) refere a prisão será de 1 a 10 anos se; "o valor do prejuízo for consideravelmente elevado o não for reparado pelo agente, sem dano ilegítimo e terceiro, até ser instaurado o procedimento criminal.

- A doutrina dominante adere ao conceito económico-jurídico de património, que reconduz o património ao conjunto de todas as situações e posições com valor económico, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica que pelo menos cujo exercício não é desaprovado por essa mesma ordem jurídica. (Com. Conimbricense do C.P.T. II, pag. 279)

Para se saber o que é o enriquecimento ilegítimo, há que atender ao conceito civilístico de enriquecimento sem causa, que tem como requisitos:

a) o enriquecimento de alguém

b) consequente empobrecimento de outrem

c) o nexo de causalidade entre o enriquecimento do primeiro e o empobrecimento de outrem .

d) falta de justificação do enriquecimento Consta da matéria de facto que os arguidos agiram em comunhão de acções e intenções.

O crime dos autos consumou-se com a transmissão da propriedade do prédio referido, para o arguido RNSP. Embora posteriormente essa transmissão tenha sido anulada, o crime não deixa de ter sido cometido. Esta anulação poderá ter relevância para a medida das penas a aplicar, mas é irrelevante quanto ao cometimento do crime."

Em causa neste momento está tão só a consideração a parte referente à não reparação do prejuízo, que o recorrente persiste ter funcionado indevidamente como agravante que modelou o tipo qualificado de burla, e que reduz ou equipara à restituição in natura.

Sucede, porém que o que funciona como circunstância que modela o tipo agravado no art. 314 do C. Penal de 1982 é antes a circunstância de se tratar de prejuízo consideravelmente elevado. É da mais elevada ilicitude, que esse prejuízo evidencia, que nasce a agravação. O segmento final da al. c) "e não for reparado pelo agente, sem dano ilegítimo de terceiro, a té ser instaurado o procedimento criminal" não tem por fim fundar a agravação, antes pelo contrário, visa afastar tal agravação quando, por virtude da reparação sem dano ilegítimo de terceiro, se tiver reduzido a ilicitude e logo a razão da gravação ditada pelo primeiro segmento da norma.

Portanto, nos casos em que a natureza das coisas não permitir a reparação do prejuízo causado, funciona a agravativa, sem que se possa ter por discriminados negativamente os agentes. É que não podendo ser reparado o prejuízo causado pelo agente, não é diminuído o grau de ilicitude por forma a justificar uma moldura penal mais branda.

De todo o modo, reparação do prejuízo não equivale a restituição (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, O Código Penal de 1982, 1.ª Edição, IV, pág. 189 e 74-5). O próprio legislador do C. Penal de 1982 trata conjuntamente a restituição e a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, no lugar paralelo do art. 301.º a propósito da valor atenuativo da restituição do objecto do furto ou da apropriação ilícita.

E compreende-se que no caso de furto ou apropriação ilícita a reparação seja em primeira linha a restituição da coisa e, só sendo esta impossível, a reparação integral, pois que o objecto do crime foi exactamente a apropriação ilícita da coisa.

Já na burla de que trata o falado art. 314 o crime traduz-se num causar de prejuízo patrimonial, cuja forma de ressarcimento é a reparação e não a restituição, por via de regra.

Com efeito, no caso, o crime traduziu-se na venda de um imóvel, destinado exactamente a ser vendido, não pelo seu valor real, mas por um valor muito mais baixo. Assim a reparação consistia em repor a diferença entre o valor real e o valor da venda efectuada, o que esteve sempre ao alcance do recorrente e se mostra, aliás, quantificado no acórdão recorrido.

Nenhuma censura merece, pois, a qualificação jurídica efectuada, pelo que fica prejudicada a questão do procedimento criminal e que era totalmente tributária da qualificação da conduta.

4.6. Já o recorrente LJVP pede a convolação para a tentativa, declarando-se a prescrição do respectivo procedimento criminal, por ao crime de burla p.p. 313 e 314 do C. Penal na forma tentada, corresponder a pena máxima de 3 anos e 4 meses, e a mínima de dois meses, pelo que a prescrição do procedimento criminal ocorre em 5 anos, já decorridos em fase de inquérito.

Como se viu já, a decisão recorrida entendeu, e bem, que o crime dos autos se consumou com a transmissão da propriedade do prédio referido, para o arguido RNSP. A anulação posterior dessa transmissão, independentemente da sua relevância em termos de medida da pena, não significa que a consumação não tenha ocorrido, o mesmo se devendo dizer em relação aos registos.

Decidiu já este Supremo Tribunal que o crime de burla dos art.ºs 313.º, n.º 1, e 314.º, al. c), do C. Penal, redacção de 1982, e 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do C. Penal, versão revista de 1995, é um crime que só se perfectibiliza com a existência de um prejuízo patrimonial, um crime que só se pode ter como verdadeiramente consumado com o prejuízo patrimonial do "burlado" ou de terceira pessoa. Daí que, o momento da consumação no crime em questão seja o da prática do acto de onde vem a resultar o prejuízo patrimonial - nas situações mais frequentes, o da entrega jurídica ou material da coisa (Ac. de 7.10.99, proc. n.º 560/99); no caso a celebração da compra e venda.

Daí que fique prejudicada a problemática da tentativa propriamente dita do crime de burla agravada, já abordada por este Tribunal nos Acs. de 14.12.88, BMJ n.º 382, pág. 314, de 14.6.95, Acs do STJ ano III pág. 235 e de 25.9.97, BMJ n.º 469 pág. 225, não abordada pelo recorrente.

Como também o fica a questão da prescrição do procedimento criminal, nos termos decididos pela Relação.

Com efeito, dada a qualificação jurídica efectuada, e que não merece censura, o prazo prescricional é de 10 anos e não de 5 anos como pretendem os recorrentes, pois que o crime foi praticado em 27.7.90, tendo os arguidos sido notificados do despacho de pronúncia em 27.6.99, interrompendo-se então a prescrição do procedimento criminal. E ainda não decorreu o prazo normal acrescido de metade, ressalvado o tempo de suspensão.


V

Pelo exposto acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento aos recursos, rejeitando-os parcialmente na parte em que era impugnada a matéria de facto, por manifesta improcedência.

Custas pelos recorrentes com 5 UC de taxa de justiça para cada, que pagarão 3 UC no termos do art. 420, n. 5 do CPP.

Lisboa, 24 de Outubro de 2002

Simas Santos,

Abranches Martins,

Oliveira Guimarães,

Dinis Alves.