Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4719/10.0TBMTS-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
ESCRITURA PÚBLICA
CONFISSÃO DE DÍVIDA
NEGÓCIO UNILATERAL
VALIDADE
EXEQUIBILIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO EXECUTIVA (TÍTULOS EXECUTIVOS) - RECURSOS (DELIMITAÇÃO DO RECURSO)
Doutrina: - ALBERTO DOS REIS, "Processo de Execução", I, 119;
- ANSELMO DE CASTRO, "Acção Executiva Singular", P.37.
- ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral”, 9ª ed., pp.221, e ss..
- CASTRO MENDES, Direito Processual Civil”, I, p.333.
- LEBRE DE FREITAS, "A Acção Executiva", 3ª ed., P.62 ; “CPC, Anotado”, 1º, p.92.
- MANUEL ANDRADE, “Teoria Geral”, II - 4ª reimp., p.122
- PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Teoria Geral”, 2ª ed., 340),
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 220.º, 236.º A 239.º, 371.º, 458.º, 1142.º
CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, 45.º, 46.º, N.º1, AL.B), 684.º, N.º4,
Sumário : I - O reconhecimento de dívida e promessa de pagamento, a que se refere o art. 458º do C. Civil, configura um título em que alguém, unilateralmente, se confessa devedor de uma prestação, sem indicação da respectiva causa, isto é, do negócio que está na origem do crédito, ou ainda, da obrigação anteriormente constituída.

II - Se não constar do documento a causa da obrigação e a válida constituição da obrigação fundamental a que se reporta o crédito reconhecido estiver sujeita a determinada forma, mais solene que a do documento utilizado como título, o documento não poderá constituir já título executivo.

III -O nomen juris utilizado pelas partes ou pelo documentador não é decisivo, para efeitos de qualificação da categoria, tipo ou espécie de negócio efectivamente celebrado e, consequentemente, para identificação do regime jurídico concretamente aplicável.
A determinação do regime jurídico por que deve reger-se a formação, execução e extinção de determinado negócio jurídico pressupõe a sua prévia qualificação, a realizar por via interpretativa a incidir sobre o conteúdo do clausulado que integra as estipulações ou declarações negociais dos contraentes.
Concluindo-se, por via interpretativa, que uma escritura pública, denominada de “Confissão de Dívida com Hipoteca”, utilizada como título executivo, documenta o conteúdo de negócio jurídico bilateral, constitutivo de obrigações, emergentes de um contrato de mútuo validamente celebrado - que não apenas de um negócio unilateralmente recognitivo de uma obrigação, como sucede com os actos que o art. 458º especialmente contempla -, tem de haver-se o título como dotado quer de exequibilidade extrínseca quer também de exequibilidade intrínseca.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA e BB deduziram oposição à acção executiva para pagamento de quantia certa – 386.221,53€ e juros -, fundada em escritura pública de “confissão de dívida”, que lhes moveu CC.
Alegam, em suma, que não receberam da Exequente qualquer quantia a título de empréstimo e que, ainda que assim não fosse, sempre tal empréstimo seria nulo por falta de forma, não podendo a nulidade ser suprida por qualquer outro documento.

A Exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição. Alegou que os Oponentes não invocam a falsidade do título executivo, nem a existência de qualquer vício da vontade que pudesse inquinar a validade de tal documento, acrescentando que o documento dado à execução formaliza o contrato de mútuo, mas, mesmo que assim não fosse, sempre os Executados estariam obrigados à restituição à Exequente da quantia que lhes foi entregue, acrescida dos juros de mora legais.

No despacho saneador julgou-se a oposição parcialmente procedente, com a extinção da execução quanto ao montante de 3.174,53€, que representa juros moratórios convencionados, mas, no mais, determinou-se o prosseguimento da execução.


Os Executados interpuseram este recurso per saltum, pretendendo ver revogada a sentença e declarada a extinção total da execução, para o que argumentam nas conclusões da alegação, que se transcrevem:

1. Proposta uma execução com base em certo documento (dotado, formalmente, de força executiva), o fundamento da execução nunca é o próprio documento, outrossim a relação jurídica a que o documento se reporta.
2. No caso dos autos, o fundamento do pretenso crédito da Exequente é um alegado contrato de mútuo de 386.221,53 euros.
3. Não é possível um documento de confissão de dívida suportar uma acção executiva quando a confissão se refere a um (alegado) mútuo de valor superior a 25.000 euros, sem que tal contrato de mútuo tenha sido celebrado segundo a forma legalmente prescrita, forma essa que é o modo pelo qual devem ser expressas as declarações negociais constitutivas desse contrato.
4. Não pode ser admitida execução para pagamento de quantia certa, a título de reembolso de mútuo de valor superior a 25.000 euros, se a execução não se fundar na respectiva escritura pública ou no respectivo documento particular autenticado, nos termos do disposto no art. 1143º do Código Civil.
5. Para os efeitos do disposto no art. 364º do Código Civil, a formalidade exigida pelo art. 1143º do Código Civil para a celebração de contrato de mútuo constitui um requisito ad substantiam (e não meramente ad probationem), cuja falta é insusceptível de ser colmatada por outra qualquer via.
6. Como tal, o n° 2 do art. 364º do Código Civil jamais poderá valer à Exequente destes autos, isto é, a omissão da forma prescrita no art. 1143º do Código Civil não pode ser suprida por outra via, nomeadamente pela confissão de dívida ajuizada.
7. Na hipótese de a Exequente ter realmente emprestado 386.221,53 euros aos Executados, se as declarações negociais relativas ao negócio tivessem observado a forma exigida por lei, o título executivo destes autos teria de ser o respectivo documento, e não qualquer outro, pela que a presente execução não poderia ter por base o documento anexo ao requerimento executivo, dado que o mesmo (sendo mera confissão, sem virtual idade constitutiva do negócio) não tem condições de exequibilidade.
8. E se, na mesma hipótese, as declarações negociais não tivessem sequer observado a forma legal, o alegado negócio de mútuo seria originariamente nulo, por vício de forma, não podendo essa falta ser suprida por um qualquer outro documento.
9. A existência de uma confissão de dívida semelhante à constante do documento dado à execução apenas concede àquele que beneficia da confissão a dispensa da prova da relação fundamental, que se presume até prova em contrário, tal como resulta do n° 1 do art. 458º do CC.
10. No nosso ordenamento jurídico, a regra é a da causalidade das obrigações e não a da abstracção, tanto mais que negócios puramente abstractos apenas existem no âmbito dos títulos de crédito, no direito comercial.
11. Dado que a presunção fixada no nº 1 do art. 458º do Código Civil é apenas relativa, sempre teria de ser proporcionada aos Executados a oportunidade de ilidirem a presunção, o que é uma decorrência do princípio do contraditório e do direito de defesa, nos termos do art. 3º do Código de Processo Civil.
12. Essa ilisão pode ser feita com recurso a argumentos de direito material, discutindo-se tanto a validade formal como a validade substancial do negócio, acrescendo que a natureza real quoad constitutionem do contrato de mútuo sempre impõe que ao alegado mutuário seja concedida a possibilidade de demonstrar que nenhuma quantia lhe foi entregue no âmbito do alegado mútuo.
13. Ao contrário do que é (implicitamente) admitido na douta decisão recorrida, a circunstância de haver uma confissão de dívida expressa em escritura pública não impede a discussão (nomeadamente em oposição à execução) relativa à validade substancial e formal da obrigação assumida.
14. Da conjugação dos arts. 1143°, 220°, 364°.1 e 458°.2 do Código Civil resulta que o documento dado à execução não tem a virtualidade de suprir a inobservância da formalidade exigida por lei para a emissão das declarações negociais relativas ao pretenso mútuo de 386.221,53 euros.
15. A douta sentença recorrida, ao mesmo tempo que ignorou o regime do art. 458° do Código Civil, invocou o disposto no art. 371° do Código Civil, reconduzindo, indevidamente, a força probatória do documento autêntico à assunção da realidade material subjacente ao declarado perante o notário, realidade que está sempre excluída daquela força probatória.
16. Tal opção levou a que o Tribunal convertesse num negócio abstracto aquilo que, por definição legal, é um negócio causal.
17. Numa execução baseada em documento não constitutivo de um contrato de mútuo e do qual conste apenas a obrigação de entregar a quantia alegadamente mutuada, a declaração de nulidade do negócio correspondente implica que o documento não possa valer como título executivo, impondo a imediata extinção da execução.
18. Nesse caso, declarada a nulidade, e mesmo assumindo que o alegado mutuário recebeu a quantia (recebimento não confirmado sequer nestes autos, já que o Tribunal impediu a prova sobre essa matéria), não será possível fazer prosseguir a execução com base no mesmo documento, a pretexto de que, então, se estará já em sede de efeitos da declaração de nulidade, providenciando pela restituição da quantia entregue, pois isso implicaria uma alteração da causa de pedir, não autorizada neste contexto.
19. Serão inconstitucionais, por ofenderem o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, na vertente do direito à defesa e ao contraditório, consagrado no art. 20° da Constituição da República, os arts. 371° e 458° do Código Civil e o art. 3° do Código de Processo Civil, se interpretados no sentido de que o subscritor de um documento autêntico de confissão de dívida relativa a um mútuo, demandado em execução com base nesse instrumento, fica impedido de questionar a validade formal do negócio subjacente ou de alegar que não recebeu a quantia em causa.
20. Mostram-se violados os arts. 220°, 286°, 289°, 364°, 371°, 458° e 1143° do Código Civil, bem assim os arts. 3° e 273° do Código de Processo Civil, impondo-se a revogação da douta decisão recorrida.

A Recorrida respondeu.
Sustenta que a escritura pública não traduz um negócio jurídico unilateral, mas uma “Confissão de dívida” com carácter causal, não sendo aplicável ao título executivo o disposto no art. 458º C. Civil. Acrescenta que a escritura pública cumpre os necessários requisitos de forma, mas, mesmo considerando-se a nulidade do mútuo, a escritura, por força da confissão nela exarada, continua a ser título executivo.





2. - A questão proposta consiste em saber se a escritura pública de “Confissão de Dívida com Hipoteca” dada à execução para cobrança coerciva da quantia nela referida, constitui título executivo, nomeadamente, por lhe ser aplicável o regime do negócio jurídico unilateral de reconhecimento de dívida.

Subsidiariamente, se, qualificado o negócio na previsão do art. 458º C. Civil e admitida a exequibilidade do título, com o prosseguimento da execução, sem que os Executados sejam admitidos a provar a inexistência da obrigação, ocorre interpretação daquele preceito, do art. 371º do mesmo Diploma e do art. 3º CPC em violação do direito à defesa e do contraditório consagrado no art. 20º da Constituição da República.





3. - Fundamentos de facto:

1. Foi dado à execução um documento escrito, elaborado em 8/02/2010, perante o Notário, entre a Exequente e DD que outorgou em representação dos Executados;
2. Esse documento foi assinado pela Exequente e por DD e nele se lê: "PELA PRIMEIRA OUTORGANTE, NA INVOCADA QUALIDADE, E PELA SEGUNDA OUTORGANTE, FOI DITO: Que, pela presente escritura, se confessa os seus representados solidariamente devedores, à segunda outorgante, da importância de TREZENTOS E OITENTA E SEIS MIL DUZENTOS E VINTE E UM EUROS E CINQUENTA E TRÊS CÊNTIMOS, quantia esta que dela recebeu, a título de empréstimo gratuito, não vencendo, assim, juros remuneratórios". "Que a referida dívida será liquidada até ao dia trinta de Abril próximo”. "Que findo o referido prazo e no caso de mora, ao capital mutuado acrescem juros à taxa anual de quatro por cento ao ano, a título de cláusula penal". "Que o não pagamento da quantia atrás identificada estabelecido, terá por efeito o imediato vencimento da totalidade da dívida, que poderá ser imediatamente executada". "Que, em caução e garantia do identificado empréstimo, bem como de eventuais juros moratórios e despesas até ao valor máximo de quatrocentos e oitenta e seis mil quinhentos e vinte e sete euros e noventa cêntimos, constituí, pela presente, em nome dos seus representados, a favor da segunda outorgante, hipoteca sobre o seguinte bem imóvel: Prédio urbano, constituído por casa de rés-do-chão e andar, com duas garagens e logradouro (…), registado a favor dos representados da primeira outorgante, pela inscrição AP. Setenta, de 2002110/25, inscrito na matriz sob o artigo 1.350, com o valor patrimonial de € 72.270,19 ”;
3. No mesmo documento lê-se ter a Exequente declarado " Que aceita a presente confissão de dívida e hipoteca, nos termos exarados”.





4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Na decisão impugnada considerou-se que o documento dado à execução é título executivo e que, como documento autêntico, com a força probatória conferida pelo art. 371º C. Civil, é inócua a alegação dos Executados de não recebimento, a título de empréstimo, da quantia nele declarada. Mais se considerou e julgou que “inexistiu a redução a escrito do contrato de mútuo que esteve na origem da confissão de dívida em apreciação”, pelo que “o contrato que funda a confissão de dívida é nulo por falta de forma” e, em consequência, determinou-se a restituição da quantia que consta na confissão de dívida.

Os Recorrentes, partindo do pressuposto, acolhido na sentença recorrida, de que a “confissão de dívida ajuizada” não satisfaz a formalidade legal exigida para a validade do contrato de mútuo, carecendo, por isso de condições de exequibilidade, já que, incluída na previsão do art. 458º C. Civil, apenas concede ao beneficiário da confissão a dispensa da prova da relação fundamental – causa da obrigação -, por presumida até prova em contrário, direito que não foi conferido aos Executados, ignorando-se o regime desse art. 458º, defendem a extinção da execução.



4. 2. - Conforme o exigido pelo art. 45º do Código de Processo Civil, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”, no caso o pagamento de quantia certa.
Enunciando e definindo as espécies de títulos executivos, o art. 46º-1-b) do mesmo diploma logo reconhece os documentos exarados ou autenticados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.
O título executivo apresenta-se, assim, como requisito essencial da acção executiva e há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, isto é, documento susceptível de, por si próprio, revelar, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta a formulação da pretensão exequenda.
Será, na definição de CASTRO MENDES (Direito Processual Civil”, I, 333, “o documento que, por oferecer demonstração legalmente bastante da existência de um direito a uma prestação, pode, segundo a lei, servir de base à respectiva execução”.

Meio probatório da relação obrigacional creditícia existente entre exequente e executado, o título executivo avulta como condição necessária, mas também suficiente da acção executiva, posto que apresente os requisitos externos de exequibilidade que a lei prevê.
Por isso, verificados esses requisitos, por reconhecida se tem a exequibilidade, presumindo-se a existência do direito que o título corporiza, só susceptível de ser afastada pela prova da inexigibilidade ou inexistência do direito, a alegar e provar pelo executado em oposição à execução.


De referir que, sendo embora o título executivo condição necessária da respectiva acção, ele não constitui a sua causa de pedir, que continua a ser a relação substantiva que está na base da sua emissão.
O que acontece é que, dados os referidos requisitos de exequibilidade exigidos, não há, em regra necessidade de alegação dos factos constitutivos do direito do exequente no respectivo requerimento executivo, já que o documento que constitui o título faz presumir a existência da causalidade da obrigação nele declarada com a segurança tida por suficiente.


Assim, para que os documentos referidos na citada al. b) constituam título executivo importa que deles conste a constituição de uma obrigação, cujas declarações negociais formalizem, ou “que neles se reconheça a existência de uma obrigação já anteriormente constituída. Neste último caso encontram-se a promessa de cumprimento ou reconhecimento de uma dívida (art. 458º C. Civil), ou, mais amplamente, a confissão da realidade de factos constitutivos de obrigações (arts. 352º CC e 358º-2 CC)” – documentos recognitivos (LEBRE DE FREITAS, “CPC, Anotado”, 1º, 92).



4. 3. - O reconhecimento de dívida e promessa de pagamento, a que se refere o art. 458º do C. Civil, configura um título em que alguém, unilateralmente, se confessa devedor de uma prestação, sem indicação da respectiva causa, isto é, do negócio que está na origem do crédito, ou ainda, da obrigação anteriormente constituída.
Como escreve PEDRO PAIS DE VASCONCELOS (“Teoria Geral”, 2ª ed., 340), «a promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida, unilaterais e nus, são entendidos hoje pelo Direito com um estatuto ambíguo: por um lado, não são mais que simples instrumentos de documentação ou documentos probatórios de obrigações a que se referem (quirógrafos), por outro, não são seus constituintes originários. A invocabilidade de excepções ex causa pelo devedor, consagrada no art. 458º, significa que as declarações e promessas unilaterais a que se refere não são abstractas mas sim causais».

Quando assim é, como determina o mencionado artigo 458º, se o declarante não indica a respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, ou seja, o Tribunal tem de admitir a existência de causa da obrigação até que o devedor a ilida.
Desnecessário, pois, perante um declaração de promessa de prestação ou de reconhecimento de uma dívida utilizada como título executivo que dela conste a causa da obrigação, desde que emerja do documento o reconhecimento de uma dívida que a lei substantiva presuma, nos termos acolhidos pelo art. 458º.

Com esse sentido e alcance deve valer, como já aludido supra, o regime da al. b) do art. 46º CPC.



4. 4. - É certo que, não constando do documento a causa da obrigação, poderá acontecer que a válida constituição da obrigação fundamental a que se reporta o crédito reconhecido esteja sujeita a determinada forma, mais solene que a do documento utilizado como título.

Se tal acontecer, sendo a causa do negócio elemento essencial deste - pois que as declarações que a consubstanciam, revestidas de determinada formalidade, serão requisitos de validade ad substantiam -, o documento não poderá constituir já título executivo (art. 220º C. Civil).
Não estaria, por isso, um determinado contrato, no caso de mútuo, por razões formais, coberto por um reconhecimento de dívida como título executivo, já que não estariam revestidas da solenidade necessária as declarações negociais de um dos outorgantes.

E assim será porque, como é pacificamente reconhecido, a eficácia meramente processual não pode prevalecer sobre a eficácia substancial da relação jurídica subjacente, de sorte que se o executado demonstrar, no processo de oposição, que o direito de crédito, cuja existência o título faz supor, não existe na realidade ou é inválido no plano da validade formal, a eficácia do título cai, é submergida e vencida pela supremacia da relação jurídica substancial, não podendo admitir-se a execução (A. DOS REIS, "Processo de Execução", I, 119; ANSELMO DE CASTRO, "Acção Executiva Singular", 37); LEBRE DE FREITAS, "A Acção Executiva", 3ª ed., 62)

Falharia, pois, na tese considerada, a denominada exequibilidade intrínseca, que o título recognitivo exequendo (documento de reconhecimento de uma obrigação) não comportaria.



4. 5. - O posicionamento exposto, que reflecte o nosso entendimento sobre as questões suscitadas no recurso, parece não divergir substancialmente da argumentação e conclusão a que chegam os Recorrentes em suas doutas alegações donde que, fossem, a nosso ver, acertados os pressupostos de que partem e a sua pretensão estaria em condições de proceder.


Só que não podemos acompanhar o entendimento proposto, do mesmo modo que se não sufraga o adoptado na decisão que através dele se censura.

Como notado, não estará em causa a denominada exequibilidade extrínseca do título dado à execução, mas apenas a intrínseca.
Convergem os Recorrentes e sentença recorrida em que se está perante um mero reconhecimento de dívida, corporizado em documento que, embora autêntico, tem natureza meramente recognitiva, escapando ao respectivo conteúdo as declarações negociais exigidas para a constituição de um contrato de mútuo, donde a nulidade do negócio invocado.
Aliados na defesa da tese da nulidade do negócio, divergem a seguir quanto às consequências, na medida em que, apesar disso, o julgador admitiu a «validade do título» para cobrança coerciva do capital a restituir, consequência que os Recorrentes rejeitam, esgrimindo com o regime do art. 458º CC, para concluírem, peremptoriamente, que, “toda a discussão se limita à questão da nulidade do mútuo que a Exequente invoca … e, reconhecida a nulidade, a execução deixa de ter suporte”.

Acompanham-se os Recorrentes na transcrita conclusão e, por isso, como Eles – o que, de resto, resulta do que se deixou explanado em que se discorreu sobre o regime jurídico aplicável em razão da natureza e requisitos de exequibilidade do título -, também se entende que a questão fulcral é a de tomar posição sobre a validade ou invalidade formal do negócio em causa.



4. 6. - A escritura pública cujo conteúdo se transcreveu na descrição dos elementos de facto contém declarações do documentador (a Sra. Notária) da Exequente e, através de procurador, dos Executados, que, perante aquela, «compareceram como outorgantes».

As declarações desses «outorgantes», ora Exequente e Executados, constituem, ninguém o questiona, declarações negociais, pois que, clara e expressamente, para qualquer observador externo, se revelam por palavras escritas que, por convenção dos intervenientes, que para o efeito se dirigiram a um Cartório Notarial, surgem como directamente dirigidas a exteriorizar certo conteúdo de vontade negocial (cfr. M. ANDRADE, “Teoria Geral”, II - 4ª reimp., 122).

Tais declarações, a cuja emissão não se atribui qualquer vício, foram emitidas por ambas as Partes, e mútua e reciprocamente dirigidas, como se colhe da intervenção simultânea no acto documentado.


A determinação do regime jurídico por que deve reger-se a formação, execução e extinção de determinado negócio jurídico pressupõe a sua prévia qualificação, a realizar por via interpretativa a incidir sobre o conteúdo do clausulado que integra as estipulações ou declarações negociais dos contraentes.

A natureza de um negócio jurídico não é necessariamente a correspondente à designação ou denominação que as partes ou o respectivo documentador lhe atribuíram ou à qualificação que dele possam ter efectuado.
Relevante é a qualificação que o intérprete venha a fazer, determinando o sentido com que deve valer a declaração formalizada, por aplicação das normas que estabelecem as regras de interpretação e integração das declarações negociais, consubstanciadas nos arts. 236º a 239º C. Civil, sem vinculação às denominações que os intervenientes no acto documentado tenham adoptado.
O nomen juris utilizado pelas partes ou pelo documentador, sendo, embora, um dos elementos que o intérprete não deve desprezar, não é, assim, decisivo para efeitos de qualificação da categoria, tipo ou espécie de negócio efectivamente celebrado e, consequentemente, para identificação do regime jurídico concretamente aplicável.

Trata-se, então, de saber o que as Partes efectivamente quiseram, ou qual o significado das suas palavras ou expressões, aos olhos de um declaratário médio (normal), colocado na posição do declaratário real.



4. 7. - Como pode ler-se na escritura, os ora Executados, através da sua representante voluntária, confessaram-se ou declararam-se devedores solidários à ora Exequente, do capital exequendo, mais declarando, no mesmo acto, terem recebido essa quantia, a título de empréstimo gratuito, estabelecendo o prazo de liquidação. Declararam, ainda, estabelecer uma cláusula penal moratória e constituírem uma garantia hipotecária.
Mais consta do documento que, no mesmo acto, a Exequente declarou aceitar a “confissão de dívida e hipoteca, nos termos exarados”, vale dizer, em conformidade com as declarações emitidas pela procuradora dos Executados.


Detecta-se, assim, uma convergência de declarações de vontade, geradora de obrigações recíprocas para ambos os declarantes, sendo bem evidente o acordo de vontades materializado na proposta de um dos outorgantes (os ora Executados), com a aceitação do outro (a Exequente), em composição de interesses opostos, como cabe à figura negocial do contrato (cfr. A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, 9ª ed., 221, e ss.).

Aí se surpreendem, com efeito, os elementos constitutivos do contrato de mútuo, no conceito que dele fornece o art. 1142º C. Civil, na mais rigorosa tese, a exigir, para a respectiva constituição, como elemento essencial, a tradição da coisa emprestada, apresentando-se, face à lei, como um contrato real quoad constitutionem.
Na verdade, as declarações dos outorgantes reflectem, sem qualquer dúvida interpretativa, a declaração de efectiva entrega, correspondente ao recebimento de uma quantia em dinheiro (tradição), a título de empréstimo gratuito – deixando inequivocamente enunciada a causa da transferência do dinheiro entregue e da respectiva obrigação de restituição -, bem como a dos termos dessa obrigação de restituição, designadamente quanto a prazos e consequências do retardamento da prestação restitutiva, tudo com a correspondente declaração de aceitação.
Por outro lado, constando, como constam, essas declarações de escritura pública nada se opõe, em sede de requisitos de forma, à validade do contrato.

Resta referir, a encerrar este ponto, duas notas complementares: - a primeira para dizer que, se alguma dúvida subsistisse, a convencionada garantia real, mediante o acoplado contrato de hipoteca, sempre apontaria, na globalidade da economia do pactuado, no mesmo sentido, no tocante à integração das declarações negociais, por indagação da vontade dos Outorgantes; - depois, que, em sede interpretativa, a utilização da expressão “confissão de dívida” e a declaração em que um outorgante se “confessa devedor” ao outro, utilizadas na escritura, correspondem, ao que se julga conhecer, a uma prática notarial comum, utilizada nas escrituras que formalizam contratos de mútuo com hipoteca, para traduzir a declaração, porventura mais correcta de que receberam, mediante entrega, por empréstimo, a quantia em dinheiro (ou outra coisa fungível). Apesar disso, no caso, nem sequer falta a declaração de recebimento e até a referência ao “capital mutuado”.

Contrato de mútuo é, pois, a qualificação que se atribui ao negócio jurídico corporizado no documento dado à execução, contrato que é substancial e formalmente válido e, como tal, sujeito ao respectivo regime jurídico.



4. 8. - O nomen juris «Confissão de Dívida», qualificação aceite pela decisão recorrida, a que as posição defendida pelos Recorrentes ficou agarrada e a partir do qual se enredou no desenvolvimento da tese que sustenta, a partir do negócio unilateral, com causa apenas presumida, com o regime previsto no art. 458º C. Civil, não tem, como se procurou demonstrar, apoio jurídico.

O título executivo é constitutivo de obrigações, emergentes do contrato de mútuo, que não apenas unilateralmente recognitivo de uma obrigação.
Trata-se de um negócio bilateral – contrato, irrelevando a sua qualificação como bilateral ou unilateral -, e não simplesmente de um negócio unilateral, como sucede com os actos que o art. 458º especialmente contempla.
Com efeito, como a norma bem demonstra, a sua disciplina está reservada a (i) simples declarações unilaterais de promessa de uma prestação ou reconhecimento de dívida e (ii) sem indicação da respectiva causa, o que, manifestamente, por quanto se deixou referido, nada tem que ver com o negócio que as Partes verteram no documento que é título executivo.

Porque assim é, o título dado à execução, formalizando, como formaliza validamente, com expressa enunciação da causa, em documento dotado de força probatória plena, a constituição de um contrato de mútuo, fonte da nele reconhecida obrigação de restituição a prestar pelos Executados, mostra-se dotado quer de exequibilidade extrínseca, como vem aceite, quer também de exequibilidade intrínseca.

A consequência será, então, a improcedência das conclusões dos Recorrentes e, mau grado o entendimento adoptado quanto à validade do contrato de mútuo, a manutenção da decisão impugnada [agora susceptível de alteração quanto à clausula penal moratória], como proposto pela Recorrida e imposto pelo n.º 4 do art. 684º CPC



4. 9. - A terminar, dir-se-á que se encontra prejudicada a questão da inconstitucionalidade dos arts. 371º e 458º C. Civil, com referência ao art. 3º do CPC, porquanto a invocada inconstitucionalidade, por violação do direito à defesa e do contraditório, incidiria sobre a interpretação daqueles preceitos da lei ordinária “no sentido de que o subscritor de um documento autêntico de confissão de dívida relativa a um mútuo, demandado em execução com base nesse instrumento, fica impedido de questionar a validade formal do negócio subjacente ou de alegar que não recebeu a quantia em causa”, hipótese que não se verifica, pois que, repete-se e insiste-se, o título (documento e respectiva força probatória) contém e prova plenamente a efectiva existência de uma relação contratual e respectiva obrigação causal dos Executados, não contendo apenas uma declaração unilateral, sem menção da causa da obrigação, a autorizar, por isso - porque a lei não admite negócios abstractos, mas apenas com presunção da existência de causa -, a prova da inexistência da obrigação unilateralmente declarada (art. 458º-2, último segmento).






5. - Respondendo, em síntese final, à questão colocada, poderá concluir-se:

O reconhecimento de dívida e promessa de pagamento, a que se refere o art. 458º do C. Civil, configura um título em que alguém, unilateralmente, se confessa devedor de uma prestação, sem indicação da respectiva causa, isto é, do negócio que está na origem do crédito, ou ainda, da obrigação anteriormente constituída.
Se não constar do documento a causa da obrigação e a válida constituição da obrigação fundamental a que se reporta o crédito reconhecido estiver sujeita a determinada forma, mais solene que a do documento utilizado como título, o documento não poderá constituir já título executivo.

O nomen juris utilizado pelas partes ou pelo documentador não é decisivo, para efeitos de qualificação da categoria, tipo ou espécie de negócio efectivamente celebrado e, consequentemente, para identificação do regime jurídico concretamente aplicável.
A determinação do regime jurídico por que deve reger-se a formação, execução e extinção de determinado negócio jurídico pressupõe a sua prévia qualificação, a realizar por via interpretativa a incidir sobre o conteúdo do clausulado que integra as estipulações ou declarações negociais dos contraentes.

Concluindo-se, por via interpretativa, que uma escritura pública, denominada de “Confissão de Dívida com Hipoteca”, utilizada como título executivo, documenta o conteúdo de negócio jurídico bilateral, constitutivo de obrigações, emergentes de um contrato de mútuo validamente celebrado - que não apenas de um negócio unilateralmente recognitivo de uma obrigação, como sucede com os actos que o art. 458º especialmente contempla -, tem de haver-se o título como dotado quer de exequibilidade extrínseca quer também de exequibilidade intrínseca.





6. - Decisão.

Em conformidade com o exposto acorda-se em:

- Negar a revista;

- Manter a decisão impugnada, ainda que com fundamentos diversos dos nela utilizados; e,

- Condenar os Recorrentes nas custas.


Lisboa, 10 de Novembro de 2011.

Alves Velho (relator)
Paulo Sá
Garcia Calejo