Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1690/14.2TJCBR.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
UTILIZAÇÃO ABUSIVA
INSOLVÊNCIA
DEVEDOR
HOMOLOGAÇÃO
RECUSA
NULIDADE
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - INSOLVÊNCIA - RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS / PLANO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / ABUSO DE DIREITO.
Doutrina:
- Ana Prata, et al., “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, p. 54.
- Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, 3.ª ed., pp. 138, 142, 780-783
- Catarina Serra, “Processo especial de revitalização - contributos para uma rectificação”, ROA, 72, 2012, Vol. II/III, Abril/Setembro, p. 721.
- Gisela Teixeira Jorge Fonseca, “A natureza jurídica do plano de insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, p. 122.
- Luís Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2.ª ed., pp. 20, 32.
- Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, p. 24.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): -- ARTIGOS 280.º, N.º 1, 334.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 1.º, N.º 2, 3.º, N.ºS1 E 2, 17.º-A, N.ºS 1 E 2, 17.º-B, 17.º, N.º1-C, 17.º-D, N.º10, 17.º-F, N.ºS1 E 5, 20.º, N.º1, AL. B), 24.º, N.º1, 215.º, 216.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 10/03/2015, PROCESSO N.º 36/14.4TBOLR.CI.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
-DE 16/05/2013, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-15/11/2012, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I. Pese embora o processo especial de revitalização se resolver num procedimento de feição marcadamente extrajudicial, tal não significa que a liberdade e a autonomia da vontade dos intervenientes no processo não sofram limitações e não possam ser contrariadas pelo tribunal.

II. Se o processo revelar inequivocamente que o devedor se encontra numa situação de insolvência atual, o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do plano que, ainda assim, foi aprovado.

III. Em tal situação estamos perante uma violação não negligenciável das regras procedimentais e da norma legal basilar (a que define em que situações é admitido o processo de revitalização) que permite a realização ou preenchimento do seu conteúdo.

IV. Acresce que o uso ilegal e abusivo do procedimento implica a nulidade do negócio jurídico subjacente e, inclusivamente, a sua neutralização por excesso manifesto dos limites impostos pelo fim económico do direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB (doravante denominados Devedores), intentaram, perante o Tribunal Judicial de Coimbra, processo especial de revitalização, tendo em vista a promoção da respetiva revitalização através de plano de recuperação.

Foi nomeada Administradora Judicial Provisória, dando-se início às negociações entre os Devedores e seus credores.

Concluídas as negociações, foi votado o plano proposto.

Votaram credores a que corresponde o montante global de créditos de €13.963.771,94, num universo de créditos reclamados e reconhecidos de €14.048.094,98.

Votaram a favor os credores Instituto da Segurança Social, IP (crédito de €18.102,28), CC (crédito de €1.000,00) e International Real Estate, Inc. (crédito de €11.111.400,00). Votaram contra o Banco DD, S.A. (Crédito de €68.125,85), o Banco EE, S.A. (crédito de €29.663,81), a Caixa de FF da Zona do Pinhal, C.R.L. (crédito de €535.175,95), a Caixa GG, S.A. (crédito de €2.224.539,32) e a Caixa HH, S.A. (crédito de €5.428,54).

A Administradora Judicial Provisória remeteu ao processo o plano aprovado para a competente apreciação Judicial.

Constatando que o plano fora aprovado por credores representando 79,541% dos créditos relacionados na lista definitiva de credores, o tribunal, concluindo nada a tal obstar, proferiu sentença homologatória do mesmo plano.

Inconformada com o assim decidido, apelou a credora Caixa GG, S.A. para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Sustentou, em síntese, que os Devedores não se encontravam em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas sim em situação de insolvência, e que a sua situação ao abrigo do plano ficaria menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, de sorte que a homologação do plano devia ter sido recusada. Daqui que tanto por aplicação do art. 215º, como por aplicação da alínea a) do nº 1 do art. 216º, ambos do CIRE[1], havia de ter sido recusada a homologação.

A apelação foi julgada procedente, em decorrência do que foi revogada a sentença recorrida e recusada a homologação do plano.

Entendeu a Relação que os autos revelavam que os Devedores não se encontravam em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas sim em situação de insolvência atual, razão pela qual a decisão recorrida não decidira bem ao não ter recusado oficiosamente, nos termos do art. 215º do CIRE, a homologação. O conhecimento das demais questões suscitadas pela Apelante foi tido por prejudicado.

Discordando do decidido, pedem os Devedores revista, alegando que o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão que indicam e de que juntam cópia, proferido também pela Relação de Coimbra, acerca da mesma questão fundamental de direito, sendo que ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação[2].

O relator considerou verificar-se a aludida oposição de julgados e, visto o disposto no art. 14º nº 1 do CIRE, teve por admissível o recurso.

Da respetiva alegação extraem os Recorrentes as seguintes conclusões:

1. O Acórdão recorrido merece censura por violação de lei substantiva (Art. 215º e 216º do CIRE), consubstanciada em erro de interpretação, e erro na aplicação das normas legais.

2. Acresce que nos termos do art. 629 nº 2 al. d) do CPC, se encontra o presente acórdão em manifesta contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo nº 36/14.4TBOLR.CI datado de 10 de Março de 2015 (cuja cópia ora se junta).

3. Pugnou a Credora CGG pela revogação da homologação do plano apresentado, alegando que os Requerentes se encontrariam em situação de insolvência e não em situação económica difícil ou insolvência meramente iminente-

4. Decidindo o Tribunal ”a quo” revogar a sentença homologatória do plano de revitalização, à revelia da Lei, designadamente do art. 216º do CIRE.

5. Nos termos do art. supra, o douto Tribunal apenas poderia revogar a homologação do plano, se a não homologação do mesmo, já houvesse sido solicitada pela Credora CGG durante o processo, tendo até à aprovação do plano para o fazer. – E tal nunca aconteceu!

6. Na verdade, em nenhum momento até à homologação do plano requereu a credora recorrente a não homologação do mesmo- Apenas se limitando a votar contra o mesmo.

7. Contudo, a oposição contra o plano “não pode a mesma ter-se por manifestada, sem mais, com o simples voto em contrário na deliberação de aprovação, não sendo, pois tal suficiente para fundamentar o pedido de recusa da homologação do plano de insolvência, pois que o voto em contrário na deliberação de aprovação e a oposição à aprovação do plano de insolvência consubstanciam, duas realidades distintas, impondo o pedido de recusa de homologação do plano a alegação (atempada) e a demonstração “em termos plausíveis” de um qualquer dos fundamentos consagrados nas alíneas a) e b) do art. 216º do C.I.R.E. -Conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Novembro de 2013 (proc. nº 1785/12.7TBTNV.C1, in www.dgsi.pt)

8. Assim, tendo a credora abdicado do direito de se opor à homologação do plano, em momento processualmente próprio, não podia vir -como veio- deduzir tal oposição em sede de recurso, sob pena de inadmissível, por extemporâneo, nos termos do art.º 216.ºdo CIRE -Neste sentido também o acórdão em contradição, no 2ºparágrafo na página 9.

9. Não tendo a não homologação do plano sido solicitada pela credora até à aprovação do mesmo, a decisão de não homologação do mesmo, pelo doutro tribunal, só seria possível se fundamentado numa violação das normas procedimentais ou de conteúdo daquele, nos termos do art.215º do CIRE.

10. A verdade é que, pese embora o Tribunal recorrido tenha alegado violação das normas de conteúdo do plano, a verdade é que concretiza tal violação, com um facto que precede o próprio plano, inclusivamente o próprio processo, i.é, assaca a violação ao facto de os devedores não estarem em situação económica difícil, mas sim em situação catual de insolvência.

11. Ora se a situação de insolvência, a existir, se encontra a jusante do plano, -inclusivamente do próprio processo- e se a violação que permite a revogação tem como objeto normas de conteúdo do plano propriamente dito, outra conclusão não se pode tirar, senão a de que não se verifica qualquer violação de normas de conteúdo do plano, porquanto tal situação se reportar a uma fase anterior ao mesmo. (i.é. fora do núcleo onde as violações de conteúdo podem ocorrer)

12. Acresce que a regulação da tramitação do procedimento de revitalização é de todo desadequada para a discussão sobre o carácter iminente ou verdadeiramente atual da insolvência do devedor porque o seu núcleo essencial, a fase negocial, decorre informal e exteriormente ao contro judicial.” - Conforme acórdão em contradição - 2º Parágrafo da pág. nº 5.

13. No âmbito do PER, são os credores quem tem a hegemonia da decisão, não podendo o tribunal não homologar um plano aprovado pela maioria qualificada de credores, fora dos casos do art. 215º do CIRE, extravasando, assim, o Tribunal “a quo” os seus poderes, em detrimento do verdadeiro poder decisório dos credores,

14. Se a situação de atual insolvência, efetivamente se verificasse, teriam sido os próprios credores – na sua maioria qualificada- a fazerem-no notar na votação do próprio plano -O que também não aconteceu!

15. Acresce a situação de insolvência apenas poderia imputar-se aos devedores no caso de resultarem infrutíferas as negociações com os credores, o que não foi manifestamente o caso!

16. Neste sentido também o Acórdão em contradição: “não parece que ao juiz- descontada a verificação de qualquer outro fundamento de recusa de homologação do plano- reste outra alternativa que não a homologação desse acordo. O que se compreende, já que se o devedor e os credores, ou uma maioria qualificada deles – sujeitos para cuja tutela o processo se mostra ordenado – acordam num plano de recuperação é porque realmente o devedor não se encontra em estado de insolvência, antes é recuperável ou revitalizável ou como tal se deve ter: ninguém está melhor colocado para decidir sobre o estado de insolvência ou de recuperação do devedor que os seus credores.” (sublinhado nosso)

17. Este regime inculca que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transação e, portanto, um verdadeiro contrato.

18. No âmbito da respetiva liberdade e autonomia, os credores dos aqui Recorrentes, na sua maioria qualificada imposta por lei, conformaram juridicamente os seus interesses no plano que aprovaram, tendo, por esse modo, considerado aqueles seus devedores “desvitalizados” mas “ainda não” insolventes, conforme acórdão em Contradição (4º parágrafo da página 10)

19. Esse negócio jurídico processual não exigiria a unanimidade dos votos favoráveis ou o consentimento de todos os credores, para que se tivesse por validamente concluído e vinculativo para todos eles, incluindo os afetados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das sua garantias, e, por isso, não deveria ser oficiosamente recusada a homologação do plano com fundamento na ora alegada insolvência atual dos Recorrentes - conforme acórdão em Contradição (4º parágrafo da página 10)

20. O Legislador, com mecanismo processual ora em apreço, atribui ao juiz um papel muito restrito, e faz radicar a defesa daquele interesse público, em que se traduz a saúde da economia, ou a preservação do tecido económico, na primazia da vontade da maioria qualificada dos credores, pelo que, também não deveria ser oficiosamente recusada a homologação do plano com esse fundamento- conforme acórdão em Contradição (5º parágrafo da página 10)

21. Ainda que douto, o Acórdão em crise, ao decidir pela revogação da decisão de homologação do PER em apreço, constitui um atentado grave às garantias legais que norteiam o Processo Especial de Revitalização – em particular ao “princípio da legalidade, da liberdade e da autonomia dos credores”.

22. Violando assim, inequivocamente o disposto nos artigos 17-A, nºs 1 e 2, 17º-B, 17º -C, nº 3, a), 17-F nº, e 215º e 216 do CIRE.

Terminam dizendo que deve ser revogado o acórdão recorrido, mantendo-se a sentença de homologação do plano de revitalização proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

                                                           +

Não foi apresentada qualquer contra alegação.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- As isoladas abaixo sob as alíneas a) e b).

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

Como acaba de ser dito, o acórdão recorrido entendeu que os factos alegados pelos Devedores, ora Recorrentes, no seu requerimento inicial e o montante dos créditos reconhecidos (e vencidos) indicavam que os mesmos Devedores se encontravam numa real situação de insolvência, sem que se antevisse qualquer possibilidade de recuperação. Daqui que, não ocorrendo nenhum dos pressupostos de facto que justificariam legalmente o procedimento de revitalização, se imporia, nos termos do art. 215º do CIRE (violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao conteúdo do plano), a recusa da homologação do plano apresentado.

Diferentemente, sustentam os Recorrentes que:

a) A recusa da homologação ao abrigo do citado art. 215º não se mostra legal, pois que valia o primado da vontade dos credores e não se podia concluir pela situação de insolvência dos Devedores, pelo que o acórdão recorrido deverá ser revogado.

b) A pretensão de recusa da homologação ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 216º do CIRE deduzida pela credora Caixa GG, S.A. nunca poderia ter procedência, pelo que também por aqui o acórdão não poderia subsistir.

São estas as questões de que nos compete tratar.

Vejamos então.

O processo especial de revitalização tem como pressuposto legal (art.s 1º, nº 2 e 17º-A nº 1 do CIRE) que o devedor se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação.

A situação económica difícil verifica-se, diz a lei (art. 17º-B), quando o devedor tenha dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito. Trata-se, todavia, de uma definição que não é particularmente informativa, na medida em que, como justamente observam Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., p. 142), faz entrar substancialmente o definido na definição. Já o conceito de insolvência meramente iminente não é concretizado no CIRE. Ana Prata et al. (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 54) aduzem que deve considerar-se como tal “a situação em que o devedor está prestes a encontrar-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações (art. 3º, nº 1) ou o passivo está prestes a ser superior ao ativo (art. 3º, nº 2), mas ainda seja possível a recuperação”. Citando Catarina Frade, mais indicam estes autores que “a insolvência iminente é uma situação difícil de definir, e por consequência difícil de diagnosticar. Na prática, não é fácil distingui-la com absoluta segurança da situação económica difícil e nem sequer da insolvência atual”. Dentro da mesma linha, Luís Martins (Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2ª ed., p. 20), afirma que “O conceito de insolvência iminente é aberto e indefinido, implicando uma análise concreta da situação do devedor (tipo de obrigações que se vão vencer, incapacidade de recurso a crédito, impossibilidade de vender ativos, perdas empresariais, etc.). Esta situação passa sempre por uma previsão futura sobre a insuficiência económica e sua incapacidade de, a curto prazo, vir a realizar e honrar as obrigações assumidas e ainda não vencidas. A situação de insolvência iminente é conjeturada quando o devedor, de acordo com os critérios do homem comum ou um gestor criterioso e empenhado, sabe e não pode desconhecer que não conseguirá vir a honrar as obrigações assumidas a curto prazo (…) Em bom rigor, estar numa situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, acaba por ser a mesma coisa e com a mesma abrangência. Se tem dificuldades sérias em cumprir pontualmente as suas obrigações, acaba por se encontrar em situação de insolvência iminente. (…) Para concorrer ao PER o devedor não pode é estar numa situação de insolvência atual como consagrada no art. 3º, situação que se verifica quando o devedor já se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, pois o PER é vedado a estes devedores”.

Entretanto, como é sabido e consabido, por força de compromissos assumidos pela República Portuguesa no âmbito do chamado “Memorando de Entendimento” (estabelecido com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional), o Estado Português foi levado a agir de forma a facilitar o resgate de empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis. Em decorrência, o Conselho de Ministros aprovou a Resolução nº 43/2011, definidora de um conjunto de princípios orientadores da recuperação extrajudicial de devedores. Dentro da mesma linha, veio a ser produzido o Decreto-Lei 178/2012, que criou o chamado SIREVE (Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial) e, na sequência da Proposta de Lei nº 39/XII, surgiu a Lei nº Lei 16/2012, que introduziu no CIRE o processo especial de revitalização, fixando como pressupostos da sua atuação as duas situações acima aludidas. Tal Proposta de Lei anunciava o propósito de reorientar a legislação da insolvência para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostrar viável a sua recuperação. Declaradamente, era finalidade a criação de um processo que representasse um mecanismo célere e eficaz que possibilitasse a revitalização dos devedores que ainda não tivessem entrado em situação de insolvência atual.

Sem dúvida que o processo especial de revitalização (PER) se resolve num procedimento de feição marcadamente extrajudicial, ainda que balizado pela orientação e fiscalização do administrador judicial provisório. Concordantemente com a filosofia que lhe está subjacente, manifestamente que a lei pretendeu deixar na disponibilidade dos credores a composição da relação creditória existente no confronto do seu devedor, escolhendo entre a aprovação de um plano que leve à pretendida revitalização ou a não aprovação de plano algum. A este propósito aduzem Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit., p. 783) que “não pode deixar de se ponderar o facto da lei propender a pôr nas mãos dos credores a decisão sobre o destino do processo e, nessa medida, o tribunal deve mostrar generosidade na sindicação da bondade do por eles deliberado, na ponderação de que ninguém melhor do que os credores saberá o modo de mais adequadamente defender os seus próprios interesses”. Na realidade, o plano de revitalização do devedor, à semelhança do plano de insolvência, traduz-se num autêntico negócio jurídico, numa espécie de transação (v. Gisela Teixeira Jorge Fonseca, A natureza jurídica do plano de insolvência, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, p.. 122) e, nesta medida, resolve-se num verdadeiro contrato. O que tem de característico é a circunstância de se impor, dentro dos limites admitidos na lei, a todos os credores, a despeito de poder eventualmente representar a vontade de apenas alguns deles.

Concordantemente com tudo isto, a tramitação processual do PER passa largamente à margem da intervenção judicial, designadamente em matéria de verificação ou controlo dos pressupostos materiais de que a lei faz depender o procedimento. Isto começa logo por ser evidente no desencadeamento do procedimento, para o qual não se exige a alegação de quaisquer factos indicadores dos respetivos pressupostos substantivos ou materiais (por isso, alguma jurisprudência tem revelado ceticismo relativamente à possibilidade de controlo judicial desses pressupostos materiais no momento liminar; v. a propósito o ac. da RG de 16.5.2013 e o ac. da RP de 15.11.2012, acessíveis em www.dgsi.pt). Na realidade, para que o procedimento se inicie é suficiente uma declaração escrita assinada pelo devedor conjuntamente com pelo menos um dos seus credores, manifestando a vontade de encetar negociações conducentes à revitalização (art.s. 17º-A, nº 2 e 17º-C, nº 1). Por outro lado, os documentos que o devedor deve remeter ao tribunal (art. 24º, nº 1) também não serão normalmente conclusivos em ordem a permitir um juízo acerca desses pressupostos. E a restante tramitação do processo não denota qualquer preocupação particular em garantir o controlo judicial da verificação de tais pressupostos. Do que decorre que, na prática, o processo de revitalização possa acabar por ser usado em casos em que não deveria sequer ter sido aberto, ou seja, que se aplique a devedores em situação de insolvência atual, portanto, à margem dos pressupostos que definem o seu âmbito de aplicação (v. Catarina Serra, Processo especial de revitalização - contributos para uma rectificação, ROA, 72, 2012, Vol. II/III, Abril/Setembro, pág. 721).

Mas isto não significa que a liberdade e a autonomia da vontade dos intervenientes no processo não sofram limitações e não possam ser contrariadas pelo tribunal. Nem outra coisa decorre, desde logo, do nº 1 do art. 17º-F: apesar das negociações se concluírem com a aprovação unânime de um plano por todos os credores do devedor, ainda assim supõe este normativo que o plano possa deixar de ser homologado. Acresce que por força do nº 10 do art. 17º-D, o processo negocial está limitado pelas diretrizes estabelecidas na supra referida Resolução. Designadamente, e de forma que se nos afigura constituir a matriz fundamental da atuação dos intervenientes, no primeiro princípio orientador significa-se que as negociações só logram razão de ser quando os problemas financeiros do devedor possam ser ultrapassados e este possa, com forte probabilidade, manter-se em atividade após a conclusão do acordo; e no princípio décimo significa-se que as negociações devem visar a um plano de negócios viável e credível, que evidencie a capacidade do devedor de gerar recursos necessários ao plano de reestruturação e que demonstre que o mesmo não é apenas um expediente para atrasar o processo judicial de insolvência. Representa isto, a nosso ver, que os pressupostos materiais (situação económica difícil ou situação de insolvência meramente iminente) de que a lei faz depender o procedimento de revitalização têm de estar omnipresentes nas negociações, funcionando como um seu condicionante sine qua non. E apesar do papel residual que está deferido ao tribunal no PER, dúvidas também não pode haver que esse papel é determinante em sede de aferição da legalidade do procedimento. Na verdade, o processo conclui-se com uma intervenção judicial, à qual são aplicáveis (17º-F, nº 5), com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no Titulo IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º. Compete assim ao juiz, nos termos da primeira destas disposições, o dever de controlar a legalidade do plano, devendo recusar oficiosamente a sua homologação se acaso concluir por uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.

Isto posto:

Tendo presente o que vem de dizer-se, e sabido que o processo especial de revitalização tem como pressuposto legal (pressuposto material) que o devedor se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, a questão que se coloca é a seguinte: poderá e deverá o juiz, no contexto do citado art. 215º, ocupar-se desse pressuposto material e recusar a homologação do plano que tenha sido aprovado se concluir que os factos revelam o estado atual de insolvência do devedor?

Já iremos a esta questão. Mas antes, afigura-se-nos irrazoável supor, como parece supor alguma jurisprudência (caso do acórdão da Relação de Coimbra de 10 de março de 2015, atrás citado, aí onde conclui que a regulação da tramitação do procedimento de revitalização é de todo desadequada para a discussão sobre o carácter iminente ou verdadeiramente atual da insolvência do devedor porque o seu núcleo essencial, a fase negocial, decorre informal e exteriormente ao controlo judicial”), que do processo de revitalização está completamente abduzida a possibilidade de, para os seus próprios fins, discutir se o devedor está ou não insolvente. Basta até ver que o pedido de não homologação a solicitação dos credores no contexto da alínea a) do nº 1 do art. 216º pode ter como fundamento ou pressuposto precisamente o estado de insolvência atual do devedor e, como assim, obrigar o juiz a sopesar o assunto para os concretos fins do processo de revitalização (e mais nada).

Mas voltemos à questão formulada.

Sobre esse tema e seu alcance, vejamos alguns contributos doutrinários.

Dizem Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit., p. 780), que o referido art. 215º confere ao tribunal o papel de guardião da legalidade, cabendo-lhe em consequência sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano. Acrescentam (p. 782) que são não negligenciáveis “todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido”. Mais aduzem (p. 783) que “o plano deve ser aprovado em condições que, efetivamente, viabilizam a realização do fim a que se destina. Isso exclui que mesmo por vontade dos credores, apurada na forma da lei, se constitua como expediente de dilação ou suspensão do processo de insolvência ao serviço de objetivos que não se coadunem com o pensamento legislativo”. Ainda, dizem os mesmos autores (p. 781) que são normas procedimentais “aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que nele foram presentes – incluindo, por isso, as relativas à própria convocatória e funcionamento ‑, e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado”. Por sua vez, normas de conteúdo, serão “todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”.

Embora discorrendo a propósito do despacho judicial liminar do procedimento, mas isto vale inteiramente, até por maioria de razão, para a fase da homologação, Luís Martins afirma (ob. cit., p. 32) que “Se existirem factos impeditivos ou que não sejam, supríveis por convite, deve ser rejeitado (ex. uso abusivo do procedimento, para regular a posição de um credor em especial ou a empresa encontrar-se numa situação de insolvência atual), pois, apesar do PER ter como finalidade a recuperação do devedor através do consenso, não deixa de pretender garantir os interesses dos credores – que são chamados a intervir no mesmo. Nestas e noutras situações abusivas, o juiz deve repudiar tal conduta e não admitir o procedimento, pois este não tutela o interesse coletivo nem os fins para que foi instituído”.

Maria do Rosário Epifânio (O Processo Especial de Revitalização, p. 24) parece seguir no mesmo sentido, aí onde refere que no momento liminar apenas pode ser indeferida pretensão do devedor quando for manifesta a viabilidade do pedido, mas que “o controlo dos pressupostos materiais será feito posteriormente (no despacho de homologação, ou em momento anterior, se o administrador judicial provisório suscitar a questão perante o juiz”.

Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit., p. 138), realçando precisamente o que se contém da lei como pressuposto material do procedimento, dizem que o processo de revitalização não é meio idóneo quando, considerados os critérios do art. 3º, o devedor viver já na impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas ou, tratando-se de uma entidade incluída na previsão do nº 2, disponha de um ativo patrimonial manifestamente inferior ao passivo. E sobre a relação que deva existir entre o controlo judicial do plano e os pressupostos materiais do procedimento, acrescentam:

“(…) temos por certo o seguinte regime:

a) Quando, pela documentação inicialmente junta pelo devedor, o juiz dê conta da inexistência de qualquer uma das situações fundamentantes do processo de revitalização, deve indeferir o requerimento inicial por falta de pressuposto processual insuprível;

b) Quando, proferido que seja o despacho inicial de seguimento, se venha a evidenciar tal irregularidade, o juiz deve recusar a homologação do acordo que tenha sido alcançado, por violação não negligenciável de regras procedimentais (…)”.

Afigura-se-nos ser de subscrever a orientação jurídica para que apontam estes contributos.

Sem dúvida, já o significámos, o processo especial de revitalização não está concebido, nem na sua filosofia intrínseca nem na sua tramitação, senão para uma composição acordada da lide, de sorte que, por regra (dizemos por regra, pois que sempre haveria que salvaguardar pelo menos a hipótese acima aludida da alínea a) do nº 1 do art. 216º), não será possível nem terá cabimento uma verificação judicial finalística (finalística, no sentido de se traduzir em uma atividade de que o tribunal tenha necessariamente de incumbir-se como condição da aferição da bondade jurídica do pano aprovado) das situações para que a lei quer e permite o processo. Porém, se o processo revelar inequivocamente que o devedor se encontra efetivamente numa situação de insolvência atual, então o juiz não pode deixar de recusar oficiosamente a homologação, por isso que, nestas circunstâncias, estamos perante uma violação não negligenciável das regras procedimentais e da norma legal basilar (a que define em que situações é admitido o PER) que permite a realização ou preenchimento do seu conteúdo. Ademais, numa tal situação, estamos bem perante um uso ilegal e abusivo do procedimento, o que implica a nulidade do negócio jurídico subjacente (art. 280º nº 1 do CCivil) e, inclusivamente, a sua neutralização por excesso manifesto dos limites impostos pelo fim económico do direito (art. 334º do CCivil). Neste último caso, o fim económico para que o direito é concedido é precisamente o de, a bem da economia e do interesse público, potenciar a recuperação para o tecido económico dos recursos ainda produtivos, não dos exauridos (estes apenas servirão para comprometer o bom funcionamento da economia). E a ser assim, como é, à soberania da vontade dos credores não deve poder atribuir-se uma inevitabilidade tal que lhe associe direitos cujos pressupostos a lei precisamente lhe denega. Digamos, em síntese, que os credores gozam de grande liberdade e autonomia na composição da lide desenvolvida no confronto do seu devedor, mas têm que o fazer dentro do pressuposto de o devedor não estar já insolvente. E, apesar de um tal pressuposto poder e dever ser equacionado pelos credores nas suas negociações com o devedor, o juízo acerca da verificação ou não da situação de insolvência meramente iminente ou da situação económica difícil não pode deixar de ser visto, para os fins em causa (homologação ou não homologação), como um juízo jurídico-conclusivo em definitivo da competência do tribunal.

Pelo exposto, julgamos ser de concluir que o acórdão recorrido não estava impedido legalmente de recusar a homologação do plano que foi apresentado. O que significa que improcede, no que respeita à estrita questão sobre que vimos tratando (admissibilidade ou não da recusa oficiosa da homologação por efeito do devedor se encontrar em situação de insolvência atual), o que, em contrário do que fica dito, se sustenta nas conclusões 1ª, 10ª, 11ª, 12ª, 13ª, 14ª, 15ª, 18ª, 19ª, 20ª e 21ª.

Questão diferente, mas que é transversal a estas conclusões, é a de saber se nas circunstâncias de facto consideradas no acórdão recorrido se deverá concluir por uma situação de insolvência atual dos Devedores, ora Recorrentes.

Para enfrentarmos esta questão, importa recuperar aqui os factos em que se fundou o acórdão recorrido, aliás espelhados nos autos, e que são os seguintes.

1. Foram reconhecidos como vencidos os seguintes créditos sobre os Devedores:

A) Créditos concedidos aos Devedores

Banco II, S.A.: € 1.730,02

JJ, PLC, Sucursal em Portugal: € 653,75

Caixa de FF da …, CRL: € 23.682,99

Caixa GG, S.A.: € 508.626,96

CC: € 1.000,00

KK Comunicações, S.A.: € 753,31

LL Comunicações, S.A.: € 132,05

Total:.€ 536.579,08

B) E foram reconhecidos os seguintes créditos decorrentes de avales prestados pelos Devedores:

Banco BIC: € 35.917,10

Banco DD, S.A.: € 68.125,85

Banco EE, S.A.: € 29.663,81

Caixa de FF da Zona …, CRL: € 511.492,96

Caixa GG, S.A.: € 1.715.912,36

Caixa HH, S.A.: € 5.428,54

Instituto da Segurança Social, I.P.: € 18.102,28

International Real Estate, Inc.: € 11.111.400,00

Caixa GG, S.A.: € 508.626,96

MM, S.A.: €15.473,00

Total: € 13.511.515,90

2. No seu requerimento inicial os Requerentes/Devedores alegaram, entre o mais, o seguinte:

‑ A requerente é funcionária pública há 19 anos, hoje exerce funções de Professora do 1º Ciclo, com nomeação definitiva, tendo como único rendimento o salário que aufere.

‑ Aufere um rendimento salarial bruto de 1.658,64€, decorridas as deduções legais ao salário aufere o valor líquido aproximadamente de 760,00.

‑ O requerente AA é licenciado em Solicitadoria, e exerce atualmente funções de Solicitador na Comarca de ..., o qual aufere rendimentos daquela função.

‑ Veio o requerente até 2010, exercendo funções de Adjunto do Governador Civil de Coimbra, auferindo um rendimento mensal superior a 2.500,00 Euros.

‑ Fruto da expansão do sector automóvel, compra e venda de peças, pneus, manutenção, etc., e aliciado pelo mesmo, dedicou-se também a esta atividade, tendo o seu início em 2006, figurando na qualidade de sócio da sociedade NN, OO, LDA..

‑ Hoje, funcionário da empresa NN, Lda., com atividade na área do sector automóvel, exerce as funções de administrativo, auferindo o equivalente a um salário mínimo nacional.

‑ Os requerentes gozavam de boa saúde financeira tendo como única forma de rentabilidade a sua remuneração mensal auferida fruto das suas funções laborais.

‑ Apesar de inicialmente os seus salários terem assegurado bons resultados, atraídos pelo crédito fácil incentivados pelas instituições de crédito, sem prever as alterações contratuais dos financiamentos em que se obrigaram, face às contingências de mercado e crise internacional ambos acabaram por desaguar numa situação económica quase insustentável no seu dia-a-dia.

‑ Para tentar levar a bom porto a sua família, com base na ponderação do investimento e de acordo comas condições aliciantes de incentivo ao crédito que as Instituições financeiras apostavam, os devedores assumiram pessoalmente diversos créditos e garantias pessoais, nomeadamente como avalistas em alguns contratos de crédito junto das instituições financeiras

‑ Nomeadamente ao nível do crédito habitação e na qualidade de sócios assumiram estas garantias pessoais a fim de verem aprovados os financiamentos em nome da empresa referida,

‑ Assumindo assim, obrigações e responsabilidades das quais hoje, tem vindo a apresentar dificuldades em cumprir pontualmente, face ao seu rendimento e demais despesas.

‑ A situação de alteração substancial do emprego do requerente/devedor AA, durante mais de 3 anos, decorrente da queda do governo daquela época, e a dissolução do cargo que possuía originou graves dificuldades no seio familiar.

‑ A requerente BB, enquanto funcionária pública, tem sofrido cortes sucessivos no seu salário decorrente das políticas governamentais implantadas nos dias de hoje

‑ Mais, e como se ainda não fosse suficiente, agravação da subida dos tão “vulneráveis” e “perigosas” taxa de spread do crédito à habitação de 0,4% inicialmente contratados para 1,75%.

‑ Os requerentes desaguaram numa situação de pré-insolvência pela falta de liquidez real, efetiva e imediata para pagamento das suas prestações a tempo e horas sem incorrer em incumprimentos e acumulações de mais taxas de juros de mora.

‑ Deixou [deixaram?] assim, de auferir uma grande parte do seu salário devido aos grandes cortes salariais.

‑ Os requerentes foram alvo do acionamento dos avais pela banca por conta de incumprimentos das obrigações assumidas da sociedade.

‑ E, impossibilitados de realizar as prestações por conta dos bons avais pessoais que subscreveram, [tal] originou a penhora no valor de 432,02€ no salário da requerente, processo executivo n.º 384/11.5TBFVN - Secção Única que corre termos junto do Tribunal Judicial de ....

‑ O casal não conseguiu inverter o quadro de dificuldades de liquidez que passou a enfrentar nos anos seguintes,

‑ Os requerentes tentaram renegociar as condições contratuais com a banca acordando em planos prestacionais para cumprimento da dívida,

‑ O que, no entanto, não permitiu ultrapassar todas as dificuldades de tesouraria vividas, entrando em incumprimento nalgumas das obrigações pendentes,

‑ Fruto desta realidade, os requerentes vêm acumulando um défice mensal recorrente, não conseguindo suprir obrigações e recuperar as moras nos meses seguintes, sobretudo no que concerne à dinâmica e penalizações do crédito bancário que mantém em dívida.

‑ A situação de “pré-insolvência” é resultante de falta de meios económicos.

‑ Sem pejo de reconhecer pontuais dificuldades económicas de tesouraria no ano em curso como sucede aliás com a generalidade dos agentes económicos.

‑ Hoje, dão sinais de melhoria efetiva uma vez que o requerente explora a função de Solicitador, auferindo um volume de negócios na ordem de algumas centenas de euros/anuais.

‑ Consideram os requerentes que já não se encontram em situação de insolvência iminente, o que os levou a encetar um acordo com um dos credores, nos termos e para os efeitos do art. 17.º-A do CIRE, e promover junto deste Tribunal o processo de revitalização (PER de ambos os cônjuges), ao abrigo do CIRE:

3. Os Devedores têm despesas próprias do respetivo agregado familiar, integrado também por dois filhos.

4. Consta do Plano que os rendimentos dos Devedores são os seguintes:

- O Requerente, do exercício do cargo de gerente em três empresas– além da acima já mencionada, também a PP, LDA e a QQ, …, Lda. ‑, aufere uma retribuição de cariz bruto de cerca de 2.000,00 €, e ainda um valor fixo e não determinável pelo exercício da profissão de Solicitador;

- A Requerente BB exerce as funções de Professora do Quadro da Escola do Agrupamento de …, auferindo uma retribuição mensal de cerca de 1.350,00€.

5. Mais consta do Plano, isto no que se refere à regularização dos créditos da credora hipotecária Caixa GG, S.A., o seguinte:

- Pagamento de 100% do capital em dívida em 35 prestações anuais, postecipadas, iguais e sucessivas, devendo a primeira prestação ocorrer no último dia útil do quarto ano seguinte ao do trânsito em julgado da Sentença de Homologação do Plano;

- Sendo as primeiras 34 das referidas prestações de igual valor, ou seja, de €7.917,28 cada, e a última prestação no montante de €359.384,53;

- Perdão de juros vencidos incluindo os que se venceram entre a data da apresentação da reclamação de créditos e a data do trânsito em julgado da Sentença da Homologação do Plano de Recuperação;

- Pagamento de juros vincendos, calculados à taxa de 1,1% ao ano;

- Manutenção das garantias pessoais prestadas nos exatos termos em que estas foram acordadas.

No que tange à regularização dos créditos das demais Instituições de Crédito e restantes credores [com exceção do Instituto de Gestão Financeira e da Segurança Social], consta do Plano o seguinte:

‑ Pagamento de 40% do capital e juros vincendos em 35 prestações anuais, iguais, sucessivas e postecipadas, iguais e sucessivas, devendo a primeira prestação ocorrer no último dia útil do quarto ano seguinte ao do trânsito em julgado da Sentença de Homologação do Plano;

Perdão de 100% do capital em dívida;

Perdão de 100% dos juros de mora;

‑ Juros vincendos à taxa fixa de 0,75% ao ano;

‑ Perdão de juros vencidos incluindo os que se vencerem entre a data da apresentação da reclamação de créditos e a data do trânsito em julgado da Sentença de Homologação do Plano de Recuperação.

Tendo presente esta facticidade, considerou o acórdão recorrido que não podia deixar de concluir-se que aquando da apresentação do requerimento inicial fazia já tempo, e não escasso, que os Devedores se achavam «não numa situação de insolvência meramente iminente, mas numa real situação de insolvência, raiando até o absurdo (…) pretender ultrapassada essa [inexistente, repita-se], situação de insolvência iminente, por via da melhoria das suas capacidades económicas, assente no acrescido auferimento pelo Marido, no exercício do múnus de Solicitador, de “algumas centenas de euros anuais”!

«Assim, e mesmo não relevando em toda a linha o universo de créditos resultantes de avales –alguns, note-se, já acionados ‑, atendo-nos sobressalientemente aos demais, surge-nos inequívoca a verificação do facto-índice ou presuntivo de insolvência elencado na al. b), do art. 20.º ‑ “Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações” ‑, sendo certo que, para fazer frente às responsabilidades ínsitas a esse volume de créditos – perfazendo € 536.579,08 ‑, os devedores dispunham apenas de € 1.192,00, dos respetivos vencimentos mensais, acrescidos dos proventos de solicitadoria, na ordem de algumas centenas de euros anuais. Sendo verdade que – como os Requerentes observam‑ têm despesas próprias do respetivo agregado familiar, integrado também por dois filhos.

«E se o adverso cenário respeitante à vida económica dos Requerentes era o exposto à data da apresentação do seu pedido de revitalização, aquando da elaboração/aprovação do Plano – cerca de 5 meses após tal data, mais precisamente 21.11.2014 ‑, o mesmo estava longe de evidenciar muito diferentes e mais positivos contornos.»

E tendo presentes os “programas” de amortização das dívidas conforme constantes do mapa e acima indicados, mais aduz o acórdão recorrido que se verifica que «no 1.º ano subsequente aos quatro de carência, os Requerentes teriam de pagar a importância total de [7.917,28 + 171.882,38] € 179.799,66. E do mesmo modo nos anos seguintes até atingir o 31.º em que essa cifra total baixaria para [7.917,28 +168.396,99] € 176.314,27; “agigantando-se” no 35.º e último ano para [359.384,53 + 168.396,99] € 527.781,52», concluindo que (e já abstraindo do crédito do IGFSS, cuja amortização não deixaria insofismavelmente de acarretar desde já e durante 14 meses um encargo substancial) «ressalta à mais absoluta evidência, a levar em consideração, como se faz imperativo, a normalidade do acontecer – a “expectativa do homem médio” (…), que jamais os Requerentes, transcorrido o período de carência, poderão fazer face a qualquer dessas escalonadas prestações, pelo que a aprovação do enfocado Plano (…) em nada (…) contraria esse nosso entendimento, no sentido de que os Devedores/Requerentes já no momento da apresentação do seu primitivo requerimento se achavam em situação, pura e simplesmente, de insolvência.»

Transcrevemos estes excertos da decisão recorrida porque, estando inteiramente de acordo com o que neles se refere, melhor não poderíamos dizer.

Efetivamente, são os próprios Devedores os primeiros a reconhecer, através dos factos que alegaram e que estão acima expostos, que quando se apresentaram ao presente PER se encontravam em situação de falta de cumprimento de obrigações pecuniárias de enorme montante e se encontravam a acumular um défice mensal recorrente. Da mesma forma que reconheceram que não possuíam disponibilidades suficientes (“falta de meios económicos”, nas suas palavras) para pagar essas dívidas. Realidade esta que os acrescentos de rendimentos (apenas do marido, que não da mulher) que constam do plano em nada invertem de forma minimamente relevante, quando confrontados com as centenas de milhares de euros de dívida pessoal e com os milhões de euros que representa a sua dívida global.

Reafirmando o que acima se reportou, é verdade que os conceitos de situação económica difícil e de situação de insolvência meramente iminente se resolvem em proposições algo vagas e nem sempre claramente distinguíveis do conceito de insolvência atual. Mas, seja lá qual for a melhor substanciação desses conceitos, no caso vertente não vemos como possa entender-se que os Devedores não se encontram já em situação de insolvência atual. Pois que os factos revelam que estão impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas e que faltaram ao cumprimento de obrigações que, pelo elevadíssimo montante que atingem, faz denotar com toda a clareza a situação de impossibilidade de satisfação pontual da generalidade dos débitos a que estão sujeitos (v. art.s 3º, nº 1 e 20º, nº 1 b)). Tudo infirmador de um qualquer juízo de insuficiência económica ou de insolvência meramente iminente e de uma qualquer possibilidade de recuperação.

Daqui que, como adequadamente conclui o acórdão recorrido, estava-lhes legalmente vedado, precisamente por ausência das respetivas condições, apresentar o presente PER, não se podendo ficcionar uma recuperação absolutamente irrealista, e ainda por cima à custa de uma inacreditável (para não dizer mesmo despudorada) violentação dos interesses de alguns dos credores, designadamente a credora hipotecária Caixa GG, S.A., na certeza de que, como se aponta no acórdão recorrido, também os interesses dos credores são relevantes para o bom funcionamento da economia e para o interesse público que lhe está associado. Atente-se a propósito deste último tópico, e isto também merece ser realçado por bordejar o surreal, que esta credora veria satisfeito o seu crédito apenas ao fim de trinta e nove anos (quatro de carência mais trinta e cinco de pagamentos), e ainda por cima somente no último ano é que receberia o grosso (€359.384,53) desse crédito (até lá receberia pagamentos anuais que, visto o montante global do crédito, seriam pouco menos que simbólicos: €7.917,28).

Portanto, não há senão que concluir, e esta é que é a verdade, que os ora Recorrentes se limitaram a lançar mão de um expediente legal para o qual não eram elegíveis, procurando assim, de boa ou de má-fé (não importa), contornar indevidamente os efeitos da sua falta de solvabilidade atual. Como acima se apontou, a filosofia subjacente ao procedimento de revitalização é, ademais de recuperar empresas a bem da economia do país e sem gravame intolerável para os credores, apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis, isto é, de indivíduos que estejam realisticamente em condições económicas de responder pelo cumprimento acordado das dívidas. Não é, manifestamente, o caso.

Improcede pois o recurso na parte que fica abordada.

Fica assim apreciada a questão acima inserta na alínea a).

Quanto à questão identificada na alínea b):

Nas conclusões 1ª a 9ª, os Recorrentes aludem à circunstância de não ser legalmente possível no caso vertente a recusa de homologação do Plano ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 216º, por isso que a credora Caixa GG, S.A. tal não solicitou até à aprovação do Plano.

É exato.

Simplesmente, não foi a esta luz que o acórdão recorrido recusou a homologação do plano, mas sim à luz do art. 215º. Tal questão, colocada realmente pela referida credora na sua apelação, foi tida por prejudicada e dela se não conheceu, como resulta expresso do acórdão recorrido. Donde, demonstrado que está que a decisão recorrida não pode deixar de ser mantida no segmento normativo (art. 215º) que acima ficou apreciado, óbvio é que se mantém prejudicado o conhecimento dessa questão. Na realidade, somente se o acórdão recorrido fosse revogado é que caberia extrair consequências da referida não pronúncia, o que é dizer, teria o processo que ser reenviado à instância recorrida para apreciação da questão tida por prejudicada. Não é o caso.

Pelo que fica dito conclui-se que a decisão recorrida não violou as normas legais que os Recorrentes citam na conclusão 22ª. Decisão que, assim, deve ser confirmada.

                                                           +

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

Os Recorrentes são condenados nas custas da revista.

Lisboa, 3 de novembro de 2015

José Rainho (Relator)

Nuno Cameira

Salreta Pereira

________________
[1] Pertencerão ao CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) todas as referências normativas que se venham a fazer sem indicação de outra proveniência.
[2] . Verificámos que este acórdão, datado de 10 de março de 2015, está disponível em www.dgsi.pt