Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3536
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: PROVEITO COMUM DO CASAL
CASAMENTO
PROVA DE CASAMENTO
CONFISSÃO
PROVA DO PROVEITO COMUM
Nº do Documento: SJ200909100035367
Data do Acordão: 09/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1 – Quando a questão do casamento não é a questão jurídica central de um determinado processo, a 2aceitação” do casamento prescinde bem da certidão do registo civil exigida pelo art.4º do CRCivil – a confissão basta.

2 – Mas para a definição da dívida como sendo do proveito comum dos cônjuges, já essa confissão não basta – são essenciais o “tempo” e o “modo” do casamento e o “interesse” da contracção da dívida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


BANCO M..., S.A.
intentou, nos Tribunais Cíveis de Lisboa, em 26 de Julho de 2007, contra
AA e mulher BB
acção ordinária, que recebeu o nº3536/07, da 2ª Vara, 3ª secção, pedindo a condenação dos RR, « solidariamente entre si, a pagar ao A. a importância de 21 138,92 euros, acrescida de 3 082,54 euros de juros vencidos até ao presente – 26 de Julho de 2007 – e de 123,30 euros de imposto de selo sobre estes juros e ainda os juros que, sobre a dita quantia de 21 138,92 euros se vencerem, à taxa anual de 20,63% desde 27 de Julho de 2007 e até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre esses juros recair.
Alegou, em suma, e para o que ao recurso importa:
no exercício da sua actividade comercial, e com destino à aquisição de um veículo automóvel, concedeu ao réu marido crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo;
o réu marido não pagou as 29ª e seguintes prestações, vencendo-se então todas, estando em dívida o montante de 21 138,92 euros;
o empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR – atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR – pelo que a ré BB é solidariamente responsável com o réu AA, seu marido, pelo pagamento das referidas importâncias.
Citados, os RR não contestaram.
Em despacho de fls.20, a 2ª Vara Cível de Lisboa declarou-se incompetente em razão do território e determinou a remessa dos autos à comarca de Torres Vedras, por ser essa a competente.
Aqui, em despacho saneador de fls.32, foram além do mais julg|ados| confessados os factos articulados pelo autor que não carecem de prova documental.
E de seguida foi proferida a sentença de fls.35 a 38 que absolv|eu| a ré Maria Teresa dos pedidos contra si formulados;
conden|ou| o réu António Domingos a pagar à autora a quantia de 21 138,92 euros, referente ao montante ainda em dívida, juros de mora vencidos no montante de 3 082,54 euros e vincendos, à taxa de 20,63%, desde 27.07.2007 até integral pagamento, bem como a pagar imposto de selo à taxa de 4%, sobre os juros vencidos, o que perfaz até 26.07.2007 o montante de 123,30 euros, e sobre os vincendos a partir dessa data.
Não conformado com a decisão, interpôs recurso o autor Banco M..., S.A. que todavia, por acórdão de fls.77 a 83, julg|ou| improcedente o presente recurso de apelação e, em consequência, confirm|ou| integralmente a decisão recorrida.
De novo inconformado, pede agora o apelante Banco M... revista para este Supremo Tribunal.
Alegando a fls.94, CONCLUI o recorrente Banco M...:
1. Errou-se no acórdão que confirmou a sentença recorrida, ao julgar-se a presente acção improcedente e não provada quanto à ré mulher com fundamento na falta de demonstração do casamento dos recorridos RR e na falta de demonstração do proveito comum do casal dos RR, apesar de ter dado como provado nos autos o contrato que foi assinado.
2. Os RR, apesar de pessoal e regularmente citados, não apresentaram contestação nem deduziram qualquer oposição, nem ninguém o fez por eles, designadamente não impugnaram que fossem casados entre si, nem impugnaram sequer o facto de o empréstimo concedido pelo A. ao R. marido, ora recorrido, ter revertido em proveito comum do casal formado pelos ditos RR.
3. Acresce que, na presente acção não se está perante direitos indisponíveis, pelo que a vontade das partes é plenamente eficaz para produzir os efeitos jurídicos que pela acção se pretendem obter, sem necessidade da junção de certidão para prova do casamento dos mesmos, razão pela qual a R. mulher, ora recorrida, deveria ter sido condenada, solidariamente com o R, seu marido e também recorrido, no pedido.
4. "O documento autêntico só é mesmo necessário para a prova do casamento nas acções de estado e não naquelas em que o casamento não representa propriamente o thema decidendum, desde que não haja disputa das partes sobre a sua existência.
5. É, pois, legalmente admissível a prova do casamento dos RR por confissão, nos termos e de harmonia com o disposto nos artigos 1°, nº1, alínea d), 4° e 211° do Código do Registo Civil, e do artigo 784° do Código de Processo Civil.
6. Por outro lado, no artigo 17° da petição inicial, a A. invocou expressamente que: "o empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal comum do casal dos RR. (...) e atento até o disposto no art.1691°, alínea a) do Código Civil, porquanto a R. mulher deu o seu consentimento ao empréstimo dos autos, tendo para o efeito assinado o contrato que titula o mesmo".
7. Os recorridos, não impugnaram também o facto de o empréstimo concedido pela A. na acção, ora recorrente, ao ora recorrido marido ter revertido em proveito comum do casal, pelo que tal matéria de facto se encontra provada, face ao preceito do artigo 784° do Código de Processo Civil.
8. A falta de contestação pelos RR, ora recorridos, implica a confissão dos factos articulados pela autora, nos termos e de harmonia com o disposto no artigo 784° do Código de Processo Civil.
9. A recorrida R. mulher é, na verdade, solidariamente responsável pelo pagamento da importância reclamada nos presentes autos, atento a importância mutuada ter revertido para o património comum do casal formado pelos recorridos RR - atenta a aquisição de veículo automóvel - como ressalta da matéria invocada no artigo 17° da petição inicial que, por não impugnada, se tem de considerar confessada.
10. Neste sentido ver o que se refere no recentíssimo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº3581/08-6, de 18 de Dezembro de 2008, que: "(...) o empréstimo concedido pelo autor ao réu se destinou efectivamente à aquisição de um veículo automóvel que ficaria a pertencer a ambos os réus, e portanto, objectivamente, à luz das regras da experiência e aos olhos de uma pessoa média, ao beneficio económico de ambos, o que é suficiente para integrar o conceito jurídico de proveito comum".
11. Na sentença recorrida o Senhor Juiz a quo, ao absolver do pedido a recorrida mulher, com fundamento na não demonstração do casamento dos RR e do proveito comum, violou o disposto no art.784º do CPCivil e no art.1691º, nº1, alíneas a) e c) do CCivil.
Estão corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
Nem a sentença nem o acórdão recorrido, diga-se, nenhum deles, tiveram o cuidado de transcrever e alinhar os factos que tiveram por assentes.
E então o que resulta é que factos são aqueles, só aqueles mas todos aqueles, que na petição inicial forem ... factos, aqueles – todos – que se tiveram por confessados nos termos do disposto no art.484º, nº1 do CPCivil.
Quais?
Aceitam as instâncias – bem – que os réus são marido e mulher, são casados.
Na verdade, a questão do casamento não é a questão jurídica central neste tipo de processo e, portanto, a “aceitação” do casamento prescinde bem da certidão do registo civil exigida pelo art.4º do CRCivil – a confissão basta.
Mas não basta para a questão que nos ocupa.
Para ela são essenciais o tempo e o modo do casamento.
Porque, como é intuitivo, só pode falar-se de comum quando houver comunhão e de comunhão, seguramente, não pode falar-se sem casamento.
E se de todo o casamento se pode falar na plena comunhão de vida de que nos fala o art.1577º do CCivil, do que se fala é da comunhão de vida ... nos termos das disposições deste código.
E nos termos das disposições deste código, no que ao aspecto patrimonial diz respeito, nem todos os casamentos são iguais. Depende do regime de bens.
Então têm razão as perguntas:
ao tempo da celebração do contrato entre autor e réu marido havia já casamento, comunhão?
Porque – se não havia – como pode falar-se em proveito comum?
Não pode, porque não pode pôr-se o réu a adquirir o seu veículo automóvel tendo em vista o interesse de um casal que não existe.
E mesmo depois do casamento ter nascido, há que perguntar – a dívida contraída pelo cônjuge marido foi-o com vista ao interesse ... comum ... do casal, « tendo em conta os interesses do cônjuge e da família », no dizer de Pereira Coelho, no seu Curso do Direito de Família
Porque esse interesse não se presume – nº3 do art.1691º do CCivil – e porque há uma infinidade de situações em que o cônjuge casado não tem vista o seu casal, mas apenas o interesse próprio ou – quem sabe - um interesse alheio.
Então esse interesse há-de ter uma dimensão factual sem a qual o direito não pode definir verdadeiramente o seu carácter comum.
Não basta dizer – foi no interesse comum do casal.
É preciso dizer – alegar – factos dos quais se possa concluir objectivamente pela definição do interesse prosseguido como comum, nos termos em que o direito defina a comunhão de vida do casamento.
Sem factos não há conclusão, e de qualquer modo a conclusão que nos interessa, que interessa à lei, não é puramente fáctica, é uma conclusão ... de direito.
E foi por isso que – bem – o acórdão recorrido não assumiu a afirmação de que o empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR como um facto, apesar da ausência de contestação dos réus.
E ficando a faltar o facto – o proveito comum do casal – ficou a faltar o pressuposto da condenação da ré mulher que seria o exigido pela alínea c ) do art.1691º do CCivil.
Como faltou também claramente o saber do património comum do casal e, portanto, do “destino” do automóvel adquirido a esse património.
Porque – aquando da aquisição existia um património comum a que um determinado bem, adquirido pelo réu, estivesse a ser destinado? Existia mesmo ( já ) um casal? E se existia, existia algum património comum?
Esta expressão, património comum, só cobra(ria) interesse, do ponto de vista da questão que nos ocupa, situada fora da simples sensação factual, para ser vista à luz do direito – daquilo que, num casamento, se integra ou deixa de integrar na comunhão, ou que, adquirido por um dos cônjuges, permanece bem próprio dele.
Essa é uma questão de direito. Não de facto.
Mas – repete-se – sem factos não há direito.
E não estando alegados factos não pode o direito concluir por que a dívida foi contraída em proveito comum do casal e, consequentemente, por que por ela responde também a ré mulher.
Andaram bem as instâncias, andou bem o acórdão recorrido quando absolveu a ré BB.
No sentido que vimos desenvolvendo vejam-se, por mais recentes e repetindo a orientação jurisprudencial que uniformemente se foi afirmando, os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça nos processos nºs2624/07.6TVLSB.E1.S1 ( Mário Cruz ) ou 7.566/04.4TBVFG.S1 ( Urbano Dias ) ou 381/07.5TVLSB.S1 ( Armindo Luís, também subscrito pelo ora Relator ).
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D E C I S Ã O
Na improcedência do recurso,
nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo do recorrente.

LISBOA, 10 de Setembro de 2009

Pires da Rosa (Relator)
Custódio Montes
Mota Miranda