Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9163/20.8T9LSB-B.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ILEGITIMIDADE
AUTORIDADE DA CONCORRENCIA
REJEIÇÃO DE RECURSO
PROCESSO CRIME
PROCESSO CONTRAORDENACIONAL
Data do Acordão: 05/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Face ao disposto no art. 437.º, n.º 5, do CPP, a legitimidade para interpor recurso extraordinário de fixação nos termos previstos nos nºs 1 e 2 da mesma norma, no processo criminal, pertence ao arguido, ao assistente, às partes civis, sendo obrigatório para o Ministério Público.

II. No domínio contraordenacional, os recursos são interpostos até à Relação (restritos à matéria de direito, como previsto no art. 75.º, n.º 1, do RGCO, podendo ter por fundamento qualquer dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, mas não podendo ser invocado o chamado erro de julgamento, ou seja, a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, desde logo porque nos termos do art. 66.º do RGCO o julgamento decorre oralmente, não havendo lugar à redução da prova a escrito) e apenas, excecionalmente, sobem para o STJ, como sucede nos recursos de fixação, por impulso do arguido ou do Ministério Público.

III. Esse regime geral contido no RGCO, sofre um desvio em algumas leis especiais extravagantes que regulam matéria contraordenacional, tal como sucede com o estabelecido na Lei da Concorrência aqui aplicável, que é a Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, com as devidas atualizações, que no seu art. 89.º, n.º 2, al. a), confere autonomamente à Autoridade da Concorrência, o direito de recorrer para o Tribunal da Relação competente de quaisquer sentenças e despachos que não sejam de mero expediente, incluindo os que versem sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais, ou sobre a aplicação de medidas cautelares.

IV. Tal sucede porque, atenta a sensibilidade das matérias nelas tratadas, interesses públicos em jogo a proteger e até considerando a própria natureza específica das respetivas autoridades administrativas, o legislador resolveu desviar-se do regime geral das contraordenações (DL 433/82) e conferir-lhes um poder autónomo de recorrer judicialmente até à Relação, nomeadamente, de sentenças que lhes fossem desfavoráveis (por v.g. revogarem as suas decisões administrativas).

V. No entanto, em nenhuma norma da Lei da Concorrência, nem tão pouco do RGCO lhe é conferido a qualidade de assistente. Não basta uma alegada/suposta “equiparação” para se poder considerar que a Autoridade da concorrência tem legitimidade para apresentar este recurso extraordinário. Se assim fosse, o legislador assim o teria dito, referindo em norma própria que, além dos sujeitos processuais que indicou com legitimidade para interporem o recurso extraordinário, se incluíam ainda os “equiparados”, mas não o fez (porque nem sequer tal entendimento fazia sentido com as regras que enformam o processo penal português e com a própria segurança do direito). De resto, a letra da lei também não comporta interpretações que vão além do que foi consignado na norma (art. 437.º, n.º 4, do CPP), tendo em atenção a ratio legis, a história do próprio preceito, e a unidade do sistema jurídico processual-penal, visto o disposto no art. 9.º do CC aplicável ex vi do art. 4 do CPP.

VI. E, não se pode esquecer, por um lado, a finalidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência e, por outro lado, que não se podem confundir os recursos ordinários, com os recursos extraordinários.

VII. Não é pelo facto de determinada entidade (por exemplo, autoridade administrativa) ou participante processual (por exemplo, ofendido que não se constituiu assistente) não ter legitimidade para apresentar recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, que fica vedada a possibilidade de resolver conflitos existentes na jurisprudência, uniformizando-a e criando maior estabilidade no direito. Para além de, no que aqui interessa, a autoridade administrativa, sempre poderia recorrer ao Ministério Público, para este interpor o competente recurso de fixação de jurisprudência (o que se coaduna até, com aquelas entidades que invocam um “estatuto processual equiparado à figura do assistente”, como sucede com a Autoridade da Concorrência – cf. art. 69.º, n.º 1, CPP, enquanto colaboradores do Ministério Público), o que significava, desde logo, que deveria comunicar a oposição ao Ministério Público, uma vez que para este, era obrigatória a interposição do recurso de interposição extraordinário de fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 5, do CPP.

VIII. De resto, também quando se tratam de questões que geram interesse da unidade do direito existem as modalidades previstas no art. 447.º do CPP, para as quais apenas o PGR tem legitimidade, ou para determinar que seja interposto recurso para fixação de jurisprudência de decisão transitada em julgado há mais de 30 dias (n.º 1) ou para o próprio interpor recurso para reexame de jurisprudência fixada que está ultrapassada (n.º 2), o que sempre pode ser “provocado” pela Autoridade Administrativa interessada.

IX- Portanto, a lei processual penal oferece diferentes soluções para resolver situações de conflito de jurisprudência, não permitindo, contudo (e sendo até contra legem), que se alargue o âmbito de aplicação das normas especiais que regulam o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência ou que se subvertam as condições da sua admissibilidade, como pretende a ora recorrente, sob pena de transformar este recurso extraordinário em recurso ordinário que não é.

X- Aliás, nem pelo art. 73.º, n.º 2, do RGCO a Autoridade da Concorrência (que invoca ter “estatuto processual equiparado à figura do assistente”) tinha legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário, uma vez que o mesmo apenas é reconhecido ao arguido e ao Ministério Público.

Decisão Texto Integral:          

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório


1. Nos autos n.º 9163/20.8T9LSB-B.L1, a correr termos no Tribunal da Relação de Lisboa, Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, a Autoridade da Concorrência interpôs recurso de fixação de jurisprudência, por considerar que o acórdão ali proferido em 11.01.2023, transitado em julgado, está em contradição com o acórdão (fundamento) proferido em 7.04.2022 no processo n.º 8121/19.0T9LSB-B, transitado em julgado, igualmente da Relação de Lisboa, Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, sobre a mesma questão fundamental de direito e no âmbito da mesma legislação.


2. Os presentes autos n.º 9163/20.8T9LSB-B.L1-A.S1 revestem a natureza de processo contraordenacional, relacionando-se com matérias respeitantes a atos de busca e apreensão de correio eletrónico levados a cabo pela Autoridade da Concorrência, no âmbito da Lei da Concorrência.


3. Assim, na sua motivação de recurso a Autoridade da Concorrência (AdC), apresenta as seguintes conclusões (transcrição, sem negritos, nem itálicos):

A. A AdC interpõe o presente recurso para fixação de jurisprudência, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 437.º e do n.º 1 do artigo 438.º, ambos do Código de Processo Penal, aplicáveis por remissão sucessiva do artigo 83.º da Lei da Concorrência e do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (“RGCO”).

B. Fá-lo em razão da contradição que se verifica, quanto à mesma questão fundamental de Direito, entre o Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 8121/19.0T9LSB-B.L2, em 07.04.2022, pela Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa – doravante, Acórdão fundamento -, e o Acórdão proferido pela mesma secção, em 11.01.2023, no âmbito do processo n.º 9163/20.8T9LSB-B.L1- doravante, Acórdão recorrido.

C. O Acórdão Recorrido não é passível de recurso ordinário, atendendo ao disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 400.º do CPP, uma vez que o mesmo não conheceu a final do objeto do processo contraordenacional.

D. Tanto o Acórdão recorrido como o Acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação, isto é, a Lei da Concorrência na sua redação conferida pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio.

E. Verifica-se o trânsito em julgado quanto a ambos os Acórdãos, tendo o Acórdão fundamento transitado em julgado em momento anterior ao trânsito do Acórdão recorrido.

F. O processo que deu origem ao Acórdão recorrido teve por objeto a impugnação da validade do ato de apreensão de mensagens de correio eletrónico levado a cabo pela AdC, no quadro de diligências de busca e apreensão realizadas em sede do processo de contraordenação (referência interna PRC/2020/4), entre os dias 4 e 18 de novembro de 2020, a coberto de um mandado emitido pelo MP.

G. Impugnação esta apresentada pela Vodafone (apesar de não ter sido esta a destinatária das diligências de busca, exame e apreensão), junto do Tribunal de Instrução Criminal ....

H. Por despacho datado de 17.06.2022, o Tribunal de Instrução Criminal ... declarou-se materialmente incompetente para conhecer e decidir de nulidades arguidas pela Vodafone referentes a diligências de busca e apreensão autorizadas pelo MP e levadas a cabo pela AdC.

I. Entendimento que secundou o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 07.04.2022, no âmbito do processo de Inquérito n.º 8121/19.0T9LSB – o (aqui) Acórdão fundamento.

J. Em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa, através do Acórdão Recorrido, revogou o referido despacho, fundamentando a sua decisão no entendimento segundo o qual as nulidades e irregularidades decorrentes das diligências de busca e apreensão determinadas por autoridades judiciárias devem ser arguidas perante tais entidades, no caso, o Juiz de Instrução Criminal, entidade que o Tribunal recorrido entende ser a competente para autorizar a apreensão de correio eletrónico, mesmo em sede processo contraordenacional da concorrência.

K. Tendo mesmo afirmado que “Por via da tutela e da dignidade constitucional conferida aos direitos, liberdades e garantias conexionadas com a protecção da vida privada, do domicílio, de correspondência ou das telecomunicações, foi atribuída competência jurisdicional própria, exclusiva e autónoma às       autoridades judiciárias com competência em matéria criminal para as diligências de busca e apreensão de documentos de visadas no âmbito do NRJC.”.

L. Tal decisão encontra-se em oposição com o Acórdão fundamento, que teve por objeto a impugnação da validade tanto do mandado emitido pelo MP que autorizara as diligências de busca e apreensão realizadas pela AdC.

M. Esta impugnação foi também apresentada junto do Tribunal de Instrução Criminal ..., por uma empresa visada no processo de contraordenação que correu termos na AdC sob a referência interna 2019/4.

N. No âmbito desse processo, em 24.02.2020, o Juiz de Instrução Criminal, considerando-se competente para tanto, proferiu despacho indeferindo os vícios arguidos pela recorrente, que, inconformada, interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, em 30.06.2020.

O. Por Acórdão de 07.04.2022 (Acórdão fundamento), a Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que a arguição de nulidade do ato de busca e apreensão emitido pelo MP no âmbito de um processo de natureza contraordenacional em matéria da concorrência, de acordo com os poderes que a LdC lhe atribui, deve ser suscitada perante o próprio MP e dessa decisão caberá recurso hierárquico.

P. Mais afirmou que: “Uma vez que ao Juiz de Instrução Criminal não está atribuída por lei qualquer competência material para decidir sobre nulidades dos actos de busca e apreensão levados a cabo pela AdC, sob mandado emitido pelo Ministério Público, nos termos da Lei da Concorrência, tendo o Juiz de Instrução Criminal proferido decisão a esse respeito, em vez de se ter declarado incompetente para o efeito, imiscui-se numa área de competência que não é a sua, enfermando a sua decisão de nulidade insanável, enunciada no art. 119.º alínea e) do CPP”.

Q. Verifica-se, deste modo, contradição entre Acórdão recorrido e Acórdão fundamento, porquanto, para o primeiro, as nulidades e irregularidades decorrentes das diligências de busca e apreensão de correio eletrónico devem ser arguidas perante o Juiz de Instrução Criminal – órgão que, segundo assevera, é o competente para a autorização deste tipo de diligência, mesmo em processo contraordenacional da concorrência.

R. Ao invés, para o Acórdão fundamento, o Juiz de Instrução Criminal não tem competência para apreciar a validade do ato de busca e apreensão de correio eletrónico, emitido pelo MP ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pela Lei da Concorrência. A validade de tal mandado deve ser sindicada perante o próprio MP, sem prejuízo do controlo de plena jurisdição que cabe ao TCRS em sede de impugnação judicial de eventual decisão final a proferir pela AdC. Se em causa estiverem vícios emergentes da forma como a AdC executou o mandado emitido pelo MP, então tais vícios são arguidos juntos da própria AdC, cuja decisão é passível de recurso interlocutório, no termos do artigo 85.º da LdC.

S. Assim, por se encontrarem preenchidos os critérios previstos nos n.ºs 1 a 4 do artigo 437.º do CPP, deve o presente recurso ser admitido, com a consequente notificação da AdC para apresentação das respetivas alegações, assim se uniformizando uma questão que foi objeto de uma decisão dissidente na prática decisória do Tribunal da Relação de Lisboa e em evidente contradição com aqueloutra previamente transitada em julgado, respaldada no Acórdão fundamento.

Termina pedindo que o recurso seja admitido e a AdC notificada para apresentar assuas alegações, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 442.º do CPP.


4. No TRL o Ministério Público respondeu ao presente recurso extraordinário concluindo, em resumo, que deve ser reconhecida a oposição de julgados e fixada jurisprudência obrigatória.


5. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido de a recorrente não ter legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário, face ao disposto no art. 437.º, n.º 5, do CPP, sendo certo que os que lhe são conferidos pela Lei 19/2012, de 8.05 (Lei da concorrência), particularmente seu art. 89.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), apenas lhe permitem recorrer até ao Tribunal da Relação competente, dispositivo que apenas se reporta aos recursos ordinários e não aos recursos extraordinários, como o de fixação de jurisprudência, cujas normas assumem natureza excecional, designadamente no que se refere à legitimidade (citando jurisprudência deste STJ nesse sentido, ainda que a propósito de outras autoridades administrativas e outras entidades diferentes das indicadas no art. 437n.º 5 do CPP, v.g. ac. 16.01.2020, proc. 5837/16.6T9LSB-A.L1.S1-A, relatado por Júlio Pereira, de 8.06.2022, proc. 173/19.IDPRT-AC.P1-A.S1, relatado por Teresa Almeida), concluindo pela sua rejeição e informando a existência de outros recursos extraordinários de fixação de jurisprudência relativamente à mesma questão suscitada nestes autos.


6. Notificados do Parecer do Sr. PGA quer a Autoridade da Concorrência (isto é, a autoridade administrativa que iniciara o processo de contraordenação), quer a Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, S.A (sendo esta a entidade que fora arguida nos autos de contraordenação em questão), apresentaram respostas. Assim:

6.1. A Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, S.A aderiu na integra aos fundamentos de direito vertidos no Parecer do Sr. PGA, pugnando, em consequência, pela rejeição do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência apresentado pela Autoridade da Concorrência.

6.2. A Autoridade da Concorrência mostrou total discordância com o Parecer do Sr. PGA, argumentando, em resumo, que tinha legitimidade para apresentar o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, por ter um estatuto processual equiparado à figura do assistente existente no processo penal, considerando igualmente os poderes próprios e ativos que lhe são conferidos na fase judicial do processo (v.g. arts. 87.º, 89.º, n.º 2, al. a), 86.º-A, 89.º,n.º 4, da Lei da Concorrência), tendo em atenção desde logo a sua missão na regulação do mercado e garantir as regras de promoção e defesa da concorrência, percebendo-se que tenha um estatuto de um verdadeiro e autónomo sujeito processual e não de um mero interveniente ou participante processual, pelo que decidir o contrário afeta diretamente a sua atividade e os interesses públicos que prossegue, além da sua reconhecida autonomia enquanto autoridade de concorrência nacional, como decidido no ac. do TJ da UE de 7.12.2010, no processo C-439/08.


7. Feito o exame preliminar, a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais e, realizada a conferência, incumbe, agora, decidir da admissibilidade ou rejeição deste recurso extraordinário (art. 441.º do CPP).


II. Fundamentação

8. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (art. 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»

Ora, a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende do preenchimento de requisitos formais e de requisitos materiais, que se extraem dos artigos 437.º e 438.º do CPP.

 Assim, este Supremo Tribunal tem entendido, como é clarificado em variada jurisprudência[1], que são requisitos formais, a legitimidade do recorrente, a tempestividade da interposição do recurso (prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido), a identificação do acórdão fundamento (com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição), incluindo se tiver sido publicado, o lugar da publicação e o trânsito em julgado do acórdão fundamento e, por sua vez, são requisitos materiais, que os dois acórdãos respeitem à mesma questão de direito, tenham sido proferidos no “domínio da mesma legislação”, “assentem em soluções opostas”, partindo de idêntica situação de facto, importando que as decisões em oposição sejam expressas.

Quanto a estes últimos dois requisitos, a saber, que sejam proferidas “soluções opostas a partir de idêntica situação de facto e que as decisões em oposição sejam expressas”, assinala-se no acórdão do STJ de 21.10.2021 citado, que “constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1, 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).”


9. Posto isto, vejamos se, neste caso concreto, estão ou não preenchidos todos os requisitos acima apontados.

Assim.

Como já vimos, o presente recurso insere-se no âmbito de uns autos que revestem a natureza de processo contraordenacional da concorrência, relacionando-se com matérias respeitantes a atos de busca e apreensão de correio eletrónico levados a cabo pela Autoridade da Concorrência, no âmbito da Lei da Concorrência (arts. 17.º, n.º 2 e 18.º, n.º 1), sendo visada a Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, S.A.

Neste caso, é a própria Autoridade da Concorrência, que é precisamente a autoridade administrativa no processo contraordenacional, que se apresenta a interpor o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, invocando para o efeito o disposto nos arts. 437.º, n.º 2, 438.º, n.º 1, do CPP, 83.º da Lei da Concorrência e 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10 (RGCO).

Vejamos, então, se a mesma AdC goza ou não de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.

É certo que face ao disposto no art. 437.º, n.º 5, do CPP, a legitimidade para interpor recurso extraordinário de fixação nos termos previstos nos nºs 1 e 2 da mesma norma, no processo criminal, pertence ao arguido, ao assistente, às partes civis, sendo obrigatório para o Ministério Público.

Ou seja, trata-se de uma legitimidade mais restrita em relação à prevista nos termos gerais (art. 401.º do CPP) para os recursos ordinários, no processo criminal, o que se conforma com a natureza excecional do recurso de fixação de jurisprudência.

E, como diz Paulo Pinto de Albuquerque[2], “sendo o recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, o recorrente deve ter interesse em agir, traduzido na possibilidade de a decisão que resolver o conflito ter uma repercussão favorável ao recorrente no processo em que o recurso foi interposto, por força do disposto no artigo 445.º, n.º 1 (acórdão do STJ, de 3.4.2008, in CJ, Acs. Do STJ, XVI, 2, 194, e acórdão do STJ, de 9.7.2003, in SASTJ, n.º 73, 121). Os recursos para fixação de jurisprudência têm carácter extraordinário e, portanto, as normas que os disciplinam têm natureza excepcional (acórdão do STJ, de 26.9.1996, in CJ, Acs. do STJ, IV, 3, 142).”

Ora, em regra, as contraordenações são decididas pelas respetivas autoridades administrativas competentes, sendo as decisões que aplicarem coimas suscetíveis de impugnação judicial pelo arguido ou seu defensor oficioso nos termos previstos na lei (art. 59.º e ss. do RGCO).

Em termos gerais, essa impugnação judicial é decidida pela 1ª instância, pelo tribunal competente (art. 61.º do RGCO), só depois podendo haver recurso para a Relação (2ª instância) nos casos indicados nos arts. 73.º a 75.º do RGCO, sendo que apenas verificando-se a situação prevista no nº 2 do art. 73.º do RGCO, poderá a Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência e, portanto, nesta hipótese, haverá recurso para o STJ.

Assim, no domínio contraordenacional, os recursos são interpostos até à Relação (restritos à matéria de direito, como previsto no art. 75.º, n.º 1, do RGCO[3], podendo ter por fundamento qualquer dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, mas não podendo ser invocado o chamado erro de julgamento, ou seja, a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, desde logo porque nos termos do art. 66.º do RGCO o julgamento decorre oralmente, não havendo lugar à redução da prova a escrito) e apenas, excecionalmente, sobem para o STJ, como sucede nos recursos de fixação, por impulso do arguido ou do Ministério Público.

Claro que a regra nas contraordenações é as autoridades administrativas não poderem recorrer das decisões (judiciais), sejam ou não desfavoráveis (ou seja, em regra, não podem recorrer das decisões judiciais que alteram as decisões administrativas, o que se compreende perante a natureza, sentido e finalidade do direito contraordenacional[4], que é distinto do direito penal, tendo o ilícito de mera ordenação menor ressonância ética em relação ao ilícito penal, sendo menor o seu regime garantístico).

Aliás, no Ac. do TC n.º 659/2006 alerta-se para «A diferença de “princípios jurídico‑constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra‑ordenações”, o que se reflete “no regime processual próprio de cada um desses ilícitos”, não exigindo “um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal, inscrevendo‑se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador”, por exemplo, a não atribuição ao assistente (admitindo que a lei consente em processo contraordenacional esta figura) de legitimidade para recorrer, legitimidade que o artigo 73.º, n.º 2, do RGCO apenas reconhece ao arguido e ao Ministério Público (Acórdão n.º 344/93).»

Isso mesmo é o que resulta do RGCO, não obstante o desvio ou o regime especial contido na Lei da Concorrência aplicável, que é a Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, com as devidas atualizações, que no seu art. 89.º[5], n.º 2, al. a), confere autonomamente à Autoridade da Concorrência, o direito de recorrer para o Tribunal da Relação competente de quaisquer sentenças e despachos que não sejam de mero expediente, incluindo os que versem sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais, ou sobre a aplicação de medidas cautelares.

Portanto, tal como sucede em algumas leis especiais extravagantes, que regulam matéria contraordenacional variada, atenta a sua sensibilidade, interesses públicos em jogo a proteger e até considerando a própria natureza específica das autoridades administrativas neles criadas, o legislador resolveu desviar-se do regime geral da contraordenações (DL 433/82) e conferir-lhes um poder autónomo de recorrer judicialmente, nomeadamente, de sentenças que lhes fossem desfavoráveis, por v.g. revogarem as suas decisões administrativas.

Claro que esse direito ao recurso foi conferido de forma excecional, variando de autoridade para autoridade, conforme o legislador entendeu ser conveniente aos interesses em jogo, sopesando todos os valores a ponderar, assim cuidando de legislar em conformidade, sendo que nesta concreta área, encontrando-se no domínio da aplicação do direito da União Europeia, não se esqueceu, de cumprir as respetivas normas sobre o direito europeu da concorrência que eram aplicáveis (não se diga, por isso, que esta clara opção a nível do recurso, particularmente no que se refere às normas especiais relativas ao recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, o legislador viola o disposto nos arts. 101.º e 102.º do TFUE).

E, o que se estabeleceu a nível do direito ao recurso na lei da concorrência, particularmente no domínio de infrações contraordenacionais e sua investigação pela Autoridade da Concorrência (o que se prende com o direito adjetivo), mesmo aplicando-se subsidiariamente as regras gerais o RGCO, em nada interfere colide com as regras do direito europeu da concorrência.

Invoca a recorrente que tem um estatuto equiparado à figura do assistente em processo penal.

No entanto, em nenhuma norma da Lei da Concorrência, nem tão pouco do RGCO lhe é conferido a qualidade de assistente.

Não basta essa suposta “equiparação” para se poder considerar que a Autoridade da concorrência tem legitimidade para apresentar este recurso extraordinário.

Se assim fosse, o legislador assim o teria dito, referindo em norma própria que, além dos sujeitos processuais que indicou com legitimidade para interporem o recurso extraordinário, se incluíam ainda os “equiparados”, mas não o fez (porque nem sequer tal entendimento fazia sentido com as regras que enformam o processo penal português e a segurança do direito).

A letra da lei também não comporta interpretações que vão além do que foi consignado na norma (art. 437.º, n.º 4, do CPP), tendo em atenção a ratio legis, a história do próprio preceito, e a unidade do sistema jurídico processual-penal, visto o disposto no art. 9.º do CC aplicável ex vi do art. 4 do CPP.

Com efeito, é lógico e racional que o legislador tivesse conferido legitimidade para interpor este recurso extraordinário, a quem era vencido no recurso ordinário que é (em regra) o sujeito processual reconhecido no processo penal (MP, arguido, assistente ou partes civis, neste último caso estando em causa matéria cível).

E, não se pode esquecer que o interesse deste recurso extraordinário de fixação de jurisprudência ser interposto apenas depois do trânsito em julgado quer do acórdão recorrido, quer do acórdão fundamento, portanto estando esgotadas as possibilidades de recurso ordinário, faz sentido, atenta a finalidade em vista de resolver os conflitos existentes na jurisprudência, uniformizando-a e criando maior estabilidade no direito.

O que igualmente significa que não se podem confundir os recursos ordinários, com os recursos extraordinários.

E, não é pelo facto de determinada entidade (por exemplo, autoridade administrativa) ou participante processual (por exemplo, ofendido que não se constituiu assistente) não ter legitimidade para apresentar recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, que fica vedada a possibilidade de resolver conflitos existentes na jurisprudência, uniformizando-a e criando maior estabilidade no direito.

Para além de, no que aqui interessa, a autoridade administrativa, sempre poderia recorrer ao Ministério Público, para este interpor o competente recurso de fixação de jurisprudência (o que se coaduna até, com aquelas entidades que invocam um “estatuto processual equiparado à figura do assistente”, como sucede com a Autoridade da Concorrência – cf. art. 69.º, n.º 1, CPP, enquanto colaboradores do Ministério Público), o que significava, desde logo, que deveria comunicar a oposição ao Ministério Público, uma vez que para este, era obrigatória a interposição do recurso de interposição extraordinário de fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 5, do CPP.

De resto, também quando se tratam de questões que geram interesse da unidade do direito existem as modalidades previstas no art. 447.º do CPP, para as quais apenas o PGR tem legitimidade, ou para determinar que seja interposto recurso para fixação de jurisprudência de decisão transitada em julgado há mais de 30 dias (n.º 1) ou para o próprio interpor recurso para reexame de jurisprudência fixada que está ultrapassada (n.º 2), o que sempre pode ser “provocado” pela Autoridade Administrativa interessada.

Portanto, a lei processual penal oferece diferentes soluções para resolver situações de conflito de jurisprudência, não permitindo, contudo (e sendo até contra legem), que se alargue o âmbito de aplicação das normas especiais que regulam o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência ou que se subvertam as condições da sua admissibilidade, como pretende a ora recorrente, sob pena de transformar este recurso extraordinário em recurso ordinário que não é.

Aliás, nem pelo art. 73.º, n.º 2, do RGCO a Autoridade da Concorrência (que invoca ter “estatuto processual equiparado à figura do assistente”) tinha legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário, uma vez que o mesmo apenas é reconhecido ao arguido e ao Ministério Público.

Assim, não havendo dúvidas que a Autoridade da Concorrência tem efetivamente direito de recorrer judicialmente até ao Tribunal da Relação competente (arts. 87.º e 89.º da Lei da Concorrência), relativamente a recursos ordinários, já nenhuma norma existe (designadamente das por si invocadas) que lhe confira legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.

O seu excecional direito ao recurso das decisões proferidas no processo de impugnação judicial, como sucede neste caso (desde que admitam recurso, conforme arts. 87.º e 89.º da Lei da Concorrência), é limitado ao recurso ordinário, até à 2ª instância competente.

Só dentro desses limites e âmbito o legislador prevê um regime especial para a Autoridade da Concorrência, conferindo-lhe o direito ao recurso, ainda que de forma limitada, permitindo-lhe o acesso direto à obtenção de uma decisão jurisdicional, que neste caso se concretiza na reapreciação pela 2ª instância da sentença e despachos que não sejam de mero expediente, incluindo os que versem sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais, ou sobre a aplicação de medidas cautelares, proferidas pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (art. 89.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), da Lei da Concorrência).

Pode-se, pois, concluir que esta interpretação ajusta-se e é adequada à natureza e regime das contraordenações, sua diferente ressonância ética em relação ao direito criminal, não havendo qualquer contradição que impeça a sua aplicação.

Assim, não gozando a Autoridade da Concorrência de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, falta um pressuposto essencial para a sua admissão, motivo pelo qual é o mesmo de rejeitar face ao disposto expressamente nos arts. 437.º, n.º 1, n.º 2, n.º 5 e 441.º, n.º 1, 1ª parte, do CPP.

De esclarecer, ainda, que a decisão que admitiu o recurso não vincula este tribunal superior (art.414.º, n.º 3, do CPP).


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III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar este recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, por inadmissibilidade legal (face ao disposto nos arts. 437.º, n.º 1, n.º 2, n.º 5 e 441.º, n.º 1, 1ª parte, do CPP).

Vai a recorrente condenada em 4 UCs de taxa de justiça.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Maio de 2023


Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)

Teresa Almeida (Adjunta)

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[1] Entre outros, Ac. do STJ de 21.10.2021, proferido no proc. n.º 613/95.0TBFUN-A.L1-C.S1 (relatado por António Gama), consultado no site da dgsi.
[2] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed, Lisboa: UCE, 2011, p. 1193.
[3] Ver o Acórdão do TC n.º 612/14 que decidiu, além do mais, “a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 75.º, n.º 1, do RGCO, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na interpretação segundo a qual em processo de contraordenação o recurso para o tribunal da relação está limitado à matéria de direito; b) não julgar inconstitucional a norma que, extraída da conjugação dos artigos 75.º, n.º 1, e 66.º do mesmo RGCO, não admite, em processos de contraordenação, o registo da prova produzida em audiência; (…).”
[4] Tendo presente igualmente a própria natureza das entidades decisoras administrativas.
[5] Artigo 89.º (Recurso da decisão judicial) da Lei da Concorrência
1 - Das sentenças e despachos do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão cabe recurso para o tribunal da relação competente, nos termos do n.º 3, que decide em última instância.
2 - Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público e, autonomamente, a AdC, de quaisquer sentenças e despachos que não sejam de mero expediente, incluindo os que versem sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais, ou sobre a aplicação de medidas cautelares;
b) O visado.
3 - Notificados da decisão prevista no artigo 88.º, o Ministério Público, a AdC e o visado podem interpor recurso no prazo de 30 dias, aplicando-se o mesmo prazo para a apresentação da resposta ao recurso.
4 - Notificados das decisões previstas nos artigos 85.º e 86.º, o Ministério Público, a AdC e o visado podem interpor recurso no prazo de 20 dias, aplicando-se o mesmo prazo para a apresentação da resposta ao recurso.
5 - Notificados das demais decisões, o Ministério Público, a AdC e o visado podem interpor recurso no prazo de 10 dias, aplicando-se o mesmo prazo para a apresentação da resposta ao recurso.
6 - Aos recursos previstos no presente artigo é aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 84.º, n.º 3 do artigo 85.º, no artigo 86.º e nos n.ºs 3, 4 e 9 do artigo 87.º, com as necessárias adaptações.