Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2386/20.1T9OER.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: TRIBUNAL DA RELAÇÃO
REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - O acórdão proferido pelo tribunal da Relação, em recurso, que confirma a decisão de não pronúncia da 1.ª instância, é irrecorrível nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al, c), do CPP, por não conhecer, a final, do objeto do processo.
II - A opção do legislador do CPP de 1987, rompendo abertamente com a tradição que, há quase um século, geminara os recursos penais e cíveis, foi a de consagrar um regime dos recursos em processo penal com autonomia dogmática e metodológica em relação ao processo civil.
III - Não é viável franquear à assistente o acesso ao STJ através do recurso de revista excecional, previsto no art. 672.º do CPP, ex vi do art. 4.º do CPP (integração de lacunas por analogia), porquanto, a não consagração deste recurso não resulta de uma “incompletude contrária a um plano”, no âmbito da admissibilidade de recursos em processo penal; a existir uma lacuna da lei em recurso da matéria penal a sua integração por analogia, através do recurso cível configuraria analogia «in malam partem», que o princípio da legalidade impediria, por desfavorecer os arguidos; e a revista excecional está limitada aos casos em que, sendo admissível, em tese, recurso de revista, se verifica o impedimento decorrente da dupla conforme desenhado pelo n.º 3 do art. 671.º do CPC e, no caso, não é uma dupla conforme que impede o recurso interposto para o STJ.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 2386/20.1T9OER.L1.S1

Recurso Penal

*

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. No âmbito do proc. n.º 2386/20.1T9OER.L1, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 25 de outubro de 2022, decidiu negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA e confirmar a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de ... - Juiz ..., que não pronunciara os arguidos BB, CC e DD, pela prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p pelo art.365.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e de um crime de difamação, p. e p. pelo art.180.º, n.º1 do Código Penal, que lhe eram imputados na acusação particular e ordenara o oportuno arquivamento dos autos.

2. Inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, dele interpôs recurso a assistente AA, para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):

A. Cabe Revista Excecional, neste caso, em que uma interpretação do artigo 380.º n.º 1 do CPP em contrário, releva da inconstitucionalidade do preceito, porque contrário ao artigo 32.º n.º 1 do CRP.

B. Por outro lado, tratando-se de uma ofensa à Recorrente por parte de dirigentes laborais, que em escrito dirigido à tutela afirmaram que a Assistente sofria de um estado psicológico de grande desequilíbrio, referindo-se a ela própria e não a uma qualquer outra situação que pudesse ser, sem referência personalizada, imputada à Assistente, identifica-se aqui uma infração ao direito humano de não ingerência da intimidade da vida privada (artigo 12.º DUDH, artigo 8.º DEDH e artigos 25.º n.º 1 e 26.º n.º 1 da CRP).

C. Logo, este caso tem, por isso mesmo, relevância bastante para acolhimento segundo a alínea a) do artigo 672.º n.º 1 do CPC.

D. De qualquer modo, caracterizada a atuação dos arguidos num fornecimento de uma informação disciplinar laboral, respeitante à Recorrente, e com força no artigo 52.º da CRP e no dever de proteção (psíquico-social) da trabalhadora que a Assistente era, cabe também o caso na alínea b) do artigo 672º n.º 1 do CPC, porque se circunscreve, em si e por si mesmo, numa concreta e particular relevância social.

E. Depois, no texto da carta enviada pelos arguidos ao Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, que a Assistente inseriu expressamente na acusação particular por crime de difamação, não recebida pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, está indiciado o dolo, ao menos, na modalidade de dolo eventual, da ofensa à Recorrente, e por infração do dever de respeito pela sua vida privada e integralidade moral.

F. Indícios não são provas definitivas e a simples leitura adequada do excerto, na correlação do envio e receção dele por terceiro - neste caso, até entidade tutelar da empresa municipal onde a Assistente servia - é bastante para poder ser concluído pela justiça da submissão a julgamento, para prova definitiva, dos arguidos indiciados.

G. Por fim, os arguidos agiram, ao escreverem o excerto em causa e, dirigindo-o a entidade terceira e tutelar, contra o que lhes prescreve o artigo 52.º da CRP; por conseguinte, sobre uma necessária apreciação objetiva dos factos ainda menos apertada de indiciação do crime.

H. Por tudo quanto fica concluído deve, pois, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa recorrido ser reformado em termos do recebimento da acusação particular deduzida pela Assistente contra os arguidos, autores confessos do trecho ofensivo e de referência.

I. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sob critica infringiu o disposto nos artigos 285.º e 307.º do CPP.

Vossas excelências com doutro suprimento decidirão com JUSTIÇA e de Lei.

3. A Ex.ma Desembargadora relatora, por despacho de 29 de novembro de 2022, recebeu, “ainda que com dúvidas”, o recurso interposto pela assistente para o Supremo Tribunal de Justiça.

4. O Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa respondeu ao recurso interposto pela assistente, concluindo como segue (transcrição):

1. O recurso deve ser rejeitado.

2. Não existem indícios suficientes de verificação do crime de difamação p. e p. pelo art.180.º n.º 1 do Código Penal.

3. O Acórdão recorrido não violou qualquer preceito legal, nomeadamente os artigos 285.º e 307.º do Código de Processo Penal.

4. Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso interposto e, consequentemente, manter-se, na íntegra, o Acórdão recorrido.

5. Também os arguidos BB, CC e DD, contra-alegaram, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1. O presente recurso não deverá ser admitido. Antes, deve ser liminarmente indeferido nos termos dos artigos 671.º n.º3 e alíneas a) e b) do art.672.º do CPC; alíneas d), e) e f) n.º1 do art.400.º, n.º2 do art.420.º e alínea b) do art.432.º, todos do CPP.

2. O seu indeferimento nada revela de inconstitucional porque em nada restringe o direito ao recurso. Pelo contrário, é um claro e notório abuso do direito de acção!

3. A informação contendo as expressões motivo de queixa foi subscrita pelos arguidos, porém sem qualquer intenção de ofender, caluniar, difamar, prejudicar ou causar qualquer dano à recorrente, mas tão somente no cumprimento do dever da resposta no sentido de informar o senhor Presidente da Câmara de Oeiras, a pedido do mesmo, nada havendo nas mesmas qualquer elementos subjetivo ou objetivo susceptível de responsabilidade criminal, portanto, dentro dos limites normais do dever de informar e dos princípios de boa Gestão da Empresa, o que é inequivocamente legítimo.

Termos em que o presente recurso não deverá ser admitido mas sim indeferido liminarmente, mantendo-se assim a decisão recorrida.

6. O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que o acórdão recorrido não se afigura suscetível de impugnação, pelo que o recurso de “revista excecional” não deve ser admitido.

7. Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., respondeu a assistente renovando o entendimento de que o recurso por si apresentado deve recebido e julgado procedente.

8. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Fundamentação

9. Do acórdão recorrido consta, além do mais, o seguinte (transcrição):

“(…)

Alega a assistente/recorrente que os autos contêm indícios suficientes para que os arguidos sejam pronunciados pela prática dos crimes de denúncia caluniosa e de difamação, p. e p., respectivamente, pelos arts. 365º, nºs 1 e 2, e 180º, nº 1, ambos do Cód. Penal.

Compulsados os autos, verificamos que em 12.07.2021, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento quanto ao crime de denúncia caluniosa – por ter entendido não terem sido recolhidos indícios suficientes da sua prática – e ordenou a notificação da assistente para, querendo, deduzir acusação particular quanto ao crime de difamação, desde logo manifestando o entendimento de que não haviam sido recolhidos indícios da prática desse crime.

A assistente deduziu então acusação particular contra os arguidos imputando-lhes a prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.365º, nºs 1 2 do Cód. Penal, e de um crime de difamação, p. e p. pelo art.180º, nº 1 do mesmo Código.

O Ministério Público proferiu despacho de não acompanhamento da acusação particular quanto ao crime de difamação por considerar não estarem suficientemente indiciados os factos integrantes do ilícito.

Notificados da acusação, os arguidos vieram requerer que se procedesse a instrução, finda a qual foi proferido o despacho recorrido (de não pronúncia).

Antes de mais, e no que concerne ao imputado crime de denúncia caluniosa, cabe dizer que este crime tem natureza pública, pelo que, não pode a assistente deduzir acusação particular sobre factos que eventualmente o integrariam (cfr. o disposto nos arts. 48º, 49º, 50º, 69º, nº 2, alínea b), 283º e 284º, todos do Cód. Proc. Penal).

Com efeito, perante um despacho de arquivamento do Ministério Público quanto a crimes de natureza semi-pública ou pública, carece o Assistente de legitimidade para deduzir acusação particular quanto a esses factos.

E esta ilegitimidade do Assistente não configura qualquer inconstitucionalidade, nem infringe o disposto no art.20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa na dominante do processo equitativo e célere, até porque o Assistente tem meios de reagir ao despacho de arquivamento do Ministério Público.

Discordando do entendimento do Ministério Público e pretendendo o prosseguimento do processo, o Assistente pode requerer a abertura de instrução (cfr. o art. 287º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Penal), podendo vir a obter, por este meio, a pronúncia do arguido; ou requerer a intervenção do superior hierárquico (nos termos do art. 278º do Cód. Proc. Penal), que poderá determinar a formulação da acusação ou o prosseguimento das investigações. E pode ainda requerer a reabertura do inquérito quando surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos do despacho de arquivamento (cfr. o art. 279º do Cód. Proc. Penal).

No caso, a assistente optou por deduzir acusação particular quanto ao crime de denúncia caluniosa, procedimento para o qual carece de legitimidade.

Pelo que, ainda que com fundamento diverso da decisão recorrida, urge confirmar a decisão de não pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de denúncia caluniosa.

(…)

Indiciam os autos – e é aceite por todos os intervenientes – que:

- com data de 17 de Dezembro de 2019 os arguidos fizeram chegar ao Gabinete do Sr. Presidente da Câmara Municipal de ..., uma carta da O..., e dirigida ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de ...;

- tal carta pretendia responder a uma exposição da assistente feita ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... e encontra-se assinada pelos arguidos enquanto administradores da O...;

- na referida carta, os arguidos referem-se à assistente como revelando um "estado psicológico e emocional de grande desequilíbrio, que tem sido patente ao longo de muitos anos" (…) "o trabalho desenvolvido (...) bem como os períodos de baixa são o espelho desse desequilíbrio" (…) "reflectem um grau de desempenho profissional manifestamente aquém do que lhe é exigível e a empresa necessita".

O que se impõe agora averiguar é se estes juízos, redigidos na carta, são ofensivos da honra ou consideração da assistente.

Dispõe o nº 1 do art. 180º do Cód. Penal que “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.

Mas dispõe o nº 2 do mesmo art.180º que “a conduta não é punível quando: a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.

O direito à honra e consideração, constituído, basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade, tem consagração constitucional e noutras Leis Fundamentais, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH). Honra e consideração, no entanto, são conceitos que não se confundem. A honra tem componente individual ou subjectiva, podendo definir-se como o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua inviolável dignidade, atributo inato de qualquer pessoa; a consideração envolve uma componente social, devendo entender-se como a reputação que a pessoa tem no seio da comunidade em que se insere.

Assim, a lesão do direito à honra e consideração ocorre quando alguém imputa a outrem um facto, ou formula um juízo, objectivamente adequado a depreciar ou desacreditar, quer individual quer socialmente, a vítima – o que significa que nem todo o facto ou juízo que envergonha, ou perturba, ou humilha, cabe neste conceito.

Quanto ao tipo subjectivo do ilícito, é ele necessariamente doloso, embora baste o dolo genérico (em qualquer das três modalidades legalmente previstas: directo, necessário ou eventual), sendo assim necessário, mas suficiente, que o agente tenha consciência da aptidão ofensiva das suas palavras ou gestos e ainda assim queira levar a cabo a sua actuação, ou, pelo menos, que admita como possível que essa mesma conduta ofenda a honra e reputação do visado e, não obstante, não se abstenha de agir, conformando-se com essa eventualidade.

Nos termos dos arts. 25º 1 e 26º 1 da Constituição da República Portuguesa, o direito de integridade pessoal e integridade moral das pessoas é inviolável, sendo a todos reconhecido o direito ao bom-nome e reputação.

Mas por outro lado, nos termos do art. 37º 1 da mesma Constituição, salvaguarda-se a liberdade de expressão, no sentido de que todos têm o direito de exprimir e de divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações.

A liberdade de expressão e opinião encontra-se também consagrada no art.19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948, no art.19º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado, para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho e no art. 10º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (adiante designada por CEDH), aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro. No entanto, de acordo com o art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a liberdade de expressão pode ser limitada pela lei quando seja necessário numa sociedade democrática, nos seguintes casos: 1) para proteger a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública; 2) para prevenir a desordem e o crime; 3) para proteger a saúde e a moral; 4) para proteger a reputação e os direitos de outros; 5) para prevenir a revelação de informação recebida confidencialmente; ou 6) para manter a autoridade e a imparcialidade da judicatura.

E como resolver os casos em que colidam o direito à reputação e ao bom nome com o direito da liberdade de expressão, direitos que gozam de igual dignidade e hierarquia constitucional?

Nos termos do art.18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Torna-se, assim, necessário compatibilizar o direito da liberdade de expressão (aqui compreendido o chamado “direito à indignação”) com o direito à dignidade, e à protecção da honra e consideração individual de cada um – neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, (Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 110-111) defendem que o direito de liberdade de expressão e o direito à consideração e à honra, ambos constitucionalmente garantidos, quando em confronto, devem sofrer limitações, de modo a respeitar-se o núcleo essencial de um e de outro.

Na consideração do efeito recíproco de mútuo consentimento, a demonstração da existência de um interesse socialmente relevante – não estritamente político ou público – que justifique a conduta expressiva, constitui um elemento essencial de avaliação, uma vez que dadas as dimensões públicas do crédito e do bom nome, há que ponderar o impacto negativo efectivo da expressão nos bens jurídicos em presença, comparando-a com o impacto positivo das expressões na transparência e na verdade das relações sociais.” (Cfr. Jónatas Machado, in Liberdade de Expressão: dimensões constitucionais da esfera pública, no sistema social, p. 770).

Ora como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.01.2010 (Proc. nº 590/05.1TAPVZ .P1), o cerne da determinação do elemento objectivo tem sempre de se fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. A protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objectivamente as palavras proferidas não têm outro sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são, indubitavelmente, lesivas da honra e consideração do lesado.

Também num outro Acórdão da Relação do Porto (de 9.03.2011, in Proc. 45/08.2TACDR.P1) – com que concordamos inteiramente – se refere que “muito embora, tanto

a descrição típica do crime legal de injúria, como de difamação, não exijam que a correspondente ofensa da honra ou consideração tenham, pela sua natureza, efeitos ou circunstâncias, que ser consideradas como graves, como sucede com o Código Penal Espanhol [art. 208.º, § 2.º], somos de crer que a vinculação constitucional ao citado art. 18.º, n.º 2, estabelece um efectivo critério limitador. Tanto assim é, que a jurisprudência desta Relação, tem vindo paulatinamente a considerar, como sucedeu com o Ac. de 2002/Jun./12, que “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”.

De excepcional relevância para que se possa concluir pela prática do crime de difamação é o contexto em que as imputações alegadamente ofensivas tenham ocorrido.

No caso, as expressões "estado psicológico e emocional de grande desequilíbrio, que tem sido patente ao longo de muitos anos" (…) "o trabalho desenvolvido (...) bem como os períodos de baixa são o espelho desse desequilíbrio" (…) "reflectem um grau de desempenho profissional manifestamente aquém do que lhe é exigível e a empresa necessita" foram escritas em resposta a uma exposição da assistente sobre as condições de trabalho.

Podemos por isso afirmar, como o despacho recorrido, que “os arguidos atuaram no exercício legítimo de um direito de resposta à exposição apresentada pela assistente (…) emitindo a sua opinião sobre o estado psicológico desta no âmbito da sua atuação profissional na empresa onde trabalha” (e, como se refere no mesmo despacho, “importa referir que constam dos autos documentos em que a própria assistente refere expressamente sofrer de depressão”).

Por outro lado, também entendemos que “O modo de exercício da liberdade de expressão não foi desproporcionado em relação ao fim prosseguido nem ofendeu de maneira irrazoável a esfera de dignidade pessoal da assistente. Tratam-se de juízos de valor, que são por natureza subjetivos, e que, mesmo que sejam exagerados, não têm de ser verdadeiros ou merecer a concordância de todos”.

Ou seja, mesmo que se considerasse que os juízos veiculados, em abstracto, poderiam ser consideradas ofensivos da honra e consideração e, logo, suficientes para a imputação da prática do crime de difamação, quando vistos no contexto em que foram proferidos é possível afirmar que as palavras em questão ainda se encontram naquela margem do nosso relacionamento social, que se deve ter como jurídico-penalmente aceitável e como refere o acórdão que supra citámos “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros”.

Nestes termos, entendemos que não se justifica a submissão dos arguidos a julgamento, já que será altamente provável a sua não punição, impondo-se a confirmação do despacho de não pronúncia.”.

*

10. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.1

No caso dos autos, face às conclusões da motivação da recorrente AA são duas as questões a decidir:

- se do acórdão recorrido cabe recurso de revista excecional; e

- se a acusação particular deduzida pela assistente contra os arguidos deve ser recebida e encaminhada para julgamento.

11. Da admissibilidade do recurso de revista excecional do acórdão recorrido.

A assistente AA começa por invocar ,na motivação e conclusões do seu recurso, a inconstitucionalidade do art.380.º, n.º1 do Código de Processo Penal, que apelida de “artigo travão do C.P.P.”, “na interpretação que lhe poderá ser dada, no sentido de não permitir a reforma do acórdão recorrido, irrecorrível por dupla conforme, mas para excecional melhoria do direito e mais adaptada decisão de um ponto de vista adequado ao concreto respeitar dos valores sociais em confronto e vigentes, (…) por infração normativa do direito fundamental consagrado no artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.”.

No entender da recorrente, é necessária uma reapreciação da causa pelo Supremo Tribunal de Justiça e, existindo uma lacuna processual, ela deve ser preenchida pelo recurso de revista excecional, nos termos do art.672.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil ex vi do art.4.º do Código de Processo Penal.

Alega para este efeito, no essencial: (i) por um lado, está em jogo uma melhor justiça, um caso de proteção judicial dos direitos humanos, de não ingerência da intimidade da vida privada (artigo 12.º DUDH, artigo 8.º DEDH e artigos 25.º n.º 1 e 26.º n.º 1 da CRP), com relevância bastante para acolhimento na alínea a) do artigo 672.º n.º 1 do C.P.C.. Trata-se de uma ofensa à recorrente, por parte de dirigentes laborais, que em escrito dirigido à tutela afirmaram que sofria de um estado psicológico de grande desequilíbrio; (ii) por outro lado, estamos perante um caso que é de particular relevância social, porque localizado no perímetro das relações laborais, com força no art.52.º da C.R.P. e no dever de proteção (psíquico-social) da trabalhadora que a assistente era, e que cabe na alínea b) do artigo 672.º n.º 1 do C.P.C..

11.1. Apreciando.

11.1.1. Uma vez que a recorrente começa por consignar na conclusão 1.ª da motivação do seu recurso, que “Cabe Revista Excecional, neste caso, em que uma interpretação do artigo 380.º n.º 1 do CPP em contrário, releva da inconstitucionalidade do preceito, porque contrário ao artigo 32.º n.º 1 do CRP.”, importa abordar, em primeiro lugar, a relevância ou não do disposto no art.380.º, n.º1 do Código de Processo Penal, para a admissibilidade do recurso de revista excecional que a assistente interpõe do acórdão da Relação de Lisboa, respeitante, exclusivamente, a matéria criminal.

O art.380.º, do Código de Processo Penal, integra-se no Título III (Da sentença), do Livro VII (Do julgamento), estabelecendo, sob a epígrafe «Correção da sentença», com interesse para a decisão:

«1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando:

a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;

b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

(…)».

Esta disposição regula as irregularidades da sentença e o seu modo de sanação, constituindo um regime especial em relação ao do art.123.º do Código de Processo Penal.

Através dela, oficiosamente ou a requerimento, pode o tribunal que proferiu a sentença sanar a irregularidade, traduzida num vício que não diz respeito ao mérito da causa e cuja eliminação não importa modificação essencial da decisão.

Não sendo interposto recurso ou não cabendo recurso da sentença, a irregularidade deve ser arguida nos termos gerais previstos no art.123.º do C.P.P..

O regime de sanação de irregularidades de sentença sinteticamente exposto, é aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do disposto no art.425.º, n.º 4 do C.P.P..

A pretensão da assistente, através da interposição do presente recurso de revista excecional previsto no art.672.º do Código de Processo Civil, não é corrigir a sentença, o que teria de ser feito pelo Tribunal da Relação, mas modificar o mérito da decisão, revertendo a manutenção pelo acórdão recorrido de um despacho de não pronúncia, para um despacho de não pronúncia que receba a acusação particular por si deduzida, o que não pode ter lugar através do art.380.º, n.º1 do C.P.P..

Sendo o conhecimento do recurso de revista excecional, previsto no art.672.º do Código de Processo Civil, uma competência do Supremo Tribunal de Justiça, a questão da correção do acórdão, ou da “reforma do acórdão” como diz a recorrente, nada tem que ver com o regime de sanação das irregularidades da sentença, mas sim com o regime de recursos, que consta do Livro IX do Código de Processo Penal.

O art.380.º do Código de Processo Penal, não disciplina os casos de decisões que não admitem recurso, designadamente por “dupla conforme”, pelo que não pode privar a assistente de impugnar o acórdão proferido pela Relação que em recurso decidiu manter o despacho de não pronúncia dos arguidos, nem, por maioria de razão, constitui um “artigo travão do C.P.P.”, impeditivo de interposição de recurso de revista excecional previsto no art.672.º do Código de Processo Civil.

Este Supremo Tribunal interpreta o art.380.º, n.º1 do Código de Processo Penal, nos termos citados, e não com o “sentido de não permitir a reforma do acórdão recorrido, irrecorrível por dupla conforme, mas para excecional melhoria do direito e mais adaptada decisão de um ponto de vista adequado ao concreto respeitar dos valores sociais em confronto e vigentes”, pelo que prejudicado fica o reconhecimento de inconstitucionalidade desta norma por alegada violação do art.32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Dito de outro modo, o art.380.º, n.º1 do Código de Processo Penal, por si só, é inidóneo para comportar o sentido que a assistente expressa no seu juízo de inconstitucionalidade; esta norma não regula a admissibilidade de recurso de decisão proferida, em recurso, pela Relação, para o Supremo Tribunal de Justiça.

11.1.2. Importa decidir, agora, se face às normas processuais que disciplinam o regime dos recursos em processo penal, é admissível recurso de revista excecional, nos termos do art.672.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil ex vi do art.4.º do Código de Processo Penal.

O art.672.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Revista excecional», estabelece, com interesse para a decisão:

«1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

(…).».

A revista excecional está prevista para situações de dupla conforme, nos termos em que esta está delimitada pelo n.º3 do art.671.º do C.P.C., desde que se verifiquem os demais requisitos gerais de acesso ao terceiro grau de jurisdição, ao abrigo do seu n.º 1. Ou seja, a invocação dos fundamentos excecionais do art.671.º, n.º1, está limitada aos casos em que, sendo admissível, em tese, recurso de revista, nos termos do n.º1, se verifica o impedimento decorrente da dupla conforme desenhado pelo n.º3.2

O quadro legal aplicável aos recursos em processo penal para o Supremo Tribunal de Justiça, com interesse para a presente decisão, é o que resulta das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n.º1, al. b) e 400.º, n.º 1, alíneas c) e f) do Código de Processo Penal.

A primeira daquelas normas determina:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

(…)

a) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art.400º.».

Por seu turno determina o citado art.400.º:

«1 - Não é admissível recurso:

(…)

c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;

d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;

(…)

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

(…).».

As alíneas d) e f), n.º1, do art.400.º do Código de Processo Penal, impedem, em regra, o recurso de acórdão proferido, em recurso, pelas Relações, para o Supremo Tribunal de Justiça, através da chamada “dupla conforme”.

Os pressupostos de irrecorribilidade enunciados na alínea d) são: a existência de acórdão absolutório proferido, em recurso, pela Relação, que confirme decisão de 1.ª instância, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos; e os pressupostos da alínea f), são: a existência de um acórdão condenatório e a confirmação deste, em recurso, pelo Tribunal da Relação, desde que a pena de prisão aplicada não seja superior a 8 anos de prisão.

Perante o ora exposto, não tem sentido afirmar-se que o “acórdão recorrido, é irrecorrível por dupla conforme”, pois o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não é um acórdão absolutório, nem um acórdão condenatório, que possa integrar a alínea d) ou a alínea f), n.º1 do art.400.º do C.P.P., mas sim um acórdão confirmatório de despacho de não pronúncia proferido pela 1.ª instância.

O acórdão recorrido é irrecorrível, pois, não por verificação de uma dupla conforme, mas face ao disposto no art.400.º, n.º1, alínea c), do Código de Processo Penal, por se tratar de acórdão proferido, em recurso, pela Relação, que não conhece, a final, do objeto do processo.

A decisão que conhece, a final, do objeto do processo é a que, apreciando uma acusação ou uma pronúncia, profere uma condenação ou uma absolvição. Ou seja, do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso.

Como refere Germano Marques da Silva, entre os exemplos retirados da jurisprudência, como casos de decisões das Relações que não conhecem, a final, do objeto do processo, está o acórdão que confirma a decisão de não pronúncia da 1.ª instância.3

Este Supremo Tribunal tem, pois, como assente que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação que confirma a decisão de não pronúncia da 1.ª instância, é irrecorrível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n.º1, al. b) e 400.º, n.º 1, alínea c), do C.P.P..

11.1.3. É medianamente claro que a assistente sabe que através do regime de recursos penais dos artigos 432.º, n.º1, al. b) e 400.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a decisão em causa é irrecorrível; por tal razão e para franquear o acesso ao S.T.J. lança mão do recurso cível de revista excecional, previsto no art.672.º do Código de Processo Civil.

O art.4.º, do Código de Processo Penal, ao abrigo do qual a ora recorrente invoca a aplicação do art.672.º, n.º1, da lei de processo civil, estabelece a propósito da integração de «lacunas da lei» processual penal:

«Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.».

Como observa Cavaleiro de Ferreira, importa não confundir situações de omissão, com «lacunas aparentes», pois “lacunas aparentes não são verdadeiras lacunas. Tratar-se-á de casos que parece não foram regulados pela lei, mas que efetivamente o são, mediante a interpretação. São apenas casos obscuros que a interpretação esclarece. Lacunas reais são só aquelas que não cabem no conteúdo da lei, depois de submetida a todas as formas possíveis de interpretação”.4

Só estamos perante uma lacuna de lei processual penal, a integrar nos termos desta norma, se estivermos perante uma “incompletude contrária a um plano”, no dizer de Batista Machado.5

O recurso à integração analógica deve ser visto com muito cuidado, pois como bem refere Germano Marques da Silva, só há lugar a integração quando exista lacuna e esta só existe “quando haja uma situação que é necessário regular e o não é, isto é, para a qual a lei não dê diretamente solução. Quando a lei dá solução à questão suscitada, não há lacuna, mas frequentemente se confunde a existência de lacuna com regulamentação diversa noutros ramos de direito.”6

No mesmo âmbito, anota Figueiredo Dias que o processo penal está sujeito ao princípio da legalidade e tem os seus fins a realizar, pelo que a analogia só deve ser admissível em moldes estritos, ficando vedada “na medida imposta pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade e, portanto, sempre que o recurso venha a traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos «processuais do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia «in malam partem».).”. 7

Retomando o caso concreto.

A existência ou não de uma lacuna em processo penal e em matéria penal, nos casos de recurso cível de revisão excecional previstos no art.672.º, n.º1 do Código de Processo Civil, há- de aferir-se do ponto de vista da própria lei, da intenção reguladora que lhe serve de base, dos fins com ela prosseguidos e do plano legislativo.

O primeiro elemento a ter em conta para decidir se no atual Código de Processo Penal, de 1987, o recurso de revista excecional resulta de uma “incompletude contrária a um plano” do legislador no âmbito do sistema de admissibilidade de recursos em processo penal, é o elemento histórico, comparando o sistema atual com o que vigorava no Código de Processo Penal de 1929.

No Título IX (“Dos Recursos”) do Livro II (“Do Processo), do Código de Processo Penal 1929, após as disposições iniciais sobre as decisões que admitiam e não admitiam recurso e sobre a legitimidade para o interpor, o art.649.º determinava, que «Os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os de agravo de petição em matéria cível, salvas as disposições em contrário deste código».

O Código de Processo Penal de 1929 gizou, pois, um regime dos recursos que tomou como matriz o do Direito Processual Civil, limitando-se a prever as especificidades impostas pela natureza do processo penal.

Bem diversa foi a opção do legislador do Código de Processo Penal de 1987, que rompendo abertamente com a tradição que, há quase um século, geminara os recursos penais e cíveis, passou a consagrar um regime dos recursos em processo penal com autonomia dogmática e metodológica em relação ao processo civil.8

O Preâmbulo do Código de Processo Penal, aprovado pelo DL n.º 78/87 de 17 de fevereiro, consignou que “inovador a muitos títulos é o regime dos recursos previstos neste Código, procurando-se obter um duplo efeito: potenciar a economia processual numa ótica de celeridade e de eficiência; e ao mesmo tempo, emprestar efetividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico”.

Para tanto, além de introduzir um princípio de tramitação unitária para todas as espécies de recurso9, estabeleceu um regime normativo autónomo, com especificidades próprias, que rompe abertamente com o dos recursos cíveis.

Deste modo, apenas através de uma eventual integração de lacuna, a existir, poderá ser aplicável ao caso concreto o recurso de revista excecional.

A integração das lacunas existentes no âmbito do processo penal realiza-se com recurso a três meios, enumerados sucessivamente no art.4.º do Código de Processo Penal.

Começa-se pela aplicação das normas do próprio Código de Processo Penal que se mostrem ajustadas às situações análogas (analogia legis) e, só se não existir no Código disposição que deva ser aplicada por analogia, é que se segue o recurso às normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, só na falta delas, se aplicam os princípios gerais do processo penal.

A jurisprudência não é uniforme sobre a admissibilidade para o STJ do recurso de decisão da Relação, quando o respetivo fundamento é a ofensa ou violação do caso julgado, por aplicação subsidiária das regras do processo civil (art.629.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil), ex vi do art. 4.º do Código de Processo Penal), embora ultimamente, se venha pronunciando claramente no sentido negativo.

Porém, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm negando a aplicabilidade ao processo penal do recurso de revista excecional prevista no art.672.º, n.º1 do Código de Processo Civil, por considerarem, no essencial, que o regime estabelecido neste Código é autónomo e completo, não havendo qualquer lacuna a integrar por força do art.4.º do Código de Processo Penal.

Assim, Helena Moniz, em recente artigo (“A autonomia dos recursos em processo penal (a revista excecional e outros institutos do processo civil”), defende que não deverá admitir-se (por aplicação analógica, nos termos do art.4.º do C.P.P.) um recurso interposto com base nos casos integrados na revista excecional prevista no art.672.º, n.º1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil, quando esteja em causa um recurso em processo (penal) da parte da decisão relativa à matéria criminal.

Fundamenta esta sua posição, logo à partida, com “a autossuficiência do regime processual penal, e a intenção expressa e clara do legislador no sentido da autonomização dos recursos em processo penal” e depois porque se as questões, somente de direito, relativas à “relevância jurídica”, à “relevância social” ou à “identidade da questão fundamental de direito”, não são casos previstos no C.P.P. e, podiam ser, é porque não existe lacuna a preencher. 10

Também Nuno Brandão, no seu artigo “Recursos penais para o STJ e processo civil”, publicado na mesma Revista do Supremo Tribunal de Justiça, entende que a admissibilidade no processo penal do recurso de revista excecional previsto no art.672.º, n.º1 do C.P.C., permitindo a abertura de um terceiro grau de jurisdição para discussão de uma questão de direito, “ é manifestamente indevida” e que, “como tem sido reiteradamente entendido pelas Secções Criminais do Supremo, cobra aqui aplicação, uma vez mais, a ideia da autonomia do regime dos recursos penais e a clara inexistência de lacuna que precise de ser suprida.”11.

Acompanhamos e subscrevemos a lógica argumentativa desta doutrina, seguida também uniformemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

São exemplos desta jurisprudência, entre outros, os acórdãos do S.T.J., assim sumariados:

- Acórdão de 12-01-2022 (proc. n.º3519/16.8T8LLE. E1.S1):

« I - O regime processual dos recursos penais foi autonomizado no CPP de 1987, que passou a regular de modo auto-suficiente, taxativo, exaustivo e completo os casos de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça: o art.432.º do CPP delimita o recurso ordinário; os art.ºs 437.º, 446.º e 449.º do CPP, contemplam os recursos extraordinários.

II - A revista excepcional não tem aplicação nos processos penais, relativamente a matéria penal, pois só em caso de lacuna do regime processual penal poderia o intérprete socorrer-se de normas processuais civis, situação que não ocorre aqui.»;

- acórdão do S.T.J. de 06-10-2016 (proc. n.º 535/13.5JACBR.C1.S1):

«III - Não é aplicável ao processo penal, como excepção à regra da dupla conforme, o regime processual civil da revista excepcional, previsto no art. 671.º, n.º 3 e 672.º, do CPC). A arquitectura dos recursos no processo penal não foi influenciada – e podia tê-lo sido – com qualquer das alterações introduzidas no processo civil. Não quer isto dizer que ao nível de específicos detalhes não sirva o regime processual civil para conferir espessura às soluções adoptadas mercê da sua intervenção subsidiária sufragada pelo art. 4.º, do CPP. Mas não é certamente ao nível categorial-classificatório dos recursos que essa subsidiariedade se repercute de modo a permitir que seja de admitir no regime dos recursos ordinários do processo penal essa outra espécie de “revisão excepcional”.»; e

- Acórdão deste Supremo Tribunal de 08-11- 2012 (proc. n.º 712/00.9 JFLSB-U.L1.S1):

«I - O sistema da admissibilidade dos recursos ordinários em processo civil assenta nos critérios do valor da causa e da sucumbência. A regra base é, por esta via, a da limitação, que é feita de princípio (arts. 678.º, n.º 1, e 679.º do CPC), para depois se estabelecerem exceções àquele condicionamento (n.º 2 do citado art. 678.º do CPC). II - Diversamente, em processo penal, o art.399.º do CPP estabelece uma cláusula geral de admissibilidade, sendo excecionais os casos pontuais de irrecorribilidade (situações dos arts. 400.º, 310.º, n.º 1, e 86.º, n.º 5, do CPP). Mas a partir do momento em que se estabelecem as exceções àquela regra de recorribilidade, que são taxativas, não faz sentido introduzir, por analogia, uma exceção da exceção, que desvirtua a lógica do sistema de recorribilidade próprio do processo penal. III - Se a regra geral da recorribilidade é contrariada no caso da al. c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP (acórdãos proferidos em recurso pelas relações que não conheçam a final do objecto do processo), essa limitação tem que se impor, sob pena de se tornar inoperante, contra a argumentação de que, à luz do processo civil, o recurso, seria de admitir.».12

O legislador ao erigir um novo sistema de recursos no atual Código de Processo Penal, que leva em linha de conta as especificidades do sistema penal, carecidas de um tratamento que melhor se lhes afeiçoasse, deixou claro o recurso, cível, de revisão excecional, não resulta de uma “incompletude contrária a um plano” no âmbito do sistema de admissibilidade de recursos em processo penal.

Duas outras razões existem, ainda, no presente caso, para afastar a admissibilidade do recurso de revisão excecional interposto pela assistente AA.

A primeira delas, é que a recorrente de revista excecional previsto no art.672.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, não tem a qualidade de arguido, mas de assistente.

Como elucida o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 132/92: «(…) independentemente da natureza de «parte» ou de «sujeito» que se queira atribuir ao arguido e ao assistente em processo penal, a nossa Constituição não consagra, não quis consagrar, quanto a eles, um princípio de igualdade em matéria do direito ao recurso. Ou seja: o princípio da igualdade de armas é um princípio que opera essencialmente no âmbito do direito de defesa, no âmbito da preocupação de não colocar o arguido em desvantagem relativamente aos meios processuais de que dispõe a acusação com vista à formação da convicção do tribunal.”.13

A aplicação da analogia em processo penal, como vimos, só deve ser admissível em moldes estritos, ficando vedada sempre que o recurso venha a traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos «processuais do arguido (desfavorecimento do arguido). A abertura de um terceiro grau de jurisdição relativamente a matéria criminal, através de recurso cível de revisão excecional, seria feita em benefício da assistente e em desfavor dos arguidos.

Deste modo, caso existisse uma lacuna da lei em recurso de matéria criminal - e não há - a sua integração por analogia, através do recurso cível de revisão excecional, configuraria analogia «in malam partem», que o princípio da legalidade impediria, por desfavorecer os arguidos.

Uma outra razão para afastar a admissibilidade do recurso de revisão excecional previsto no Código de Processo Civil, é que a revista excecional está limitada aos casos em que, sendo admissível, em tese, recurso de revista, se verifica o impedimento decorrente da dupla conforme desenhado pelo n.º3 do art.671.º do Código de Processo Civil. Ora, no caso, não existe uma dupla conforme a impedir o recurso interposto para o S.T.J., mas sim um acórdão proferido, em recurso, pela Relação que não conheceu, a final, do objeto do processo.

Em suma, a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer ato do juiz admitindo-se, no processo penal, o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do princípio da defesa, mas, já não o direito a um triplo grau de jurisdição e, menos ainda, por parte do assistente.

As exceções ao princípio geral da recorribilidade das decisões em processo penal estão expressamente previstas no Código de Processo Penal, não existindo margem para convocar a aplicabilidade da norma do art.672.º, do Código de Processo Civil ao presente caso, por a este respeito não existir qualquer lacuna.

O facto da assistente não dispor de um terceiro grau de recurso, no caso de um recurso cível de revista excecional, para impugnar uma decisão em matéria criminal, não viola a Constituição, nem qualquer outra norma indicada pela recorrente.

A admissão do recurso da assistente, “ainda que com dúvidas” pela Relação, não vincula o Supremo Tribunal de Justiça, conforme dispõe o art.414.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

Impõe-se, deste modo, rejeitar o recurso de revista excecional previsto no art.672.º, n.º1, alíneas a) e b) do C.P.C. interposto pela assistente, ex vi do art.4.º do C.P.P., por força das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n.º1, al. b), 400.º, n.º1 al. c), 414.º, n.º2 e 420.º, n.º1 do Código de Processo Penal.

Mais deve condenar-se a assistente nas custas e na importância prevista no n.º3 do art.420.º do Código de Processo Penal.

12. Com a rejeição do recurso fica prejudicada a questão de saber se a acusação particular deduzida pela assistente contra os arguidos deve ser recebida e encaminhada para julgamento.

III - Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos , acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso de revista excecional previsto no art.672.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, interposto pela assistente AA, por força conjugada dos artigos 432.º, n.º1, al. b), 400.º, n.º1 al. c), 414.º, n.º2 e 420.º, n.º1 do Código de Processo Penal.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UUs, a que acresce a importância de 3 UCS ( art.420.º, n.º 3 do C.P.P.)

*

(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).

*

Lisboa, 9 de março de 2023

Orlando Gonçalves (Relator)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

Leonor Furtado (Adjunta)

________________________________________________

1. Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 (BMJ n.º 458º, pág. 98) e de 24-3-1999 (CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.)↩︎

2. Cfr. António S. Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 6.ª edição, pág. 431.↩︎

3. Cf. “Direito Processual Penal Português”, UCE, ed. 2018, Vol. III, pág. 308↩︎

4. Cf. “Curso de Processo Penal, I, ed. de 1981 da AAFD, Lisboa, pág. 60.↩EE

5. . “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, edição Almedina, 1983, pág. 194.↩︎

6. Cf. “Direito Processual Penal Português”, Vol. I, UCE, 2022, págs. 120 e 121.↩︎

7. Cf. “Direito Processual Penal” Primeiro volume, Coimbra editora, 1974, pág. 97.↩︎

8. Cfr. José Cunha Rodrigues, “Recursos” em Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, CEJ/Almedina, 1988, pág. 384.↩︎

9. No seguimento do ponto 70), da Lei n.º 43/86, de 26 de setembro, que habilitou o Governo a aprovar o Código de Processo Penal.↩︎

10. Cfr. “a Revista”, edição do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 2 (julho a dez.2022), págs.128 a 131.↩FF

11. . Obra citada, pág.158.↩GG

12. publicados in, www.dgsi.pt.↩EE

13. . www.tribunalconstitucional.pt↩︎