Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
874/10.7TYVNG.P1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
PENHORA
ACÇÕES
AÇÕES
DIREITOS DOS SÓCIOS
FIEL DEPOSITÁRIO
DELIBERAÇÃO SOCIAL
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PROCESSO ORDINÁRIO / PENHORA / PENHORA DE BENS IMÓVEIS / PENHORA DE DIREITOS.
Doutrina:
- Alexandre Soveral Martins, Valores Mobiliários (Acções), Almedina, p. 31 e 32;
- Menezes Cordeiro, Assembleias Gerais e Deliberações Sociais, Almedina, 2007, p.228;
- Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, Coimbra, Almedina, 1993, p. 294 e 373;
- Pinto Furtado, Deliberações Sociais, p. 234;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1982, p. 261;
- Raul Ventura, Sociedade por Quotas, Volume I, p. 106 e 425 ; Sociedade por Quotas, volume II, Almedina, 1989, p. 247;
- Tiago Soares da Fonseca, O Penhor de Acções, Almedina, 2.ª edição, p. 82, 83 e 95;
- Vasco Lobo Xavier, Anulação de Deliberação Social e Deliberação Conexas, p. 196.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 286.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 635.º, N.4, 639.º, 758.º, N.º 1, 760.º E 783.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (DORAVANTE CSC): - ARTIGOS 20.º, 21.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E C), 23.º, N.º 4, 57.º, 239.º, N.º 1 E 293.º.
CÓDIGO DE VALORES MOBILIÁRIOS (DORAVANTE CVM): - ARTIGOS 55.º, 81.º, N.º 4 E 104.º.
Sumário :

I - As funções atribuídas ao fiel depositário, que decorrem do dever legal de administrar com diligência e zelo o bem penhorado, reconduzem-se, fundamentalmente, em providenciar a conservação do “bem” em atenção ao seu valor e natureza, permanecendo o bem na titularidade do respectivo proprietário que, nessa medida, não foi afectado na sua posse, mas apenas limitado no seu direito de disposição.

II – A penhora de acções não contende com os direitos sociais do respectivo titular, designadamente o respectivo direito de voto que não pode ser alheado do direito de impugnar as deliberações sociais.

III - A nulidade e/ou a declaração de inexistência das deliberações sociais podem ser invocadas por qualquer interessado aferindo-se, porém, a qualidade do mesmo em função do exercício normal e adequado do direito de impugnação.

IV – Enquanto mero detentor ou possuidor em nome alheio, o depositário de acções penhoradas não pode ser considerado interessado para o exercício do direito de impugnar as deliberações da sociedade; como tal, carece de legitimidade substantiva para arguir os vícios que inquinem o acto deliberativo de uma sociedade.

Decisão Texto Integral:



Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório

1. AA propôs acção declarativa com processo ordinário contra BB, SA, CC, DD e EE, pedindo a declaração de inexistência das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da 1ª Ré, do dia 6-10-2010, reportadas à aprovação do relatório de gestão e contas do exercício de 2009, aprovação da proposta de aplicação de resultados do exercício de 2009 e aprovação de um voto de confiança aos órgãos de administração e fiscalização da sociedade;

Subsidiariamente:

- a declaração de nulidade das mesmas deliberações, porque contrárias à lei e ofensivas dos bons costumes.

Ainda a título subsidiário:

- anulação de tais deliberações por ter sido impedido, ilegalmente, de participar e votar na Assembleia Geral de 06-10-2010.

Em qualquer das pretensões deduzidas, pede ainda:

- que  seja declarada a falsidade da acta relativa à aludida Assembleia Geral;

- condenação dos Réus (sendo CC, DD e EE, como subscritores da mesma acta) a reconhecerem tal falsidade e a pagarem-lhe, solidariamente, a título de indemnização, uma quantia não inferior a 50.000,00 euros.

- cancelamento do registo, na Conservatória do Registo Comercial competente, relativo à prestação de contas referentes ao exercício de 2009.

Alegou para o efeito e fundamentalmente:

- terem sido penhoradas, em 15-01-2009, 495.270 acções representativas do capital da Ré BB, SA. (correspondentes a 99,06% do respectivo capital social) no âmbito de acção executiva instaurada contra o Réu EE, sendo exequente FF, SA, tendo ficado o Autor fiel depositário de tais acções;

- ter a penhora sido notificada aos Réus com expressa menção do impedimento de ser deliberado o aumento ou redução do capital social, bem como a transformação, cisão, fusão ou dissolução da sociedade;

- ter sido convocada Assembleia Geral da Ré Sociedade, designada para 06-10-2010, com a seguinte ordem de trabalhos: 1 – Deliberar sobre o relatório de Gestão e Contas do Exercício de 2009; 2 – Deliberar sobre a proposta de aplicação de Resultados do Exercício de 2009; 3 – Proceder à apreciação da administração e fiscalização da Sociedade; 4 – Assuntos diversos de interesse para a Sociedade.

- ter o Autor comparecido no dia e hora designados na convocatória para efeitos de participar na Assembleia Geral na condição de fiel depositário das 495.270 acções pertencentes ao Réu EE;

- ter sido impedido de entrar nas instalações da sociedade ré e de participar nessa assembleia;

- ter sido realizada a referida Assembleia onde foram tomadas deliberações que aprovaram o relatório de gestão e contas relativas ao exercício de 2009, a proposta de aplicação de resultados e um voto de confiança nos órgãos de administração e fiscalização da sociedade.

Defendendo que a Assembleia Geral realizada não se encontrava em condições de se reunir por o Réu EE, em face da penhora das acções que lhe pertenciam, carecer de legitimidade para nela intervir e votar, concluiu o Autor no sentido das deliberações padecerem do vício de inexistência e/ou nulidade.

2. Os Réus contestaram tendo-se defendido por impugnação e excepção. Os Réus CC, DD, EE excepcionaram a ilegitimidade da Ré EE, pedindo ainda a condenação do Autor como litigante de má-fé. A Ré BB, SA suscitou a ilegitimidade do Autor, bem como o exercício abusivo do mesmo ao propor a acção.

3. O Autor apresentou réplica, pronunciando-se pela improcedência das suscitadas excepções.

4. Por decisão de 16-11-2011 foi homologada a desistência do pedido deduzido contra a Ré EE, com a consequente absolvição da mesma do pedido.

5. Realizada audiência prévia, foi proferido saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade do Autor, relegando para decisão final a apreciação da excepção de abuso de direito. Foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.

6. Realizado julgamento foi proferida sentença (datada de 08-03-2017) que julgou a acção improcedente.

7. Inconformado apelou o Autor, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido acórdão (24-01-2018) julgado improcedente a apelação, confirmando a sentença.

8. O Autor veio interpor recurso de revista excepcional formulando as seguintes conclusões:

“(…) II – Relativamente ao mérito intrínseco do presente recurso

13.Uma vez penhoradas acções representativas de 99,04% do capital social da sociedade BB, SA e entregues as mesmas ao recorrente na qualidade de seu fiel depositário, por decisão do sr. agente de execução, tem este o direito/dever de as administrar e praticar todos os actos tidos como necessários ou úteis à manutenção do seu valor .

14. De entre esses actos está o de acompanhar o desempenho da sociedade em questão, e designadamente o teor dos relatórios de gestão e as contas relativas aos seus diferentes exercícios.

15. Como ainda de verificar o sentido da proposta de aplicação de resultados, designadamente se são distribuídos dividendos e o critério que preside a essa distribuição.

16. Uma vez que esses dividendos, a existirem, devem ser tidos como frutos das acções penhoradas e das quais ele é o fiel depositário.

17.A elaboração do relatório e contas do exercício de 2009, como os de todos os exercícios, deve obedecer a um conjunto de princípios e normas legais tendentes à protecção e tutela, não apenas dos accionistas, mas sobretudo dos credores sociais e do interesse público em geral, regras essas constantes dos arts. 65º, 66º e 67º do CSComercais,  e ainda no anterior POC, e actual SNC ( Sistema de Normalização Contabilística ), aprovado pelo Dec-lei nº 158/2009, de 13.07 .

18. E a inobservância de tais princípios e normas legais acarreta, em princípio, a nulidade das deliberações que aprovem tais documentos de prestação de contas, nos termos do disposto no art. 69º nº 3 do CSComerciais.

19. Nulidade essa que, nos termos do disposto no art. 286º do CCivil, pode ser arguida por qualquer interessado e ser declarada oficiosamente pelo tribunal.

20. Daqui decorre que o fiel depositário das acções da sociedade BB, SA tenha legitimidade para impugnar as deliberações sociais tomadas na assembleia geral de 06.10.2010, designadamente as que aprovaram o relatório de gestão e as contas do exercício de 2009, bem como a proposta de aplicação de resultados do mesmo exercício.

21. É essa a solução que decorre desde logo dos normativos dos arts. 286º do CCivil e 96º nº 3 do CSComerciais.

22. O reconhecimento dessa legitimidade ao fiel depositário de acções da sociedade BB, SA é, por outro lado, consequência necessária e directa do reconhecimento de que ele tem direito à informação previsto nos arts. 288º, 289º, 290º e 291º do CSComerciais, em condições idênticas às dos accionistas, como resulta do disposto no art. 293º do CSComerciais.

23. Como ao direito que igualmente lhe assista de requerer inquérito judicial às contas da sociedade, nos termos previstos no art. 292º do CS Comerciais.

24. Todos estes normativos referentes ao direito á informação, muito embora aplicáveis directamente apenas ao usufrutuário e ao credor pignoratício, como resulta da letra do art. 293º acima citado, são, por efeito da aplicação analógica deste último preceito, ou até por simples interpretação extensiva, de aplicar também à pessoa do fiel depositário de acções da sociedade.

25. Só assim se permitirá que o depositário judicial possa efectivamente obstar, no desempenho da administração que lhe cabe fazer das acções penhoradas, à desvalorização e esvaziamento de tais acções.

26. O interesse do depositário na impugnação de deliberações sociais que tenha como inexistentes ou inválidas pela infracção de regras imperativas, é sempre de qualificar como um interesse de direito substantivo.

27. O fiel depositário tem também o direito de ver declaradas como inexistentes as deliberações tomadas em “assembleia geral” cuja constituição não obedeceu a critérios e exigências legalmente previstas, e que têm natureza imperativa.

28. E que, por isso, mais não são do que uma mera aparência de deliberações sociais, insusceptíveis de produzirem qualquer efeito.

29. O douto acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, as normas dos arts. 286º do CCivil, 104º nº 1 do CVM, 65º nº 2, 66º  nºs 1, 2, 3, 4 e 5, do CSComerciais, conjugados estes com o disposto no art. 69º nº 3 do mesmo Código, e ainda do POC aprovado pelo Dec-lei nº 410/89, de 21.11, posteriormente substituído pelo SNC aprovado pelo Dec-lei nº 158/2009, de 13.07.

6. A Ré Sociedade nas contra alegações defende a inadmissibilidade da revista excepcional e concluiu pela improcedência do recurso.

7. Por decisão da Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante CPC), a revista excepcional foi admitida por verificação do pressuposto previsto na alínea a) do n.º1 do artigo 672.º do CPC – questão, cuja apreciação, pela sua relevância jurídica seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

 

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
ð  Da (i)legitimidade substantiva do fiel depositário de acções objecto de penhora para requerer a declaração da invalidade das deliberações sociais

1 Os factos provados
1. Por escrito particular de 21.03.2002, a sociedade FF, SA (de ora em diante designada por FF) obrigou-se a adquirir ao GG, SA, por conta e no interesse de HH e de uma sociedade por si detida - II, LDA -, 495.270 acções representativas do capital social da ré BB, e correspondentes a 99,06% da totalidade do seu capital social.
2. Tais acções encontravam-se na altura em poder do GG, SA, que se arrogava, contra a vontade e entendimento do dito EE e da já referida II, LDA., a sua titularidade e propriedade.
3. No entendimento do dito EE e da mesma sociedade II, LDA tais acções encontravam-se em poder da referida entidade bancária a título de penhor constituído em garantia de um financiamento contraído pelo mesmo EE, a título meramente pessoal.
4. Não obstante a existência de tal diferendo entre os ditos II e EE, por um lado, e aquela entidade bancária GG, SA, por outro, era então vontade deste dito EE, com o consentimento da sociedade II, LDA, não correr qualquer risco derivado de tal diferendo.
5. A aqui ré BB, SA era, como é, proprietária, entre outros, de um prédio rústico denominado globalmente de ..., sito em ..., ..., ..., ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob os nºs … e …, a fls. 58 verso do Livro … e fls. 123 verso, do Livro …, respectivamente.
6. Em 22/3/2002 HH por si e na qualidade de legal representante da sociedade “II – …, Lda.”, bem como na qualidade de administrador e gestor de negócios da “BB, SA” e a “FF, SA” outorgaram o “Contrato” cuja cópia se encontra junta a fls. 86/101 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. Nesse “CONTRATO” ficou expressamente acordado entre a FF, por um lado, e o dito EE e a ora ré BB, bem como a II, LDA, por outro lado, que, caso viesse a ser aprovado para a dita propriedade a construção de dois campos de golfe, o dito EE e a sua representada - e aqui ré - BB, SA se obrigavam desde logo a vender à dita FF, e esta se obrigava a comprar-lhe, toda a área indispensável à respectiva implantação, livre de todos os ónus ou encargos, pelo preço de €11.971.149,53.
8. E que, caso viesse a ser aprovada para o local apenas a construção de um campo de golfe, manter-se-ia a obrigação dos mesmos EE e a aqui ré BB de vender à dita FF, e a obrigação de esta lhes comprar, a área que viesse a ser definida como de implantação do dito campo de golfe, e com redução correspondente do preço respectivo para €5.985.574,76.
9. Ficou mais acordado que a mesma FF passaria a poder desenvolver, a partir de então, todas as iniciativas tendentes à preparação e elaboração de estudos, anteprojectos e projectos necessários à obtenção de todas as autorizações, aprovações e licenças necessárias à construção dos campos de golfe na dita ... e eventual urbanização da sua área sobrante.
10. O dito EE e a dita II, LDA expressamente declararam no denominado “ CONTRATO” que reconheciam expressamente ficar desde logo devedores à FF da totalidade do montante por esta adiantado ao GG, SA (13.850.000 euros).
11. E a título de garantia pela efectiva cobrança, por parte da FF, da quantia por ela paga ao GG, por conta e no interesse do dito EE e da dita II, ou de quantia inferior que viesse a ser devida por força das compensações acima referidas, seria então constituído em favor da FF penhor dessas mesmas 495.270 acções e respectivos títulos, correspondentes a 99,06% do capital social da ré BB.
12. E esta FF passaria a deter em seu poder, a esse título de penhor, as ditas acções representativas do capital social da aqui ré BB.

13. Sendo certo que o montante do capital de que o dito EE e a dita II ficariam devedores ficava apenas dependente de ser viável e autorizado pelas entidades competentes a construção de dois ou um campo de golfe, ou de, pelo contrário, não ser pura e simplesmente autorizada a construção de qualquer campo de golfe.
14. Na primeira hipótese – de vir a ser autorizada nos terrenos em causa a construção de dois campos de golfe – o preço do terreno necessário para o efeito era de € 11.971.149,53.
15. Na segunda hipótese – a de vir a ser apenas autorizada a construção de um campo de golfe – o preço atribuído ao terreno era de € 5.985.574,76.
16. Foi também acordado nesse dito “CONTRATO” que a ré BB, proprietária de tais terrenos, prometia desde logo vender à dita FF, e esta se obrigava a comprar, em qualquer das hipóteses acima previstas, toda a área indispensável à implantação dos campos de golfe ou do campo de golfe (conforme a solução possível e aceite pelas entidades competentes).
17. Os preços correspondentes a essa venda – e conforme a hipótese que viesse a ser viabilizada pelas entidades competentes – seriam liquidados através de compensação parcial com o crédito que a FF tinha sobre o dito EE e a dita II.
18. Mais foi então acordado entre todas as contratantes que “as áreas que, no concreto, seriam objecto do acto de compra e venda seriam rigorosamente as que, de acordo com o projecto aprovado e as alterações impostas pelas entidades administrativas competentes, fossem necessárias à implantação dos campos de golfe que vierem a ser aprovados”.
19. E que o preço respectivo apenas variaria em função do número de campos de golfe que viessem a ser autorizados e aprovados para o local, independentemente das áreas necessárias para o efeito em qualquer das duas alternativas acima referidas.
20. Foi finalmente acordado que fosse subscrita por todos os administradores a eleger para a sociedade BB acta para efeitos da distribuição e atribuição de pelouros no seio de tal órgão, devendo ser “conferida e delegada aos administradores nomeados pela ora ré competência exclusiva para tratar de tudo o que respeitasse à dita ..., designadamente a sua urbanização e aproveitamento urbanístico.”
21. E que todas estas “ regras de funcionamento da sociedade BB, bem como todas as alterações ao respectivo contrato de sociedade, deveriam vigorar durante todo o período transitório previsto no dito “CONTRATO”, desde a data da eleição do seu novo Conselho de Administração, e até que fosse definitivamente decidido pela entidade administrativa competente o licenciamento da urbanização possível na ..., liquidadas as contas decorrentes da execução do presente contrato e levantado o penhor das acções acima constituído.”
22. A FF efectivamente liquidou ao GG, SA, no dia 27.03.2002, por conta e no interesse do dito EE e da dita II, LDA, a dita quantia de € 13.850.000,00.
23. As acções assim adquiridas à entidade bancária referida ficaram em poder e à guarda da FF, dadas em penhor, como garantia constituída em favor desta da efectiva cobrança do montante que viesse a apurar-se ser o seu crédito, nos termos acordados entre todas as contratantes.
24. Os ditos EE e II, LDA, bem como a ré BB, deram, por outro lado, e na altura, cumprimento a todas as obrigações por si assumidas, e relativas à composição do Conselho de Administração da referida ré BB e forma da sua vinculação, bem como à ratificação da gestão que o dito EE tinha desenvolvido por sua conta e no seu interesse.
25. E, para efeitos da realização das assembleias gerais da ré BB nos anos de 2003, 2004 e 2005, o réu EE expressamente solicitou por escrito que a FF emitisse documento comprovativo do depósito à sua guarda das acções acima referidas e identificação dos seus titulares.
26. O que a FF sempre fez, logo que solicitada nesse sentido.
27. O Conselho de Administração da ré BB passou a integrar as pessoas dos Dr. JJ e Eng. KK, por indicação da dita FF.
28. E foram ainda aprovadas em assembleia geral as alterações necessárias ao contrato de sociedade da BB, por forma a acolher as regras acordadas para efeitos da vinculação e competências do Conselho de Administração.
29. A ré BB foi representada no dito CONTRATO pelo dito EE, que interveio na qualidade de gestor de negócios.
30. Tendo-se ainda obrigado o dito EE a fazer ratificar esse seu acto de gestão de negócios pela ré BB.
31. Ratificação essa que ocorreu também por deliberação da mesma assembleia geral da mesma BB.
32. Tudo em conformidade com o que havia ficado acordado.
33. A dita BB, na mesma assembleia geral que teve lugar no dia 28 de Maio de 2002, deliberou aprovar, por unanimidade de todos os accionistas presentes, uma proposta do teor seguinte: “ Atendendo a que eu, HH, na qualidade de gestor de negócios da sociedade BB – …, SA, subscrevi um contrato com a FF, SA, onde foi prometida a venda, por parte da BB, SA, de uma área de terreno da denominada ..., sita no concelho de ..., e foram mais acordadas condições para que tal venda se viesse a efectuar, designadamente nas suas cláusulas 4 nºs 1 alíneas a), b) e c) e 2, e ainda nas cláusulas 5 e 10, nºs 1 e 2, proponho que a assembleia geral vote no sentido de aqui proceder à ratificação da gestão de negócios que eu realizei, ao subscrever tal contrato, designadamente as suas cláusulas 4, nºs 1 alíneas a), b) e c), 2 e cláusula 5 e 10, nºs 1 e 2, aprovando expressamente todas as suas cláusulas e obrigações, e mandatando o Conselho de Administração acabado de ser eleito para subscrever todos os documentos indispensáveis ao referido negócio.”
34. No seio do Conselho de Administração da ré BB passariam a ser os administradores Dr. JJ e Eng. KK a tratar de tudo o que respeitasse ao aproveitamento da denominada ... e seu aproveitamento urbanístico, tendo em conta a eventual construção de dois campos de golfe.
35. Na sequência de prolongada e vastíssima correspondência entre a FF e o dito EE e a ora ré BB, aquela sociedade remeteu a esta, com conhecimento ao dito EE, carta datada de 23.11.2006, e na qual expressamente referiu que “porque afirmaram não se sentirem obrigados a vender a área de terrenos necessária à aprovação e construção dos campos de golfe, é para nós evidente que se verifica recusa de cumprimento do contrato-promessa celebrado aquando da assinatura do contrato de 21.03.2002, o que equivale ao seu incumprimento definitivo “Nem sequer alegam V. Exªs – nem podiam alegar por absolutamente impossível – que a construção dos campos de golfe seria aprovada coma afetação de uma área menor à referida de 2.151.121,68 m2”.
Face ao acima exposto, vimos comunicar-lhes que damos por resolvido o contrato-promessa em causa”.
36. E após o envio de tal carta, a FF instaurou contra o dito EE e a sociedade BB ora ré, bem como contra a dita II, LDA, acção que correu seus termos por Tribunal Arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem Comercial, do Instituto de Arbitragem Comercial do Porto, e que aí tomou o nº 01/07/IAC/ACP/FP.
37. Tal acção foi concluída, após julgamento, com a condenação do dito EE e da dita II a pagar solidariamente à dita FF a quantia de €11.971.149,53, acrescidos de juros sobre aquele capital, contados desde 21.03.2002 e até ao seu efectivo pagamento, às taxas previstas na Cláusula 11ª do contrato daquela data, “ou seja, a uma taxa correspondente à taxa que a FF estiver a suportar junto da Banca por efeito de financiamento contraído ou a contrair para o efeito, ou à taxa Euribor acrescida de mais 2%, caso não esteja já em curso qualquer financiamento e pelo período de tempo em que tal financiamento já não vigore”, com a correspondente condenação dos Réus EE e II, solidariamente, ao seu pagamento.
38. Foi instaurado o procedimento executivo contra o dito EE e a dita II, LDA, tendo em vista o pagamento coercivo da referida quantia em dívida.
39. Nesses autos de execução foi efectivada, com data de 15.01.2009, a penhora das 495.270 acções representativas do capital da dita sociedade BB – …, SA, correspondentes a 99,06% do respectivo capital social.
40. O dito EE foi notificado da realização dessa mesma diligência de penhora.
41. O dito EE era o proprietário das acções dadas de penhor, e agora efectivamente penhoradas à ordem do processo executivo actualmente pendente.
42. Nos termos do disposto na Cláusula NONA do contrato de 21.03.2002, “ as regras de funcionamento da SOCIEDADE, bem como as alteracções ao seu contrato social acima estabelecidas, deverão vigorar durante todo o período transitório aqui previsto neste contrato, desde a data da eleição do seu novo Conselho de Administração, e até que seja definitivamente decidido pela entidade administrativa competente o licenciamento da urbanização possível na ..., liquidadas as contas decorrentes da execução do presente contrato e levantado o penhor das acções acima constituído.”
43. De entre tais regras estava a existência de dois administradores, num Conselho de Administração composto de cinco elementos, e a necessidade da intervenção de quatro administradores, no mínimo, para que a sociedade se vinculasse em actos ou contratos de que resultem a alienação ou oneração de imóveis da sociedade, ou de que possa advir a criação ou aumento do seu passivo, designadamente, por via da contracção de financiamentos bancários, subscrição de letras ou livranças.
44. Ao contrário do sucedido nos anos de 2003, 2004 e 2005, o dito EE deixou de solicitar à FF que emitisse um documento comprovativo do depósito à sua guarda das acções dadas de penhor.
45. Foi convocada uma assembleia geral da ré BB para o passado dia 15 de Dezembro de 2008.
46. Da ordem de trabalhos nessa assembleia constavam expressamente os dois pontos seguintes:
- Deliberar sobre uma Proposta de destituição de dois Administradores Efectivos e um Administrador Suplente, membros do Conselho de Administração eleitos por deliberação de 31.03.2005, cuja identificação e justa causa consta da referida Proposta.
- Eleição de dois Administradores Efectivos e de um Administrador Suplente, para exercerem funções até final do quadriénio 2005/2008, que substituirão os membros do Conselho de Administração destituídos.
47. Nem o dito EE nem a ré BB, informaram então a FF ou qualquer dos administradores por ela nomeados da realização desta assembleia.
48. E o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ré BB não solicitou também qualquer informação à FF, nem aos administradores por ela nomeados, sobre a titularidade das acções representativas do capital social da sociedade.
49. Nos termos do artigo 19º nº 1 do contrato social da ré BB, “ a assembleia geral é constituída somente pelos accionistas com direito de voto possuidores de acções ou títulos de subscrição que os substituam, e que, até oito dias antes da realização da Assembleia Geral, as tenham:
a) Averbado em seu nome nos registos da Sociedade, sendo nominativas; ou
b) Registado em seu nome nos livros da Sociedade ou depositado nos cofres da Sociedade ou de Instituição de Crédito, sendo ao portador.
50. E o nº 2 desse mesmo artigo mais acrescenta que “ o depósito na Instituição de Crédito tem de ser comprovado por carta, emitida por essa Instituição, que dê entrada na Sociedade pelo menos oito dias antes da data da realização da Assembleia.
51. A assembleia geral, de acordo com o disposto no artigo 22º do citado contrato social, só “poderá funcionar em primeira reunião desde que se achem presentes accionistas que representem mais de 50% do capital social ”.
52. A FF instaurou contra a ré BB e o dito EE acção judicial tendente a obter a declaração de inexistência ou de nulidade das deliberações tomadas na dita assembleia geral realizada em 15.12.2008, acção essa que correu termos no 3º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, com o nº 278/09.4TYVNG, a qual foi julgada totalmente improcedente.
53. Foram convocadas para o passado dia 06.04.2009 duas outras assembleias gerais da ré BB, sendo uma denominada de “anual”, e que tinha por ordem de trabalhos:
- deliberar sobre o relatório de gestão e contas do exercício de 2008.
- deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados.
- proceder à apreciação da Administração e Fiscalização da sociedade.
54. E a segunda, denominada de “extraordinária”, tinha por ordem de trabalhos a
seguinte:
- deliberar sobre a proposta de alteração dos artigos 9º e 11º dos estatutos da sociedade;
- eleição de órgãos sociais para o quadriénio 2009/2012.
55. Na data para que tais assembleias gerais foram convocadas as 495.270 acções pertencentes ao dito EE, para além de dadas de penhor à dita FF, estavam já penhoradas à ordem do processo executivo acima referenciado, e que corre seus termos pelo 3º Juízo dos Juízos de Execução do Porto, 3ª Secção, com o nº 8041/08.3YYPRT.
56. E o seu fiel depositário, nomeado e identificado no auto de penhora constante de tais autos de procedimento executivo, e de cujo teor a ré BB foi notificada, é o ora autor - AA.
57. O dito EE era ainda titular das 495.270 acções ao portador representativas de 99,05% do capital social da ré BB.
58. Na primeira de tais assembleias gerais foi deliberado:
- aprovar o relatório de gestão e contas do exercício de 2008;
- aprovar a proposta de aplicação de resultados do exercício de 2008, no sentido de os resultados negativos de tal exercício, no montante de € 728.467,69 serem transferidos para a conta de Resultados Transitados;
- aprovar um voto de confiança aos órgãos de administração e fiscalização da sociedade.
59. Na segunda de tais assembleias gerais, por seu lado, foi deliberado:
- aprovar uma proposta de alteração dos artigos 9º e 11º dos Estatutos da Sociedade;
- eleger os órgãos sociais para o dito quadriénio 2009/2012;
60. De acordo com a deliberação relativa à alteração dos artigos 9º e 11º do contrato de sociedade, passaram aqueles artigos a ter a redacção seguinte:
Artigo 9º
A sociedade é gerida por um Conselho de Administração composto por três ou cinco membros efectivos e, respectivamente, um ou dois suplentes, eleitos em Assembleia Geral, os quais designarão o Presidente.”
Todos os documentos que obriguem a sociedade, incluindo cheques, letras, livranças e aceites bancários, terão validade quando assinados por:
a) dois administradores;
b) um administrador e um mandatário da sociedade;
c) um administrador se, para intervir no acto ou actos, tiver sido designado em acta pelo Conselho de Administração;
d) dois mandatários.
61. E quanto à eleição dos órgãos sociais para o quadriénio 2009/2012, foi aprovada proposta no sentido de serem eleitos os seguintes:
ASSEMBLEIA GERAL
Presidente: Dr. CC
Vice – Presidente: Dr. DD
Secretário : Dra. EE
FISCAL ÚNICO EFECTIVO
- CC, LL, SROC, representada por Dr. CC – ROC nº ….
FISCAL ÚNICO SUPLENTE
- Dr. MM– ROC nº …
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Presidente: HH, …
Vogal: Arq. NN
Vogal: Arq. OO
Vogal Suplente: Dr. PP
COMISSÃO DE VENCIMENTOS
Presidente: HH …
Vogal: Arq. NN
Vogal: Arq. OO
62 As duas assembleias gerais acima referenciadas apenas tiveram a presença e participação do accionista EE descrito e identificado como titular das 495.270 acções que se acham penhoradas.
63. E todas estas deliberações tomadas nessas duas assembleias gerais apenas foram aprovadas com o voto desse dito accionista.
64. A sociedade FF intentou acção judicial visando a declaração de inexistência e/ou, subsidiariamente, de nulidade de todas as deliberações acima referidas como tomadas nas duas assembleias gerais pretensamente realizadas em 06.04.2009.
65. Tal acção deu entrada no 2º Juízo deste tribunal, e nele corre, estando ainda pendente, com o nº 155/10.6TYVNG.
66. Foi entretanto convocada nova assembleia geral da sociedade ré para o passado dia 06.10.2010, a realizar na sede social respectiva, sita à rua ..., nº …, Sala …, na cidade do ….
67. Tal assembleia geral tinha a seguinte ordem de trabalhos:
1 – Deliberar sobre o relatório de Gestão e Contas do Exercício de 2009;
2 – Deliberar sobre a proposta de aplicação de Resultados do Exercício de 2009;
3 – Proceder à apreciação da administração e fiscalização da Sociedade;
4 – Assuntos diversos de interesse para a Sociedade.
68. Na data para que tal assembleia geral foi convocada as 495.270 acções pertencentes ao dito EE, para além de dadas de penhor à dita FF, continuavam, como continuam, penhoradas à ordem do processo executivo acima referenciado, e que corre seus termos pelo 3º Juízo dos Juízos de Execução do Porto, 3ª Secção, com o nº 8041/08.3YYPRT.
69. E o seu fiel depositário, nomeado e identificado no auto de penhora constante de tais autos de procedimento executivo, e de cujo teor a ré BB foi notificada, é o aqui autor.
70. Por solicitação do autor tal instituição bancária remeteu ao Sr. Presidente da Mesa da Assembleia Geral da sociedade ora ré carta datada de 23.09.2010, na qual expressamente que “para efeitos de participação em assembleia geral de accionistas da sociedade BB – …, SA, a realizar no próximo dia 06 de Outubro de 2010, se encontram depositadas na conta títulos - nº … - 495.270 acções ao portador, representativas de 99,06% do capital da BB”.
71. Mais se acrescentando nessa carta que tais acções haviam sido penhoradas ao abrigo do processo de execução nº 8041/08.3YYPRT, 1º Juízo, 3ª Secção dos Juízos de Execução do Porto, e no qual é executado o Sr. HH.
72. E que nesse processo havia sido nomeado o ora autor fiel depositário das mesmas acções.
73. Esclarecia ainda tal missiva que a conta-títulos acima identificada era titulada pelo ora autor, como fiel depositário, e ainda pelo agente solicitador de execução Sr. QQ.
74. À data da realização de tal assembleia geral, as 495.270 acções pertencentes ao accionista EE estavam já penhoradas nos autos de procedimento executivo acima identificado.
75. E tinha sido nomeado no auto de penhora como seu fiel depositário o Sr. AA, o ora autor.
76. As acções representativas do capital social da ré BB são acções tituladas e ao portador.
77. A assembleia geral apenas pode constituir-se, em primeira convocação, desde que presentes ou representados accionistas que representem, no mínimo, 50% do respectivo capital social, conforme o disposto no art. 22º do contrato social da sociedade ré.
78. Desde a constituição da sociedade ré que existe um registo actualizado da titularidade das acções da sociedade o qual está permanentemente patente na sede social.
79. Os membros da mesa constataram através da análise desse registo que as acções em causa eram da titularidade do accionista HH.

2. O direito

Através da acção o Autor visa impugnar as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da Ré Sociedade, realizada em 06-10-2010, que tiveram por conteúdo a aprovação do relatório de gestão e contas do exercício de 2009, a aprovação da proposta de aplicação de resultados do exercício de 2009 e a aprovação de um voto de confiança aos órgãos de administração e fiscalização da sociedade. Pretende que as mesmas sejam declaradas inexistentes ou nulas, ou decretada a sua anulação. 

           Sustenta a legitimação do direito de impugnar tais deliberações sociais na qualidade de depositário das acções (correspondentes a 99,06% do capital social da Ré BB) que são pertença do Réu EE e foram penhoradas no âmbito de acção executiva intentada por terceiro contra aquele[1].

           O acórdão recorrido, na esteira do decidido pela 1ª instância, considerou que o Autor carecia de legitimidade substantiva para arguir os vícios que imputa às deliberações em causa, alicerçado em raciocínio que se faz consignar sob as seguintes premissas:

           - o Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC) consagra apenas três categorias de vícios das deliberações sociais – nulidade, anulabilidade e ineficácia – não reconhecendo autonomia à inexistência jurídica;

            - para além das entidades indicadas no artigo 57.º, do CSC, a lei não prevê a possibilidade de qualquer outra poder arguir os vícios que inquinem o acto deliberativo de uma sociedade;

           - revestindo a deliberação societária a natureza de negócio jurídico, por força do regime previsto no artigo 286.º, do Código Civil (doravante CC), só os interessados podem arguir a nulidade das mesmas;

            - o direito de invocação da nulidade do negócio jurídico não é universal, assumindo um cariz substantivo que pressupõe a oponibilidade do negócio ao seu titular; nessa medida, o sujeito legitimado a arguir a nulidade da deliberação tem de demonstrar um interesse directo na nulidade e, não e apenas, um interesse reflexo;

           - incumbindo ao depositário dos bens penhorados (possuidor precário), a mera administração e guarda dos referidos bens, não cabe no âmbito dos respectivos poderes o exercício de direitos sociais que assumem a natureza de direitos pessoais;

           Contrapõe o Recorrente evocando a relevância jurídica do interesse enquanto fiel depositário para acompanhar e fiscalizar os negócios sociais, fazendo apelo aos seguintes aspectos que, em seu entender, o legitimam para o exercício de direitos sociais inerentes às acções penhoradas:

           - por os dividendos constituírem os frutos das acções penhoradas, que nos termos do artigo 758.º, n.º1, do CPC, aplicável às participações sociais por efeito do artigo 783.º, do mesmo Código, cabe ao fiel depositário receber e administrar conjuntamente com as próprias acções penhoradas;

           - por lhe assistir o direito à informação, por aplicação analógica do disposto no artigo 293.º, do CSC;

           - por as deliberações em causa violarem o disposto no artigo 104.º, do Código de Valores Mobiliários (doravante CVM), de natureza imperativa, determinando a inexistência das mesmas;

           - por constituir condição imprescindível ao exercício das suas funções como fiel depositário (judicial e não depositário civil) o acompanhamento e fiscalização das contas da sociedade e, podendo a nulidade ser suscitada por qualquer interessado, carecer de cabimento a distinção entre interesse directo na nulidade e interesse meramente reflexo;

            Vejamos.
As acções são títulos de capital de uma sociedade anónima que reunidas num titular lhe conferem uma participação social em determinada sociedade.
Da titularidade de uma participação social decorrem diversos direitos e obrigações (artigos 21.º, n.º1 e 20.º, do CSC).
Conforme salienta Alexandre Soveral Martins[2], os direitos que integram a participação social (enquanto conjunto unitário de direitos e obrigações dos sócios) podem ser agrupados em direitos patrimoniais (direito de quinhoar nos lucros de exercício e o direito à quota de liquidação) e direitos administrativos, sendo estes o direito de participar nas deliberações dos sócios, o direito à informação e o direito de ser designado para os órgãos de administração e de fiscalização.
No que se refere ao regime dos direitos sociais em geral, resulta do artigo 55.º, do CVM que quem está legitimado ao exercício dos direitos é aquele que, em conformidade com o registo ou com o título, for o seu titular[3]; assim, a legitimação para o exercício dos direitos inerentes às acções será determinada em função do que constar do respectivo registo.
Importa realçar que, no caso das acções ao portador, o então n.º1 do artigo 104.º do CVM (revogado pela Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio, que veio proibir a emissão de valores mobiliários ao portador) determinava que o exercício de direitos inerentes aos valores mobiliários titulados ao portador dependia da posse do título ou de certificado passado pelo depositário, sendo certo que, como faz salientar Soveral Martins, o depositário não será possuidor[4], mas mero detentor dos títulos de acções, isto é, sem animus possidendi proprium.

Debruçando-se sobre o penhor de acções refere Tiago Soares da Fonseca “O penhor das acções é, na sua essência, uma garantia real. Através dele visa-se assegurar o cumprimento de determinada obrigação conferindo ao seu credor uma preferência sobre os demais no pagamento do valor resultante da execução do bem penhorado. Para esta função, não se torna necessária a atribuição do exercício dos direitos sociais ao credor pignoratício. Apenas é necessário que o bem dado em penhor se conserve de modo a assegurar o cumprimento de certa obrigação.”[5], concluindo que as relações estabelecidas com a sociedade e/ou com outros sócios pertencerá ao titular das acções, sem prejuízo de as partes estabelecerem de forma diferente, como aliás decorre do que se mostra prescrito nos artigos 23.º, n.º4, do CSC, e 81.º, n.º4, do CVM.

Assim, a regra no nosso ordenamento jurídico é a de que o exercício dos direitos sociais compete ao titular das acções, excepto se as partes tiverem convencionado diferentemente, regra que se mantém relativamente ao direito de participar nas deliberações sociais, designadamente o direito de informação, de discussão e de voto – cfr. artigo 21.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CSC.

Relativamente ao direito de voto cabe salientar o que nesse sentido dispõe o artigo 239.º, n.º1, do CSC, nos termos do qual na penhora de uma quota “(…) o direito de voto continua a ser exercido pelo titular da quota penhorada”.

No que se refere ao direito de informação sobre a vida em sociedade[6] (a que o Recorrente alude invocando o artigo 293.º, do CSC), impera igual regra de que tais direitos são exercidos pelo titular das acções, excepto quando por lei ou convenção das partes caiba o exercício do direito de voto, tal como resulta claramente do artigo 293.º, do CSC, ao conceber a possibilidade condicionada de ser atribuído a outros titulares (que não o titular das acções) o direito de informação (para além do representante comum de obrigacionistas, ao usufrutuário e ao credor pignoratício de acções quando, por lei ou convenção, lhes caiba exercer o direito de voto.- sublinhado nosso).
Resta-nos pois debruçar sobre a atribuição do direito de impugnar deliberações sociais que constitui o enfoque do que neste âmbito se impõe conhecer.
A problemática referente ao direito de impugnar deliberações, ainda que logre merecer concordância a possibilidade do mesmo se encontrar dissociado do exercício do direito de voto[7], mostra-se interligada à questão dos vícios de que as deliberações sociais possam padecer.

A este propósito refere o acórdão recorrido, depois de se afastar do posicionamento daqueles que admitem a inexistência jurídica enquanto vício de que as deliberações sociais podem enfermar, que “Em consonância com a respetiva disciplina normativa terá legitimidade para arguir a nulidade de uma deliberação de sociedade comercial as entidades referidas no art. 57º, concretamente o sócio (nº 1), o órgão de fiscalização (nº 2) e, nas sociedades que não tenham órgão de fiscalização, “qualquer gerente”, como expressamente se dispõe no seu nº 4.

É certo que para além dessas entidades não está proscrita a possibilidade de outras poderem arguir o vício que inquinará o ato deliberativo, já que, quanto a esta matéria, o citado art. 57º reporta-se unicamente ao âmbito social, limitando-se a acrescentar uma especialidade em relação ao regime geral previsto no Código Civil.

Consequentemente, assumindo, como nos parece, as deliberações natureza de negócio jurídico (qualificação que, ainda assim, não se revela pacífica), ser-lhes-á, por isso, aplicável - quando enfermem de vício de nulidade - a regra de direito comum plasmada no art. 286º do Cód. Civil, nos termos do qual esse vício genético “é invocável por qualquer interessado”.

Portanto, no caso vertente, não se integrando o autor em nenhuma das categorias de entidades previstas no art. 57º, tudo se resume em determinar se será interessado para arguição dos vícios que assaca às ajuizadas deliberações sociais.

Ora, malgrado não se registe uma posição unívoca a propósito da determinação do âmbito subjetivo do aludido conceito, afigura-se-nos claro que o direito de invocação da nulidade não pode conferido a todos, dado que não é (nem pode ser) qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração da nulidade, que preenche os requisitos para ser considerado interessado.

De facto - de acordo, aliás, com a própria inserção sistemática do art. 286º -, o interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar o vício é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu. O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indireto.

               Daí que, transpondo essa leitura para o domínio da impugnação das deliberações sociais, não falta quem advogue que, por via de regra, somente o sócio tem reconhecido interesse direto na procedência da ação de declaração de nulidade.

Como se referiu, in casu, o apelante filia o seu interesse no facto de ser depositário das 495.270 ações (representativas de 99,06% do capital da ré “BB, S.A.”) pertencentes ao réu DD, tendo sido investido nessa qualidade na sequência de penhora de tais valores mobiliários que foi decretada no âmbito da ação executiva que a este demandado foi movida por “FF, S.A.”.

Ora, nos termos da lei adjetiva (cfr. art. 843º do pretérito Código de Processo Civil, então em vigor), ao depositário incumbe apenas a administração e guarda dos bens penhorados, sendo que a penhora não produz qualquer diminuição de capacidade do proprietário/titular desses bens, apenas o privando da possibilidade de os alienar.

Significa isto, portanto, que a penhora tem caráter eminentemente patrimonial, pelo que o exercício dos direitos pessoais/sociais do sócio/acionista titular dos valores mobiliários que foram alvo dessa diligência não é por ela afetado. Dito de outro modo, o exercício dos direitos sociais (no qual se integra o de impugnação de deliberações dos sócios) é de natureza pessoal, não se transferindo para o depositário, dado que o respetivo direito continua a radicar na esfera jurídica do sócio/acionista , como emerge, designadamente, dos arts. 21º, nº 1, al. b), 373º, 376º e 379º, nº 1.

Deste modo, o autor/apelante, enquanto depositário das mencionadas ações (sendo, pois, mero possuidor precário ou possuidor em nome alheio), carece de legitimidade substantiva para a invocação de vício de nulidade de que alegadamente padeçam as ajuizadas deliberações sociais, tanto mais que não é atingido diretamente na sua esfera jurídica por esse ato deliberativo.” 
O entendimento explanado merece a nossa concordância, sendo que as razões que o Recorrente vem aduzir de modo algum permitem inverter o sentido deste posicionamento.

De acordo com a regra geral do Código Civil, a nulidade pode ser invocada por qualquer interessado, isto é, pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio[8].

Na lei impera o princípio do numerus clausus das causas de nulidade das deliberações sociais[9], pelo que são apenas e exclusivamente causa de nulidade de deliberações sociais as circunstâncias previstas no artigo 56.º, do CSC[10].

Quanto ao vício da anulabilidade previsto nas alíneas do n.º1 do artigo 58.º do CSC, a lei mostra-se clara (artigo 59.º) ao conceder legitimidade para a sua arguição a quem tiver sido atribuído o direito de voto, bem como ao órgão de fiscalização, encontrando-se, ainda dependente dos pressupostos consignados no referido preceito[11].

No caso, verifica-se que o Autor se encontra fora de qualquer destas situações e, como tal, não lhe poderia assistir qualquer direito de impugnar as deliberações tomadas em assembleia geral da Ré com fundamento na sua alegada anulabilidade.

Ao invés, quanto à nulidade ou à declaração de inexistência das deliberações podem ser invocadas por qualquer interessado. Todavia, a qualidade de interessado não pode deixar de ser aferida e enquadrável no âmbito do exercício normal e adequado do direito à impugnação da deliberação e não traduzir a defesa de um interesse próprio, alheio ou até conflituante com o interesse social.

Coloca-se pois a questão de avaliar em que medida as funções atribuídas ao fiel depositário de acções penhoradas lhe conferem a qualidade de interessado para o exercício do direito à impugnação das deliberações sociais da sociedade, como defende o Recorrente.

O fiel depositário por força desse cargo passa a ter o dever de administrar os bens penhorados com diligência e zelo – cfr. artigo 760.º, n.º1, do CPC. Porém, o conteúdo fulcral deste dever traduz-se, apenas e fundamentalmente, em providenciar a conservação do “bem” em atenção ao seu valor e natureza, permanecendo aquele na propriedade (titularidade) do sócio que não foi afectado na sua posse (sendo o depositário mero detentor ou possuidor em nome alheio), mas apenas limitado no seu direito de disposição que, obviamente, não contende com os seus direitos sociais, designadamente o direito de voto o qual, como acima realçado, não pode ser alheado do direito de impugnação das deliberações.

           Por conseguinte, uma vez que a posse das acções de que o Autor é depositário se caracteriza como posse precária ou em nome alheio, permanecendo (a propriedade e posse) na titularidade do sócio, não se vislumbra o alegado interesse (em termos de se mostrar directamente atingido) na arguição de vícios que possam inquinar o acto deliberativo.

            Improcedem, pois, as conclusões do recurso.

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente.

Custas pelo Recorrente.


                                 
Lisboa, 29 de Janeiro de 2019

Graça Amaral (Relatora)
Henrique Araújo
Maria Olinda Garcia

_____________________
[1] Acção executiva nº 8041/08.3YYPRT, instaurada pela FF, SA, a correr seus termos no Juízo de Execução do Porto.
[2] VALORES MOBILIÁRIOS (ACÇÕES), Almedina, p. 31.
[3] Dispondo o n.º3 do referido preceito que “São direitos inerentes aos valores mobiliários, além de outros que resultem do regime jurídico de cada tipo:
a) Os dividendos, os juros e outros rendimentos;
b) Os direitos de voto;
c) Os direitos à subscrição ou aquisição de valores mobiliários do mesmo ou de diferente tipo.”.
[4] Obra citada, p. 32.
[5] “O PENHOR DE ACÇÕES”, Almedina, 2ª edição, p. 82-83.
[6] Previsto no artigo 21.º, n.º1, alínea c), do CSC, abarcando o denominado direito mínimo de informação (artigo 288.º, do CSC), o direito de informações preparatórias da assembleia geral (artigo 289.º, n.ºs 1 e 2, do CSC), o direito de informação em assembleia geral (artigo 290.nº 1, do CSC) e o direito colectivo à informação (artigo 291.º, do CSC) – Tiago Soares da Fonseca, obra citada, p. 95
[7] Conforme salienta Tiago Soares da Fonseca, Raul Ventura defende (Sociedade por Quotas, Volume I, p. 425) que o direito de impugnar deliberações não é atribuível separadamente ao do direito de voto (obra citada, nota 205, p.106).
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1982, p. 261.
[9] Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, Coimbra, Almedina, 1993, p. 294.
[10] Tomando posição quanto à inexistência refere Pinto Furtado que a “sua ulterior eliminação não corresponde, pois, a uma desnecessidade de texto legal expresso, mas a uma diferente vontade legislativa, tendente a submeter a hipótese à regra da anulabilidade”, ob. citada, p. 373. Cabe realçar que a admissibilidade da inexistência de deliberações sociais, como categoria distinta da sua nulidade, mostra-se aceite pela generalidade da doutrina (cfr. Raul Ventura, Sociedade por Quotas, volume II, Almedina, 1989, p. 247, Vasco Lobo Xavier, ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL E DELIBERAÇÕES CONEXAS, nota 94, p. 196, Pinto Furtado, Deliberações Sociais, p. 234 e Menezes Cordeiro, Assembleias Gerais e Deliberações Sociais, Almedina, 2007, p.228).
[11] A impugnação de deliberações sociais anuláveis apenas pode ser instaurada pelo órgão de fiscalização ou por qualquer “sócio” que não tenha votado no sentido que fez vencimento (art.º 59.º do CSC).