Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
487/13.1TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
GARANTIA BANCÁRIA
CONTRATO DE CONSÓRCIO
INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMERCIAL – CAPACIDADE COMERCIAL E DOS COMERCIANTES / COMERCIANTES - CONTRATOS ESPECIAIS DO COMÉRCIO / EMPRESAS.
DIREITO DAS SOCIEDADES – ÂMBITO GERAL DE APLICAÇÃO.
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS / VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS / VERIFICAÇÃO ULTERIOR.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / FIANÇA / EXTINÇÃO DA FIANÇA / LIBERAÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE DE SUB-ROGAÇÃO.
Doutrina:
-Pestana de Vasconcelos, Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2ª ed., 2013, p. 126-7;
-Rui Pinto Duarte, in http://rpdadvogados.pt/wp-content/uploads/bsk-pdf-manager/74_2015-03-13.PDF.
Legislação Nacional:
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGOS 13.º, N.º 2, 99.º, 100.º, 102.º E 230.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 1.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 95.º, N.º 2 E 146.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 653.º.
Sumário :

I – As garantias bancárias autónomas e à primeira solicitação, destinadas a garantir o pontual e o integral cumprimento das obrigações da ordenante no contrato a celebrar com a beneficiária, cobrem as responsabilidades emergentes do incumprimento pela ordenante e pela entidade terceira a ela associada por contrato de consórcio, omisso nos dizeres da garantia.
II – A insolvência da ordenante e a falta de reclamação do crédito pela beneficiária não impede o cionamento das garantias bancárias.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. A AA, S.A. intentou acção declarativa contra o Banco BB, S.A., pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a importância de € 89.250,94 relativa às garantias prestadas, bem como os juros de moratórios vencidos, à taxa de 16%, no montante de € 19.913,96, e vincendos até integral pagamento.

Regularmente citado, o R. apresentou contestação, concluindo pela improcedência do pedido.

2. Foi proferido despacho saneador onde se afirmou a validade e regularidade da lide e se procedeu ao conhecimento do mérito da acção, por se considerar que os autos dispunham de todos os elementos necessários para o efeito, tendo sido proferida decisão no sentido da improcedência da acção e absolvição do R. do pedido.

3. Não se conformando com tal decisão, a A. dela interpôs recurso de apelação.

O R. apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.

O Tribunal da Relação do Porto veio a proferir acórdão nos seguintes termos: “julga-se procedente o recurso interposto pela A., revogando-se a decisão recorrida e condenando o R. a pagar à A. a quantia de € 89.250,94 (oitenta e nove mil duzentos e cinquenta euros e noventa e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa de juro comercial, desde 24/01/2012, até integral pagamento. Custas pelo Recorrido.”

4. O Recorrido, banco, não se conformou com o acórdão, tendo apresentado recurso de revista, onde figuram as seguintes conclusões (transcrição):

“1ª O objecto da presente revista passa pela resposta a dar às duas seguintes questões de direito, a segunda subsidiária da primeira:

Primeira questão de direito: tendo um banco emitido três garantias bancárias autónomas e à primeira solicitação em cujos títulos apenas se menciona que se destinam a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações que, ela, única ordenante, assumirá no contrato que vai celebrar com a beneficiária, quid juris: as garantias cobrem tão só as responsabilidades emergentes do incumprimento da ordenadora às obrigações do contrato base ou pode entender-se que cobrem também o incumprimento das obrigações de uma entidade diferente da ordenadora, no caso, uma entidade terceira com ela associada por contrato de consórcio externo de todo omisso nos dizeres da garantia?

Segunda questão de direito: suposta, em pura dialéctica, a resposta afirmativa à primeira questão, mas sabido que a única ordenante foi declarada insolvente e, na insolvência, a beneficiária não reclamou o seu crédito, quid iuris: pode, ainda assim, a ordenante exigir que o banco honre as garantias prestadas por elas revestirem a natureza de garantis autónomas ou, apesar desta sua natureza, deve entender-se que o direito a exigir a satisfação das garantias ficou precludido nos termos do disposto no artº 653º do Código Civil, por a falta de reclamação do crédito envolver, por definição, a impossibilidade de sub-rogação?

A correcta resposta à primeira daquelas questões é no sentido de que, tal como bem se decidiu na Instância, as garantias dos autos não autorizam que o Banco, a coberto delas, responda pelo cumprimento de facturas em que figura, como devedor, não a ordenadora das mesmas garantias, senão entidade que não consta em nenhures do teor dos documentos em que ficaram consubstanciadas as garantias;

Estão definitivamente provados nos autos, tanto pela sentença da primeira instância como agora pelo acórdão recorrido, estes factos: a) que as propostas de garantia apresentadas junto do Banco pela ordenante CC são completamente omissas quanto à existência de um consórcio e, portanto, omissas também em relação à estipulação de responsabilidade solidária entre as empresas consorciadas; b) que as garantias bancárias emitidas, não têm mencionada no seu texto qualquer referência à existência de um consórcio e, muito menos, que, com consórcio ou não, o garante assumisse, ao emiti-las, a obrigação de responder por incumprimentos de terceiro que ninguém lhe disse ou fez saber que intervinha na obra em regime de acordada responsabilidade solidária passiva com a ordenante; c) que no texto das garantias a única coisa de que se fala é do contrato de empreitada que a ordenante CC “assumirá no contrato que com ela” (com ela e não também com quaisquer terceiros…) “a GG vai outorgar e que tem por objecto a empreitada….”; d) que, como o acórdão recorrido expressamente refere, não se apurou se foi ou não entregue ao garante cópia do contrato de empreitada que, esse sim, havia de mencionar a existência do consórcio e do regime de solidariedade nele fixado; finalmente, e) que as facturas que estão na base do pedido formulado a coberto das garantias juntas aos autos são facturas em que figura como devedor, não a ordenadora delas (a CC, SA) senão uma sociedade terceira que, como se sabe nos autos, nunca foi dada a conhecer ao Banco, nem como co-ordenante, nem como consorciada, nem como coisa nenhuma (a DD, SA).

Se destes factos é apodíctico concluir que as garantias ajuizadas nestes autos não cobrem o pedido formulado na acção, mais apodíctico é concluir que o apelo que se faz no acórdão recorrido ao regime do artº 236º do Código Civil aponta apenas para efeito de excluir a responsabilidade do Banco, não para a afirmar: se a declaração negocial não pode valer com um sentido com o qual o declarante não possa razoavelmente contar, vedado é pôr o Banco a responder por incumprimentos de terceiros cuja existência desconhecia - e que desconhecia por ninguém lha ter referido, por não resultar do texto mesmo das garantias por si emitidas, por não constar dos documentos que corporizaram o pedido de prestação das garantias e, pior ainda, por nada sequer se ter provado nos autos sobre a entrega ao Banco do teor do contrato base de empreitada.

O Acórdão recorrido, para chegar à condenação do Recorrente, invoca uma norma, a do art.º 236º do Código Civil, que, em vez de prejudicar, beneficia o Banco e em vez de o condenar, o absolve.

O que fica da reflexão que se faça do acórdão recorrido é que – sem quebra do respeito, que é muito – subverte a lógica de um correcto pensamento jurídico-dedutivo já que parte do demonstrado para o que está em causa demonstrar: dando infundadamente como seguro que as garantias ajuizadas cobrem a responsabilidade que está pedida ao Recorrente, toda a fundamentação que desenvolve e expende não reveste senão a natureza de um errado pensamento, insusceptível de conduzir à conclusão que afirma, mas que a boa hermenêutica claramente rejeita e exclui.

Por outro lado,

Se o acórdão recorrido esteve mal quando se pronunciou no sentido de pôr o Banco a responder por incumprimentos de terceiros que as garantias dos autos excluem, mal andou, também, ao decidir que o Banco não estava desonerado dela por via do disposto no artº 653º do Cód. Civil, uma vez que a Autora, como beneficiária, não reclamou na insolvência da ordenadora o crédito que o acórdão recorrido afirma, embora mal, que tinha contra o Banco;

Analise-se a garantia bancária numa mera fiança ou revista ela a natureza de uma garantia autónoma, não perde ela nunca a natureza de garantia das obrigações e, como tal, a conferir sempre ao banco que, como garante, a honre, o direito de exercer o regresso contra o ordenante;

Se o garante que honra a garantia junto do beneficiário não perde o direito de regresso contra o ordenante para haver dele o que pagou ao beneficiário, mesmo que a garantia por ele emitida participasse da natureza de garantia autónoma, está bom de ver que o regime do art.º 65.º3 do Código Civil se aplica a qualquer tipo de garantia, seja ela simples, seja autónoma.

10ª É que o facto de a garantia ser autónoma só significa que, no plano das relações com o beneficiário, o garante não pode opor-lhe os vícios do contrato base: a garantia continua, pois, a ser havida como garantia para efeito de poder beneficiar do regime de avisada protecção estabelecido no art.º 653.º do Código Civil.

11ª O entendimento que vingou no acórdão recorrido, de todo prenhe de um conceitualismo formal inaceitável e obsoleto, levando o conceito de autonomia às últimas consequências, ultrapassa em termos de boa hermenêutica os efeitos que estão contidos naquele conceito, retirando às garantias autónomas uma protecção que a ideia de autonomia de todo em todo não reclama e que o alcance teleológico do art.º 653.º do Cód. Civil proíbe, mesmo quando confrontado com a mais funda substância que se encontre no próprio conceito de autonomia.

12ª Impõe-se, assim, concluir que a resposta à segunda questão de direito colocada como objecto deste recurso, não pode deixar de ser esta: o facto de uma garantia autónoma participar da natureza de garantia autónoma não lhe retira a protecção a que se refere o art.º 653.º do Cód. Civil, entendendo-se por desonerado o garante sempre que, declarado insolvente o ordenante, o direito de regresso não possa ser exercido contra a massa, por sub-rogação, por o beneficiário não ter na insolvência, reclamado o seu crédito.

13ª E não se diga que só por previsão específica no contrato de garantia é que o garante poderia beneficiar da protecção do art.º 653.º daquele Corpo de Leis pois que a protecção por ele estabelecida decorre directamente da norma – mesmo no caso de a garantia ser autónoma.

14ª O acórdão recorrido, decidindo como decidiu, violou, entre outros, o  disposto nos artºs 236.º e 653.º do Código Civil, além de ter violado as disposições do contrato de garantia que constitui lei entre as partes.

Termos em que, na procedência das conclusões da presente alegação e no provimento da revista, deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por acórdão que julgue a acção improcedente e absolva o Banco do pedido, seja pela via principal de as garantias emitidas pelo Recorrente não autorizarem a cobrança dos créditos ajuizados, seja, subsidiariamente, por via do disposto no art.º 653.º do Código Civil.

É o que se espera resulte da sempre douta e esclarecida reflexão de Vossas Excelências.

 J U S T I Ç A”

A A. contra-alegou. Pediu a “ampliação do objecto” do recurso.


II. Fundamentação

 

5. Vêm provados os seguintes factos (conforme sentença, não impugnada):

           1) A Autora, concessionária de serviço público, foi constituída pelo Decreto-Lei nº 41/2010, de 29-04, mediante a fusão das sociedades “EE, S.A.”, “FF, S.A.” e “GG, S.A.”.

2) Os direitos e obrigações destas últimas sociedades, após a sua extinção por fusão, transmitiram-se para a Autora, com efeitos a partir de 4 de Junho de 2010.

3) A sociedade “GG, S.A.” tinha como objecto social exclusivo a exploração e gestão da Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do ..., que lhe foi concessionada pelo Estado.

4) Incluía-se no seu objecto social a construção, extensão, reparação, renovação, manutenção e melhoria das obras e equipamentos necessários para o desenvolvimento do seu objecto social principal.

5) Neste último âmbito das suas competências, encontrava-se, entre outras, a da contratação da execução de determinadas obras públicas que permitissem o cumprimento do objecto da concessão.

6) Nessa qualidade de concessionária de serviço público, a sociedade “GG, S.A.” celebrou, em 11/03/2009, com as sociedades CC - HH, S.A. e DD, S.A., associadas em consórcio, o contrato de empreitada corporizado no documento junto a fls. 56 a 69 dos autos, cujo teor aqui é dado como reproduzido.

7) Este contrato teve por objecto a execução, pelo adjudicatário (as duas sociedades atrás referidas, associadas em consórcio), da empreitada denominada “AR 43.0.08 – Empreitada de Execução do Interceptor de [...]”, no âmbito do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do ....

8) O preço total a pagar pelo Primeiro Outorgante (GG, S.A.) ao Adjudicatário, pela empreitada objecto do referido contrato, foi fixado em € 2.370.037,46, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.

9) As partes contratantes fizeram consignar no contrato (cláusula 2ª) que lhe seriam aplicáveis as cláusulas do contrato e o estabelecido em todos os documentos que dele fazem parte integrante e, ainda, o DL nº 55/99, de 02-03 (Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, que à data vigorava).

10) De acordo com o nº 5 da cláusula 9ª do contrato, “em todo e qualquer pagamento efectuado ao ADJUDICATÁRIO, por força deste CONTRATO, será deduzida a importância equivalente a 5% para garantia do contrato, em reforço da caução” (nos termos do nº 1 da mesma cláusula, o Adjudicatário já havia prestado duas cauções para garantia do exacto e pontual cumprimento das obrigações assumidas no contrato).

11) Contudo, o empreiteiro/adjudicatário podia substituir tais deduções nos pagamentos mediante a prestação de caução de montante equivalente (nomeadamente, através de garantia bancária).

12) Assim, no decurso da execução dos trabalhos e a fim de substituir as retenções que a Dona da Obra fazia nos pagamentos ao Adjudicatário, para reforço da caução, foram prestadas a favor da Autora, pelo banco Réu, as seguintes garantias bancárias:

A) GARANTIA BANCÁRIA Nº ... (de 08/06/2009): “O Banco BB, S.A., (…) presta a favor da GG, S.A., garantia autónoma, à primeira solicitação, no valor de EUR 30.000,00 (Trinta Mil Euros), correspondente a 5%, excluindo o IVA, destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações que CC - HH, S.A. (…) assumirá no contrato que com ela a GG, S.A. vai outorgar e que tem por objecto a "AR 43.0.08 – EMPREITADA DE EXECUÇÃO DO INTERCEPTOR DE [..]", regulado nos termos da legislação aplicável (Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março). O Banco obriga-se a pagar aquela quantia à primeira solicitação da GG, S.A. sem que esta tenha de justificar o pedido e sem que o primeiro possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato atrás identificado ou com o cumprimento das obrigações que CC HH, S.A., assume com a celebração do respectivo contrato. O Banco deve pagar aquela quantia no dia seguinte ao do pedido, findo o qual, sem que o pagamento seja realizado, contar-se-ão juros moratórios à taxa mais elevada praticada pelo Banco para as operações activas, sem prejuízo de execução imediata da divida assumida por este. A presente garantia bancária autónoma não pode em qualquer circunstância ser denunciada, mantendo-se em vigor até à sua extinção, nos termos previstos na legislação aplicável (Decreto-Lei nº59/99, de 2 de Março).”.

B) GARANTIA BANCÁRIA Nº ... (de 15/01/2010): “O Banco BB, S.A., (…) presta a favor da GG, S.A., garantia autónoma, à primeira solicitação, no valor de EUR 29.250,94 (Vinte e Nove Mil Duzentos e Cinquenta Euros e Noventa e Quatro Cêntimos), correspondente a 5% de Décimos na Empreitada abaixo mencionada, excluindo o IVA, destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações que CC - HH, S.A. (…) assumirá no contrato que com ela a GG, S.A. vai outorgar e que tem por objecto a "AR 43.0.08 – EMPREITADA DE EXECUÇÃO DO INTERCEPTOR DE RIO [...]", regulado nos termos da legislação aplicável (Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março). O Banco obriga-se a pagar aquela quantia à primeira solicitação da GG, S.A. sem que esta tenha de justificar o pedido e sem que o primeiro possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato atrás identificado ou com o cumprimento das obrigações que CC HH, S.A., assume com a celebração do respectivo contrato. O Banco deve pagar aquela quantia no dia seguinte ao do pedido, findo o qual, sem que o pagamento seja realizado, contar-se-ão juros moratórios à taxa mais elevada praticada pelo Banco para as operações activas, sem prejuízo de execução imediata da divida assumida por este. A presente garantia bancária autónoma não pode em qualquer circunstância ser denunciada, mantendo-se em vigor até à sua extinção, nos termos previstos na legislação aplicável (Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março).”.

C) GARANTIA BANCÁRIA Nº ... (de 21/07/2010): “O Banco BB, S.A., (…) presta a favor da AA, S.A., garantia autónoma, à primeira solicitação, no valor de EUR 30.000,00 (trinta Mil Euros), correspondente a 5% de Décimos na Empreitada abaixo mencionada, excluindo o IVA, destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações que CC - HH, S.A. (…) assumirá no contrato que com ela a AA, S.A. vai outorgar e que tem por objecto a Empreitada "AR 43.0.08 – EMPREITADA DE EXECUÇÃO DO INTERCEPTOR DE RIO [...]", regulado nos termos da legislação aplicável (Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março). O Banco obriga-se a pagar aquela quantia à primeira solicitação da AA, S.A. sem que esta tenha de justificar o pedido e sem que o primeiro possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato atrás identificado ou com o cumprimento das obrigações que CC HH, S.A., assume com a celebração do respectivo contrato. O Banco deve pagar aquela quantia no dia seguinte ao do pedido, findo o qual, sem que o pagamento seja realizado, contar-se-ão juros moratórios à taxa mais elevada praticada pelo Banco para as operações activas, sem prejuízo de execução imediata da divida assumida por este. A presente garantia bancária autónoma não pode em qualquer circunstância ser denunciada, mantendo-se em vigor até à sua extinção, nos termos previstos na legislação aplicável (Decreto-Lei nº59/99, de 2 de Março).”.

13) A emissão da garantia atrás identificada sob a alínea A) (garantia bancária nº ..., de 08/06/2009) foi solicitada ao Réu pela sociedade CC, S.A., nos termos que constam do documento junto a fls. 155 a 157 dos autos, cujo teor aqui é dado como reproduzido.

14) A emissão da garantia atrás identificada sob a alínea B) (garantia bancária nº ..., de 15/01/2010) foi solicitada ao Réu pela sociedade CC, S.A., nos termos que constam do documento junto a fls. 158 a 161 dos autos, cujo teor aqui é dado como reproduzido.

15) A emissão da garantia atrás identificada sob a alínea C) (garantia bancária nº ..., de 21/07/2010) foi solicitada ao Réu pela sociedade CC, S.A., nos termos que constam do documento junto a fls. 162 a 165 dos autos, cujo teor aqui é dado como reproduzido.

16) As sociedades CC - HH, S.A. e DD, S.A. celebraram, em 10/03/2009, o “Contrato de Consórcio” corporizado no documento junto a fls. 28 a 33 dos autos, cujo teor aqui é dado como reproduzido.

17) As partes contratantes fixaram como objecto do contrato “definir as contribuições, as atribuições, as relações, as responsabilidades e os meios das consorciadas, durante a execução da empreitada de AR 43.0.08 – EXECUÇÃO DO INTERCEPTOR DE RIO [...]” (cláusula 3ª).

18) De acordo com a cláusula 6ª do contrato, a chefia do consórcio seria exercida pela CC - HH, S.A..

19) De acordo com as cláusulas 9ª e 10º do contrato, a contribuição da consorciada CC - HH, S.A. é de 75% e da consorciada DD, S.A. de 25%, obrigando-se cada uma delas a executar os trabalhos correspondentes á sua contribuição.

20) A cláusula 13ª do contrato trata da “Responsabilidade”, nos seguintes termos:

1 - Das Consorciadas perante o Dono da Obra:

a) Qualquer das Consorciadas é responsável pelo integral cumprimento do contrato

celebrado por ambas com o Dono da Obra. No caso do Dono da Obra aplicar multas por atraso na execução, estabelece-se o seguinte regime:

- As multas serão pagas pela Consorciada faltosa;

- Se não for possível determinar atempadamente a faltosa ou a medida de repartição da falta, as multas serão pagas pelas Consorciadas na percentagem das suas contribuições de acordo com a cláusula 9ª até que o Conselho de Administração, Orientação e Fiscalização ou o Tribunal Arbitral decidam o diferendo.

2 - Das Consorciadas entre si:

a) Cada consorciada é responsável pelos atrasos ou imperfeições que se cometerem durante a execução da obra e obriga-se a recuperá-los ou a repará-los por si ou expensas suas;

b) Nenhuma Consorciada durante a execução da obra, pode assumir obrigações perante o Dono da Obra, sem acordo da outra;

c) Durante a execução da obra, cada Consorciada é responsável perante a outra por todos os prejuízos que causar por si ou pelos seus representantes, trabalhadores ou fornecedores, à outra associada, seus representantes, trabalhadores, fornecedores ou às suas prestações;

3 - Das Consorciadas perante terceiros:

Cada Consorciada suportará toda a responsabilidade pelos prejuízos que a qualquer título causar a terceiros durante a execução da sua prestação.”.

21) A cláusula 15º do contrato estabelece que “são receitas do Consórcio fundamentalmente os pagamentos efectuados pelo Dono da Obra” (nº 1) e que “a totalidade das receitas do Consórcio é distribuída pelas Consorciadas, de acordo com os trabalhos efectivamente pagos” (nº 2).

22) A Autora remeteu ao Réu, que a recebeu, a carta, datada de 24/01/2012, que constitui o documento junto a fls. 40 e 41 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), pela qual solicitou o pagamento imediato das quantias tituladas pelas três garantias bancárias acima identificadas.

23) Em anexo a esta carta, a Autora enviou diversos documentos, entre eles as cinco facturas que constituem os documentos juntos a fls. 87 a 91 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), todas emitidas pela Autora e dirigidas à sociedade DD, S.A., datadas, respectivamente, de 15/11/2011, 15/11/2011, 15/11/2011, 22/11/2011 e 22/11/2011.

24) Em resposta à referida carta, o Réu remeteu à Autora, que a recebeu, a carta, datada de 16/02/2012, que constitui o documento junto a fl. 42 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), pela qual declarou ter dúvidas quanto à legitimidade dos pedidos formulados (por não serem fundados em dívidas da responsabilidade da sua cliente – CC, S.A. –, mas de uma terceira sociedade) e ficar a aguardar esclarecimentos da Autora sobre o fundamento do pedido de pagamento.

25) Em resposta à carta do Réu, a Autora remeteu ao Réu, que a recebeu, a carta, datada de 01/03/2012, que constitui o documento junto a fls. 44 e 45 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), pela qual reiterou a solicitação de pagamento imediato das quantias tituladas pelas três garantias bancárias acima identificadas.

26) E em resposta à carta da Autora, o Réu remeteu à Autora, que a recebeu, a carta, datada de 20/03/2012, que constitui o documento junto a fl. 46 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), pela qual manteve o que já afirmado na carta de 16/02/2012.

27) Por sentença proferida, em 05/07/2011 (com trânsito em julgado em 22/08/2011), no âmbito do Processo nº 509/11.0TYVNG, do 3º Juízo Cível do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, a sociedade CC, S.A. foi declarada insolvente, tendo sido fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.

28) A autora AA, S.A. não reclamou qualquer crédito no mencionado processo de insolvência.

29) Em obediência à cláusula 9ª, nº 1, do “Contrato de Empreitada”, foram prestadas a favor da sociedade GG, S.A. as seguintes garantias bancárias (cujo teor consta dos documentos juntos a fls. 131 e 132 dos autos e é aqui dado como reproduzido):

- Garantia Bancária n.º ..., emitida pelo BANCO ..., S.A., em

15 de Janeiro de 2009, no valor de € 59.250,94, “destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações que a firma DD, S.A. (…) assumirá no contrato que com ela a GG, S.A. vai outorgar e que tem por objecto a “AR 43.0.08 – Empreitada de Execução do Interceptor de Rio [...] (prolongamento)””;

- Garantia Bancária n.º ..., emitida pelo BANCO ..., S.A., em

30 de Dezembro de 2008, no valor de € 59.250,94, “destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações que a firma CC – HH, S.A. (…) assumirá no contrato que com ela a GG, S.A. vai outorgar e que tem por objecto a “AR 43.0.08 – Empreitada de Execução do Interceptor de Rio [...] (prolongamento)””.

6. Todos os factos dados como provados resultaram da análise documental e da conjugação da petição/contestação (aceitação/impugnação dos factos alegados pela outra parte), pelo que não chegou a haver produção de prova testemunhal ou de outro tipo, não vindo indicados os factos não provados.

7. Sem prejuízo das questões que possam ser de conhecimento oficioso, é pelas conclusões do recurso que se determina o objecto do mesmo. Assim, as questões colocadas pelo recurso de revista do recorrente, banco, são as seguintes:

7.1. “Tendo um banco emitido três garantias bancárias autónomas e à primeira solicitação em cujos títulos apenas se menciona que se destinam a garantir o pontual e integral cumprimento das obrigações que, ela, única ordenante, assumirá no contrato que vai celebrar com a beneficiária, quid iuris? As garantias cobrem tão-só as responsabilidades emergentes do incumprimento da ordenadora às obrigações do contrato base ou pode entender-se que cobrem também o incumprimento das obrigações de uma entidade diferente da ordenadora, no caso, uma entidade terceira com ela associada por contrato de consórcio externo de todo omisso nos dizeres da garantia?”

7.2. “Suposta (…) a resposta afirmativa à primeira questão, mas sabido que a única ordenante foi declarada insolvente e, na insolvência, a beneficiária não reclamou o seu crédito, quid iuris?: pode, ainda assim, a ordenante exigir que o banco honre as garantias prestadas (…) ou deve entender-se que o direito a exigir a satisfacção ficou precludido nos termos do disposto no art.º653.º do CC, por a falta de reclamação do crédito envolver, por definição, a impossibilidade de sub-rogação?”

7.3. A recorrida, por seu turno, veio “ampliar o objecto do recurso, nos termos do art.º 636.º do CPC”, requerendo que o tribunal reanalise a decisão proferida pela Relação em matérias de juros de mora aplicáveis, substituindo-a por outra que mande aplicar a taxa de juro moratório contratualizada.

Cumpre referir que, no caso em análise, o pedido formulado pela recorrida não pode ser entendido como uma ampliação do objecto do recurso admissível à luz do art.º636.º, devendo ser considerada, antes, uma situação de recurso subordinado, nos termos do art.º 635.º do CPC – este recurso subordinado pressupõe a impugnação da parte decisória em que se decaiu (ou em casos de prejudicialidade de decisões); aquela ampliação do recurso pressupõe uma pluralidade de causas de pedir (de acção ou defesa), que não se identifica nos autos. Considerando o que diz o art.º 633.º (se o recurso independente for admissível o recurso subordinado também o será) está dispensada a verificação dos requisitos de admissibilidade gerais desta pretensão.

8. Entrando na análise da 1ª questão colocada, o recorrente Banco alega que o acórdão tomou uma decisão errada, ao invés da sentença, cuja decisão apoia e cita nas suas alegações – fls. 5 e ss da revista – conforme também havia contra-alegado na apelação.

Com a questão suscitada, o recorrente pretende não honrar o compromisso assumido com a emissão das três garantias bancárias autónomas e à 1ª solicitação, invocando que o ordenante da prestação da garantia não coincide com o devedor indicado pelo beneficiário das garantias prestadas; o ordenante é a sociedade anónima CC; o devedor do beneficiário (a autora) é a sociedade DD, SA. Vindo-se a comprovar que as duas sociedades CC e DD foram as signatárias de contrato de empreitada com a autora desta acção, actuando em consórcio externo, sem que o banco tivesse sido informado desse facto (antes da emissão das garantias, diz o banco), não aceita o recorrente o dever de honrar o compromisso, que entende estar directamente relacionado (e apenas) com o seu ordenante e obrigações por si assumidas no contrato-base – o de empreitada.

A este propósito indica o apelante que o acórdão recorrido, ao aplicar o art.º 236.º do CC, o aplicou em sentido contrário aos factos provados – o que faz através de afirmações antecedidas por cinco ponto, indicados através de cinco letras [a) a e) da pág. 13-14 da revista].

Importa desde já esclarecer que estas alíneas, “qualificadas” pelo recorrente como correspondendo a factos provados, não são tecnicamente e na íntegra verdadeiros factos provados (não constam da sentença como tal qualificados - cf. a transcrição dos factos provados supra). Do teor das alíneas indicadas apenas se pode concluir o seguinte (e não como pretende o recorrente):

- Al. a) – proposta de garantia – omissas quanto ao consórcio (facto provado); desconhecida a responsabilidade solidária entre as empresas consorciadas (ilação, não correspondente a facto provado);

- Al. b) – as garantias não mencionam a existência de consórcio (facto); não mencionam que o garante assume responsabilidade por incumprimento de terceiros (facto); que ninguém disse ao banco ou fez saber que a obra era adjudicada e realizada em regime de consórcio (não consta dos factos);

- Al. c) – no texto das garantias a única coisa de que se fala é do contrato de empreitada que a ordenante CC “assumirá no contrato com ela” (facto); quanto à parte indicada entre parêntesis não corresponde a um facto provado;

- Al. d) – não se apurou se foi entregue cópia do contrato de empreitada ao garante (facto); que o contrato de empreitada indica o consórcio e a responsabilidade dos membros (facto);

- Al. e) – que as facturas apresentadas ao banco têm como devedor  a DD, S.A. (facto); que essa sociedade não foi dada a conhecer ao banco (não é facto provado).

Do exposto resulta já como elemento a destacar que, no processo, não foi produzida prova sobre se o Banco conhecia ou não o teor do contrato de empreitada ou o facto de o mesmo ter sido adjudicado a duas empresas actuando em consórcio. Também não foi provado que o banco não aceitaria emitir as garantias bancárias oferecidas, caso tivesse perfeito conhecimento do contrato de empreitada e do contrato de consórcio. Isto é: não foi apurada uma vontade real do banco no sentido de não emitir as garantias bancárias caso tivesse conhecimento (consciência) dos termos dos contratos firmados. A falta de prova da vontade real de uma das partes na emissão da declaração negocial através da qual se vincula – matéria de facto – determinará que, na aplicação do regime do art.º 236.º do CC, este tribunal, pronunciando-se agora sobre matéria de direito, possa procurar o sentido da declaração das partes com recurso ao padrão do “homem médio”, colocado na posição de declaratário normal.

Importa ainda dizer que não se vê como dos “verdadeiros” factos provados se pode retirar uma ilação imediata relativa à exclusão da responsabilidade do banco, fundando-se na aplicação do art.º 236.º do CC. É que a ilação a tirar tem por ponto de partida os factos provados – e a vontade apurada das partes – conjugada com a aplicação do Direito. Para que se pudesse concluir, como indica o apelante, ter-se-ia de ter demonstrado que a vontade do banco fora apenas a de oferecer a garantir pelas obrigações assumidas directamente e a título de responsabilidade única pela sociedade ordenante. Ora o teor literal das garantias – na falta de prova no sentido indicado – em conjugação com as regras de interpretação do art.º236.º do CC, no entender deste Tribunal, não permitem concluir que o banco só prestou a garantia em atenção à qualidade do ordenador como responsável directo e único no contrato de empreitada, pretendendo excluir responsabilidades que resultassem do mesmo contrato decorrentes de uma convenção de solidariedade entre ordenante e beneficiário.

Mas ainda que assim não se entendesse, a posição defendida no Acórdão recorrido sempre seria justificada à luz do sentido jurídico da solidariedade passiva (própria) – por definição na solidariedade passiva os vários sujeitos são todos devedores da totalidade do valor da obrigação contraída na sua relação com o credor. Na solidariedade passiva (própria) não há uma assunção de responsabilidade alheia, pelo que ao assumirem a posição de adjudicatários no contrato de empreitada ambos os contraentes (adjudicatários) assumem a responsabilidade pessoal pela integralidade das obrigações dele decorrentes.

No caso dos autos a aplicação da regra da solidariedade decorre do regime legal aplicável ao contrato, o que contribui para reforçar o entendimento que esteve subjacente ao acórdão recorrido, ainda que nele não se identifique a sua explicação, que se apresenta agora: as obrigações das adjudicatárias assumidas no contrato de empreitada, não obstante este ser celebrado com a A. na prossecução de interesses “públicos”, são comerciais, por serem resultado do exercício da sua actividade comercial – nos termos das disposições conjugadas do Cód. Comercial (nomeadamente art.º13.º, n.º2, 230.º, 99.º e 100.º) e CSC (nomeadamente art.º 1.º), quer pelo lado das adjudicatárias, quer pelo lado da adjudicante, que também é uma sociedade comercial (cf. a forma); a solidariedade é reforçada ainda pelo regime contratual acordado pelas adjudicatárias, através do contrato de consórcio externo, nos termos das cláusulas indicadas e constantes dos factos provados.

Pelo exposto é possível concluir que a responsabilidade da CC no âmbito do contrato de empreitada é uma responsabilidade própria e estava coberta pelo âmbito das garantias prestadas pelo recorrente banco. O regime legal[1] e contratual[2] do consórcio em nada infirmam a conclusão indicada; o regime contratual do consórcio, ao invés, permite confirmar plenamente a conclusão retirada. Não era necessário conhecer o contrato de consórcio para dele deduzir a solidariedade, pois a mesma decorre da empreitada, com as duas adjudicatárias a figurarem como sujeitos do contrato, já que o consórcio não tem personalidade jurídica própria, não podendo assumir obrigações enquanto tal.

A circunstância de a A. ter executado as garantias nos termos em que o fez (por escrito, com junção de faturas emitidas sobre entidade não figurante no texto da garantia, mediante indicação do porquê da execução) oferecem-nos as seguintes considerações: 1) à luz das garantias existentes e oferecidas pelo Banco, não havia qualquer motivo para que a solicitação tivesse de ser acompanhada de justificação ou apresentação de documentação probatória (estamos perante garantia bancária à primeira solicitação sem exigência de justificação); 2) tendo sido feita a apresentação nos termos indicados, é prudente a atitude do banco, no sentido de “procurar” compreender se a execução da garantia não está a ser efectuada de forma anómala, para evitar futuras responsabilidades perante o ordenante imputáveis a falta de diligência[3].

O Acórdão recorrido decidiu bem ainda por outros motivos.

Em primeiro lugar, olhando para os factos provados, pode verificar-se que as garantias oferecidas pelo Banco têm três datas distintas, todas elas posteriores à data da adjudicação do contrato de empreitada; em segundo lugar, são garantias claramente oferecidas já no âmbito da execução do contrato, para evitar o desconto de 5% sobre os valores de pagamentos devidos aos credores- adjudicatários no contrato de empreitada; em terceiro lugar, contém a indicação de que se reportam a contrato que será outorgado pela ordenante, sem que se compreenda porque não está utilizada uma formulação mais correspondente com a verdade (o contrato já estava celebrado quando as garantias foram emitidas – cf. factos provados); em quarto lugar, se o banco considerasse que o teor do contrato de empreitada era determinante para o oferecimento da garantia, como se justificava que não tivesse solicitado uma sua cópia (mais, exigido uma cópia como condição prévia à emissão das garantias!)?

Em suma, pela prova produzida e pelas regras de interpretação aplicáveis às garantias constantes dos autos, não resulta demonstrada uma essencial ligação entre a pessoa do ordenante e o banco, de tal forma que se pudesse concluir que, nas circunstâncias dos presentes autos, não estaria o banco disposto a oferecer as garantias dadas nos termos que delas constam.

Parece-nos, assim, que o determinante para o banco é que as responsabilidades sejam passíveis de ser assacadas à sociedade ordenante e que estejam relacionadas com os deveres por esta assumidos no contrato de empreitada indicado. Ora esses deveres resultam da assinatura do contrato de empreitada. É dele que decorre, em primeira linha, a responsabilidade pelo integral cumprimento das obrigações assumidas perante a A., responsabilidade essa que não se altera pelo facto de o documento de suporte da responsabilidade (facturas, in casu) serem emitidas em nome de co-devedor solidário.

Repita-se: se para o banco fosse essencial o controlo absoluto dos termos da responsabilidade em causa: 1º, não emitia garanta bancária à 1ª solicitação não justificada; 2.º, teria pedido cópia do contrato de empreitada adjudicado, até porque da análise das datas das três garantias em questão se verifica que, na data da sua emissão, o contrato não era um mero projecto de contrato a celebrar (como o texto das garantias sugerem), pois aquele havia sido assinado já (contrato data de 11 de Março de 2009 – fls. 56 e ss, antes da emissão das garantias – estas de 8/6/2009, 15/1/2010  e  21/7/2010).

O Acórdão recorrido andou bem ao decidir que o banco tinha o dever de honrar os compromissos assumidos, nada havendo a censurar neste ponto.

9. Entrando agora na análise da 2ª questão colocada: pode a ordenante exigir que o banco honre as garantias prestadas (…) ou deve entender-se que o direito a exigir a satisfacção ficou precludido nos termos do disposto no art.º 653.º do CC, por a falta de reclamação do crédito envolver, por definição, a impossibilidade de sub-rogação?”

A resposta a esta questão não se afigura difícil. Vejamos.

Diz a doutrina nacional[4] – e a internacional – que aqui se introduz pela posição de Pestana de Vasconcelos, a propósito da finalidade e utilidade da garantia bancária autónoma no comércio jurídico:

“Sendo a garantia prestada por um banco do seu Estado, o credor afasta o risco de incumprimento ou da insolvência da outra parte, de que ele em regra tem um conhecimento escasso…”(…) É, nessa medida, em particular na modalidade à primeira solicitação (on first demand), e este aspecto é de grande relevo, um catalizador das trocas e prestações de serviços, que de outra forma, sem o afastamento do risco de incumprimento e da insolvência do outro contraente, grande parte das vezes não seriam sequer realizadas, ou, então, eventualmente, sê-lo-iam em condições mais onerosas”[5].

As garantias bancárias on first demand visam precisamente oferecer aos interessados instrumentos negociais alternativos aos facultados pelo legislador através de modelos (relativamente) padronizados, como sucede com a fiança, onde se insere a norma do art.º 653.º do CC, invocada pelo recorrente.

É também por saber que assume um risco distinto do regulado na fiança que o banco se pode acautelar, contratualmente, exigindo do cliente-ordenante garantias adicionais que, porventura, não se justificariam (numa mera consideração de carácter jurídico) nas garantias pessoais como a fiança.

Não há qualquer confusão entre a figura da fiança e a garantia bancária autónoma, à qual não são aplicáveis as regras da fiança, por falta de identidade dos seus pressupostos, lei expressa, utilidade e regime decorrente da autonomia privada. Neste ponto, no acórdão recorrido veio apresentada extensa fundamentação, em termos adequados, antes de se decidir que é afastar a aplicação à garantia bancária do regime da fiança (dispensa-se a reprodução do aí afirmado, que sempre se poderia reforçar com o que vai dito em seguida). A aplicação do art.º 653.º do CC à garantia bancária autónoma tem mesmo sido expressamente arredada pela jurisprudência superior em Portugal, conforme acórdão indicados a fls. 319 dos autos no Acórdão recorrido.

Olhando para a situação em discussão nos autos, ainda que este problema não tenha sido central, pode verificar-se que o banco fez constar das propostas de garantias – base das mesmas (fls. 155 - livrança da empresa com aval dos administradores; fls. 158 – livrança subscrita e avalizada – pelo menos em duas delas a menção de que seria exigida um título de crédito avalizado por pessoa singular[6]. Não se sabe – nem isso aqui releva – se o título foi efectivamente exigido, porquanto isso é questão que apenas importa na relação do banco com o ordenante e/ou garante, mas não deixa de ser significativo que houve da parte do banco um cuidado especial na contratação da (contra)garantia com o ordenante:  a esse cuidado não é alheia a compreensão do risco envolvido na emissão da garantia bancária, de utilização muito difundida na prática comercial e bancária, sobejamente explicada pela doutrina, objecto de inúmeras pronúncias judiciais, consolidando os apontados traços característicos da figura (e seu afastamento de figuras afins ou conexas, como fiança, aval, etc.).

Voltando ao autor e obra indicados, encontramos aí a explicitação clara o que se entende ser a boa solução – naturalmente aplicável ao caso dos autos. Diz-se aí que nas garantias on first demand os únicos meios de defesa de que o garante se pode socorrer são aqueles decorrentes do próprio contrato de garantia (p. 134, obra citada), pelo que, “sendo demandado pelo credor/beneficiário nos termos previstos no contrato de garantia autónoma, o garante terá que cumprir” (p. 135, obra citada), uma vez que “aqueles casos em que se admite que o garante pode, e deve, recusar o pagamento devem ser restritos” (p. 137, obra citada), “têm de se tratar de casos de abuso do direito por parte do beneficiário ou de fraude por banda deste” (p. 137-8, obra citada) e “sejam verdadeiramente inequívocos” (p. 138, obra citada). Nas palavras impressivas do autor, “não é excessivo sublinhar este ponto: para que o banco/garante deixe de pagar é necessário que seja colocada à sua disposição prova «líquida e inequívoca» da «má fé patente”, da «fraude evidente» ao ponto de «entrar pelos olhos dentro»”.

A não reclamação de créditos no processo de insolvência da sociedade ordenante não se enquadra nas objecções passíveis de serem invocadas pelo banco – o que a ser admissível, desvirtuava o sentido da utilidade prática das garantias bancárias. Nelas o banco assume o risco da insolvência do ordenante.

Analisado ainda o argumento do recorrente no sentido de que a não reclamação do crédito pelo A. no processo de insolvência sobre a CC impede o banco, honrando as garantias, de pedir de regresso os valores pagos (subrogação), importa dizer que tal afirmação não se afigura totalmente correcta, à luz do regime insolvencial. Desde logo, manifesta a nossa lei uma posição distinta no seu art.º 95.º, n.º 2 (CIRE), não impedindo o garante de reclamar ele próprio o crédito em causa como crédito sob condição suspensiva, e bem assim do art.º 146.º (CIRE), admitindo reclamações para além do prazo inicial dos 30 dias sob a sentença de insolvência. Daqui se deduz que não há uma relação directa entre a não reclamação do crédito e a extinção da garantia! (sendo certo também que mesmo que o regime da fiança fosse aplicável, há pressupostos de factos que o condicionam, e cuja prova teria de ser realizada por quem deles se pretendesse aproveitar).

Assim:

Artigo 95.º Responsáveis solidários e garantes

1 - O credor pode concorrer pela totalidade do seu crédito a cada uma das diferentes massas insolventes de devedores solidários e garantes, sem embargo de o somatório das quantias que receber de todas elas não poder exceder o montante do crédito.

2 - O direito contra o devedor insolvente decorrente do eventual pagamento futuro da dívida por um condevedor solidário ou por um garante só pode ser exercido no processo de insolvência, como crédito sob condição suspensiva, se o próprio credor da referida dívida a não reclamar.

Artigo 146.ºVerificação ulterior de créditos ou de outros direitos

1 - Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, efetuando-se a citação dos credores por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação.

2 - O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo, mas a reclamação de outros créditos, nos termos do número anterior:


a) Não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129.º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior;

b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente.

3 - Proposta a acção, a secretaria, oficiosamente, lavra termo no processo principal da insolvência no qual identifica a acção apensa e o reclamante e reproduz o pedido, o que equivale a termo de protesto.

4 - A instância extingue-se e os efeitos do protesto caducam se o autor, negligentemente, deixar de promover os termos da causa durante 30 dias.

Responde-se, assim, à 2.ª questão colocada dizendo que a insolvência do ordenante não é fundamento para recusa do pagamento das garantias bancárias executadas, pelo que também aqui nada há a assacar de errado ao acórdão recorrido.

10. Tendo a recorrida recorrido subordinadamente da decisão que não aplicou a taxa de juros de mora de 16%, e vindo a insistir-se na pretensão formulada, vejamos os argumentos apresentados.

10.1.  No acórdão recorrido determina-se que a mora do banco existe a partir da interpelação para honrar as garantias bancárias executadas, sendo devido juro moratório sobre o capital em dívida, à taxa resultante do art.º 102.º do Cód.Comercial (não se indica qual dos §§ do art.º 102.º é o aplicável); o juro contar-se-ia desde 24/01/2012 até integral pagamento. Aí se afasta o juro peticionado com fundamento na “falta de suporte legal”.

A recorrida havia peticionado juros à taxa de 16%, invocando que esta taxa resulta da conjugação do definido no texto da garantia, com o divulgado na página web do banco – taxa praticada pelo banco nas operações activas, à data da interpelação – invocando como base legal do seu direito ao juro moratório indicado: 1) convenção expressa e escrita das partes (ordenante e banco), inserida no texto da garantia emitida; 2) implicitamente, parece pretender que a recepção da garantia nestes termos configura para si a atribuição de um direito a cobrar tais juros.

Que dizer?

Em primeiro lugar, não nos parece que o sentido da norma legal – art.º102.º do CCom tenha sido pensada para situações como a dos autos; a sua ideia é a de aplicar a taxa convencionada na relação entre as próprias partes; se assim é, o ordenante ao legitimar o banco a pagar uma taxa de juro moratório superior à taxa legal supletiva, parece ter aceitado que, em regresso, também será accionado pela taxa indicada, que aceitaria suportar.

 Em segundo lugar, é verdade que a garantia bancária vai criar no beneficiário uma convicção de tutela acrescida do seu direito, por aí se indicar que pode exigir um juro moratório superior ao legal (in casu, atendendo às taxas fixadas para o período em causa[7]), podendo sugerir que ao receber a garantia com tal indicação dela passa a beneficiar, por se tratar de uma declaração negocial que tacitamente aceita – em última instância – ou à qual se aplica o regime das estipulações em favor de terceiro.

Em terceiro lugar, visando a garantia substituir o pontual cumprimento de obrigações imputáveis ao ordenante, talvez só se justifique a aplicação de uma taxa de juro moratório superior se à relação subjacente (contrato de empreitada) fosse também aplicável a mesma taxa (ou até ao limite desta) para a mora ou para o incumprimento definitivo, a fim de não proporcionar um eventual enriquecimento injustificado deste credor.

Em quarto lugar, olhando para o texto da garantia emitida não se identifica aí a fixação de uma taxa – mas tão só uma indicação remissiva para a taxa que se prefigura aplicável – duvidando-se se isto equivale (diríamos que não) a uma fixação.

Ponderando todos os argumentos indicados, visto o contrato de empreitada (não se identificou aí nenhuma convenção expressa de juro moratório superior ao legal; a cláusula 21ª trata das multas por violação dos prazos contratuais, o que é matéria distinta), e considerada a versão legal do art.º102.º é nosso entender que a convenção de juros moratórios, in casu, não deve beneficiar o autor pelo simples facto de ter sido inserido no texto da garantia bancária, não havendo prova de que a sua inserção resultou de uma solicitação do beneficiário (autora) ao adjudicatário (ordenante da emissão da garantia) – que por sua vez o tenha exigido ao banco – nem havendo uma directa fixação de taxa, mas uma mera remissão, contra a qual se podem suscitar dúvidas relativamente à sua determinabilidade (obstáculo decorrente do art.º 280.º do CC, que conduziria à sua invalidade).

É, por isso, de considerar que não houve convenção expressa, escrita e válida das partes para o efeito do art.º 102.º do C.Com, sendo aplicável a taxa de juro resultante da norma nos seus §§ 3 e 4.


III. Decisão
Pelos motivos indicados, é negada a revista do recorrente e do recorrido, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, banco.
 

Lisboa,  28 de Junho de 2018



Fátima Gomes


Acácio Neves


Garcia Calejo

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[1] Encontra-se explicitado na sentença e no acórdão, sem que se justifiquem mais considerações.
[2] Tal como resulta do contrato de consórcio junto e dos factos provados.
[3] Compreende-se até que o faça de forma muito cautelosa, através de intervenção judicial, sem que dessa legitimação da “cautela” se possa extrair uma consequência no sentido de eliminar ou atenuar a eventual responsabilidade que decorra pela recusa/atraso no cumprimento das obrigações assumidas através da garantia.
[4] Cf. a síntese de Rui Pinto Duarte disponível em http://rpdadvogados.pt/wp-content/uploads/bsk-pdf-manager/74_2015-03-13.PDF.
[5] Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2ª ed., 2013, p. 126-7.
[6] Nesta informação está implícita uma constatação sobejamente conhecida pelos empresários: os contratos celebrados com bancos em que o cliente é entidade colectiva, normalmente societária, são celebrados com a exigência de prestação de garantias pessoais por gerentes e sócios, encontrando-se algumas variantes (incluindo os cônjuges dos gerentes/administradores). Este fenómeno de desconfiança da honradez dos compromissos assumidos pelas entidades colectivas, dotadas de personalidade jurídica, desvia o risco do incumprimento para as pessoas singulares – e funciona como um elemento de pressão que conduz a um resultado prático “equivalente” à responsabilidade ilimitada do empresário/comerciante em nome individual de épocas remotas.
[7] Cf. as tabelas com intuito informativo que se encontram disponíveis e sintetizam o quadro legal aplicável – v.g., Portal do Oficial de Justiça – http://www.ofijus.net.