Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3489
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: BURLA QUALIFICADA
DOLO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO DO PROCESSO
Nº do Documento: SJ200710170034893
Data do Acordão: 10/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL.
Decisão: REENVIADO O PROCESSO.
Sumário : I- O crime de burla qualificada previsto e punido no artigo 218º do Código Penal (CP), é um crime autónomo em relação ao simples crime de burla previsto e punido no artigo 217º do CP..
II- O crime de burla qualificada p. e p. no artigo 218º nº 2 do CP, é autonomizado tipologicamente, por qualquer das qualificativas previstas nas alíneas desse nº 2 , entre as quais consta a da alínea c) que é integrada pela factualidade de: “A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.”
III- A mera materialidade factual constitutiva da agravação, de per se, não responsabiliza automaticamente o agente pelo resultado produzido,
IV- Sendo certo que o crime de burla configura um crime de resultado parcial ou cortado, em que o agente actua com intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, mas, a consumação do crime não depende da concretização do enriquecimento do agente, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (=dano) da vítima», é também delito de execução vinculada, pressupondo duplo nexo de imputação objectiva, quer na existência de um nexo entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do seu património, quer na ocorrência de um nexo entre estes últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial . Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, págs. 276 e 277 e,, págs. 298 e 293.
V-A verificação do crime de burla qualificada, nos seus diversos elementos, incluindo a intenção do agente, tem de resultar da matéria de facto provada, por constituir matéria de facto.
VI- No domínio da acção do agente no crime de burla qualificada, na produção do resultado típico, há que apurar pois, a amplitude da sua vontade na representação desse facto agravativo, de forma a poder definir-se a modalidade da sua responsabilidade criminal (dolo directo, necessário, eventual)
VII - A aplicação automática do desiderato factual constante da alínea c) do artº 218º do C.Penal, resultaria, pela mera aplicação do seu literalismo, numa espécie de responsabilidade objectiva, o que inviabilizaria a determinação da culpa do agente por essa agravação, nomeadamente para limitar a gravidade da pena.
VIII- Vindo provado que: O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito conseguido de, ao fazer crer aos assistentes que iria honrar o acordo que fez com eles, lograr com eles celebrassem um contrato de compra e venda consigo, assinassem um contrato de mútuo e uma livrança, e largassem mão da quantia de 1.900,00 € (mil e novecentos euros), que integrou entre os seus bens- Sabia que a sua conduta era reprovável e contrária à lei. Em virtude da conduta do arguido/demandado os demandantes civis ficaram numa situação de grave insuficiência económica, (…)” mas, não vindo provado que:“O arguido sabia que os assistentes eram de muito modesta condição económica e sendo homem experiente em negócios e financiamentos, sabia que o contrato de mútuo que submeteu à Sociedade Financeira iria envolver os assistentes num negócio obrigacional altamente oneroso e que seguramente lhes traria uma diminuição financeira que estes não procuraram nem desejavam, devido ao valor dos juros correntes para este tipo de contrato; sabia que com a conduta descrita,(…) poderia deixá-los em situação económica difícil e no entanto conformou-se com essa possibilidade, não se coibindo de actuar conforme descrito;” nem consentindo a matéria de facto provada que se possam extrair ilações por presunção judicial sobre a existência do elemento subjectivo do tipo de burla qualificada, não pode dar-se como provado este elemento, pois que, in casu, quando os assistentes contrataram com o arguido e, assinaram a livrança em branco, e, mais tarde quando entregaram o cheque de 1900 € ao arguido - não se sabe se este quis, ou representou como consequência necessária, ou como possível que a vítima viria a ficar em difícil situação económica, sendo-lhe indiferente o resultado.
IX- Embora não tenha ficado assente que o arguido tenha perpetrado a sua conduta delituosa com a intenção, ou pelo menos prevendo-a como resultado, de colocar os assistentes em situação económica difícil, (condição sine qua non de punibilidade, dado que este é um crime apenas punível a titulo doloso.), não significa que tenha necessariamente de concluir-se pela procedência parcial da acusação, decaindo a qualificativa do crime de burla.
É que, se o crime de burla agravada em questão, integra o objecto do processo, como thema probandum, e thema decidendum, não consta da decisão recorrida, a existência de factos provados ou não provados, no sentido de que tal thema fosse investigado, com vista a poder formular-se um juízo decisório.
X- Sendo o objecto do processo balizado pela fattispecie da acusação, incumbe ao tribunal do julgamento investigar todos os elementos indispensáveis à decisão da causa, socorrendo-se se necessário for, do disposto no artigo 340º do CPP., com vista a poder concluir da procedência ou não da factualidade incriminatória.
XI- Não constando dos factos provados, nem dos factos não provados, a existência de factualidade referente ao elemento subjectivo do crime de burla qualificada, há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício constante da alínea a) do nº 2 do artº 410º do CPP, a conhecer oficiosamente pelo Supremo nos termos consentidos pelo artº 434º do CPP. e, na procedência de tal vício, a implicar o reenvio parcial do processo para novo julgamento relativamente à questão aludida, conforme artº 426º nº 1 do CPP.
XII- A situação supra exposta, continua a subsistir quer do ponto de vista substantivo, quer nos termos da lei adjectiva, nas revisões legais (penal e processual penal) de 2007, pois que de harmonia com a Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro, os pressupostos do crime de burla e do crime de burla qualificada supra referido, continuam a verificar-se conforme arts 217º e 218º nº 1 al d) do C,Penal; e o conteúdo dos artigo 410º nº 2 do CPP, continua a verificar-se, bem como os pressupostos do reenvio, agora contemplados no artigo 428º do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
---
Nos autos de processo comum com o nº P.C.C. 7144/03.STDPRT da 4ª Vara Criminal do Porto, o arguido AA, divorciado, vendedor, filho de BB e de CC, nascido em ..-..-......, natural de Pampilhosa da Serra, residente na Rua do ......., Edifício Santo António, ...º esqº - Oiã, foi submetido a julgamento perante o Tribunal Colectivo, na sequência de requerimento do Ministério Publico que lhe imputava a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, al. c) do Código Penal.
-
Contra o arguido, vieram os assistentes DD e EE, id. nos autos, deduzir pedido de indemnização civil, requerendo a sua condenação no pagamento da quantia de € 550,73, acrescida de juros moratórios contados à taxa legal, a partir da data da notificação e até efectivo e integral pagamento, a pagar conjuntamente aos demandantes civis, a titulo de indemnização pelos danos patrimoniais causados bem como no pagamento da quantia de € 6.000,00 a pagar ao primeiro demandante e a de € 7.500,00 a pagar à segunda demandante, a titulo de indemnização por danos não patrimoniais causados, quantias essas acrescidas de juros contados à taxa legal desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento.
-
Realizado o julgamento, foi proferido acórdão em 21 de Junho de 2007, que decidiu julgar a acusação publica improcedente por não provada e, em consequência:
- Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, al. c), ambos do Código Penal;
- Absolver o arguido AA da instância quanto ao crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do Código Penal e, em consequência, julgar extinto o respectivo procedimento criminal;
- Absolver o arguido/demandado AA da instância cível contra si deduzida por DD e EE, à luz do disposto nos arts. 71º do Código de Processo Penal e 287º, al. e) do Código de Processo Civil;
Custas criminais a cargo dos assistentes, pelo mínimo legal, à luz do disposto no art. 515º do C.P.P.
Custas do pedido cível a cargo dos demandados, à luz do disposto no art. 446º do C.P.C.
Foi determinado:
Boletins à D.S.I.C.
Notifique.
Depósito do Acórdão após a sua leitura.
---
Inconformados, recorreram, para o Supremo Tribunal de Justiça:

I- O Ministério Público, através da Exma Procuradora da República, apresentando as seguintes conclusões na motivação do recurso:

1ª O crime de burla qualificada, p. e p. pelas normas conjugadas dos art°s 217 e 218 do C.P. é um crime doloso;
2ª o dolo - tipo-de-culpa - reveste três diferentes modalidades ( artº 14 do CP):
1- o dolo directo - o agente prevê e tem como fim a realização do facto criminoso;
2 - o dolo necessário - o agente prevê que, da sua conduta resultará um facto criminoso e actua mesmo assim;
3 - dolo eventual - o agente prevê um resultado criminoso como consequência possível da sua conduta e actua conformando-se com essa possibilidade;
3ª o arguido conseguiu fazer interessar os assistentes na compra de um filtro de água doméstico, no valor de € 1.900,00, mas estes, apenas o queriam comprar em data muito posterior à da proposta de negócio, por só então esperarem receber uma certa quantia que lhes permitiria essa aquisição;
4ª o arguido soube desse facto e inteirou-se também de que os assistentes pretendiam comprar e pagar a pronto esse filtro;
5ª convenceu-os a adquirirem esse equipamento em antes de Maio de 2002 e a assinarem uma proposta de financiamento do valor do equipamento, garantindo-lhes que só seria entregue na Sociedade Financeira se estes não pagassem aquele valor em Maio de 2002, a pronto;
6ª os assistentes são pessoas simples e sérias, acreditaram em tudo e assinaram o que lhes foi pedido, convencidos que aquela proposta era apenas uma garantia para o vendedor;
7ª o arguido apresentou imediatamente a proposta de financiamento à Sociedade Financeira Finicrédito, a qual lhe creditou o valor do equipamento, concretizando assim um contrato de mútuo, por cinco anos, em que os mutuários o casal DD e EE, desconheciam o seu compromisso e posição de devedores;
8ª não obstante ter sido pago do preço pelo valor mutuado, o arguido recebeu ainda um cheque pelo valor de €1.900,00, que os assistentes, convencidos que lhe deviam, lhe entregaram em mão em Maio de 2002, como inicialmente tinham prometido fazer; o valor titulado no cheque foi pago ao arguido;
9ª o arguido sabia que os assistentes eram de muito modesta condição económica e sendo homem experiente em negócios e financiamentos, sabia que o contrato de mútuo que submeteu à Sociedade Financeira iria envolver os assistentes num negócio obrigacional altamente oneroso e que seguramente lhes traria uma diminuição financeira que estes não procuraram nem desejavam, devido ao valor dos juros correntes para este tipo de contrato;
10ª para além disso, recebeu duas vezes o preço do filtro, induzindo o casal em erro, com o que igualmente diminuiu o património dos assistentes;
11ª sabia que com a conduta descrita, enganava os assistentes, enriquecia-se a si próprio ilegitimamente e poderia deixá-los em situação económica difícil e no entanto conformou-se com essa possibilidade, não se coibindo de actuar conforme descrito;
12° cometeu assim um crime de burla qualificada, p. e p. pelas normas conjugadas dos ares 217 e 218 nº2 c), do CP, com dolo eventual;
13ª ao decidir pela absolvição do arguido pelo crime de burla qualificada, o douto Acórdão recorrido violou a norma do art° 218 nº2 c) do CP;
14ª o crime de burla qualificada tem natureza pública, bastando a simples denúncia para que o Ministério Pública adquira legitimidade para proceder criminalmente pelo mesmo. É o que resulta da conjugação das normas dos artºs 218 do CP e 48 do CPP; Essas condições de procedibilidade estão verificadas;
15ª o douto Acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que condene o arguido AA pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artºs 217º e 218º nº2 c) do CP, em pena de prisão suspensa na sua execução, sob condição de indemnizar os lesados;
V.Exas. decidirão o que for de JUSTIÇA
-
II- Os assistentes e demandantes civis DD e EE, concluindo:

1ª O crime de burla qualificada, p. e p. pelas normas conjugadas dos artºs 217 e 218 do C.P. é um crime doloso;
2ª o dolo - tipo-de-culpa - reveste três diferentes modalidades ( artº 14 do CP):
1- o dolo directo - o agente prevê e tem como fim a realização do facto criminoso;
2 - o dolo necessário - o agente prevê que, da sua conduta resultará um facto criminoso e actua mesmo assim;
3 - dolo eventual - o agente prevê um resultado criminoso como consequência possível da sua conduta e actua conformando-se com essa possibilidade;
3ª o arguido conseguiu fazer interessar os assistentes na compra de um filtro de água doméstico, no valor de € 1.900,00, mas estes, apenas o queriam comprar em data muito posterior à da proposta de negócio, por só então esperarem receber uma certa quantia que lhes permitiria essa aquisição;
4ª o arguido soube desse facto e inteirou-se também de que os assistentes pretendiam comprar e pagar a pronto esse filtro;
5ª convenceu-os a adquirirem esse equipamento em antes de Maio de 2002 e, a assinarem uma proposta de financiamento do valor do equipamento, garantindo-lhes que só seria entregue na Sociedade Financeira se estes não pagassem aquele valor em Maio de 2002, a pronto;
6ª os assistentes são pessoas simples e sérias, acreditaram em tudo e assinaram o que lhes foi pedido, convencidos que aquela proposta era apenas uma garantia para o vendedor;
7ª o arguido apresentou imediatamente a proposta de financiamento à Sociedade Financeira Finicrédito, a qual lhe creditou o valor do equipamento, concretizando assim um contrato de mútuo, por cinco anos, em que os mutuários, o casal DD EE, desconheciam o seu compromisso e posição de devedores;
8ª não obstante ter sido pago do preço pelo valor mutuado, o arguido recebeu ainda um cheque pelo valor de €1.900,00, que os assistentes, convencidos que lhe deviam, lhe entregaram em mão em Maio de 20002, como inicialmente tinham prometido fazer; o valor titulado no cheque foi pago ao arguido;
9ª o arguido sabia que os assistentes eram de muito modesta condição económica e sendo homem experiente em negócios e financiamentos, sabia ) que o contrato de mútuo que submeteu à Sociedade Financeira iria envolver os assistentes num negócio obrigacional altamente oneroso e que seguramente lhes traria uma diminuição financeira que estes não procuraram nem desejavam, devido ao valor dos juros correntes para este tipo de contrato;
10ª para além disso, recebeu duas vezes o preço do filtro, induzindo o casal em erro, com o que igualmente diminuiu o património dos assistentes;
11ª sabia que com a conduta descrita, enganava os assistentes, enriquecia-se a si próprio ilegitimamente e poderia deixá-los em situação económica difícil e no entanto conformou-se com essa possibilidade, não se coibindo de actuar conforme descrito;
12° cometeu assim um crime de burla qualificada, p. e p. pelas normas conjugadas dos arts 217 e 218 nº2 c), do CP, com dolo eventual;
13ª ao decidir pela absolvição do arguido pelo crime de burla qualificada, o douto Acórdão recorrido violou a norma do artº 218 nº2 c) do CP;
14ª o crime de burla qualificada tem natureza pública, bastando a simples denúncia para que o Ministério Pública adquira legitimidade para proceder criminalmente pelo mesmo. É o que resulta da conjugação das normas dos artºs 218 do CP e 48 do CPP; Essas condições de procedibilidade estão verificadas;
15ª Logo, como o arguido/demandado foi absolvido da instância cível, apenas pelo facto da decisão da instância penal ser no sentido de, "Estando, de base, inquinado o exercício da acção penal- ..... - carece este tribunal de legitimidade para conhecer do pedido cível", estão verificados os pressupostos para a procedência do pedido cível, nos termos do arte 71 ° do CPP.
16ª o douto Acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que:
- condene o arguido AA pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artºs 217 e 218 nº2 c) do CP, em pena de prisão suspensa na sua execução, sob condição de indemnizar os lesados/assistentes/demandantes( ora recorrentes); e consequentemente,
- condene o arguido/demandado no pedido cível formulado pelos assistentes/demandantes, cujo pagamento seja condição de suspensão da execução da pena (vide supra), dado que o mesmo arguido só foi absolvido da instância cível, pelo facto da absolvição do mesmo da prática do crime.
---
Inexistiu resposta à motivação.
---
Neste Supremo, o Exmº Magistrado do Ministério Público pronunciou-se como consta de fls dos autos
---
Procedendo questão que deve e pode ser decidida em conferência – artº 417º nº 4 b) e 419º nº3 do Código de Processo Penal, levou-se o processo à conferência para apreciação e decisão.
----
É a seguinte a fundamentação de facto do tribunal colectivo
“FACTOS PROVADOS

Em face da prova produzida, e com interesse para a boa decisão da causa, ficaram demonstrados os seguintes factos:

- Em Fevereiro do ano 2002 DD e sua mulher EE celebraram um contrato de compra e venda com a firma “............. de ...., Lda.”, da qual o arguido era sócio gerente, para aquisição de um sistema de filtragem de água e um sistema de limpeza, no valor de 1.900,00 € (mil e novecentos euros);
- Não obstante os assistentes pretenderem adquirir aquele equipamento a pronto pagamento, pelo que a dita compra apenas seria de levar a cabo no decurso do mês de Maio de 2002, quando os mesmos dispunham de fundos para o efeito, acabaram por adquiri-los em Fevereiro de 2002, por insistência do arguido junto do colaborador que lhes fez a demonstração do equipamento;
- Apenas o fizeram, na sequência de um acordo verbal, em que o arguido se comprometeu a não dar entrada do contrato de mútuo nº ........ na Finicrédito, contrato este que exigiu fosse preenchido e que apenas em Maio de 2002 seria entregue junto da empresa financeira, caso os assistentes não liquidassem a dívida;
- Os assistentes assinaram uma livrança em branco, a pedido do arguido, e, mais uma vez, com a promessa feita por este que não daria entrada ao contrato de mútuo;
- Nos primeiros dias de Maio de 2002 os assistentes tentaram por inúmeras vezes contactar o arguido para lhe fazer o pagamento dos 1.900,00 € (mil e novecentos euros) em dívida, apenas o tendo conseguido fazer no dia 10 de Maio daquele ano;
- O arguido disse-lhes, então, para se dirigirem aos escritórios da Finicrédito, sitos na Rua ........, nº .... B, ...º, nesta cidade e comarca;
- No mesmo dia 10 de Maio de 2002 a assistente EE deslocou-se à Finicrédito para liquidar a dívida, tendo então sido-lhe exigida a quantia de € 3.040,00 € (três mil e quarenta euros), em face dos juros que tinham de ser liquidados, uma vez que o contrato de mútuo por eles subscrito era por cinco anos;
- Em face da tal exigência, os assistentes não pagaram e entraram em contacto com o arguido;
- No dia 31 de Maio de 2002, o arguido acompanhado pelos assistentes dirigiu-se ás instalações da Finicrédito, nesta cidade do Porto, com vista à resolução do contrato mencionado em 1) dos factos provados, tendo aí sido adiantado por um funcionário daquela instituição que, caso fosse apresentado um pedido de financiamento pela empresa representada pelo arguido que merecesse aprovação, seria o valor adiantado aos assistentes deduzido nesse outro, ficando a situação contratual destes resolvida;
- Um funcionário daquela empresa financeira, a Finicrédito, acabou por dizer ao arguido e aos assistentes que a situação estava resolvida e que o contrato mencionado em 1) dos factos provados com a Finicrédito estava anulado e que deveriam os assistentes irem ao Banco anular a ordem de pagamento das prestações, dado que a primeira delas se vencia em 05 de Junho de 2002;
- No dia 31 de Maio de 2002 os assistentes deram ordem à Caixa Geral de Depósitos para cancelar as prestações;
- Nesse mesmo dia, num café sito na zona da Boavista, o assistente entregou ao arguido o cheque nº ................, da conta nº ................., da Caixa Geral de Depósitos, no valor de 1.900,00 € (mil e novecentos euros), à ordem do arguido;
- O arguido disse que os assistentes podiam estar sossegados que a situação estava toda resolvida e estes acreditaram em tal pois já tinham liquidado ao arguido o valor das máquinas que lhe tinham adquirido;
- No mesmo dia 31 de Maio de 2002 o arguido depositou o cheque na conta nº ...................., do BES, agência de Nogueira de Cravo, titulada pela empresa “.............., Lda.”, tendo o mesmo sido descontado na conta do ofendido no dia 03 de Junho de 2002, e fez seu tal dinheiro;
- Contudo, a situação com o Finicrédito não se encontrava resolvida como se convenceram os assistentes;
- O contrato de mútuo continuou em vigor, passando os assistentes a receber cartas da Finicrédito para pagar as mensalidades que estavam em dívida;
- Contactado o arguido este dizia-lhes que a situação estava resolvida, que devia haver engano e aconselhou aos assistentes a ignorarem as cartas e até a rasgá-las;
- Na sequência desta situação a Finicrédito intentou uma acção cível contra os assistentes, que deu lugar ao Processo nº ........./03.9TJPRT, da 3ª Secção, do 2º Juízo Cível do Porto;
- Nestes autos o saldo da conta aos assistentes na Caixa Geral de Depósitos foi integralmente transferido para uma conta do Tribunal, ficando os assistentes sem dinheiro e com sérias dificuldades económicas;
- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito conseguido de, ao fazer crer aos assistentes que iria honrar o acordo que fez com eles, lograr com eles celebrassem um contrato de compra e venda consigo, assinassem um contrato de mútuo e uma livrança, e largassem mão da quantia de 1.900,00 € (mil e novecentos euros), que integrou entre os seus bens;
- Sabia que a sua conduta era reprovável e contrária à lei;
- Na sequência dos actos praticados pelo arguido/demandado supra aludidos, contra os ora demandantes civis foram instaurados autos de execução sumária que correram termos no 2° Juízo Cível do Porto, 3ª secção, sob o n.°de processo .........../03.9 TJPRT, pela exequente ... - Sociedade Financeira para Aquisições a Crédito, S.A., na qual foram objecto de penhora os seguintes saldos bancários de que eram titulares: a quantia de 1.972,42 €, correspondente ao saldo bancário da conta n.° ................, da Caixa Geral de Depósitos, cujo titular era a 2° demandante civil;
- Os demandantes civis viram-se privados da quantia supra referida entra a data da penhora - 31 de Outubro de 2003 - e a data de recepção do precatório cheque - 26 de Abril de 2006;
- Bem como da quantia de 428,81 €, correspondente ao saldo bancário da conta do Banco BES, de que era co-titular a 2° demandante civil;
- Os demandantes civis viram-se privados da quantia supra referida entra a data da penhora - 17 de Março de 2004 - e a data de recepção do precatório cheque - 05 de Maio de 2006;
- Foi, ainda, penhorada a quantia total de 2.496,60€ correspondente à penhora de 1/3 do salário do 1 ° demandante civil, durante o período de Outubro de 2004 e Junho de 2005 inclusive, montante de que os demandantes civis se viram privados entre a data da penhora - 29 de Outubro de 2004 - e a data de recepção do precatório cheque - 05 de Maio de 2006;
- Como consequência dos factos praticados pelo arguido/demandado supra aludidos, os demandantes civis tiveram que abrir mão das poupanças que fizeram ao longo da sua vida, procedendo a vários resgates de uma conta de aforro da que a 2° demandante civil era titular, resgates esses que perfizeram o montante de 1.716,82€, montante esse que se não fosse movimentado hoje ascenderia ao valor de 1.875,15€;
- Em virtude da conduta do arguido/demandado os demandantes civis ficaram numa situação de grave insuficiência económica, passando a viver de favores de familiares, nomeadamente, de favor do irmão da 2° demandante civil, que lhe emprestou a quantia de 2.000,00€ (Dois mil euros), valor esse que só nas datas do recebimento dos cheques precatórios acima referidas conseguiram restituir;
- Pois que com a penhora de parte do salário do 1° demandante civil, a este restava-lhe a quantia liquida de cerca de 700,00€/mês, valor esse conseguido porque o 1° demandante prestava horas extras e trabalhava aos fins-de-semana;
- Na ocasião já a 2° demandante civil se encontrava sem trabalhar devido à doença crónica, tendo apenas como rendimento uma compensação da segurança social no valor de cerca de 250,00€/mês, valor que deixou de receber desde Dez/2005 até à presente data, dado a sua doença;
- Os demandantes civis têm uma filha menor a estudar e à data do acontecimento dos factos gastavam cerca de 300,00€/mês entre material escolar, despesas com professores e tratamentos terapêuticos que a mesma necessitava, também por motivos de saúde;
- Os demandantes civis tinham, como ainda têm, o compromisso de pagar uma prestação mensal no valor de 146,44€, referente ao empréstimo para habitação junto da Caixa Geral de Depósitos com o n.º ......./......./...../........;
- Tinham a despesa mensal no valor médio de 85,00€ referente a água e luz da sua morada de família;
- Os demandantes civis sofriam e sofrem de várias doenças, necessitando tomar medicamentos com carácter permanente, com o que despendiam a quantia mensal media de 150,00€;
- Em virtude da conduta do arguido/demandado, os demandantes civis sentiram-se e sentem-se enganados e humilhados perante tudo o que lhes aconteceu, vivendo momentos de vergonha perante seus familiares e amigos, sentindo uma profunda dor psíquica, atroz sofrimento e angústia, bem como muita dificuldade económica;
- Ainda hoje não percebem como tal lhes foi acontecer e não conseguem falar do mesmo sem reviverem os momentos difíceis que passaram, não esquecendo o ocorrido;
- Como pessoas de bons princípios e honradas que sempre foram, os demandantes passaram fome para não faltarem aos compromissos que se honraram – pagar atempadamente todos os meses a prestação do empréstimo da sua casa de morada de família, bem como, as despesas com água e luz, bens essenciais e imprescindíveis para uma vida digna de qualquer ser humano;
- Deitando-se muitas vezes sem fazerem as suas refeições, passando a noite a chorar e lamentando a sua situação;
- Passaram a vergonha e humilhação de terem de deixar as compras de bens essenciais que um dia fizeram junto de um Hipermercado, pois foram surpreendidos na caixa de pagamento porque lhes disseram que o cartão não tinha saldo;
- Para não faltarem com o essencial à sua filha menor, os demandantes deixaram de comprar a medicação de que necessitavam para tratamento das suas doenças;
- Mesmo assim, recorreram muitas vezes a favores de seus familiares para alimentarem a sua filha menor, nomeadamente a madrinha da mesma;
- E passaram pela vergonha e humilhação de pedirem dinheiro emprestado ao irmão da 2° demandante civil;
- Os mesmos demandantes civis viram ainda, com grande desgosto, vergonha e angústia, o seu nome referenciado no Banco de Portugal, na sequência dos autos de execução sumária já referida;
- O seu nome que sempre honraram ao longo de suas vidas;
- Tendo sido penhorado parte do seu salário, o 1º demandante civil sentiu profunda humilhação e vergonha perante os seus colegas de trabalho e da sua entidade patronal que de tudo souberam;
- O mesmo 1 ° demandante civil viu-se na necessidade de trabalhar mais de 12 horas por dia para honrar os seus compromissos, dado que a 2° demandante civil não trabalhava por motivos de doença;
- Por sua vez, a 2° demandante civil sofria à data dos factos e ainda sofre de doença crónica relacionada com Fibromialgias e Artrites Reumatóides, doença essa agravada com depressões profundas de que sofre consecutivamente, sendo acompanhada permanentemente por Serviços da Dor e de Psicologia/Psiquiatria no Hospital de São João do Porto;
- Como consequência dos factos praticados pelo arguido/demandado e dos factos daqueles consequentes, a demandante civil sofreu agravamento na sua doença, ficando profundamente deprimida, sofrendo ainda hoje a angústia provocada por tais acontecimentos e não conseguindo falar dos mesmos sem entrar em choro compulsivo e doloroso;
- O arguido nasceu no seio de uma família com dificuldades de ordem económica condicionantes da vida do agregado familiar, tendo frequentado o ensino até aos 12/13 anos de idade, quando completou o ensino primário. Iniciou a sua vida laboral como resineiro até conseguir entrar no ramo das vendas na área têxtil, na sequência do que fixou residência na área limítrofe de Lisboa. Em 1972 foi chamado a cumprir o serviço militar obrigatório, onde se manteve até 1974. Poucos meses após o seu regresso encetou casamento e fixou-se em Lisboa dando continuidade ao trabalho de cargas e descargas no porto de Lisboa, que já levara a cabo concomitantemente com as vendas na área têxtil. Em 1993 o seu casamento entrou em ruptura, tendo os dois filhos do casal se afastado do arguido, afastamento que se mantém. Quando retomou desempenho laboral passou a dedicar-se à venda de máquinas de limpeza, após o que constituiu a sociedade “J....................., Lda.”, conjuntamente com a sua companheira, com quem viveu durante três anos. Após a separação, ocorreu a falência desta empresa. Retomou a actividade de comissionista e veio a encetar nova relação marital que, passados dois anos e meio, se desfez. Actualmente refez a sua vida afectiva, que se mostra gratificante e trabalha como comissionista;
- O arguido não tem antecedentes criminais.
-
FACTOS NÃO PROVADOS
Não obstante todos os meios de prova produzidos não ficou demonstrado que:

- Nas circunstâncias referidas em 8) dos factos provados, o arguido foi dando desculpas para a situação e disse que a ia tentar resolver, mas nada fez, apesar de ser constantemente instado a tal pelos assistentes;
- O arguido acabou por dizer que a situação estava resolvida e que o contrato com a Finicrédito estava anulado e que deveriam ir ao banco anular a ordem de pagamento das prestações;
- Por volta do mês de Maio de 2003 os assistentes tiveram uma reunião na Finicrédito onde também esteve presente o arguido e aperceberam-se que este tinha recebido € 1.900,00 da Finicrédito e € 1.900,00 seus, ou seja, duas vezes o valor das maquinas, tendo-se recusado a devolver a quantia que tinha recebido em dobro alegando não ter dinheiro.
-
FUNDAMENTAÇÃO

Por força do estatuído no art. 127.º do Código Processo Penal, «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Nesta sede, como vimos, rege o principio da livre apreciação da prova, significando este principio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outra banda, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal
Como defende o Prof. Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 111 «a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão».
Como lapidarmente se afirmou no Acórdão do S.T.J. de 21/01/1999, proc. N.º 1191/98, 33, SASTJ, n.º 27, pág. 78 “não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação do juízo de valoração do julgador com o mero arbítrio: a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser nunca puramente subjectiva ou emotiva e, por isso, há-de ser fundamentada, racionalmente objectivada e logicamente motivada, de forma a susceptibilizar controlo”.
Para a formação da sua convicção o Tribunal procedeu ao exame de todas as provas produzidas em audiência de julgamento bem como os documentos e relatórios periciais juntos aos autos, tendo-os tido em consideração após uma analise global, conjugada e critica dos ditos meios de prova.
Tendo sempre presente os princípios e regras legais atrás citadas, os modos da obtenção de prova e a força probatória que lhes é legalmente conferida, formou a sua convicção de forma livre e à luz das regras de experiência comum, tendo sempre em conta que tais regras não comportam uma apreciação arbitraria nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre e indubitavelmente, de se reconduzir objectiva e fundadamente às provas validamente produzidas e examinadas em audiência de julgamento.

Teve, assim, em consideração os seguintes meios probatórios:

- as declarações do arguido, no que concerne às circunstancias de tempo, lugar e modo como se operou a venda do equipamento aos assistentes, a elaboração do contrato e o recebimento do preço bem como os contactos posteriores e reuniões havidas com a Finicrédito, confessando este ter recebido, em duas ocasiões distintas, o preço das referidas maquinas;
- o depoimento dos assistentes DD e EE, no que concerne às circunstancias de tempo, lugar e modo como foi levada a cabo a demonstração do equipamento de limpeza e filtragem de agua e a forma como foi feita a aquisição, sendo condição da mesma o pagamento a pronto e o modo como o mesmo se veio a operar bem como a circunstancia de terem assinado o contrato de credito e documentos anexos que se acham juntos aos autos, para além de terem esclarecido a forma como se operou o pagamento em Maio de 2002 e a reunião havida com um funcionário da Finicrédito com a presença do arguido e o facto do primeiro lhes ter dito que deveriam levar a cabo o cancelamento da ordem de pagamento na CGD, o que de imediato levaram a cabo. Mais disseram que posteriormente continuaram a receber, constantemente, correspondência da Finicrédito, e que o arguido lhe mencionava que a situação estava resolvida. Referiram, por ultimo, da interposição da acção executiva e consequente penhora e a necessidade de recorrerem à ajuda de familiares e amigos para providenciar às despesas do agregado familiar, dando conta da vergonha, humilhação e desespero sentidos;
- o depoimento da testemunha FF, que referiu ao tribunal a má condição financeira em que ficaram os demandantes em face da penhora sofrida, sendo a testemunha quem providenciava por custear as despesas da filha menor dos mesmos, que é sua afilhada, em face das dificuldades pelos mesmos sentidas. Mais disse que qualquer dos demandantes se sentiu muito envergonhado, muito nervoso, tendo mesmo a demandante EE sofrido grande abalo psicológico, registando mesmo uma tentativa de homicídio. Disse também que a família dos mesmos lhes forneceu ajuda;
- o depoimento da testemunha GG, que afirmou ter sido empregado da Finicrédito entre 1999 e 2005, período durante o qual recebeu um casal a reclamar dizendo não ter qualquer prestação a pagar por ter efectuado o pagamento directo ao vendedor. E que com vista à resolução da questão foi suscitado o pedido de anulação do contrato com o seu pagamento por meio de dedução do valor mutuado em contratos que, no futuro e que o mesmo beneficiário, viessem a ser aprovados, referindo, contudo, que no caso nenhum outro contrato veio a ser aprovado de molde a resolver a situação em apreço, razão pelo que o mesmo continuou a vigorar;
- o depoimento da testemunha HH, no que respeita às circunstancias de tempo, lugar e modo como foi levada a cabo a demonstração do equipamento aos demandantes e as condições em que os mesmos desejavam adquiri-los, sendo certo que os mesmos pretendiam comprá-los em pronto pagamento. Contudo referiu que foi pelos mesmos lavrado o contrato de financiamento e documentos anexos que se acham juntos aos autos de modo a garantir o pagamento. Posteriormente veio a saber que o referido contrato foi encaminhado e que posteriormente os saldos bancários dos demandantes foram alvo de penhora;
- o depoimento da testemunha II, no que concerne às circunstancia de tempo, lugar e modo como levou a cabo a demonstração e ulterior venda dos equipamentos a favor dos aqui demandantes, dando conta de que os mesmos apenas os pretendiam adquirir a pronto pagamento mas que, em alternativa, o aqui arguido lhe disse que lhe propusesse a feitura do contrato de financiamento como garantia e para vigorar a partir de Maio de 2002 e caso não ocorresse o pagamento no decurso daquele mês, razão pelo que os mesmos vieram a assinar o dito contrato e documentação anexa e a fornecer as copias dos seus documentos pessoais;
- o depoimento da testemunha KK, funcionaria da CGD, que confirmou o teor da ordem de cancelamento de fls. 22, recordando que lhe foi dito pelos assistentes que tinham feito o pagamento antecipado do preço. Mais relatou que ocorreu a penhora do saldo da conta de que são titulares na instituição bancária em que labora, sendo certo que ali faziam o depósito com vista ao pagamento do crédito à habitação. Disse também que a assistente se mostrava perturbada com a situação;
- o depoimento da testemunha LL, irmão da demandante mulher que relatou ao tribunal que deu conta de que a mesma se encontrava a passar dificuldades económicas, razão por que lhe emprestou 2.000,00, para ajudar ao pagamento das despesas correntes. Mais disse que em virtude da situação de penhora dos saldos bancários, os assistentes sofreram grave desgosto, tendo a sua irmã tentado o suicídio;
- o contrato de venda de fls. 3, no que respeita à natureza dos equipamentos, preço e data de instalação;
- a exposição de fls. 5, no que respeita à reclamação apresentada pelo assistente junto da Finicrédito;
- o documento bancário de fls. 6, no que atende ao cancelamento da autorização de debito na conta da CGD operada pelo assistente;
- a factura de fls. 7, no que respeita ao valor dos equipamentos transaccionados;
- a copia de cheque de fls. 24, no que respeita à respectiva identificação, valor e beneficiário bem como quanto ao desconto;
- a correspondência de fls. 26 a 33, no que respeita às sucessivas interpelações levadas pela Finicrédito junto dos assistentes com vista à regularização do pagamento;
- a copia de fls. 35, no que tange ao plano de pagamento visado no âmbito do contrato firmado pelos assistente com o Finicrédito;
- a copia de fls. 38, no que respeita à notificação da ordem de penhora do saldo da conta de que são titulares os assistentes a CGD;
- a copia de fls. 4 e 121, no que respeita ao contrato de credito e livrança que no seu âmbito foi subscrita pelos assistentes;
- a certidão de fls. 186 a 191, no que respeita à pendência da execução sumaria nº ......./03.9TPRT em que figuram como executados os aqui assistentes;
- a certidão de fls. 204 a 241, no que respeita à pendência dos autos de embargos de executado nº .........../03.9TJPRT-A, em que são embargantes os aqui assistentes;
- a certidão de fls. 245 a 247, no que respeita à remessa à conta da execução pendente contra os assistentes;
- a documentação bancária de fls. 273 a 276, no que concerne à data de penhora e reposição de saldos;
- a declaração de fls. 278, no que respeita à data e valor da penhora do vencimento do assistente marido;
- as promissórias de fls. 297 a 300, no que atende ao resgate dos aforros pelos assistentes e seu valor;
- a certidão de fls. 305 a 306, no que respeita à sentença extinta produzida no processo executivo em que eram executados os aqui assistentes;
- a documentação de fls. 359 a 360, no que respeita à data de recebimento de precatório cheque no âmbito do processo executivo;
- o documento de fls. 361, no que atende à valorização dos certificados de aforro;
- o recibo de salário de fls. 362, no que respeita ao valor auferido pelo assistente marido;
- a declaração de fls. 363 a 364, no que atina à situação da assistente mulher respeitante ao recebimento de prestações sociais;
- as copias de fls. 365 a 369, no que respeita às despesas dos assistentes com a sua filha menor;
- as copias de fls. 370 a 378, no que concerne às despesas correntes do agregado familiar dos assistentes;
- as cópias de fls. 379 a 381 e 384 a 397, no que atende à situação clínica da assistente mulher e despesas dai decorrentes;
- a informação de fls. 436, no que atende à ausência de antecedentes criminais do arguido;
- o relatório social de fls. 437 a 441, no que respeita às condições pessoais, familiares, sociais e profissionais do arguido.

Todos os referidos depoimentos testemunhais foram relevantes, atento o conhecimento directo demonstrado, pelo exercício das funções e/ou ligação aos arguidos, tendo todos eles deposto com isenção, de forma explicativa e circunstanciada.
O depoimento testemunhal que não foi considerado ficou a dever-se à circunstância de não ter ficado demonstrado que o referido depoimento se circunscrevesse a factos referido nestes factos, ficando, por tal, por demonstrar o directo conhecimento dos factos.

Os factos não provados foram-no por ausência total de prova quanto aos mesmos e por estarem em contradição com aqueles que ficaram provados.
O que tudo visto

Conforme artigo 217º, do Código Penal: Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à pratica de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Por sua vez, o artigo 218º do C.P. consagra o crime de burla na forma qualificada, distinguindo dois tipos de ilícito qualificado: o do nº 1, punido pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, e o nº 2 a que corresponde a pena de prisão de 2 a 8 anos.
Uma das qualificativas do crime é da alínea c) deste nº 2, que é integrada pela factualidade de “A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.”
Depois da arquitectura matricial do crime de burla p. e p. no artº 217º do C.Penal, no artº 218º surge um modus aedificandi criminis que não se confunde com a técnica dos exemplos padrão, havendo necessidade de valoração diferenciada, das circunstâncias agravativas.
Assim, enquanto o crime de burla qualificada, é um crime autónomo em relação ao simples crime de burla, há que indagar do âmbito da protecção da norma qualificativa, que não da aplicação automática da sua factualidade.
Na verdade bem se percebe que não seja a mera factualidade constitutiva da agravação, de per se, que responsabiliza automaticamente o agente pelo resultado produzido, mas o desvalor da acção e do resultado, na imputação objectiva ao agente.
Como resulta do Ac. deste 17-05-2007, Proc. n.º 4683/06 - 5.ª Secção:
Sendo embora um crime material ou de resultado, que se consuma com a saída das coisas ou dos valores da disponibilidade fáctica da vítima, ou seja, quando ocorre o empobrecimento patrimonial do lesado, a burla configura, também, um crime de resultado parcial ou cortado, «caracterizando-se por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os correspondentes tipo subjectivo e objectivo (…). Embora se exija, no âmbito do primeiro, que o agente actue com intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (=dano) da vítima» – cf. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, págs. 276 e 277.
Mas para que se verifique o crime, aquela intenção, tal como os demais elementos constitutivos do mesmo, terá de surpreender-se nos factos provados, pois que constitui matéria de facto.
A burla pressupõe um duplo nexo de imputação objectiva: enquanto delito de execução vinculada, ela pressupõe quer a existência de um nexo entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do seu património, quer a ocorrência de um nexo entre estes últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial – cf. Almeida Costa, ob. cit., págs. 298 e 293.
No domínio da acção do agente, na produção do resultado típico há que apurar pois, a amplitude da sua vontade na representação desse facto agravativo, de forma a poder definir-se a modalidade da sua responsabilidade criminal (dolo directo, necessário, eventual?)
A análise valorativa jurídico-criminal do telos da norma, perante a acção desenvolvida pelo arguido, reclama averiguação factual sobre o conhecimento do agente sobre essa factualidade agravativa, sob pena de a norma agravanda deixar de ter qualquer significado jurídico-penal.
A aplicação automática do desiderato factual constante da alínea c) do artº 218º do C.Penal, resultaria em mera aplicação do seu literalismo, fundando a responsabilidade do agente, por um crime mais grave, qualificado, numa espécie de responsabilidade objectiva.
Como poderia então determinar-se a culpa do agente por essa agravação, nomeadamente para limitar a gravidade da pena?
Logo se vê que não pode ser “a nudez simples do efeito traduzível na circunstância de a vítima ficar em difícil situação económica”. Independentemente das razões e do querer do agente.
Assim, a responsabilidade criminal do agente pelo ilícito agravado, necessariamente pressupõe a admissibilidade de “um dolus generalis, enquanto instrumentum capaz de dar uma cobertura mínima à continuidade de uma defesa por um direito penal que jamais se estribe na responsabilidade objectiva.” (Faria Costa, ibidem, p.55 e sgs, maxime §46, p.72 e 73, e Almeida Costa. 4 3 e 5, respectivamente pág, 311 e 312.
In casu, quando os assistentes contrataram com o arguido e, assinaram a livrança em branco, e, mais tarde quando entregaram o cheque de 1900 € e ao arguido, este quis,, ou representou como consequência necessária, ou como possível que a vítima viria a ficar em difícil situação económica, sendo-lhe indiferente o resultado?
Da matéria fáctica provada apenas consta sobre tal questão que: O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito conseguido de, ao fazer crer aos assistentes que iria honrar o acordo que fez com eles, lograr com eles celebrassem um contrato de compra e venda consigo, assinassem um contrato de mútuo e uma livrança, e largassem mão da quantia de 1.900,00 € (mil e novecentos euros), que integrou entre os seus bens- Sabia que a sua conduta era reprovável e contrária à lei;
- Em virtude da conduta do arguido/demandado os demandantes civis ficaram numa situação de grave insuficiência económica, (…)”
Mas, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, não vem provado que:
“O arguido sabia que os assistentes eram de muito modesta condição económica e sendo homem experiente em negócios e financiamentos, sabia que o contrato de mútuo que submeteu à Sociedade Financeira iria envolver os assistentes num negócio obrigacional altamente oneroso e que seguramente lhes traria uma diminuição financeira que estes não procuraram nem desejavam, devido ao valor dos juros correntes para este tipo de contrato; sabia que com a conduta descrita,(…) poderia deixá-los em situação económica difícil e no entanto conformou-se com essa possibilidade, não se coibindo de actuar conforme descrito;”
Nem da matéria de facto provada se podem extrair ilações por presunção judicial do elemento subjectivo do tipo de burla qualificada
O facto de vir provado que: “Não obstante os assistentes pretenderem adquirir aquele equipamento a pronto pagamento, pelo que a dita compra apenas seria de levar a cabo no decurso do mês de Maio de 2002, quando os mesmos dispunham de fundos para o efeito,(…)” não esclarece se tal se devia a difícil situação económica ou a qualquer outro motivo.

A decisão recorrida considerou:
“(…)não ficou assente que o arguido tenha perpetrado esta sua conduta delituosa com a intenção, ou pelo menos prevendo-a como resultado, de colocar os assistentes em situação económica difícil, condição sine qua non de punibilidade, dado que este é um crime apenas punível a titulo doloso.
Teremos, pois, que concluir pela procedência, mas tão-só, parcial da acusação, decaindo a qualificativa do crime de burla.”

Ora é temerário, concluir-se sem mais, pela procedência parcial da acusação.
É que, se o crime de burla agravada em questão, integra o objecto do processo, como thema probandum, e thema decidendum, não consta da decisão recorrida, a existência de factos provados ou não provados, no sentido de que tal thema fosse investigado, com vista a poder formular-se um juízo decisório.
Sendo o objecto do processo balizado pela fattispecie da acusação, devia e podia o tribunal do julgamento investigar todos os elementos indispensáveis à decisão da causa, socorrendo-se se necessário fosse, do disposto no artigo 340º do CPP., com vista a poder concluir da procedência ou não da factualidade incriminatória.
Ora, não constando dos factos provados, nem dos factos não provados, a existência de factualidade referente ao elemento subjectivo do crime de burla qualificada, há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício constante da alínea a) do nº 2 do artº 410º do CPP, a conhecer oficiosamente pelo Supremo nos termos consentidos pelo artº 434º do CPP.e, na procedência de tal vício, a implicar o reenvio parcial do processo para novo julgamento relativamente à questão aludida, conforme artº 426º nº 1 do CPP.
A situação supra exposta, continua a subsistir quer do ponto de vista substantivo, quer nos termos da lei adjectiva, nas revisões legais (penal e processual penal) de 2007, pois que de harmonia com a Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro, os pressupostos do crime de burla e o crime de burla qualificada supra referido, continuam a verificar-se conforme arts 217º e 218º nº 1 al d) do C,Penal; e o conteúdo dos artigo 410º nº 2 do CPP, continua a verificar-se, bem como os pressupostos do reenvio, agora contemplados no artigo 428º do mesmo diploma.
Termos em que, decidindo:

Reenviam o processo para novo julgamento relativamente ao apuramento de factualidade atinente à existência ou não do elemento subjectivo do crime de burla qualificada.de que o arguido foi acusado.

Sem custas

Lisboa, 17 de Outubro de 2007

Pires da Graça (Relator)
Raul Borges
Soreto de Barros