Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
163/11.0TTEVR.E2.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: CASO JULGADO PENAL
DECISÃO INSTRUTÓRIA
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA (EFEITOS).
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674.º-B.
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGO 624.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10.2.2004 (SUMÁRIO), P. 04A4284, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT
-DE 22-05-2013, P. 2024/05.2TBAGD.C1.C1/2.ª SECÇÃO, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT
Sumário :
I - No artigo 674.º-B, do anterior CPC, epigrafado ”eficácia da decisão penal absolutória”, cuja redação é coincidente com a do art. 624.º do NCPC, não são de enquadrar os casos em que a absolvição decorre da simples falta de prova dos factos imputados ao arguido, só relevando, para efeitos da presunção ali contemplada, a absolvição fundada na prova (positiva) de que os factos não foram realmente praticados.

II - No caso dos autos, apenas se considerou - em sede de despacho de não pronúncia - que determinada factualidade imputada à A. “não se mostra suficientemente indiciada”, realidade que não integra a sobredita previsão normativa.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I.


1. AA intentou ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento contra BB, ambas as partes com os sinais nos autos.

2. A ação foi julgada improcedente na 1.ª Instância.

3. Interposto recurso de apelação pela A., foi o mesmo julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Évora (TRE).

4. Deste acórdão, agora de revista, recorre de novo a A, invocando a violação de caso julgado penal.

Para tanto, sustenta, em síntese, nas conclusões das suas alegações:

- A Recorrente trabalhou para a Recorrida, entre 01.05.2004 e 13.04.2011, ocupando à data da cessação do contrato a categoria profissional de Ajudante de Acão Direta.

- Foi despedimento com alegada justa causa, devido à morte de uma utente da Recorrida, em consequência da ingestão de anticalcário manipulado pela Recorrente.

- A mesma matéria foi objeto de inquérito criminal, no âmbito do Proc. n.º 15/11.3PAETZ do Ministério Público de Estremoz, tendo o Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Évora, em 07.02.2012, proferido decisão de não pronúncia, transitada em julgado em 05. 05.2012, da qual consta, nomeadamente, o seguinte:


''Importa começar por referir que, segundo a autópsia à vítima, efetivamente esta terá falecido na sequência de intoxicação química por lixívia. Os resultados ao exame toxicológico ao conteúdo estomacal revelaram a presença no estômago de substancia com PH e 9 (alcalino). ( . .)

Certo é que a arguida sempre admitiu ter manipulado produto com características químicas distintas.

As testemunhas falam sempre na manipulação pela arguida (a que não assistiram) de anticalcário.

Os exames realizados ao conteúdo da garrafa apreendida revelam a presença de produto com características químicas distintas à lixívia - produto com PH 2 (ácido).

Ora, nenhum dos elementos probatórios recolhidos nos autos permite sustentar que a arguida terá manipulado lixívia, como refere a acusação.

Por outro lado, nenhum dos elementos dos autos, tal como se encontram, permite concluir que o produto que a arguida admite ter manipulado - anticalcário - tenha contribuído para a morte da ofendida.

Perante tais elementos, é certa a absolvição da arguida, o que impõe a respetiva não pronúncia.

Em face, por isso, da inexistência de elementos de prova do nexo causal entre o comportamento da arguida e o evento letal, não pode deixar de se concluir pela insuficiência de indícios da prática pela mesma do crime pelo qual vem acusada. “

- Não obstante as conclusões a que chegou o TIC, o Tribunal do Trabalho de Évora julgou lícito e regular o despedimento da Recorrente.

- O recorrido acórdão do TRE contrariou o julgado na ação criminal, ao sustentar o seguinte:


"(…) comportamento que se não pode deixar de qualificar como bastante grave, na medida em que totalmente desapropriado face aos riscos de confusão com uma vulgar garrafa de água desse género, tendo, desse modo, uma forte possibilidade desse líquido anticalcário poder ser ingerido como se de água se tratasse, como, aliás, veio a suceder.
(…)
A gravidade deste comportamento, totalmente inusitado em face das referidas circunstâncias, veio a assumir toda a sua expressão no facto de, no dia seguinte, ou seja 13 de janeiro de 2011, quando a ajudante de ação direta CC foi dar banho à utente DD e porque esta lhe referira estar com a boca seca, já na sala de banhos ter ido buscar uma garrafa de água à prateleira onde habitualmente existiam garrafas de água idênticas para dessedentar utentes e funcionários, acabando por dar a beber à referida utente o produto anticalcário contido na garrafa que a A. deixara nesse local - produto que, frisa-se, era transparente e tinha o aspeto de água - na convicção de se tratar efetivamente de água, (…).

Por via do alerta então dado, a utente DD, bem como a funcionária CC, foram conduzidas ao Centro de Saúde, tendo aquela falecido no dia seguinte, ou seja no dia 14 de janeiro de 2011.”

 

- O TRE não só se pronunciou sobre matéria que havia sido já conhecida a título definitivo por outro Tribunal, como se pronunciou em sentido absolutamente incompatível, afirmando que o líquido manipulado pela Recorrente (anticalcário) havia sido ingerido pela utente e que a mesma veio a falecer no dia seguinte em consequência de tal ingestão.

- Ao fazer tábua rasa da decisão proferida pelo TIC de Évora, violou-se o Princípio da Tutela Jurisdicional Efetiva, contido no artigo 20.º da CRP, e, bem assim, os Princípios da Certeza e da Segurança Jurídicas, os quais se acham ínsitos no Principio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP.


5. A parte contrária não contra-alegou.

6. O Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que as partes não responderam.


7. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC[1]), em face das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir é, pois, a de saber se foi violada a autoridade do caso julgado formado pela sobredita decisão do TIC de Évora. [2]

8. Cumpre decidir, sendo aplicável à revista o regime processual que no CPC foi introduzido pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, nos termos do art. 5.º, n.º 1, deste diploma[3].

E decidindo.

II.

9. A matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte (transcrição expurgada dos factos destituídos de relevância para a decisão):


1. A trabalhadora foi admitida a trabalhar sob a autoridade e direção da empregadora, como ajudante de lar e centro de dia de 2ª classe (alínea a) da matéria de facto assente).
2. (…)
3. (…)
4. No dia 11 de Abril de 2011, a empregadora comunicou à trabalhadora o seu despedimento imediato, com justa causa, pelas razões constantes do relatório final do processo disciplinar, (alínea d) da matéria de facto assente).
5. (…)
6. (…)
7. (…)
8. Ocupava, ultimamente, a categoria profissional de Ajudante de Ação Direta (…) (alínea h) da matéria de facto assente).
9. A trabalhadora sabia que as garrafas de água de 0,33 litros eram utilizadas na instituição para acondicionar o gel-de-banho de cada utente, bem como óleo de amêndoas doces e outros produtos, a trabalhadora pensou em utilizar uma daquelas garrafas de forma a conseguir limpar a sala de banhos, (alínea i) da matéria de facto assente).
10. A encarregada de Serviços Gerais da empregadora (…) deu ordens às funcionárias que exercem as funções de Ajudante de Ação Direta para limpar a sala de banho, depois de terminados os banhos do dia, (alínea j) da matéria de facto assente).
11. No dia 12 de Janeiro de 2011, quando acabou de dar banho a alguns utentes com a sua colega a Sr.ª EE, por volta das 11H45, a trabalhadora ficou na sala de banhos para proceder à limpeza da mesma, conforme havia recebido ordens expressas, (alínea l) da matéria de facto assente).
12. Pelas 12H45 a trabalhadora interrompeu a limpeza da sala de banhos para ajudar a servir os almoços aos utentes no salão, (alínea m) da matéria de facto assente).
13. E depois de almoço, no dia 12 de Janeiro de 2011, a trabalhadora foi fazer a mudança das fraldas aos utentes acamados ou com problemas de locomoção, bem como, ajudar outros utentes a deslocarem-se aos sanitários, esquecendo-se de terminar a limpeza da sala de banhos, (alínea n) da matéria de facto assente).
14. No dia 13 de Janeiro de 2011, a trabalhadora ouviu gritos quando ia fazer as camas dos utentes, (alínea o) da matéria de facto assente).
15. E correu para ver se alguém precisava de ajuda e encontrou a sua colega, a Srª. D. CC, no gabinete de enfermagem a lavar a boca e a dizer tinha tomado um comprimido com alguma coisa que a estava a queimar, (alínea p) da matéria de facto assente).
16. De seguida a sua colega CC perguntou-lhe se, uma vez que sabia que ela tinha estado a limpar a sala de banhos no dia anterior, teria sido ela a deixar lá uma garrafa (alínea q) da matéria de facto assente).
17. Ao que a trabalhadora, imediatamente, respondeu que sim, que tinha deixado a garrafa com anticalcário na prateleira de cima e que lhe tinha retirado o rótulo, como forma de assinalar que não se tratava de uma garrafa de água, (alínea r) da matéria de facto assente).
18. No dia 14 de Janeiro de 2011, a trabalhadora estava com os seus colegas a almoçar no refeitório, quando a Sr.ª D. FF entrou e disse que a D. DD tinha falecido, (alínea s) da matéria de facto assente).
19. (…)
20. Incumbia à trabalhadora fazer a higiene diária dos utentes, (resposta ao artº. 1º da base instrutória).
21. E fazer as camas, (resposta ao artº. 2º da base instrutória).
22. E apoiar os idosos dependentes, (resposta ao artº. 3º da base instrutória).
23. E a arrumação e reposição de roupas, (resposta ao artº. 4º da base instrutória).
24. E mudança de fraldas, (resposta ao artº. 5º da base instrutória).
25. E servir o pequeno-almoço, (resposta ao artº. 6º da base instrutória).
26. E pôr as mesas, (resposta ao artº. 7º da base instrutória).
27. E servir o almoço, (resposta ao artº. 8º da base instrutória).
28. E servir o lanche, (resposta ao artº. 9º da base instrutória).
29. E servir o jantar, (resposta ao artº. 10º da base instrutória).
30. E deitar os utentes, (resposta ao artº. 11º da base instrutória).
31. E servir o chá, (resposta ao artº. 12º da base instrutória).
32. E fazer a ronda e os posicionamentos, (resposta ao artº. 13º da base instrutória).
33. A trabalhadora, tal como as demais ajudantes de ação direta do estabelecimento do R., estava incumbida de efetuar uma ligeira limpeza na sala de banhos após os banhos que davam aos utentes, de forma a ficar preparada para os banhos seguintes.[4]
34. Encontrava-se dentro da sala de banhos, um garrafão de 25 litros cheio de anticalcário, que deveria ser utilizado para limpar aquele espaço, (resposta ao artº. 16º da base instrutória).
35. A trabalhadora não o conseguia movimentar até perto do fundo da sala de banhos (resposta ao artº. 17º da base instrutória).
36. E encontravam-se dentro da sala de banhos os detergentes e utensílios de limpeza daquele espaço (resposta ao artº. 18º da base instrutória).
37. Em consequência pensou em utilizar uma das garrafas (referidas na al. I da matéria de facto assente) de forma a conseguir limpar a sala de banhos (resposta ao artº. 19º da base instrutória).
38. E como forma de a identificar tirou o rótulo da garrafa e encheu-a de anticalcário (resposta ao artº. 20º da base instrutória).
39. Nas instalações da empregadora apenas existia um doseador (resposta ao artº. 21º da base instrutória).
40. Esse doseador destinava-se ao transporte de pequenas quantidades de gel de banho (resposta ao artº. 22º da base instrutória). [5]
41. Em consequência daquela interrupção (constante da al. M) da matéria de facto assente) a trabalhadora fechou a garrafa e colocou-a na prateleira de cima de uma estante na sala anexa à sala de banhos, (resposta ao artº. 23º da base instrutória).
42. Todas as mesinhas de cabeceira, de todos os utentes, guardavam no seu interior uma garrafa de água, sem rótulo, com gel de banho do respetivo utente, (resposta ao artº. 27º da base instrutória).
43. Só no dia 21 de Janeiro, estas garrafas de água com gel de banho, começaram a ser substituídas por embalagens individuais de gel de banho, (resposta ao artº. 28º da base instrutória).
44. (…)
45. No dia 13 de Janeiro a colaboradora GG e a trabalhadora (…) CC foram buscar a cliente DD ao seu quarto para tomar banho (resposta ao artº. 35º da base instrutória).
46. Ainda no seu quarto a cliente DD disse que tinha a boca seca e as colaboradoras iam dar-lhe água na sala dos banhos, porque ela não tinha no quarto (resposta ao artº. 36º da base instrutória).
47. A trabalhadora (…) CC foi buscar uma garrafa de água à prateleira onde normalmente se encontravam garrafas de água (resposta ao artº. 37º da base instrutória).
48. Há garrafas de água na sala dos banhos, tanto para os clientes, como para os colaboradores que ali estão a trabalhar, pois com o calor podem desidratar facilmente (resposta ao artº. 39º da base instrutória).
49. A trabalhadora (…) CC agarrou numa garrafa, abriu-a e deu à cliente DD (resposta ao artº. 40º da base instrutória).
50. A garrafa de água dada à cliente DD encontrava-se cheia (resposta ao artº. 41º da base instrutória).
51. A trabalhadora (…) CC quando abriu a garrafa não reparou que estava aberta (resposta ao artº. 42º da base instrutória).
52. A trabalhadora (…) deu então o que pensou ser água à cliente DD (resposta ao artº. 43º da base instrutória).
53. A cliente DD engasgou-se e deitou fora o que supostamente era água, mas como a cliente por vezes tinha dificuldade em deglutir nem a Diretora Técnica HH nem a trabalhadora (…) CC nem a encarregada II estranharam esse facto (resposta ao artº. 45º da base instrutória).
54. A cliente DD queixava-se que tinha o estômago a arder e que lhe tinham dado qualquer coisa pela boca abaixo (resposta ao artº. 46º da base instrutória).
55. Por volta das 11horas a trabalhadora (…) CC precisou de tomar um comprimido e já não tinha água, porque tinha dado as outras duas garrafas aos clientes (resposta ao artº. 47º da base instrutória).
56. A trabalhadora (…) CC bebeu o resto da água da cliente DD para não abandonar o serviço e só nesse momento percebeu que não era água, mas sim um produto químico (resposta ao artº. 48º da base instrutória).
57. Nenhum superior deu ordem para se colocar anticalcário, um líquido transparente com aspeto de água, numa garrafa de água (resposta ao artº. 49º da base instrutória).
58. Dado o alerta, a cliente DD foi imediatamente socorrida, tendo sido transportada para o Centro de Saúde juntamente com a trabalhadora (…) CC (resposta ao artº. 50º da base instrutória).
59. (…)
60. (…)
61. (…)
62. (…)

III.

10. Encontra-se junta a fls. 401 – 420 dos autos cópia certificada do despacho de não pronúncia mencionado em supra n.º 4 (doravante apenas designado por “despacho de não pronúncia”), do qual consta, nomeadamente:


“(…)

Compulsados os autos, constata-se que a acusação funda-se na circunstância de a arguida ter enchido uma garrafa de água de 33 cl, que se encontrava vazia, com lixívia, para proceder à limpeza do espaço e ter deixado tal garrafa numa prateleira com três outras garrafas de características idênticas. Tal garrafa foi utilizada por outra funcionária da instituição, dando de beber pela mesma à vítima.
(…)
 Posto isto o Tribunal considera suficientemente indiciada apenas a seguinte factualidade (…):

(…)
3.º No dia 13.01.2011 pelas 09h30m, e a solicitação da (…) DD (falecida), CC apanhou uma garrafa (…) convencida que  (…)a mesma continha água no seu interior.

4.º (…) e deu a beber o líquido que a mesma continha à ofendida  (…).

5.º (…) a ofendida engasgou-se e deitou fora o líquido, pedindo, de imediato, que lhe dessem água, dado que tinha a boca a arder.

6.º (…)

7.º Porém, CC só se apercebeu da gravidade da situação quando, mais tarde, pelas 11h00m, ela própria experimentou beber o líquido que havia dado à ofendida (…), apercebendo-‑se que não era água.
(…)
10.º O seu estado clínico agravou-se, sendo que a ofendida veio a falecer no dia 14.01.2011  (…).

11.º Após a realização de autópsia (…), apurou-se que (…) apresentava  (…): ferida/queimadura na região do mento e lábio inferior; áreas hemorrágicas nas paredes do estomago (…), traqueia e brônquios; descoloração dos pulmões.

12.º Mais se apurou que aqueles achados autópticos foram produzidos pela ingestão de lixívia, sendo essa a causa da morte (…) da ofendida.

Não se mostra suficientemente indiciada (…) a factualidade incompatível com a acima referida, nomeadamente:

a) (…) a arguida, para proceder à limpeza da sala de banhos, encheu uma garrafa de água de 33 cl, que se encontrava vazia, com lixívia, (…)  deixou aquela garrafa numa prateleira com três outras idênticas garrafas (…).

b) A garrafa referida em 3 foi a deixada pela arguida na prateleira.
(…)”

11. Contraditória e determinantemente, considerou-se no acórdão recorrido, para além do mais:


“A gravidade deste comportamento, totalmente inusitado em face das referidas circunstâncias, veio a assumir toda a sua expressão no facto de, no dia seguinte, ou seja no dia 13 de janeiro de 2011, quando a ajudante de ação direta CC foi dar banho à utente DD e porque esta lhe referira estar com a boca seca, já na sala de banhos ter ido buscar uma garrafa de água à prateleira onde habitualmente existiam garrafas de água idênticas para dessedentar utentes e funcionários, acabando por dar a beber à referida utente o produto anticalcário contido na garrafa que a A. deixara nesse local – produto que, frisa-se, era transparente e tinha o aspeto de água – na convicção de se tratar efetivamente de água, tanto assim que, posteriormente, quando, também ela, necessitou de tomar um comprimido, o fez usando o mesmo líquido contido na referida garrafa por já haver gasto as demais garrafas que continham água com outros utentes do estabelecimento, verificando, apenas nesse momento, que se não tratava de água mas de um produto químico que queimava e que seguramente, havia levado a referida utente a engasgar-se e a deitar fora, queixando-se que tinha o estômago a arder e que lhe tinham dado qualquer coisa pela boca a baixo.”

12. Quid juris?

Com a reforma operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12, o Código de Processo Civil passou a regular a matéria da “eficácia da decisão penal absolutória”, consignando-‑se no seu art. 674.º-B (então aditado) que “a decisão penal transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova do contrário (n.º 1), presunção que “prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil” (n.º 2).

Em igual sentido dispõe o art. 624º do NCPC.

Tem entendido este Supremo Tribunal que não pode considerar-se integrada a previsão daquela disposição legal nos casos em que a absolvição decorre da simples falta de prova dos factos imputados ao arguido (designadamente por dúvidas do julgador), só relevando, para efeitos desta presunção, a absolvição fundada na prova (positiva) de que os factos não foram realmente praticados.[6]

Como se refere no Ac. do STJ de 10.2.2004 (sumário): “não é qualquer decisão penal absolutória que constitui presunção da inexistência dos factos imputados ao arguido; esta presunção só existirá se a absolvição no processo-crime tiver por fundamento a prova de que o arguido não praticou aqueles factos, sendo que a simples falta de prova da acusação, como foi aqui o caso, não permite fundar qualquer presunção, valendo, então, no âmbito do processo penal, a presunção de inocência do arguido, sem qualquer valor fora desse processo”.[7]

Ora, no caso dos autos, apenas se considerou que determinada factualidade imputada à A. “não se mostra suficientemente indiciada”, o que é realidade bem diversa.

Acresce que está em causa um mero despacho de não pronúncia e não uma sentença absolutória.

Sem necessidade de considerações complementares, improcede, pois, manifestamente, a revista.

IV.

13. Em face do exposto, negando a revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.


Lisboa, 18 de Junho de 2014

Mário Belo Morgado (Relator)

Pinto Hespanhol

Fernandes da Silva

_____________________
[1] Todas as referências ao CPC são reportadas à versão mencionada no ponto n.º 8 do presente acórdão.
[2] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido,  não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem sequer vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 5, do mesmo diploma.
[3] Os autos tiveram início em 06.05.2011, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 13.02.2014.
[4] Redação dada pelo TRE.
[5] Redação dada pelo TRE.
[6] Neste sentido, v.g. Ac. de 22-05-2013, P. 2024/05.2TBAGD.C1.C1/2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt (como todos os arestos que se citarem sem menção em contrário).
[7] P. 04A4284