Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
77/14.1T8MFR-C.L1-A.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: DESATENDIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / PROCEDIMENTOS CAUTELARES / PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DECISÕES QUE ADMITEM RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 370.º, N.º 2 E 629.º, N.º 2, ALÍNEA C).
Sumário :
I - Em procedimento cautelar o recurso para o STJ só é possível, nos termos previstos na parte final do nº 2 do art. 370º do CPC, nos casos referidos no nº 2 do art. 629º do mesmo diploma.

II - Embora o nº 2, alínea c) do art. 629º do mesmo diploma preveja a extensão de recorribilidade apenas para o caso da inadmissibilidade do recurso provir do valor da causa ou da sucumbência, a regra que nele se institui é de aplicar a impedimentos de acesso ao tribunal superior que sejam determinados por razões diversas.

III - Para efeitos de verificação do pressuposto de admissibilidade de recurso constante da alínea c) do nº 2 do art. 629º, a contradição com jurisprudência uniformizada pelo STJ tem de reportar-se ao “núcleo essencial de acórdão de uniformização de jurisprudência”, tem de constituir uma “oposição frontal” e tem de respeitar a questão de direito idêntica e que tenha sido essencial para o resultado obtido numa e noutra decisões, devendo ainda ter ocorrido num quadro normativo substancialmente idêntico.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I – A fls. 64-69, a relatora do processo proferiu decisão do seguinte teor:

I – No âmbito da “providência cautelar para apreensão de veículo e respetivos documentos”, movida por AA - Instituição de Crédito, S.A., contra BB e CC, a pedida apreensão de veículos foi decretada e, mais tarde, o procedimento foi julgado caduco e declarado extinto.

Na sequência dessa decisão, a requerida solicitou a imediata entrega judicial dos veículos, restituição que veio a ser ordenada por acórdão do Tribunal da Relação de …, na sequência de recurso de apelação que fora interposto contra decisão da 1ª instância que não acolhera aquela pretensão com fundamento em que nada havia a ordenar por os autos se encontrarem extintos pelo julgamento.

Na sequência disto, foi proferido despacho que ordenou ao depositário quanto a eles constituído em processo executivo que procedesse à entrega dos veículos aos requeridos.

Veio DD, Lda., na sequência de notificação que lhe foi feita para o efeito, informar que os veículos em causa se encontram penhorados à ordem de processo de execução que identifica, no âmbito da qual foi constituída fiel depositária, pelo que, prossegue, está impedida de os devolver.

Tendo a requerida reiterado o pedido, antes feito, de restituição das viaturas, foi proferido despacho que indeferiu a sua pretensão, decisão que, em recurso de apelação por aquela interposto, veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de ….


Ainda inconformada, a requerida interpôs revista para este STJ, recurso que não foi recebido por despacho do seguinte teor:

“Dado que Acórdão que se gostaria de poder impugnar não se pronunciou, ao contrário do que se pretendeu invocar no requerimento de interposição de recurso, sobre questão abrangida por jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e considerando o valor da ação, não admito o recurso interposto a fls. 115 e seguintes o que faço ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 629º do Código de Processo Civil e nos arts. 42º, nº 1 e 44º, nº 1, ambos da Lei da Organização do Sistema Judiciário.”


A recorrente apresentou reclamação para este STJ, ao abrigo do art. 643º, nºs 1 e 3 do CPC, sustentando, essencialmente e em síntese, que a revista é admissível por se verificar a previsão normativa do art. 629º, nº 2, alínea c) do CPC, pois a decisão em causa contraria a jurisprudência uniformizada pelo STJ no processo nº 3965/07-10/2008 de 14 de Novembro.

 

 II – Vejamos se a reclamante tem razão.

Estamos no âmbito de providência cautelar em que rege, no tocante a recursos, o art. 370º do CPC[1], em cujo nº 2 se estabelece que, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões proferidas nos procedimentos cautelares.

Assim, a inadmissibilidade do recurso de revista radica, desde logo, na natureza do processo, sendo, pois, ditada não só pelo valor da providência - € 27.500,00 –, mas também por motivo estranho à alçada do tribunal.

Embora o nº 2, alínea c) do art. 629º[2] preveja a extensão de recorribilidade apenas para o caso da inadmissibilidade do recurso provir do valor da causa ou da sucumbência, a regra que nele se institui é de aplicar a impedimentos de acesso ao tribunal superior que sejam determinados por razões diversas.[3]

Invocando a recorrente, como fundamento do recurso, o facto de o acórdão recorrido ter sido proferido contra jurisprudência uniformizada do STJ, cabia-lhe, em cumprimento do que manda o nº 2 do art. 637º, ter juntado, com o requerimento de interposição da revista, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento.

Não tendo satisfeito essa exigência legal, sempre se imporia, como da mesma norma consta, a rejeição do recurso.

Desde logo, por esta razão a reclamação nunca poderia ter sucesso.

Ainda assim se dirá que sempre careceria de fundamento a tese da reclamante, ao afirmar que o acórdão recorrido foi proferido contra a jurisprudência que o STJ uniformizou no seu acórdão de 9.10.2008, Processo nº 3965/07, 1ª secção (AUJ nº 10/2008)[4]

Não pode deixar de salientar-se que o fez sem ensaiar qualquer justificação para o que afirma, limitando-se a invocar a verificação da previsão normativa que lhe conferiria acesso ao terceiro grau de jurisdição, sem qualquer preocupação de explicitar por que motivos e em que medida o acórdão recorrido terá julgado contra aquela uniformização jurisprudencial. Não indica, contra o que era seu ónus, a questão jurídica que, sendo essencial para uma e para a outra decisão, foi decidida no acórdão recorrido contra a jurisprudência que naquele AUJ foi fixada.

Certo é, de qualquer modo, que se não vislumbra a existência do apontado vício.

Para efeitos de verificação do pressuposto de admissibilidade de recurso constante da alínea c) do nº 2 do art. 629º, a contradição com jurisprudência uniformizada pelo STJ tem de reportar-se ao “núcleo essencial de acórdão de uniformização de jurisprudência”, tem de constituir uma “oposição frontal” e tem de respeitar a questão de direito idêntica e que tenha sido essencial para o resultado obtido numa e noutra decisões, devendo ainda ter ocorrido num quadro normativo substancialmente idêntico.[5]

No AUJ invocado pela recorrente, estando em causa a seguinte questão:

“Verificando-se que sobre veículo automóvel que fora penhorado incide registo de reserva de propriedade a favor do próprio exequente, pode a execução prosseguir, para as fases de concurso de credores e venda, sem que este, previamente, inscreva no registo a extinção da referida reserva?”, uniformizou-se a seguinte jurisprudência:

«A acção executiva na qual se penhorou um veículo automóvel, sobre o qual incide registo de reserva de propriedade a favor do exequente, não pode prosseguir para as fases de concurso de credores e da venda, sem que este promova e comprove a inscrição, no registo automóvel, da extinção da referida reserva.»

Ora, a questão submetida à apreciação da Relação de … e decidida no acórdão recorrido, como neste se enuncia, consistia em saber se, atenta a natureza do procedimento cautelar em causa, se impunha ao tribunal de 1ª instância, “realizar todas as diligências com vista a devolver os veículos aos requeridos, gozando a providência de prioridade sobre a penhora, por ser anterior.”

Tendo sido ordenada a restituição dos veículos apreendidos aos requeridos por a providência haver caducado e não se tendo obtido essa restituição do fiel depositário a quem foram entregues no âmbito de processo de execução onde foram penhorados, a questão que se punha naquele recurso de apelação e que no acórdão recorrido foi decidida consistia em saber se, apesar daquela penhora, se impunha que o juiz do procedimento cautelar extinto ordenasse e fizesse “executar” a entrega dos veículos aos requeridos.

Entre a questão de direito decidida no acórdão recorrido e aquela sobre a qual foi uniformizada jurisprudência no citado AUJ não existe identidade, o que afasta, sem mais, a existência de contradição relevante que pudesse integrar a previsão normativa do art. 629º, nº 2, c), tornando admissível a revista.


Daí que também por este fundamento a reclamação não pudesse proceder.

 

III - Pelo exposto, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada.

Custas a cargo da reclamante.

(…)”


Discordando desta decisão, veio a requerida requerer, com invocação do disposto nos arts. 643º, nº 4 e 652º, nº 3, ambos do CPC, que sobre a matéria recaia acórdão, afirmando que:

- “discorda da aplicação do artigo 629º nº 2 alínea c) do CPC a «impedimentos de acesso ao tribunal superior por razões diversas», porquanto o artigo 370º nº 2 parte final CPC estatui «sem prejuízo dos casos em que o Recurso é sempre admissível», preceito legal que “estatui e alicerça juridicamente a viabilidade jurisdicional do recurso apresentado a juízo.

- “(…) entende que existe identidade entre o Acórdão recorrido e o supra identificado no artigo 3” – AUJ nº 10/2008.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - Não se entende bem, nem a reclamante tem o cuidado de explicitar, a primeira das afirmações que profere.

É manifesto que a parte final do nº 2 do art. 370º, por si só considerado, de modo algum viabiliza a admissibilidade do recurso interposto; depois de erigir como regra geral a da inadmissibilidade de acesso ao terceiro grau de jurisdição das decisões proferidas em procedimentos cautelares, a dita norma, na sua parte final, ressalva os casos em que, por virtude de outros dipositivos legais, o recurso é sempre admissível.

E aí surge a necessidade de convocar o regime do nº 2 do art. 629º, preceito que enumera os casos em que, independentemente da verificação dos pressupostos de natureza geral de admissibilidade de recurso atinentes ao valor da causa e da sucumbência – nº 1 da mesma norma -, o recurso é sempre admissível.

Entre esses casos avulta o de a decisão, proferida no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contrariar jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça – alínea c) do nº 2 do dito art. 629º.

Ou seja, como se explicita na decisão reclamada, a admissibilidade do recurso só seria viabilizada pela verificação dos requisitos enunciados na alínea c) do nº 2 do art. 629º, preceito que se teve como aplicável também quando a limitação de acesso ao terceiro grau de jurisdição é ditada por motivos estranhos ao valor da causa e da sucumbência, como é o caso das decisões proferidas em sede de procedimento cautelar.

Este entendimento, que ora se mantém, favorece manifestamente a posição da reclamante, mal se percebendo, por isso, que contra ele se insurja. Com efeito, não fora ele, o caso dos autos estaria, à partida, excluído da previsão normativa daquele preceito por a decisão recorrida ter sido proferida em sede de providência cautelar.

Não colhe, pois, esta argumentação da reclamante.


Também a segunda afirmação que profere é exposta sem qualquer fundamentação que ponha em causa o que a esse propósito se fez constar na decisão reclamada que ora se reitera com a fundamentação nela aduzida.


A reclamação está, assim, votada ao insucesso.


III - Pelo exposto, indefere-se a reclamação, mantendo-se a decisão da relatora que confirmou o despacho de rejeição do recurso.

Custas a cargo da reclamante com taxa de justiça que se fixa em 2 UCs.


Lisboa, 7.06.2018


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

__________


[1] Diploma a que pertencem as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.
[2] Segundo o qual, “2. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:
c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, pág. 51, nota 74.
[4] Publicado no D. R. nº 222/2008, Série I de 14.11.2008
[5] Ibidem, pág. 50 e segs..