Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2593/19.0T8VLG.P1.S1-A
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
PROVA DOCUMENTAL
PRINCÍPIO DA NOVIDADE
CASO JULGADO
PRINCÍPIO DA AUTOSSUFICIÊNCIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DETERMINAÇÃO DO VALOR
PERDA DE VEÍCULO
FURTO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. No recurso de revisão interposto com fundamento na alínea c) do art. 696.º do CPC, a jurisprudência constante do STJ considera que a apresentação de documento só será admissível quando: (i) o documento, por si só, e sem apelo a demais elementos probatórios, seja capaz de destruir o juízo probatório realizado em sede da decisão revidenda e imponha uma decisão mais favorável ao recorrente (requisito da suficiência); (ii) e quando o recorrente não tenha podido fazer uso do documento por desconhecimento da sua existência ou pela sua inexistência (requisito da novidade).

II. A jurisprudência do STJ tem vindo a propugnar o entendimento de que o documento deve visar a demonstração ou a impugnação de factos alegados pelas partes ou adquiridos para o processo que tenham sido essenciais para a decisão de mérito colocada em crise, não podendo em caso algum visar a prova de factos novos (requisito da pré-alegação).

III. No caso dos autos, encontra-se verificado o requisito da pré-alegação, mas não os requisitos da novidade e da suficiência.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. Os presentes autos de recurso extraordinário de revisão têm por objecto o acórdão proferido nos mesmos autos (decisão revidenda) em acção declarativa que AA intentou contra Seguradoras Unidas, S.A. pedindo a condenação desta no pagamento da indemnização devida pela perda total do veículo automóvel seguro em virtude do seu furto, nos termos estabelecidos no contrato de seguro celebrado entre as partes, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, a contar do prazo de 60 dias sobre a participação criminal do furto até efectivo e integral pagamento.

O autor AA veio interpor o presente recurso de revisão do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que negou provimento ao recurso de revista interposto pelo ora recorrente, confirmando a decisão do Tribunal da Relação, invocando o disposto na alínea c), do art. 696.º, do Código de Processo Civil,


2. Por sentença da 1.ª instância foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e condeno a ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar ao autor AA a quantia que se vier a apurar em ulterior liquidação, correspondente ao capital seguro, na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, fosse conhecido que o veículo com a matrícula ..-VI-.. não estava dotado de conjunto de acessórios extra, denominado “pack M”, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar desde a data de 01/04/2020 e até efetivo e integral pagamento, absolvendo a ré do mais peticionado.».


3. Inconformada, a R. Seguradoras Unidas interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que julgou procedente a impugnação da matéria de facto, considerando demonstrados os seguintes factos:

1) O autor AA é dono do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca BMW, modelo 3-V 318 D, com a matrícula ..-VI-...

2) Por escrito, com a data de 07/09/2018, o autor declarou comprar a C..., Unipessoal, Lda., que explora o stand de venda de automóveis denominado “M...”, o veículo automóvel com a matrícula ..-VI-.., de marca BMW, modelo 318 GT, fabricado em 01/2014, com cilindrada 1995, com 5 lugares e com 121000 quilómetros, pelo preço de € 18.800,00 e pela retoma do veículo automóvel de marca Peugeot, modelo Partner, com o valor de € 13.700,00, perfazendo um total de € 32.500,00.

3) O autor e C..., Unipessoal, Lda., declararam por escrito, datado de 25/08/2018, respectivamente vender e comprar o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo Partner, com a matrícula ..-SO-.., pelo preço de € 13.700,00.

4) Para pagamento do veículo identificado em 1), o autor, através de A..., Lda. solicitou a C..., S.A., em 29/08/2018, o financiamento da quantia de € 33.000,00 (trinta e três mil euros), a restituir em prestações mensais.

5) Essa quantia foi entregue por C..., S.A., a pedido do autor, de 29/08/2018, a A..., Lda..

6)C..., Unipessoal, Lda. emitiu, em nome do autor, factura relativa ao veículo acima identificado, com o preço de € 18.800,00, datada de 07/09/2018.

7) O veículo referido foi adquirido por M..., Unipessoal, Lda. em leilão electrónico, no país de origem da primeira matrícula, na ..., pelo preço de € 12.800,00, em 05/02/2018.

8) A essa data, o veículo, cuja matrícula original, de 15/01/2014, era 1GEI320, apresentava, pelo menos, 136659 quilómetros percorridos.

9) Na sequência de procedimento de desalfandegamento, com o pagamento da taxa aduaneira devida, de € 4.594,67, e por pedido de 05/06/2018, foi atribuída ao veículo a matrícula actual, acima indicada (..-VI-..).

10) À data de 03/09/2018, o veículo tinha 140467 quilómetros percorridos.

11) O veículo automóvel identificado encontra-se inscrito a favor do autor, na Conservatória do Registo Automóvel, através do registo n.º ...34, de 04/10/2018, com reserva de propriedade a favor de C....

12) Como anterior proprietário do veículo consta, na Conservatória do Registo Automóvel, com o registo n.º ...32, de 04/10/2018, M..., Unipessoal, Lda..

13) O autor, acompanhado do legal representante de C..., Unipessoal, Lda., solicitou a agência de mediação de seguros, representante da ré, a celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil pela circulação do veículo acima identificado, tendo fornecido os respectivos dados e características.

14) O autor e o legal representante de C..., Unipessoal, Lda. comunicaram à ré, através dessa agência, que o veículo em causa, com a matrícula ..-VI-.., era de marca BMW, série 3, diesel, com o modelo 318 D “pack M”, com o valor de € 32.500,00.

15) O veículo descrito não tem “pack M”, apresentando apenas o volante que costuma ser aplicado nos veículos com esse conjunto de acessórios adicionais, vulgarmente designados de “extras”, proporcionado pela marca, do [que] tinha conhecimento o autor.

16) O autor quis indicar à ré que o veículo possuía esses acessórios extra, sabendo que tal não correspondia à sua concreta situação, com o objectivo de aumentar o valor do capital seguro.

17) Por escrito, o autor e a ré Seguradoras Unidas, S.A. declararam acordar na transferência para a segunda da responsabilidade pelo risco de danos próprios, nomeadamente por furto ou roubo, do veículo automóvel com a matrícula ..-VI-.., de marca BMW, série 3, diesel, com o modelo 318 D “pack M”, com início em 07/09/2018, conforme consta da apólice de seguro automóvel, com o n.º ...19 e suas cláusulas gerais e particulares e tabela de actualizações anexa, juntas aos autos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

18) No dia 31 de Janeiro de 2019, pelas 21 horas e 30 minutos, o autor estacionou o veículo identificado na Av. ..., em ..., em lugar de estacionamento reservado a residente, para o qual tinha autorização camarária, aí o deixando.

19) No dia seguinte, 1 de Fevereiro de 2019, pelas 10 horas, quando se deslocou a esse local, o dito veículo automóvel ali não se encontrava.

20) O autor apresentou queixa na esquadra da Polícia de Segurança Pública, de ..., no dia 01/02/2019, dando origem ao inquérito criminal com o n.º 45/19...., que correu termos no DIAP ..., arquivado pelo Ministério Público, mediante despacho cuja notificação foi expedida ao autor em 25/02/2019, por não existirem indícios da autoria dos factos denunciados.

21) Até à data, o veículo indicado não foi encontrado pelas autoridades policiais.

22) O autor participou o sinistro à ré, em 01/02/2018[1], tendo esta iniciado averiguação, através de diligências de empresa de peritagens que lhe presta serviços.

23) Em 27/03/2019, o autor facultou ao averiguador ao serviço da ré duas chaves do veículo identificado, cuja leitura indicou, respectivamente, que a última utilização datava de 31/01/2019, às 21h20, apresentando o quadrante 149559 quilómetros percorridos, e uma utilização do dia 09/10/2018, às 21h52, apresentando o veículo 143517 quilómetros percorridos.

24) O autor declarou à ré, por escrito, datado de 27/03/2019, que o veículo tinha “pack M” e que fora adquirido pelo preço de € 33.000,00, ao stand “M...” do seu amigo BB.

25) Por escrito datado de 26/04/2019, a ré comunicou ao autor que declinava responsabilidade pela liquidação dos danos.

26) À data de 01/02/2019, o veículo descrito em 1. tinha um valor comercial de 13.100,00 €.

27) O autor participou vários outros sinistros anteriores, entre os quais, designadamente o de furto de um veículo de marca BMW, série 4 Grand Coupé, de matrícula ..-SB-.., em 31/08/2017, tendo recebido de Seguro Direto, S.A., a título de indemnização pela perda total, a quantia de € 41.062,00, em 18/01/2018, no âmbito de apólice de seguro com início em 29/06/2017.

A final, o Tribunal da Relação proferiu a seguinte decisão:

«Por tudo o exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e, alterando-se a decisão recorrida, condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de 13.100,00 euros acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data de 3/4/2019 até efectivo e integral pagamento.».


4. Em sede de recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a decisão do acórdão da Relação, primeiro por decisão proferida em singular e, depois, por acórdão da Conferência.

Esta decisão transitou em julgado em 16-03-2023 (cfr. certidão emitida em 23-03-2023, constante dos autos principais).

É contra esta decisão que se insurge o autor AA, o que faz mediante o presente recurso de revisão interposto ao abrigo do disposto na alínea c), do art. 696.º, do CPC, formulando as seguintes conclusões:

«I. O presente recurso tem por objeto toda a matéria de facto e de direito da decisão recorrida.

II. Isto porque, há um manifesto erro na determinação da norma aplicável e na apreciação da prova e, por conseguinte, um notório erro na decisão do valor da indemnização a ser paga pela ré ao autor.

III. O recorrente tem na sua posse um documento que altera a decisão que não tinha conhecimento e, por consequência, não tinha podido fazer uso do mesmo, sendo que é suficiente para modificar a decisão recorrida.

IV. O A. é dono do veículo automóvel, ligeiro de passageiros.

V. A viatura foi adquirida pelo valor de €32.500,00 (trinta e dois mil e quinhentos euros).

VI. O A. recorreu a financiamento junto da C..., pelo montante de €33.000,00 (trinta e três mil euros).

VII. O valor da fatura do veículo é de €18.800,00 (dezoito mil e oitocentos euros);

VIII. Para pagamento do remanescente do automóvel entregou o veículo, marca Peugeot Partner, matrícula ..-SO-.., a qual foi de comum acordo entregue pelo valor de €13.700,00 (treze mil e setecentos euros).

IX. No dia 31 de janeiro de 2019, o aqui recorrente deixou o seu veículo estacionado na via pública e, no dia seguinte, pelas 10h00, aquando ao local regressou, aquele veículo havia desaparecido, não tendo sido recuperado até ao momento.

X. O recorrente apresentou denúncia à autoridade policial.

XI. Assim, verifica-se obviamente a perda do veículo segurado, estando assente o sinistro coberto pelo contrato que vincula a Ré, tendo como consequência, para esta, a obrigação de indemnizar.

XII. A seguradora Tranquilidade recusou parcialmente ao pagamento de indemnização do valor que de compra de €32.500,00, como já referido onde na primeira Instância do Tribunal Judicial ..., ficou provado e decidido que ora recorrente tinha de receber o valor reclamado (32.500,00€), menos €5.000 mil, devido a um extra mencionado na apólice de seguro que foi feito aquando da compra do carro onde dizia Pack M e na verdade o carro era um BMW 318 GT Line Sport e tinha como opções o volante e a manete de velocidades do Pack M e o GPS Profissional.

XIII. O Tribunal a quo formou a sua convicção através de um mero documento de uma pesquisa efetuada online, que como todos sabemos o valor que tem!

XIV. Desde já, se impugna tal documento dado que, face à sua eventualidade quanto à fixação de um valor de mercado!

XV. Muito mal vai o mercado, pois este tipo de veículo à venda ao consumidor final, rondaria sempre valores extremamente mais altos.

XVI. A Ré recorreu para o Tribunal da Relação do Porto e alegou que o veículo não valia, nem vale o valor €32.500,00 euros mas apenas e tão-somente de cerca de €12.000,00 !!!

XVII. Alegado que foi adquirido num leilão na ..., que ultrapassa o aqui Recorrente, pois até poderia ter sido a custo zero.

XVIII. Certo é que o Recorrente pagou os €32.500,00, através de transferência da financeira para o Stande vendedor.

XIX. O recorrente fez o presente seguro através do gerente do Stand M... na agência de seguros em ...;

XX. Para pagamento entregou ao vendedor, através de retoma, a carrinha de marca Peugeot Partner matrícula ..-SO-...

XXI. Para tal teria que ser liquidado o financiamento desta ao Banco 1....

XXII. Desta feita, recorreu ao financiamento de €33.000,00 a fim de liquidar estas quantias, aquando da aquisição do seu veículo marca BMW, conforme os documentos já juntos aos presentes autos e se dão por integralmente reproduzidos e articulados para os devidos e legais efeitos.

XXIII. Por sua vez, até a data de hoje o recorrente está a pagar dois financiamentos do aqui BMW e do veículo entregue a título de retoma.

XXIV. A carrinha Peugeot foi vendida pelo Stand M..., porém não liquidaram o financiamento ao Banco 1... que o recorrente é titular.

XXV. Efetivamente o crédito ao Banco 1... não foi liquidado, tendo sido extinta a reserva por documentos falsos.

XXVI. Foi apresentada queixa-crime contra o Stand M... e os seus respetivos proprietários, cujo processo se encontra a decorrer no Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., com o processo n.º 905/19...., com data de julgamento para o dia 11/10/2023 e segunda data para 17/10/2023, na sequência da falsificação dos documentos da reserva de propriedade pelo Stand e seus proprietários.

XXVII. Continua o Recorrente a pagar os dois financiamentos, sentindo-se ofendido na sua honra com a insinuações de que o mesmo simulou o negócio!!!

XXVIII. O recorrente requereu no mesmo mediador e à mesma companhia de seguros uma simulação do seguro do veículo, à data de hoje.

XXIX. Pelo que, através da simulação, concluiu-se que o VALOR do veículo do carro, à data de 14/03/2023 é de 18.578,00€, tendo como valor em novo de € 45.472,00€.

XXX. Bem como de uma pesquisa de mercado, conforme documento junto com o número 2 se verifica que tem, atualmente, o valor que rondará os € 19.000,00, valor este que a simulação acompanha muito de próximo, muito próximo!!

XXXI. Desta forma, é inevitável que este documento, determine que a Ré seja condenada a pagar a título de indemnização pelo menos o valor de € 32.500,00 ao recorrente, ou o que se vier a apurar em ulterior liquidação, correspondente ao capital seguro, na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, fosse conhecido que o veículo com a matrícula ..-VI-.. não estava dotado de conjunto de acessórios extra, denominado “pack M”.

XXXII. Verifica-se obviamente a perda do veículo segurado, estando assente o sinistro coberto pelo contrato que vincula a Ré, tendo como consequência, para esta, obrigação de indemnizar.

XXXIII. O princípio da liberdade contratual afirmado no art.º 11º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o negócio assim celebrado é regulado pelas estipulações da respetiva apólice que não sejam proibidas por lei; subsidiariamente, pelas disposições do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e, ainda subsidiariamente pelas disposições da lei comercial e da lei civil.

XXXIV. Assim, o contrato celebrado pelas partes, nos termos que ficaram assentes, verifica-se que foi convencionado um seguro de responsabilidade civil e ainda um seguro que cobre danos próprios do veículo em caso de furto ou roubo, integrando o tipo denominado “seguro de danos”, previsto no título II art.º 123.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

XXXV. Por força de tal contrato de seguro, que abrange danos próprios do veículo em caso de furto ou roubo, a seguradora, verificado o sinistro, nos termos do disposto no art.º 99.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, constitui-se na obrigação de indemnizar o tomador do seguro pelo valor do dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, tal como determina o princípio indemnizatório previsto no art.º 128.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

XXXVI. Sucede que, a Ré alega que o valor do veículo que serviu de base à cobertura definida não corresponde à realidade, dado que o veículo em apreço não tem “pack M” apresentando apenas o volante que costuma ser aplicado nos veículos com esse conjunto de acessórios, vulgarmente designados de “extras”.

XXXVII. Porém, a Ré não alegou, nem demonstrou que o autor ao ter feito constar uma realidade incorreta quanto ao valor do veículo, tenha usado de um artifício causador que não a levaria a contratar o seguro.

XXXVIII. Pelo que, aceitou, emitindo a apólice número ...19.

XXXIX. Ademais, a Ré nunca demonstrou que em caso algum, que teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente.

XL. Aliás, os mediadores de seguros ao submeterem as matrículas dos veículos para emissão de apólice o valor é dado pelo sistema, caso o valor não fosse o contratado, deveria a mediadora ser responsabilizada pela seguradora e não o aqui autor.

XLI. Deveria a mediadora ter averiguado se o veículo estava em conformidade com a declaração prestada pelo Stand M....

XLII. A Ré deve ser condenada a pagar ao recorrente a quantia de €32.500,00, correspondente ao valor do veículo, conforme os documentos já juntos aos presentes autos, a factura de compra de veículo, o valor apurado na retoma através da entrega do veículo Peugeot e o contrato de empréstimo que o recorrente assinou aquando da compra do veículo BMW e ainda o documento ora junto com o número 1 e 2, onde demostra o documento número 1 que o veículo à data de 14/03/2023 tem o valor de 18.578,00€ o que é certo e seguro que à data do furto o valor deste seria muito próximo dos 30.000,00€.

XLIII. Caso assim não se entenda, deverá ser a quantia que se vier a apurar em ulterior liquidação, correspondente ao capital seguro, na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, fosse conhecido que o veículo com a matrícula ..-VI-.. não estava dotado de conjunto de acessórios extra, denominado “pack M”.».

Não foram apresentadas contra-alegações.

II - Admissão do recurso


1. A interposição do recurso de revisão justifica-se pela “necessidade de corrigir anomalias graves do processo, não obstante se ter verificado já o trânsito em julgado da decisão recorrida. (…) desta situação vai resultar uma nova faceta do conflito entre os dois interesses fundamentais representados pela certeza e segurança jurídica e pela necessidade de justiça” (José João Baptista, Dos Recursos (em Processo Civil), 7.ª ed., SPB Editores, Lisboa, 2004, pág. 137).

Nas palavras do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-07-2020 (proc. n.º 1090/07.0TVLSB.L1.S1-B), disponível em www.dgsi.pt:

“I - O recurso de revisão constitui exceção à intangibilidade do caso julgado.

II - Com a interposição do recurso de revisão inicia-se um processo novo cujo fim último é a excecional destruição do caso julgado, formado na ação.”.

É esta excepcionalidade que justifica o entendimento da jurisprudência deste Supremo Tribunal de que “a procedência do recurso de revisão não pode basear-se em alegações inconsistentes, infundadas e levianas, próprias da parte que não se conformou com a decisão definitiva sobre o mérito da causa e procura, por essa via, encontrar mais uma instância de recurso.” (acórdão de 05-05-2020, proc. n.º 2178/04.5TVLSB-E.L2.S1), não publicado nas bases de dados disponíveis.

Resulta, assim, que a reabertura de um processo com decisão transitada em julgado apenas pode ocorrer nas situações taxativamente indicadas no art. 696.º do CPC, que tipificam casos em que, na perspectiva do legislador, o princípio da justiça material deve prevalecer sobre os princípios da certeza e da segurança jurídicas.

Ora, o recurso extraordinário de revisão é composto por duas fases distintas, a saber: a fase rescindente (art. 700.º do CPC), destinada ao conhecimento do fundamento do recurso, mantendo-se ou revogando-se a decisão objecto de revisão; e a fase rescisória, que depende da procedência do recurso e se destina à reapreciação da causa e à prolação de nova decisão (art. 701.º do CPC). Cfr., a este respeito, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pág. 353; Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 268; Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil: Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, págs. 302 e segs.; e Pinto Furtado, Recursos em Processo Civil - De acordo com o CPC de 2013, Quid Juris, Lisboa, 2013, págs. 175 e segs..

Há, ainda, que autonomizar, como fase prévia à fase rescindente, a fase de admissão do recurso que se destina, essencialmente, a receber ou rejeitar o recurso, sendo este de indeferir “quando não tenha sido instruído nos termos do artigo anterior ou quando reconheça de imediato que não há motivo para revisão” (art. 699.º do CPC).

Nas palavras de Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, pág., 570):

 “O recurso será rejeitado, além do mais, se faltar a legitimidade activa, se a decisão ainda não tiver transitado em julgado ou se tiver sido excedido algum dos prazos de caducidade previstos no art. 697.º, n.º 2, do CPC. A rejeição liminar pode fundar-se ainda na falta de junção dos elementos documentais que a lei impõe ou na falta de alegação de elementos de facto pertinentes para o preenchimento de cada um dos fundamentos de revisão se, neste caso, se verificar uma verdadeira situação de ineptidão traduzida na falta ou ininteligibilidade da causa de pedir. Por fim o requerimento deverá ser rejeitado quando se constate que os factos alegados não preenchem os pressupostos da revisão, designadamente, quando não conduzam ao resultado pretendido ou quando inexista uma relação de causalidade entre o facto e a decisão revidenda”. [negrito nosso]


2. Feito este breve enquadramento, cumpre verificar se o recorrente invocou um motivo válido para a pretendida revisão de decisão transitada em julgado.

O aqui recorrente interpõe recurso de revisão com fundamento na alínea c) do art. 696.º do CPC, segundo o qual:

“A decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando :

(…)

c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”.

Ora, lido e interpretado o presente recurso de revisão, constata-se que o recorrente pretende demonstrar que, à data do furto (entre o dia 31-01-2019 e o dia 01/02/2019), o veículo seguro tinha um valor de, pelo menos, € 30 000,00 (por referência ao facto provado n.º 26).

Pretende, assim, o recorrente que a R. seguradora seja condenada a pagar a quantia de €32 500,00, correspondente ao valor do veículo descrito nos autos entre o dia 31-01-2019 e o dia 01/02/2019 (data do furto).


3. O recorrente tem legitimidade para a interposição deste recurso extraordinário, já que ficou vencido na causa onde foi proferida a decisão a rever (cfr. Luís Filipe Brites Lameiras, Notas práticas ao regime dos recursos em processo civil: Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto”, 2ª ed., Almedina, 2009, pág. 298).

A interposição de recurso é, igualmente, tempestiva, tendo por referência a data da prolação da decisão a rever (02-02-2023), a data de emissão do documento junto aos autos (14-03-2023) e a data de interposição de recurso (19-04-2023) (cfr. art. 696.º, alínea c) e art. 697.º, n.º 2, alínea c), ambos do CPC).


4. Importa, assim, determinar se ocorre algum fundamento de rejeição imediata do recurso (cfr. art. 699.º, n.º 1, do CPC)

No que à apresentação de documentos pretendida concerne, cumpre salientar que, de acordo com a jurisprudência constante deste Supremo Tribunal, a apresentação de documento só será admissível quando: (i) o documento, por si só, e sem apelo a demais elementos probatórios, seja capaz de destruir o juízo probatório realizado em sede da decisão revidenda e imponha uma decisão mais favorável ao recorrente; (ii) e quando o recorrente não tenha podido fazer uso do documento por desconhecimento da sua existência ou pela sua inexistência, devendo a revisão ser liminarmente rejeitada caso o documento tenha sido já apresentado no processo onde foi proferida a decisão em crise. Cfr. o acórdão do STJ de 29-10-2020, proc. n.º 400/11.0TBCVL-E.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

O documento deverá, pois, ser novo e suficiente, significando a novidade que “o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde socorrer-se dele” e a suficiência que tal documento, por si só, deve implicar “uma modificação dessa decisão em sentido mais favorável à parte vencida” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2017, proc. n.º 90/13.6T2VGS.P1.S1, não publicado nas bases de dados disponíveis).

Neste sentido, a título de exemplo, vejam-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de 11-11-2020 (proc. n.º 8250/15.9T8VNF.G1.S1-A), in www.dgsi.pt, de 09-03-2021 (proc. n.º 850/14.0YRLSB.S3), in www.dgsi.pt , de 14-01-2021 (proc. 84/07.0TVLSB.L1.S1-A), in www.dgsi.pt, de 01-10-2021 (proc. n.º 2199/10.9TVLSB-A.S1), não publicado, de 17-10-2019 (proc. n.º 2657/15.9T8LSB-Q.L1.S1), não publicado, e de 20-03-2014 (proc. n.º 2139/06.0TbBRG-G.S1), in www.dgsi.pt.

Como sintetiza Abrantes Geraldes, “importa notar que o acesso ao recurso de revisão apenas pode ser permitido nos casos em que não tenha sido objetiva ou subjetivamente possível à parte apresentar o documento a tempo de interferir no resultado declarado na ação ou execução onde foi proferida a decisão revidenda” (ob. cit., pág. 559).

Adicionalmente, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a propugnar o entendimento, que se acolhe, de que o documento deve visar a demonstração ou a impugnação de factos alegados pelas partes ou adquiridos para o processo que tenham sido essenciais para a decisão de mérito colocada em crise, não podendo em caso algum visar a prova de factos novos – requisito da pré-alegação. Neste sentido, vejam-se os acórdãos de 24-05-2018 (proc. n.º 412/12.7TBBRG-C.S1), de 19-01-2017 (proc. n.º 39/16.4YFLSB) e de 19-09-2013 (proc. n.º 663/09.1TVLSB.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

A impugnação ou a demonstração de factos pré-alegados deve, assim, impor uma alteração da decisão em crise, sendo de rejeitar o recurso sempre que da prova de um facto ou da sua exclusão não resulte uma decisão mais favorável ao recorrente.


5. Nos presentes autos de recurso extraordinário de revisão, está em causa a junção de um documento de simulação de seguro automóvel realizado por referência ao veículo dos autos e do qual consta como valor do veículo, à data de 14-03-2023, a quantia de € 18 578,00.

Do referido documento retira o autor, ora recorrente, a seguinte conclusão: se o veículo tinha, em 14-03-2023, o valor de € 18 578,00, por argumento de maioria de razão deve considerar-se que, entre 31-01-2019 e 01-02-2019, o valor de mercado do veículo estaria próximo do valor peticionado, ou seja, de € 32 500,00.

Não há dúvidas de que o facto que o recorrente pretende demonstrar foi, em devido tempo, alegado, razão pela qual se mostra verificado o requisito da pré-alegação (cfr. artigos 2.º e 46.º da petição inicial e artigo 32.º da contestação).

Já no que diz respeito ao requisito da novidade, se não há dúvidas de que o documento ora junto se assume, em face da data da sua elaboração, como objectivamente superveniente face à decisão a rever, não é possível considerá-lo subjectivamente superveniente. E isto porque o recurso extraordinário de revisão não visa, nem pode visar, a garantia de uma segunda oportunidade de carrear para os autos prova sobre factos pré-alegados, sob pena de colocar em crise os valores da segurança e da certeza jurídicas.

De facto, no caso que nos ocupa, o valor do mercado do veículo automóvel foi amplamente debatido pelas instâncias, tendo redundado na prova do facto n.º 26. Como é evidente, o recorrente não estava impedido de, por sua iniciativa e no momento processual adequado, requerer uma avaliação do veículo automóvel ou até de solicitar a elaboração de simulação de seguro automóvel, como acabou por fazer após a prolação de acórdão por este Supremo Tribunal.

Este Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre um caso idêntico ao dos autos no acórdão de 15-02-2023 (proc. n.º 25776/19.8T8LSB.L1-A.S1), in www.dgsi.pt,, assim sumariado:

“IV - Os valores da segurança e certeza inerentes à figura do caso julgado impedem que o recurso extraordinário de revisão possa constituir meio jurídico de garantir uma segunda oportunidade para prova de factos pré-alegados. Consequentemente, o documento a que alude a al. c) do citado art. 696.º do CPC, terá de se reportar à demonstração ou a impugnação de factos pré-alegados pelas partes, ou adquiridos para o processo; não, para a prova de factos novos, 

V - Não se verifica o requisito novidade do documento, na sua vertente subjectiva, se resultar evidenciado no processo que a parte só se dispôs a obtê-lo após o trânsito em julgado da decisão objecto de revisão.”.

De acordo com este entendimento, que se acolhe, a superveniência a que alude a alínea c) do art. 696.º diz respeito a uma superveniência objectiva e subjectiva, devendo tal requisito considerar-se preenchido apenas nos casos de apresentação de documentos inexistentes ou desconhecidos, que o sejam por motivos não imputáveis à parte.

É, assim, manifesto que, se o recorrente apenas se dispôs a obter tal documento após a prolação de acórdão que se revelou desfavorável, não pode pretender a revisão da decisão proferida, sob pena de colocar em causa princípios basilares do nosso sistema jurídico, como os da certeza e da segurança jurídicas, sem qualquer justificação válida.


6. Por outro lado, cumpre afirmar que não se verifica também o supra referido requisito da suficiência, entendido como “como exigência de que o documento apresentado disponha, por si só, de total e completa suficiência probatória, no sentido de que, se esse documento tivesse sido tomado em consideração pelo tribunal que proferiu a decisão revidenda, essa decisão nunca poderia ter sido aquela que foi – e isto sem apelar a outros meios de prova, sejam eles documentais, testemunhais ou periciais –, por constituir prova plena de um facto inconciliável com a decisão a rever.” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-12-2013, proc. n.º 3061/03.7TTLSB-B.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

De facto, o documento a que nos temos vindo a referir corresponde a uma simples simulação de seguro automóvel, que constitui um simples documento particular a ser apreciado livremente, e que não demonstra, de forma inequívoca, que, naquela data, o valor de mercado do automóvel descrito nos autos era de € 18 578,00 e, muito menos, que quatro anos antes da sua elaboração o valor de mercado do veículo era de € 32 500,00.

Neste sentido, se pronunciou este Supremo Tribunal no acórdão de 02-06-2019 (proc. n.º 13262/14.7T8LSB-A.L1.S1) disponível em www.dgsi.pt, afirmando, a este propósito, que “o fundamento previsto na al. c) do art. 696.º do NCPC refere-se a um documento escrito dotado de força probatória plena que seja suficiente para, por si só (alheando-se assim da margem de apreciação do julgador – trata-se de um julgamento produzido pela lei, embora com reflexo na matéria de facto), destruir a prova em que se fundou a decisão.”.

Verifica-se, assim, que o documento apresentado pelo recorrente não dispõe de força probatória para, por si só, abalar as bases em que se fundou a decisão revidenda e para permitir a afirmação, pretendida pelo recorrente, de que, entre 31/01-2019 e 01-02-2019, o veículo automóvel descrito nos autos valia no mercado a quantia de, pelo menos, €30 000,00.

Deste modo, conclui-se que o recurso deve ser rejeitado por ser, manifestamente, improcedente (art. 699.º, n.º 1, in fine, do CPC).

A terminar, esclareça-se que o recurso extraordinário de revisão não visa garantir às partes uma nova instância de recurso para situações, como a dos autos, em que o recorrente discorda do sentido decisório do Tribunal da Relação, confirmado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

No caso que nos ocupa, é manifesto que o recorrente pretende obter uma nova pronúncia sobre o caso vertente, acedendo a este Supremo Tribunal como nova instância de recurso ordinário, o que não é admissível.

III – Decisão

Pelo exposto, não se admite o recurso.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 22 de Junho de 2023


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Assinale-se que esta data é a que consta da factualidade dada como provada pelas instâncias, mas, como fica patente pela cronologia dos demais factos dados como provados, a data terá de ser 01/02/2019.