Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2440/13.6TBLRA.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESSUPOSTOS
EX-CÔNJUGE
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
BEM IMÓVEL
DIVÓRCIO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA / PRESUNÇÕES / PROVA TESTEMUNHAL / FORÇA PROBATÓRIA – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA.
Doutrina:
-Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, p. 500 e 501;
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª edição, 2004, p. 480 e ss.;
-Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 182, 184, 186 e 187;
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 214.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 351.º, 396.º E 473.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 607.º, N.º 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-10-2008, PROCESSO N.º 1834/03.0TBVRL-A.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-11-2014, PROCESSO N.º 6629/04. 0TBBRG.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19-01-2017, PROCESSO N.º 841/12.6TBMGR.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-03-2017, PROCESSO N.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1;
- DE 08-03-2018, PROCESSO N.º 1054/11.0TJVNF.G1.S1.
Sumário :
I - Cabe nos poderes da Relação alterar a decisão fáctica proferida na 1.ª instância, designadamente, extrair ilações em matéria de facto, induzindo, a partir dos factos provados, a existência de factos desconhecidos, que poderiam ser adquiridos nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (arts. 351.º, e 396.º do CC, e 607.º, n.º 5, do CPC).

II - É jurisprudência assente que essa actividade da Relação não é sindicável pelo STJ, por envolver um juízo de facto baseado em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador; admitindo-se que só assim não será se o uso de presunções pela Relação ofender qualquer normal legal, padecer de evidente ilogicidade, se partir de factos julgados não provados ou se o facto presumido nem sequer tiver sido articulado.

III - A obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento, à custa alheia, pressupõe a verificação simultânea de três requisitos: (i) a existência de um enriquecimento; (ii) a obtenção deste à custa de outrem; (iii) a falta de causa justificativa dessa valorização patrimonial (art. 473.º, n.º 1, do CC).

IV - Caberá ao autor, supostamente empobrecido, alegar e provar a falta de causa atributiva da vantagem patrimonial que integra o enriquecimento (art. 342.º, n.º 1, do CC).

V - Provando-se que o imóvel, onde a autora e o réu instalaram a casa de morada de família aquando do seu casamento (celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos), foi construído – em terreno registado em nome do réu – com o esforço económico de ambos, tendo contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para esse efeito, é de concluir que os pagamentos efectuados ao mutuante, enquanto durou o matrimónio, foram suportados pelo património comum dos cônjuges.

VI - Ao ter vendido esse imóvel, após o divórcio, embolsando o respectivo preço sem o partilhar com a autora, o réu enriqueceu injustamente à custa daquela, com o correspondente empobrecimento da autora em medida correspondente às quantias pagas ao banco credor na constância do matrimónio, assistindo, portanto, a esta o direito de receber metade dessas quantias.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


           

I – Relatório


AA intentou, em 18/05/2013, acção declarativa, ao tempo sob a forma de processo ordinário, contra BB, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 50.912,50, por enriquecimento ilícito, acrescida de juros de mora legais desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que foi casada com o réu, do qual se encontra divorciada desde 19/10/2004, tendo construído juntos, na pendência do casamento, a casa de morada de família em terreno doado a ambos, mas registado apenas em nome daquele. Apesar de ser bem comum de ambos, esse imóvel foi vendido pelo réu à revelia da autora, em 30/07/2010, na pendência de processo de inventário, pelo preço declarado de € 162.500,00, mas que terá sido superior, tendo o demandado lucrado € 101.825,00 com a venda após a liquidação do empréstimo bancário contraído, assistindo à A. o direito a metade desse valor à luz das regras do enriquecimento sem causa.

O réu contestou por impugnação e alegou que a doação não foi aceite pela autora, sendo que a mesma teria que ser realizada por convenção antenupcial, o que não ocorreu. Mais alegou que a moradia foi construída por si, ainda solteiro, e estava concluída na data do casamento, pelo que se trata de bem próprio, tendo pago todas as prestações do empréstimo.

Concluiu pela improcedência da acção e pela condenação da autora, como litigante de má-fé, em multa e indemnização em montante a fixar pelo Tribunal.

Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixando-se o objecto do litígio e os temas de prova, sem reclamações.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença, em 03/08/2016, a julgar a acção improcedente e absolver o réu do pedido.

Desta sentença apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação de … decidido, por acórdão proferido em 9 de Maio de 2017, «julgar parcialmente procedente a apelação, revogando, em consequência, a sentença absolutória recorrida e, na parcial procedência da acção:

a) Condenando o R./Apelado a pagar à A./Apelante, dentro do quantum peticionado, a quantia que se vier a liquidar, em ulterior incidente de liquidação, como correspondente a metade dos montantes de reembolso do empréstimo prestados por aqueles ao banco credor no período compreendido entre 16/09/2000 e 19/10/2004, a que acrescem os juros de mora peticionados, à taxa supletiva legal aplicável às dívidas de natureza civil;

b) E absolvendo-o do mais peticionado.

Custas da acção e da apelação, provisoriamente, na proporção de metade por ambas as partes, sem prejuízo de adequada definição na ulterior liquidação e do benefício do apoio judiciário concedido a ambos os litigantes».


Inconformado, recorreu o réu de revista, formulando na sua alegação a seguinte síntese conclusiva (sic):

«1. Tendo presente o objecto processual configurado pelo pedido e causa de pedir da Recorrida, o Recorrente apresentou contestação. Fê-lo na medida dos factos essenciais alegados pela Recorrida na sua douta P.I. e bem assim do direito por ela alegado.

(…)

3. É manifesto que o objecto processual dos presentes autos decorre da necessidade de dirimir nos meios comuns as questões concretas não resolvidas no processo de Inventário de separação de meações das partes. Tal objecto - tal qual o definiu a Recorrida - traduz-se num suposto lucro do Recorrente com a venda do imóvel em causa por parte do Recorrente que a Recorrida considerou como bem comum decorrente da sua suposta venda por parte do recorrente por 260,000,00€ - e não por 162.500,00€ como consta da escritura de venda - que gerou um suposto lucro de 101.825,00€.

(…)

8. Porém a 2a Instância, ao considerar parcialmente procedente a acção condenando o ora Recorrente a pagar à Recorrida, a quantia que se vier a liquidar em ulterior incidente de liquidação como correspondente a metade dos montantes de reembolso do empréstimo prestados por aqueles - A e R entre 16/09/2000 e 19/10/2014 -, desde a data do casamento até á data do divórcio, pronuncia-se por excesso relativamente às questões suscitadas pelas partes uma vez que não foi peticionado pela Autora o reembolso das prestações - supostamente - pagas pela Recorrida, nem sequer foram por ela alegados quaisquer factos que permitissem á Relação pronunciar-se sobre essa questão.

9. Acresce que, o pedido da Autora - ora recorrida - assenta numa regularização de meações do extinto Casal - outrora composto por Recorrente e Recorrida - em parte não dirimida em processo de Inventário - cfr. factos essenciais reproduzidos na "síntese" introdutória destas alegações

10. Ora, o Tribunal da 2a Instância ignora tal realidade e traz à colação um mútuo, contraído antes do casamento que, por esse motivo, não faz parte do acervo do extinto casal, por não constituir bem comum e trabalha-o como se o mesmo fosse um passivo do extinto casal, que, obviamente, não é.

(…)

13. Desta forma, o tribunal em 2a Instância violou claramente o disposto na 2a parte das alínea d)e e) do n.° 1 do artigo 615° do CPC o que fere de nulidade o douto acórdão.

14. Ainda em sede de nulidade do douto acórdão, há considerar - como bem consta do mesmo - o objecto dos recursos é delimitado pelas respectivas conclusões - artigo 639° n° 1 e 2 do CPC. Isto pressuposto o objecto do processo delimitado em sede de articulados -.

15. Ora, nas suas doutas conclusões em sede de recurso apresentado na 2a Instância a Autora - ora Recorrida -, apesar da improcedência total do pedido e dos factos considerados como provados e não provados em sede da douta sentença em Ia Instância, respeita o objecto processual que ela própria delimita na sua douta P.I., sendo manifesto, no entanto, que não atacou - sob a forma de impugnação da matéria de facto - os factos considerados provados em 1a instância que poderiam levar a 2a instância a, eventualmente, abordar as questões que abordou e das quais não podia ter conhecido.

(…)

18. Aqui chegados conclui-se que, à semelhança da abordagem que o Tribunal da Relação fez à douta sentença em 1a instância também violou claramente os artigos 615° n.° 1 alínea d) e e) do CPC, tendo extravasado para além do objecto do recurso delimitado pelas conclusões da Autora - Recorrente na Relação, ora Recorrida -, o que fere o douto acórdão de nulidade.

19. Não desconhece o Recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça não conhece da matéria de facto, no entanto, em sede de revista - com o devido respeito por entendimento diverso - o STJ pode apreciar se foram respeitadas/observadas pela 2a instância as regras do direito material probatório.

20. Ora, in casu, considera o Recorrente que houve violação do art° 5º, n° 2 do NCPC, decorrente da natureza conclusiva do novo ponto de facto aditado pela Relação aos pontos de facto provados pelo que esta questão ora suscitada em sede de recurso pode -salvo melhor entendimento e com o devido respeito -, ser apreciada por este Venerando tribunal uma vez que se integram no âmbito da violação das normas de direito probatório e como tal, a sindicância que se pretende é da sua competência.

(…)

24. Com efeito, o que foi alegado pela Autora no ponto de facto em causa dado como não provado e cuja decisão que sobre ele incidiu em 1a instância e foi por ela impugnado foi que: "A casa de habitação referida em 3 tenha sido construída com o esforço do trabalho de ambos e das respectivas famílias" - alínea d) dos factos não provados na decisão em 1a Instância- e que a Autora tenha contribuído, antes do divórcio, com o Réu, para pagamento das amortizações referentes ao empréstimo mencionado em 11 - alínea e) dos factos não provados na decisão em 1a Instância -.

25. Resulta assim claro que, estes dois pontos de facto - impugnados pela A - não podiam ter a roupagem dada sob a forma do indicado ponto factual aditado pela Relação: "A casa de habitação referida em 3 foi construída com o esforço económico de A e R, tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada", porquanto se é verdade que a primeira parte do novo ponto de facto, corresponde efectivamente ao ponto de facto d) dos factos não provados da douta sentença, também é verdade que a segunda parte desse mesmo facto não corresponde - nem por interpretação literal, nem restritivo, nem extensiva, nem no espírito da coisa - ao ponto de facto e) dos factos não provados na decisão em Ia instância.

(…)

29. Na verdade, a mesma - Autora - deveria alegar factos essenciais não só dos indicados pagamentos, mas também das actividades ou situações que geraram rendimentos que demonstrassem que a mesma contribuiu para o pagamento do empréstimo. Note-se que a própria expressão "esforço" (sublinhado nosso) não é suficientemente objectiva para determinar que a contribuição da Autora se materializou no pagamento do empréstimo para construção da moradia.

(…)

32. O mesmo é dizer que ficou demonstrado que foi concedido um crédito para a construção da habitação - e só isso se encontra provado - demonstrado e não que o empréstimo foi empregue na construção.

33. Aliás, encontra-se provado que a casa foi construída antes do casamento - ponto de facto 7 dos factos provados da decisão em Ia instância - e bem assim que o empréstimo foi contraído 5 (cinco) meses antes do casamento. Ora, 5 (cinco) meses - que poderão ser menos uma vez que apenas ficou provado que a casa foi construída antes do casamento- não é tempo suficiente para construir uma moradia

34. Em linha com o exposto não tendo sido feita qualquer prova de factos materiais susceptíveis de concretizar a conclusão constante do novo ponto aditado pela relação, deve o mesmo considerar-se como não escrita a referida matéria conclusiva, porquanto a mesma consubstancia formulação dum juízo de valor que se deve extrair dos factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no "thema decidendum" o que in casu não aconteceu, tendo sido violado o disposto no artigo 5º n° 2 do CPC.

35. Deverá assim ser eliminado ou considerado como não escrito o novo ponto de facto aditado aos factos provados e identificado no douto acórdão recorrido como "22" ou considerado como não escrito.

36. Tendo presente a irradicação deste facto provado é manifesto que a terá de ser revogada a douta decisão ora em crise e considerar-se a acção totalmente improcedente, por não provada.

37. O douto acórdão, em sede de fundamentação e no que interessa ao segmento deste recurso, considerou o Tribunal da Relação - ancorado no ponto de facto 7 dado como provado na douta decisão em 1a Instância - que a construção do imóvel ocorreu antes do casamento em terreno do Réu - cfr. fls. 144 verso 5a parágrafo -.

38. Admite a 2a Instância que a argumentação da Autora assenta, mesmo numa doação para casamento e consequente entrada na comunhão conjugal - que a essa mesma instancia não acolheu -.

39. Admite também o douto acórdão que in casu a A pretende metade do lucro de venda do imóvel (terreno e construção) isto é, o montante de 50.912,00€ no pressuposto -que considera não verificado - de ter sido vendido um bem comum do casal.

40. Também considera que os mutuários do empréstimo (também a A) utilizaram/investiram conjuntamente, o montante do empréstimo naquela edificação, considerando que a Autora contribuiu para o pagamento prestacional ao banco credor por considerar que na constância do casamento os salários obtidos pelos cônjuges passam a integrar a comunhão conjugal, obrigando a considerar que os pagamentos dos mutuários aos mutuantes enquanto foram suportados pelo património dos cônjuges considerando a A se encontra empobrecida com o correspondente enriquecimento do relativamente à sua contribuição para a construção da moradia.

41. Porém, olvida o tribunal que, não ficou provado que a autora contribuísse com o seu salário ou com qualquer outro rendimento para a construção da edificação em causa. Assim como olvida que o suposto lucro que a Autora considera como gerado em virtude duma venda de 260.00,00€ não ficou provada.

(…)

43. É assim manifesta a nulidade da decisão por obscuridade e ambiguidade da decisão, bem como pela oposição entre os fundamentos da decisão e a própria decisão, o que fere de nulidade o douto acórdão ao abrigo do disposto no artigo 615° n° 1, alínea b) do CPC.

44. Considera-se no douto acórdão que a Recorrida que "assim o empobrecimento da A., vistas as circunstâncias do realizado reembolso, corresponde ao enriquecimento do R. só se reflecte nas quantias pagas pelos cônjuges ao banco credor, isto é, pagas de acordo com o que vem provado, na constância do matrimónio (entre 16/09/2000 e 19/10/2004), visto que após a data do divórcio só o R. procedeu ao reembolso ao mutuante. Quanto a essas quantias pagas na constância do casamento, à custa do património comum dos cônjuges, tem a A./Apelante direito a receber metade, pois que se encontra, nessa medida, efectivamente empobrecida e a R. injustificadamente locupletado.

45. Acontece, porém, que não se mostram verificados os pressupostos que preenchem o instituto do enriquecimento sem causa uma vez o novo ponto de facto aditado aos pontos de facto considerados como provados, foi eliminado. Mas, ainda que não seja e o mesmo se mantenha - o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite -, mesmo assim sempre não se verificam os pressupostos para procedência deste instituto, uma vez que não se encontram preenchidos, cumulativamente, um enriquecimento, obtido á conta de outrem sem qualquer causa justificativa.

(…)

50. Acresce que, não podemos deixar de invocar que a douta decisão ora recorrida constitui uma verdadeira Decisão Surpresa.

51. Com efeito, a Recorrida instaurou acção contra o Recorrente pedindo a condenação desta no pagamento de 50.912,50€ a título de "enriquecimento ilícito", tendo alegado os factos essenciais já indicados no início destas alegações, tendo sido em função destes elementos - factos essenciais - por si alegados considera a Recorrida que tem direito, pelo menos, a metade da indicada quantia de 101.825,00€, i.e., 50.912,50€ - valor que peticionou -.

52. Continuou alegando que, caso o supra referido não proceda, deve o bem imóvel em causa ser considerado benfeitoria do extinto casal e que sendo o valor da mesma património do ex casal, o lucro da venda de tal bem imóvel é comum à Autora e Réu por considera que ando que, "também nesta hipótese, sem causa justificativa, o Réu enriqueceu à custa da Autora pelo que é obrigado a restituir aquilo com que injustificadamente se locupletou, ou seja, a quantia de metade do lucro que ficou com a venda da casa de morada de família que ascende a 50.912,50€"

53. Foi com referência a o objecto processual configurado pelo pedido e causa de pedir da Recorrida, que Recorrente apresentou contestação, fazendo-o na medida dos factos essenciais alegados pela Recorrida na sua douta P.I. e bem assim do direito por ela alegado.

54. Acresce que, também sede de recurso para a Relação o Autor - ora recorrido- respeitou o objecto processual delimitado pelos seus articulados (que é pressuposto das conclusões do recurso). No entanto, mostra-se claro, in casu que a Recorrida, apesar dos factos essenciais em que assentou o seu pedido terem sido considerados como não provados, nomeadamente que o R enriqueceu com o lucro gerado pela venda do imóvel que constitui bem comum pelo valor de 260.000,00€, manteve - nas suas conclusões de recurso - que o Recorrente deve ser condenado a pagar metade do lucro com a venda da casa de morada de família que, segundo ele ascende a 50.912,50€ - vide conclusões do recurso 30° a 37° -.

(…)

59. Por todo o exposto é manifesto que a decisão ora recorrida terá de ser revogada e a acção ser totalmente considerada improcedente, por não provada».


Foi apresentada contra-alegação, concluindo a autora pela confirmação do acórdão recorrido.


O Tribunal da Relação pronunciou-se sobre as arguidas nulidades, como determina o disposto no artigo 617º nº 1 do Código de Processo Civil, tendo-as por inverificadas.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentos:

De facto:

Após a alteração efectuada pelo Tribunal da Relação, na sequência da apreciação da impugnação fáctica, os factos provados são os seguintes:

1 - A autora e o réu casaram sem convenção antenupcial no dia 16 de Setembro de 2000.

2 - No dia 19 de Outubro de 2004 a autora e o réu divorciaram-se por mútuo consentimento na Conservatória do Registo Civil de ….

3 - Na relação de bens apresentada na Conservatória do Registo Civil de … para os efeitos referidos em 2, entre o mais, a autora e o réu fizeram constar o seguinte bem imóvel:

Casa para habitação de rés-do-chão com 2 assoalhadas, cozinha, 1 casa de banho, despensa, águas furtadas com 2 assoalhadas e 1 casa de banho e logradouro, sita na Travessa …, lugar e freguesia de …, concelho de L…, com a área coberta de 149 m2 e descoberta de 1951 m2 inscrita na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo 2006 e descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob a descrição 7…/19….3/C…, com o valor de 26.208,00 euros.

4 - A autora e o réu instalaram no imóvel referido em 3 a casa de morada de família e aquando do divórcio a mesma foi atribuída ao réu até à separação de meações.

5 - Por escritura de doação, outorgada no Primeiro Cartório Notarial de …, no dia sete de Outubro de 1999 CC e mulher DD declararam doar ao seu neto, o aqui réu, que declarou aceitar, uma terra de cultura sita em …, freguesia de …, concelho de L…, inscrita na matriz predial rústica da respectiva freguesia sob o artigo 979, com o valor patrimonial de 2.420$00, descrita na Segunda Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 7…/C….

6 - Na escritura referida em 5 mais declararam que esta doação se destina a entrar na futura comunhão conjugal do donatário quando casar com EE, solteira, maior, residente na Rua …., …, L…, sendo que esta cláusula só produz efeitos reais com a efectivação desse casamento.

7 - O imóvel descrito em 3 foi implantado no terreno rústico referido em 5, encontrando-se construído à data do casamento celebrado entre a autora e o réu.

8 - O imóvel descrito em 3 encontrou-se inscrito a favor do réu na Conservatória do Registo Predial de … desde 14.10.1999 até 30.07.2010, data a partir da qual passou a estar inscrito a favor de FF e GG.

9 - Por escritura pública outorgada no dia 30.07.2010 o réu declarou vender a FF e GG, que declararam comprar, pelo preço de € 162.500,00 já recebido, o imóvel descrito em 3.

10 - Na data referida em 9 encontravam-se registadas sobre o imóvel mencionado duas hipotecas voluntárias registadas pelas apresentações 34 de 07.04.2000 e de 27.09.2000 constituídas a favor do Banco HH, SA e cujas autorizações para cancelamento foram apresentadas na mesma data.

11 - Em 14.04.2000, o Banco HH, SA, ao abrigo das normas do crédito à habitação e para construção de uma habitação sobre o terreno descrito em 5, concedeu à autora e ao réu um empréstimo no valor de 24.000.000$00 para garantia do pagamento do qual o réu constitui as hipotecas referidas em 10.

12 - II e JJ constituíram-se fiadores e principais pagadores, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia, por tudo o que viesse a ser devido ao Banco HH, SA em consequência do empréstimo referido em 11.

13 - Ao empréstimo referido em 11 encontrava-se associada a conta de depósitos à ordem com o nº 2392 5276 0008, da qual autora e réu eram os titulares.

14 - Na data da escritura referida em 9 foi depositada na conta mencionada em 13 a quantia de € € 140.000,00 e na mesma data o réu levantou a quantia de € 7.500,00.

15 - No dia 03.08.2010 o réu transferiu da conta referida em 13 a quantia de € 94.325,00 para a conta com o NIB 00…4.

16 - No âmbito do processo com o número 6657/07.4 TBLRA foi penhorado a favor do Banco HH, SA, o imóvel descrito em 3, penhora essa registada em 03.10.2008, no valor de € 117.818,13.

17 - Em 02.07.2010 o Banco HH, SA aceitou que o réu procedesse à amortização parcial do capital vincendo respeitante ao empréstimo descrito em 11, no montante de € 60.000,00, sendo que à data o capital em dívida ascendia ao montante de € 96.373,17.

18 - Após o pagamento, por parte do réu, da quantia referida em 17 e de custas no montante de € 1.520,35, o Banco HH, SA comunicou tal facto ao processo identificado em 16 e autorizou o levantamento da penhora.

19 - Em 30.07.2010 o réu procedeu à amortização total do capital em dívida respeitante ao empréstimo descrito em 11, pagando o remanescente no valor de € 36.373,17.

20 - Após a data do divórcio, o réu pagou todas as prestações respeitantes ao empréstimo referido em 11, não tendo a autora liquidado qualquer prestação dessa natureza.

21 - O réu, no âmbito do processo que correu termos sob o nº 763/2001 pagou em Abril de 2009, a KK, construtor do prédio referido em 3, a quantia de € 13.000,00.

22 - A casa de habitação referida em 3- foi construída com o esforço económico de A. e R., tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada.[1]


De direito:

Em face das conclusões da alegação do recorrente, as quais delimitam o objecto do recurso, salvo questão de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil), foram submetidas à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça as questões essenciais seguintes:

- nulidade do acórdão recorrido;

- violação das regras de direito material probatório em sede de apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

- verificação (ou não) dos pressupostos legais do enriquecimento sem causa.


1. Da nulidade do acórdão recorrido.

A primeira causa de nulidade imputada ao acórdão recorrido radica no excesso de pronúncia ou pronúncia indevida previsto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) - segundo segmento - do Código de Processo Civil, também aplicável ao acórdão da Relação ex vi do artigo 666º do mesmo código. Este vício traduz-se no incumprimento ou desrespeito, por parte do julgador, do dever prescrito no artigo 608º n.º 2 daquele código.

A recorrente assaca, igualmente, ao acórdão recorrido a causa de nulidade prevista no citado artigo 615º, n.º 1, alínea e), 2ª parte, do mesmo código, também aplicável ao acórdão da Relação ex vi do mesmo artigo 666º, vício que, por sua vez, deriva da violação do comando legal inserto no artigo 609º nº 1 do mesmo Código de Processo Civil.

No caso vertente, afirma o réu que o objecto processual, tal como a autora o configurou, assenta no suposto lucro que aquele obteve com a venda do imóvel, alegadamente, propriedade comum do casal, relativamente ao qual a mesma arroga o seu direito a metade do produto da venda com base no enriquecimento sem causa.

Daí que, ao considerar parcialmente procedente a acção, condenando o réu a pagar à autora a quantia que se vier a liquidar ulteriormente como correspondente a metade dos montantes do reembolso do empréstimo contraído por ambos desde a data do casamento até á data do divórcio – 16/09/2000 e 19/10/2014 –, o Tribunal da Relação pronunciou-se por excesso, uma vez que não foi peticionado pela autora o reembolso das prestações - supostamente - pagas, nem sequer foram por ela alegados quaisquer factos que lhe permitissem pronunciar-se sobre essa questão. 

Vejamos.

No âmbito do recurso de apelação interposto pela autora e no uso dos poderes que a lei lhe confere (artigo 662º do Código de Processo Civil) o Tribunal da Relação conheceu da impugnação da decisão fáctica deduzida, decidindo aditar ao elenco dos factos provados estoutro: «A casa de habitação referida em 3 foi construída com o esforço económico de A. e R., tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada» (ponto 22).

Esta facticidade havia sido alegada pela autora nos artigos 5º e 6º da petição inicial e fora julgada como não provada na 1ª instância, conforme se alcança das als. d) e e) dos factos não provados.

Cotejando o teor da alegação da autora com o facto que a Relação teve por provado com base em presunção judicial, ao abrigo do disposto no artigo 349º do Código Civil, não se vislumbra, apesar do desenvolvido esforço argumentativo do réu, que aquele Tribunal tivesse exorbitado a facticidade alegada na petição inicial.

Relembre-se que à luz do disposto no artigo 5º nº 1 do Código de Processo Civil, (anterior artigo 264º nºs 1) constitui atribuição exclusiva das partes delimitar os termos ou objecto do litígio através da enunciação dos fundamentos da acção (causa de pedir) e da dedução das respectivas pretensões (pedido).

Mas, se é certo que o princípio do dispositivo confere, exclusivamente, às partes a faculdade e o ónus de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir que suporta o pedido deduzido em juízo, também é certo que o juiz não está adstrito à alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (nº 3 do artigo 5º citado, a que correspondem os anteriores artigo 264º nº 2 e 664º).

Não estava, por conseguinte, o Tribunal da Relação impedido de, com respeito pelos factos alegados pela autora na respectiva petição inicial e que resultaram provados, proceder ao seu adequado enquadramento jurídico.

Pelo que, ao fazê-lo, não só não extravasou o âmbito das conclusões da alegação apresentada pela autora no recurso de apelação, balizadoras do seu objecto, como não incorreu no vício de excesso de pronúncia.

Ao proceder à indagação, interpretação e aplicação do direito aos factos alegados e provados, com a margem de liberdade que a lei lhe confere, traduzida na expressão latina jura novit curia, a Relação não se desviou da causa de pedir.

Também o acórdão sob censura não exorbitou o pedido, dado que a condenação do réu, nos termos em que foi proferida, teve na sua génese a alienação do imóvel que constituía a habitação do casal formado por autora e réu e na qual a primeira radicou a sua pretensão.

Na verdade, tendo por base, unicamente, a facticidade alegada e demonstrada, considerou-se naquele acórdão que a medida da contribuição da autora para o reembolso do empréstimo bancário contraído por ambos para a construção da habitação em causa propiciou uma vantagem patrimonial injustificada do réu – já que a alienou e fez seu, na totalidade, o produto da venda –, porque carecida de causa atributiva, concluindo pela necessidade da sua restituição à autora com fundamento no instituto sem causa no qual a mesma alicerçara a causa de pedir.

Apesar de não ter resultado provado que a venda foi realizada por preço superior ao que figurava na escritura pública de compra e venda, como a autora defendeu na petição inicial, essa insuficiência probatória da autora não apagou a prova de que «A casa de habitação referida em 3 foi construída com o esforço económico de A. e R., tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada» (ponto de facto 22), facticidade reveladora de que da venda realizada pelo réu derivou um concomitante empobrecimento da autora e enriquecimento daquele traduzido na comparticipação da primeira no reembolso da quantia mutuada.

Esse efeito jurídico, se interpretado o pedido formulado, está contido dentro dos seus limites, quer quanto ao valor, quer quanto ao seu objecto.

Saber se a autora tem, efectivamente, direito à restituição determinada, constitui já questão de mérito de que não cumpre, por ora, apreciar.

Não pode, assim, afirmar-se, como pretende o réu, que o Tribunal da Relação conheceu de questão de que lhe era vedado conhecer, nem que a condenação proferida exorbitou o pedido, não tendo incorrido nos vícios que lhe são imputados.


Prosseguindo no campo da arguição de nulidades, assaca, finalmente, o réu ao acórdão recorrido os vícios de obscuridade, ambiguidade e contradição entre os factos provados, a sua fundamentação e a própria decisão no segmento em que olvida não ter resultado provado que a autora contribuísse com o seu salário ou com qualquer outro rendimento para a construção da edificação em causa, assim como olvida que o suposto lucro gerado pela alegada venda pelo preço de 260.00,00€ não ficou provado.

Afigura-se-nos que com esta alegação o réu esquece que a condenação proferida se baseia na prova do facto aditado pelo Tribunal da Relação, do qual resulta que «A casa de habitação referida em 3 foi construída com o esforço económico de A. e R., tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada».

Perante este facto não se vislumbra qualquer ambiguidade, obscuridade ou contradição nos próprios fundamentos ou entre estes e a decisão, a qual, sendo perfeitamente apreensível, surge como a consequência natural e lógica da sua motivação.

O inconformismo do réu parece radicar no concreto juízo de facto formulado pela Relação relativamente àquele ponto, matéria que este Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar, à luz do disposto nos artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil, como melhor se desenvolverá infra.

Não se verifica, pois, a causa de nulidade prevista no artigo 615ºnº 1 al. c) do Código de Processo Civil.

Não assiste, igualmente, razão ao réu quando vem invocar, ainda no campo das nulidades, a violação do princípio do contraditório, em virtude de a decisão da Relação constituir «uma verdadeira Decisão Surpresa», dado que contestou e deduziu contra-alegação no recurso de apelação com referência ao objecto processual configurado no pedido e na causa de pedir da autora.

Como vimos, o Tribunal da Relação decidiu com respeito pelos factos alegados na petição inicial e não se afastou do instituto jurídico em que a autora fez radicar o pedido – enriquecimento sem causa –.

E o réu teve oportunidade de se pronunciar amplamente ao longo do processo quer sobre os factos, quer sobre a qualificação jurídica dos mesmos.

O princípio do contraditório consagrado no artigo 3º do Código de Processo Civil, corolário do princípio da igualdade das partes, foi devidamente assegurado e observado ao longo do processo, não podendo afirmar-se, com razoabilidade, que era de todo estranha ao objecto da lide a possibilidade de a facticidade alegada pela autora e julgada provada pela Relação conduzir à condenação proferida.

Mostra-se, por consequência, inverificada a violação do princípio do contraditório.


2. Da violação das regras de direito material probatório em sede de apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Sustenta o réu que o facto aditado no acórdão sob censura aos factos provados não só não reflecte o sentido dos concretos pontos de facto alegados pela autora e objecto da sua impugnação da decisão fáctica da 1ª instância, como é manifestamente conclusiva.

Tal facto, no entender do réu, não poderia «ter a roupagem dada sob a forma do indicado ponto factual aditado pela Relação», porquanto, se é verdade que a primeira parte do novo ponto de facto corresponde, efectivamente, ao ponto de facto d) dos factos não provados da douta sentença, também é verdade que a segunda parte desse mesmo facto não corresponde - nem por interpretação literal, nem restritivo, nem extensiva, nem no espírito da coisa - ao ponto de facto e) dos factos não provados na decisão em 1ª instância.

E, prosseguindo, refere que: o ponto de facto em causa - e) - diz que a autora contribuiu, antes do divórcio com o réu nas amortizações referentes ao empréstimo bancário. Não diz - nem pode concluir-se, reitera-se - que: ambos contraíram, conjuntamente empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada -.

Relativamente a esta matéria, considerou a 1ª instância, na respectiva motivação, que:

«quanto à contribuição da autora para a construção da moradia que demos por não provada nas alíneas d) e e), o único elemento objectivo de que dispomos é o facto de a mesma constar também como parte no contrato de empréstimo para habitação contraído junto do HH e de ser correspondentemente contitular da conta bancária que lhe estava associada.

Porém, este facto [não] nada nos diz como era provisionada a dita conta bancária, designadamente não dispomos de quaisquer extractos bancários de onde decorra qualquer provisionamento feito por parte da autora».

Por sua vez, o Tribunal da Relação concluiu pela demonstração do facto em causa observando o seguinte:

«Não se convenceu, pois, o Tribunal a quo quanto à contribuição da A. para a construção da moradia, com o que não se conforma esta e – adiantamos desde já – com alguma razão.

Desde logo, vem provado que a A. e o R. contraíram entre si matrimónio sem convenção antenupcial (ponto 1- dos factos provados), o que significa que o casamento se considera celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos (art.º 1717.º do CCiv.).

Por isso, o produto do trabalho dos cônjuges – salários de ambos, e de cada um, na constância do casamento – faz parte da comunhão, tal como, em geral, os bens adquiridos por eles na constância do casamento, desde que não excetuados por lei (art.º 1724.º, al.ªs a) e b), do CCiv.).

Isto é, vale a regra de que o adquirido na constância do matrimónio integra a comunhão conjugal (com as exceções previstas no art.º 1722.º, dispondo sobre bens próprios), donde que o produto do trabalho de A. e R. não pudesse deixar de ficar a pertencer a ambos, por integrar a dita comunhão.

Por outro lado, é inequívoco que os aqui A. e R., tendo-se divorciado, não deixaram de apresentar para o efeito relação de bens comuns, onde incluíram o imóvel em questão nestes autos (pontos 2- e 3- dos factos provados), que constituía a casa de morada da família e que foi atribuído ao R. até à separação de meações (cfr. facto 4-), nada mostrando que tal separação já esteja realizada (desconhece-se desfecho para o invocado processo de inventário, a que a A. alude no art.º 9.º da petição inicial).

É certo que a edificação teve lugar em terreno rústico declarado doar ao R. – embora com os doadores a declararem destinar-se a entrar na futura comunhão conjugal do donatário (R.) com a A., quando estes se casassem ( ) –, que a construção ocorreu antes do casamento e que o prédio tinha inscrição de aquisição a favor daquele (cfr. pontos 5-, 6-, 7- e 8- dos factos provados).

Mas também é inequívoco, por provado, que, em Abril de 2000 – cinco meses antes do casamento –, A. e R. contraíram conjuntamente um empréstimo bancário (crédito à habitação) para construção da casa de habitação (imóvel descrito em 3- dos factos provados), como resulta do ponto 11- dos mesmos factos apurados.

Isto é, por força desse mútuo bancário, foi disponibilizada pelo banco mutuante a ambos os mutuários a quantia mutuada, para pagamento dos custos da dita construção da casa/moradia, consabido que pelo mútuo uma parte contratante empresta à outra dinheiro (ou outra coisa fungível), tornando-se o dinheiro mutuado propriedade dos mutuários – ambos eles, os aqui A. e R. – pelo facto da entrega (art.ºs 1142.º e 1144.º do CCiv.).

Assim, independentemente da obrigação de posterior restituição – a que ambos os mutuários se obrigaram, por via contratual, perante o banco mutuante (aludido art.º 1142.º do CCiv.) –, o certo é que a quantia mutuada (ao tempo 24.000.000$00) passou, uma vez disponibilizada/entregue a A. e R., a pertencer a ambos estes.

E, se foi por eles usada para o fim a que se destinava, então só pode concluir-se que ambos a utilizaram, conjuntamente, para suportar os custos de construção da casa em discussão.

Acresce que, como já salientado, após o casamento os salários dos cônjuges passaram a integrar a comunhão conjugal, visto o regime adoptado da comunhão de adquiridos, donde que até ao divórcio (Outubro de 2004) os pagamentos prestacionais dos mutuários ao banco mutuante hajam de ter-se como realizados a expensas do património comum dos cônjuges, independentemente de resultarem dos salários de ambos ou de algum deles, posto que nada resulta apurado em contrário.

Bem se compreende, neste sentido, que o empréstimo se encontrasse “associado” a conta bancária de que eram titulares ambos os mutuários, A. e R., e, em sintonia, que – repete-se – ambos tenham acordado em considerar o imóvel como bem comum a partilhar em sede de dissolução da comunhão conjugal.

Do exposto já resulta, sem necessidade de mais demoradas considerações, que não pode subsistir o julgamento de não provado quanto aos factos das impugnadas al.s d) e e), antes devendo essa materialidade fáctica ser transposta para os factos provados – sendo eliminada do quadro dos não provados –, com a seguinte roupagem, em aditamento de um novo ponto factual:

«22- A casa de habitação referida em 3- foi construída com o esforço económico de A. e R., tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada».

Procede, pois, a impugnação da decisão de facto, restrita a este âmbito factológico, nada havendo a alterar quanto ao mais».

Convém recordar ter resultado provado que, em 14 de Abril de 2000, o Banco HH, SA, ao abrigo das normas do crédito à habitação e para construção de uma habitação sobre o terreno descrito em 5, concedeu à autora e ao réu um empréstimo no valor de 24.000.000$00 para garantia do pagamento do qual o réu constitui hipotecas identificadas (ponto de facto 11) e que esse empréstimo foi concedido à autora e ao réu antes do seu casamento, o qual veio a realizar-se, sem convenção antenupcial, no dia 16 de Setembro de 2000 (ponto de facto 1).

E, referindo-se à construção daquela habitação, a autora alegou, além do mais, na petição inicial o seguinte:

«5. Construção esta que só foi possível em virtude do empréstimo bancário contraído por estes com o Banco HH, SA – cfr. dcs. Nºs 3 e 4.

6. E do esforço do trabalho de ambos (da autora e réu).

7. Bem como ainda do esforço de ambas as famílias que tudo fizeram para que fosse possível tal desiderato.»

No âmbito da decisão da impugnação fáctica deduzida pela autora, a Relação considerou provado com base em tal alegação que: «A casa de habitação referida em 3 foi construída com o esforço económico de A. e R., tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada».

O Tribunal da Relação fundou a sua convicção positiva em presunção judicial, meio de prova submetido, tal como a prova testemunhal, ao princípio da livre apreciação, de harmonia com o disposto nos artigos 351º e 396.º do Código Civil e 607º nº 5 do Código de Processo Civil. Trata-se de uma ilação lógica extraída de factos conhecidos para firmar um facto desconhecido.

Como já escrevemos no Acórdão proferido em 8 de Março de 2018 (proc. nº 1054/11.0TJVNF.G1.S1), as presunções judiciais, simples ou de experiência não se reconduzem a um meio de prova próprio. Assentam, como se sabe, no simples raciocínio de quem julga, inspirando-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos dados da intuição humana. Concretizam-se em juízos de indução ou de inferência extraídos do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência (cfr., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 214, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, págs. 500 e 501).

Cabe na esfera dos poderes do Tribunal da Relação alterar a decisão fáctica proferida na 1ª instância, designadamente, extrair ilações em matéria de facto, induzindo, a partir dos factos provados, mediante raciocínios lógicos sobre conhecimentos radicados na experiência comum e na normalidade da vida, a existência de factos desconhecidos e que poderiam ser adquiridos nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.

E como é jurisprudência assente, essa actividade da Relação não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, por envolver um juízo de facto baseado em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador.

Pode, no entanto, censurar o seu uso pela Relação sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado, nomeadamente, se padecer de evidente ilogicidade, se partir de factos julgados não provados ou se o facto presumido nem sequer tiver sido articulado.

Neste sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 8.10.2008 (proc. nº 1834/03.0TBVRL-A.S1), de 19.01.2017 (proc. nº 841/12.6TBMGR.C1.S1), este subscrito pela ora Relatora, e de 25/11/2014 (proc. n.º 6629/04. 0TBBRG.G1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.

No caso vertente, o facto em causa não se enquadra em qualquer das situações assinaladas, resultando, como vimos, da concreta alegação da autora na petição inicial.

A crítica do recorrente à referência feita no acórdão recorrido ao salário da autora perde força argumentativa quando confrontada com a seguinte passagem do mesmo: «donde que até ao divórcio (Outubro de 2004) os pagamentos prestacionais dos mutuários ao banco mutuante hajam de ter-se como realizados a expensas do património comum dos cônjuges, independentemente de resultarem dos salários de ambos ou de algum deles, posto que nada resulta apurado em contrário».

Acresce que o facto sob censura não encerra matéria conclusiva ou qualquer juízo valorativo que a inquine, revelando-se perfeitamente conforme com o teor da alegação autora e, em especial, com os factos provados nos pontos 1 e 11, que reproduz no segmento em que refere «tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada».

O questionado ponto de facto nº 22 contém um substrato factual, minimamente consistente, que deve ser interpretado em conexão com os restantes segmentos que integram o acervo factual considerado provado, pelo que deverá manter-se.


3. Dos pressupostos do enriquecimento sem causa.

Pugna o réu, recorrente, pela total improcedência da acção defendendo que sempre faltaria, no caso sub judice, a verificação dos pressupostos legais do enriquecimento sem causa.

A obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento, à custa alheia, pressupõe, como resulta do artigo 473º, nº 1, do Cód. Civil, a verificação simultânea de três requisitos: (i) a existência de um enriquecimento; (ii) obtenção deste à custa de outrem; e (iii) falta de causa justificativa dessa valorização patrimonial (cfr., entre outros, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª ed., Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 182, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, 2004, págs. 480 e segs.).

O enriquecimento traduz-se numa vantagem ou benefício de carácter patrimonial, susceptível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição. Só é significativa, por princípio, para o efeito do enriquecimento sem causa a vantagem patrimonial que tenha como contrapartida uma perda ou empobrecimento efectivo de outrem.

Quer dizer que ao enriquecimento de um deve corresponder o empobrecimento de outro, existindo entre esses dois efeitos uma correlação, no sentido de que o facto ou factos que geram um, geram também o outro, de tal modo que, enquanto o património de um valoriza, aumenta ou deixa de diminuir, o do outro desvaloriza, diminui ou deixa de aumentar (cfr. Inocêncio Galvão Telles, loc. cit., pág. 184).

Se realizada sem causa justificativa ou atributiva, a deslocação patrimonial obriga à restituição do que foi indevidamente recebido ou do que tiver sido recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (artigo 473º, n.º 2, do Cód. Civil).

Sendo controverso e de difícil definição o conceito de falta de causa do enriquecimento, Inocêncio Galvão Telles (ob. cit. págs. 186 e 187) entende que cumprirá ver em cada hipótese, na falta de uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa, se o enriquecimento corresponde à vontade profunda da lei.

Pode dizer-se, citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.03.2017 (proc. n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1, subscrito pela ora Relatora), que «o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial», hipótese em que a lei «obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o «accipiens» no dever de restituir o recebido».

Enquanto fonte autónoma da obrigação de restituir, embora subsidiária (artigo 474º do Cód. Civil), caberá ao autor, supostamente empobrecido, alegar e provar a falta de causa atributiva da vantagem patrimonial que integra o enriquecimento, atentas as regras de direito probatório contidas no artigo 342º nº 1 do Código Civil.

No caso vertente, o douto acórdão recorrido, considerou que:

«… independentemente da obrigação de posterior restituição, a que ambos os mutuários se obrigaram (relação mutuários - mutuante), os 24.000.000$00 emprestados passaram efectivamente a pertencer a A. e R..

Donde que na esfera patrimonial da A. (e, do mesmo modo, do seu co-mutuário) tenha, em resultado do mútuo, ocorrido um aumento do activo, pelo ingresso dum (novo) direito de propriedade, e um correspondente aumento do passivo, pelo surgimento da obrigação de restituir (que também ficou a caber, lado a lado, a ambos os mutuários).

Ora, se esse aumento do activo foi canalizado – por A. e R. – para financiar a construção da moradia, cumprindo o fim a que se destinava (crédito à habitação), forçoso é concluir que ambos os mutuários (também a A.) utilizaram/investiram, conjuntamente, o montante do empréstimo naquela edificação.

E nem pode dizer-se que a A./Apelante não contribuiu para o pagamento prestacional ao banco credor, pois, como visto já, na constância do casamento os salários obtidos pelos cônjuges passaram a integrar a comunhão conjugal (regime da comunhão de adquiridos), obrigando a concluir que os pagamentos dos mutuários ao mutuante, enquanto durou o matrimónio, foram suportados pelo património comum dos cônjuges.

(…).

E daqui já uma conclusão parece ser forçoso extrair: se a moradia foi construída com o esforço/investimento económico de A. e R., que ali aplicaram, para o efeito, aquela elevada quantia mutuada (propriedade de ambos), então houve deslocação patrimonial da esfera jurídica da A./Apelante, que assumiu, conjuntamente com o R., até ao montante do empréstimo contraído, as despesas da construção.

Deslocação essa que veio a fixar-se na esfera patrimonial do outro mutuário, o R., que, como proprietário do imóvel, o viria a vender, embolsando o respectivo preço, que não partilhou com a A..

(…).

Assim, se, como verificado, os pagamentos dos então cônjuges ao banco mutuante, enquanto durou o matrimónio, foram suportados pelo património comum, seria injusto que a A., também investidora na construção, nada recebesse uma vez realizada a lucrativa venda.

É claro que está ela empobrecida – com correspondente enriquecimento do R. – relativamente à sua contribuição para a construção da moradia.

Porém, não poderá deixar de ponderar-se que não lhe cabe receber metade do montante investido com o produto do empréstimo (contravalor em euros de 12.000.000$00), posto que o banco mutuante já foi integralmente reembolsado, maioritariamente pelo R., na sequência da venda realizada.

Assim, o empobrecimento da A., vistas as circunstâncias do realizado reembolso, correspondente ao enriquecimento do R., só se reflecte nas quantias pagas pelos cônjuges ao banco credor, isto é, as pagas, de acordo com o que vem provado, na constância do matrimónio (entre 16/09/2000 e 19/10/2004), visto que após a data do divórcio só o R. procedeu ao reembolso ao mutuante.

Quanto a essas quantias pagas na constância do casamento, à custa do património comum dos cônjuges, tem a A./Apelante direito a receber metade, pois que se encontra, nessa medida, efectivamente empobrecida e o R. injustamente locupletado (…).

Com o que haverá, na parcial procedência da apelação, de revogar-se a sentença absolutória recorrida, com condenação, em substituição do Tribunal a quo (art.º 665.º do NCPCiv.) e na parcial procedência da ação, do R./Apelado a pagar à A./Apelante, dentro do quantum peticionado, a quantia que se vier a liquidar, em ulterior incidente de liquidação, como correspondente a metade dos montantes de reembolso do empréstimo prestados por aqueles ao banco credor entre 16/09/2000 e 19/10/2004».

Desta fundamentação, que acolhemos, decorre a verificação dos pressupostos legais da obrigação de restituir nos precisos temos e limites em que foi reconhecida e definida no acórdão sob censura, que sufragamos e merece confirmação.


III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo réu, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


Lisboa, 19 de Abril de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado

________

[1] Facto aditado pela Relação, que a 1ª instância julgara não provado.