Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
444/12.5TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ENUNCIAÇÃO DOS TEMAS DA PROVA
MATÉRIA CONCLUSIVA
SENTENÇA
ENUNCIAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS
ASSUNÇÃO CUMULATIVA DE DÍVIDA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º.
Sumário :
1. Perante uma enunciação puramente conclusiva dos temas da prova, cabe ao juiz, na fase de julgamento, ao considerar provada ou não provada a concreta matéria de facto a que eles se reportam, de especificar e densificar tal factualidade concreta, fundamentando a sua decisão, não podendo limitar-se a considerar provada ou não provada a matéria, puramente conclusiva, que na fase de saneamento e condensação havia sido enunciada – cabendo à Relação, na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sindicar e corrigir tal deficiência.

2. Em aplicação do critério normativo da impressão do destinatário, deve qualificar-se como assunção cumulativa de dívida a declaração, constante de documento escrito e enviado à contraparte, em que – perante a existência de dúvidas objectivas acerca da existência da obrigação de determinada autarquia de suportar o sobrecusto de determinada obra pública urgente em certa infra estrutura ferroviária – a entidade declarante se compromete, caso a autarquia o não faça em tempo oportuno, a garantir a cobertura de tal sobrecusto  considerado tecnicamente razoável – vindo ulteriormente a assumir comportamentos que, de forma concludente, revelam a convicção de que se considerava juridicamente vinculada, de modo autónomo, ao cumprimento de tal obrigação.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - A AA, EPE, instaurou contra BB, S.A.,. acção condenatória, sob a forma de processo comum ordinário, pedindo a condenação da R a pagar-lhe a quantia de 1 059 987,78 € (reduzido entretanto, na audiência prévia, para o montante de 1 026 849,11 €) e juros de mora vencidos, relativos aos últimos 5 anos, no montante de 211 998,00 € e ainda os juros vincendos, à taxa legal, a contar da data de entrada em tribunal desta acção até à data do efectivo pagamento.

Alega, em resumo, que celebrou com a R dois acordos/protocolos e na sequência dos mesmos emitiu um conjunto de facturas, que identifica (concretizando ao que as mesmas respeitavam, isto na sequência de convite ao aperfeiçoamento da petição e, depois, também na audiência prévia), tendo solicitado à R o seu pagamento, sem sucesso, - isto apesar de a R reconhecer ser devida parte da quantia reclamada, concretamente 1 026 955,07 €, tendo até aceite pagar este montante de forma faseada ao longo de três anos, acabando no entanto por não cumprir qualquer das prestações.

Mais alega que as mencionadas facturas deveriam ser pagas no prazo de 30 dias após a data da sua emissão, concluindo que a R é devedora do montante peticionado e dos juros vencidos, respeitantes aos últimos cinco anos.

Contestou a R. sustentando a improcedência da acção, alegando, no essencial, que no âmbito da relação estabelecida entre as partes, por força dos dois acordos/protocolos celebrados, a R. não é devedora da A. Aliás, a A, sempre entendeu que o sobrecusto decorrente da nova via paralela ao caminho-de-ferro que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) definiu para a configuração do viaduto, no âmbito das obras a realizar no troço nascente da Av. Marechal Gomes da Costa, deveria ser assumido pela CML.

Por sua vez, a R só assumiu, através de carta enviada à A., tal sobrecusto (o qual seria incluído no protocolo celebrado entre a R e a CML), apesar de não ser devedora de tal quantia, porque estavam em causa a execução de obras públicas essenciais à realização da Expo'98. Porém, como a CML não assumiu a responsabilidade no sobrecusto em causa, a A. debitou um valor correspondente a 50% do sobrecusto da obra correspondente ao viaduto rodoviário sobre a Linha do Norte e reperfilamento da Ava Marechal Gomes da Costa - concluindo assim que, se a CML deliberou uma nova configuração do viaduto, então é a própria CML que se encontra compelida a realizar o respectivo pagamento.

No âmbito da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, aí se concluindo pela competência do tribunal, tendo-se julgado improcedente a excepção da cessão de créditos deduzida.

Igualmente foi proferido despacho, que não foi objecto de reclamação, identificando o objecto do litígio como "reembolso de quantias" e enunciando como temas de prova os seguintes:

"- a fixação da percentagem de 50% do sobrecusto por consultora indicada pela A e pela R:;

- o reconhecimento por parte da R da sua qualidade de devedora;

- o prazo acordado para pagamento".

Finda a audiência, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a R. do pedido.

2. - Inconformada, a A. apelou, impugnando, desde logo, a decisão proferida acerca da matéria de facto ; tal impugnação foi julgada procedente, determinando-se o aditamento aos factos provados dos pontos 11/15 da matéria de facto, o que conduziu à estabilização do seguinte quadro factual:


1 - A R. e a Câmara Municipal de Lisboa subscreveram documento datado de 22 de Agosto de 1994, denominado "Protocolo de Acordo", do qual consta o seguinte: "Considerando que:

  A.  A BB é a entidade a quem o Estado Português confiou as atribuições e competências necessárias para promover a realização da Exposição Internacional de Lisboa de 1998 (...), bem como para a concepção e execução do projecto de reconversão urbanística da Zona de Intervenção definida pelo Decreto-Lei n° 87/93 de 23 de Março (...);

  B.  A Câmara (C.M.L.) é proprietária e possuidora de terrenos sitos na zona de intervenção, que foram abrangidos pela sujeição a medidas preventivas e pela declaração como área crítica de recuperação e reconversão urbanística, estabelecidas respectivamente pelo Decreto-Lei n° 87/93 de 23 de Março e pelo Decreto n° 16/93 de 13 de Maio;

  C.     Os terrenos de propriedade da Câmara (C.M.L.) revelam-se indispensáveis ao cabal cumprimento das funções atribuídas à BB, pelo que a sua aquisição por esta sociedade é imperiosa;

É ajustado o presente protocolo que as partes se obrigam a cumprir de boa fé, regendo-se nos termos das cláusulas seguintes:

Como contrapartida adicional da entrega dos terrenos, incluindo o terreno do Palácio dos Suíços, serão da inteira responsabilidade da BB os trabalhos respeitantes aos acessos viários directos à sua Zona de Intervenção, ou seja, às obras de remodelação/reconstrução dos seguintes arruamentos, nos troços a nascente da Av. Infante D. Henrique conforme Anexo IV, incluindo os nós com esta Avenida, cujo investimento se estima em cerca de 4.000.000.000$00:

a) - Troço da Av. Marechal Gomes da Costa, desde o nó com a Avenida Infante D. Henrique, incluindo este e o nó de intervenção com a via de cintura do Porto de Lisboa com exclusão do viaduto sobre a linha do caminho-de-ferro;

2 - As partes subscreveram documento datado de 3 de Abril de 1995, denominado "Protocolo de Acordo", do qual consta o seguinte:

"Considerando que:

A. - A BB é a entidade responsável pela concepção e execução da reconversão da Zona de Intervenção definida pelo Decreto-Lei n° 87/93 de 23 de Março e pelas obras de reconfiguração das acessibilidades envolventes, de acordo com o protocolo assinado com a Câmara Municipal de Lisboa;

B. - A AA é a entidade responsável pelas obras de modernização da Linha do Norte, as quais incluem a demolição e posterior reconstrução do viaduto rodoviário localizado na Avenida Marechal Gomes da Costa.

C. - Como consequência das obras de modernização da Linha do Norte e da necessidade de melhoria dos acessos à Zona de Intervenção da BB torna-se necessário proceder à substituição do viaduto e ao reperfilamento daquela Avenida, no troço compreendido entre a Avenida Infante D. Henrique e a Via de Cintura do Porto de Lisboa.

D. - As várias intervenções previstas para este troço da Avenida Marechal Gomes da Costa aconselham a que, além da necessidade de coordenação entre as duas entidades, sejam clarificadas as responsabilidades técnicas e financeiras da BB e da AA de modo a que todas as obras estejam concluídas dentro dos preços e nos prazos previstos.

É celebrado o presente protocolo, o qual rege-se pelas seguintes cláusulas:

Cláusula Terceira

(Viaduto Rodoviário sobre a Linha do Norte e Reperfilamento da Avenida Marechal Gomes da Costa)

1. A responsabilidade pelo lançamento das empreitadas do viaduto rodoviário sobre a Linha do Norte e do reperfilamento da Av. Marechal Gomes da Costa é atribuída à BB.

4. A coordenação das obras de construção do viaduto e do reperfilamento será da responsabilidade da BB, embora todas as decisões de carácter técnico tenham de ter a prévia concordância da AA.

5.  Todos os encargos referentes às obras de construção do viaduto e do reperfilamento são da responsabilidade, respectivamente, da AA e da BB".

3   - As partes subscreveram documento datado de 27 de Setembro de 1996, denominado "Protocolo de Acordo", do qual consta o seguinte:

"Considerando que:

A. - A BB é a entidade responsável pela concepção e execução da reconversão da Zona de Intervenção definida pelo Decreto-Lei n° 87/93, de 23 de Março e pelas obras de reconfiguração das acessibilidades envolventes;

B. - A AA é a entidade responsável pelas obras de modernização da Linha do Norte, as quais incluem a reposição da acessibilidade existente no local, que faz a ligação da Zona de Intervenção a Moscavide e à Portela;

C. - Como consequência das obras de modernização da Linha do Norte, torna-se necessário proceder à demolição das passagens superiores existentes na zona de Moscavide;

D. - Como consequência da construção da Estação do Oriente, torna-se necessário proceder à desactivação do Apeadeiro de Moscavide.

E. - As populações residentes na zona deverão ficar convenientemente servidas de meios que permitam, de uma forma eficaz, o pleno acesso à Estação do Oriente, passando a usufruir, nesta estação, do serviço ferroviário actualmente prestado pelo Apeadeiro de Moscavide;

F. - A melhor solução para minorar os efeitos de barreira causados pela Linha do Norte passa pela construção de um novo viaduto na via da Portela com características técnicas que permitam a sua utilização plena;

G. - Para além da construção do viaduto sobre a Linha do Norte torna-se necessário efectuar o reperfilamento da designada via da Portela no troço compreendido entre a Zona de Intervenção da Expo 98 e a Rua da Fábrica das Munições;

H. - As intervenções previstas para a via da Portela (a poente e a nascente do caminho de ferro) e a construção do viaduto aconselham a que, além da necessidade de coordenação entre a AA e a BB, sejam clarificadas as respectivas responsabilidades técnicas e financeiras de modo a que todas as obras estejam concluídas nos prazos previstos.

E celebrado o presente protocolo nos termos dos artigos seguintes:

2. - As obras de demolição dos actuais viadutos e de construção do novo viaduto serão da responsabilidade da AA e executadas, em princípio, pelo adjudicatário da empreitada de modernização da Linha do Norte, no troço compreendido entre Braço de Prata e Alverca.

3. - No caso de as obras de reperfilamento da via da Portela serem adjudicadas pela BB ao empreiteiro adjudicatário da construção do viaduto, os serviços de fiscalização poderão ser atribuídos à empresa já selecionada pela AA se as condições de preço forem aceitáveis, sendo, neste caso, os encargos de fiscalização das duas empreitadas repartidos entre a AA e a BB proporcionalmente aos custos das respectivas obras..."

4 - A Câmara Municipal de Lisboa definiu uma configuração para o viaduto, passando este a transpor uma nova via paralela ao caminho-de-ferro no lado nascente.

5. - A A. entendia que o sobrecusto daí decorrente deveria ser encargo da Câmara Municipal de Lisboa.

6. - A R., por carta de 16 de Maio de 1995, comunicou à A. o seguinte: "A BB, SA celebrou, em 22 de Agosto de 1994, um protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa relativo, designadamente, à execução de trabalhos respeitantes aos acessos viários directos à sua Zona de Intervenção.

Nesse protocolo excluiu-se a obra de substituição do viaduto sobre a linha do caminho-de-ferro da Av. Marechal Gomes da Costa por ser da responsabilidade da AA.

Entretanto, no âmbito da coordenação das diversas obras do troço final dessa Avenida, verificou-se que a Câmara definiu uma configuração para o viaduto que passaria a incluir uma nova via paralela ao caminho-de-ferro no lado poente. A AA entende que o sobrecusto daí decorrente deve ser assumido pela Câmara Municipal de Lisboa, aguardando que esta entidade o confirme.

Estando a adjudicação da empreitada em causa dependente da assinatura pela AA do protocolo onde mandata a BB para a condução das obras e sendo urgente a tomada dessa decisão esta empresa compromete-se, caso a Câmara Municipal não o faça em tempo oportuno, a garantir a cobertura do sobrecusto considerado tecnicamente razoável e a incluí-lo, se necessário, na gestão do protocolo de 22 de Agosto de 1994".

7. - A Câmara Municipal de Lisboa não aceitou suportar o sobrecusto.

8. - A 23 de Março de 1995, uma consultora, a pedido da A, estimou que o sobrecusto correspondia a 50% do custo total do viaduto sobre a Linha do Norte.

9. - O sobrecusto ascendeu ao valor de € 1.026.955,07.

10. - A R. tem um crédito sobre a A. no valor de € 105,96.

11. - Em resposta à carta referida em 6. supra a A enviou à R a carta de fls. 177, datada de 17.05.1995, com o doe. de fls 178/179, na qual refere que tomou «boa nota do compromisso assumido pela BB relativo às responsabilidades da CML na construção do viaduto em causa e no pressuposto de que "o sobrecusto considerado tecnicamente razoável" é o que vier a resultar da aplicação dos critérios e justificação constante do documento anexo», terminando a carta referindo que, "nestes termos junto enviamos a Va Exa o protocolo devidamente assinado".

12. - Em carta de 05.06.2007, assinada pelo presidente do Conselho de Administração da R dirigida ao Chefe de Gabinete da Secretária de Estado dos Transportes, a R informa que tem por regularizar vários saldos (credores e devedores) com empresas do sector dos transportes e propõe a regularização das contas em questão, referindo que o "crédito da AA", aí indicado no montante de 1 026 849,11 €, "tem origem nas responsabilidades assumidas pela BB com os sobre-custos do alargamento do viaduto rodoviário da Ava Marechal Gomes da Costa sobre a linha de caminho de ferro, resultante da reconfiguração operada pela Câmara Municipal de Lisboa ao incluir uma nova via paralela ao caminho de ferro, no lado poente" (cfr. fis 75);

13. - Em carta de 15.06.2010, assinada por um administrador do Conselho de Administração da R, dirigida ao Secretário de Estado dos Transportes, reitera-se a proposta da carta referida em 12. - supra e refere-se que a questão em causa ganhou acuidade dada a iminência de procedimento judicial para cobrança do crédito, por parte da A. (cfr. fis 77/8);

14. - Em carta de 13.09.2010, assinada por um administrador do Conselho de Administração da R, dirigida à A., a R enviou cópia daquela carta de 15.06.2010 e apelou à A para não recorrer à via judicial e aguardar pela conclusão das diligências da R "junto das tutelas sectoriais", (fis 79/80).


15. - O valor correspondente a 50% do sobrecusto incorrido com o viaduto rodoviário sobre a linha do Norte perfez a quantia global de €.1.026. 955,07



           3. Passando, de seguida, a tratar do enquadramento de tal matéria factual, considerou a Relação, no acórdão recorrido:

Em termos sequenciais, o que decorre da factualidade apurada é que por força do regime legal (DL 87/93 de 23.03 e Dec. 16/93 de 13.05) e do protocolo de 22.08.94, celebrado entre a R e a CML, cabia àquela a responsabilidade pelas obras de reconfiguração das acessibilidades envolventes à zona de intervenção definida naqueles diplomas (aí se englobando a zona da obra em causa), na sequência das atribuições e competências que também lhe foram confiadas para promover a realização da Exposição Internacional de Lisboa 98. Acresce ainda que, como contrapartida daquela responsabilidade da R., a CML procedeu à cedência de diversos terrenos à R.

Porém, nos termos desse mesmo protocolo, o "viaduto sobre a linha do caminho-de-ferro" estava excluído da responsabilidade das obras a cargo da R [cfr. n° l.C.a) da f.p.)].

Foi então negociado um protocolo entre a A e a R, datado de 03.04.95, com o objectivo de coordenação entre estas duas entidades, face à necessidadede conclusão das obras nos prazos previstos e também para serem "clarificadas as responsabilidades técnicas e financeiras" das partes, protocolo este no qual se prevê que "os encargos referentes às obras de construção do viaduto e do reperfilamento [viaduto rodoviário sobre a Linha do Norte e do reperfilamento da Av. Marechal Gomes da Costa] são da responsabilidade, respectivamente, da AA e da BB" [cfr. n° 2.D.1 e 5) da f.p.)].

Resulta porém da factualidade apurada que, entre a negociação daquele protocolo e sua formalização escrita - mas antes da sua assinatura formal - a CML definiu uma nova configuração para o referido viaduto, "passando este a transpor uma nova via paralela ao caminho-de-ferro no lado nascente", daí decorrendo ou resultando um "sobrecusto", uma vez que o viaduto passaria a ter uma maior extensão do que a inicialmente projectada. Em consequência do que a A entendeu que não tinha que suportar esse "sobrecusto" e que o mesmo "deveria ser encargo da Câmara Municipal de Lisboa" e não se dispôs a assinar o referido protocolo enquanto a CML não confirmasse assumir esse "sobrecusto". Porém, como tudo isso estava a atrasar a adjudicação da empreitada da obra, porquanto tal adjudicação estava dependente da assinatura do protocolo em causa por banda da A., a R. emitiu então a carta de 16.05.95 onde refere: "compromete-se, caso a Câmara Municipal não o faça em tempo oportuno, a garantir a cobertura do sobrecusto considerado tecnicamente razoável..." (cfr. n°s 4 a 6 da f.p.).

Ora, só depois disso e precisamente por causa desse "compromisso assumido" pela R., é que a A desbloqueia a assinatura do protocolo e o envia, assinado, em 17.05.95 (cfr. n° 11 da f.p.). Ou seja, ao contrário do que se argumenta na decisão recorrida, a A não assinou o protocolo de 03.04.95 assumindo os custos do viaduto com a nova configuração, antes assinou esse protocolo apenas em 17.05.95 (embora datado de 03.04.95), e só o assinou e enviou após a R se comprometer a "garantir a cobertura do sobrecusto considerado tecnicamente razoável" do viaduto, face à nova configuração deste. Ou seja, perante estes factos, claramente a A exclui a sua responsabilidade pelo "sobrecusto" da nova configuração do viaduto e aceita a "garantia" de cobertura do "sobrecusto" que a R. assume, caso a CML não o faça em tempo oportuno (cfr. ainda n° 6 da f.p.).

Ora, não tendo a CML aceite suportar tal sobrecusto (cfr. n° 7 da f.p.), a questão que se coloca pois é como qualificar, juridicamente, aquela declaração da R. Esclarecendo-se, previamente, em função do que atrás se procurou justificar, mas também em função do posterior comportamento da R., expressamente assumido nas cartas de 05.06.2007, 15.06.2010 e 13.09.2010 (cfr. n°s 12 a 14 da f.p.), que se nos afigura não haver dúvidas sérias de que, para "um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário" (cfr. art.° 236° do CC) só pode deduzir-se do comportamento da R (e esta não pode invocar que não é razoável contar com tal dedução) que a mesma assegurou o pagamento daquele sobrecusto, caso a CML entendesse que não lhe cabia suportá-lo.

Aquela questão, da qualificação jurídica é questão que, ao longo dos autos, não foi expressamente defrontada. Repare-se que nos articulados as partes não qualificam juridicamente essa realidade (e/ou os acordos/protocolos assinados) e, mesmo na decisão recorrida, tal questão ficou como que "esquecida", quando aí se considera que não é possível concluir qual era a vontade da R. Aliás, a invocação feita na sentença, da figura jurídica das "cartas de conforto", para daí pretender extrapolar que estávamos, face à citada carta, perante algo "similar", manifestamente não tem fundamento. As chamadas cartas de conforto, quer pela "sua origem história ("prática financeira norte-americana")" e "razão de ser ("valor predominante moral ou de confiança", quer ainda pelo seu fim ("servem genericamente para facilitar o financiamento a entidade pouco conhecida ou com pouco crédito no mercado" ), manifestamente não têm nada a ver com o caso sub judicio. Com efeito, não só a CML não era uma entidade pouco conhecida e também não se pode dizer que, à época, tinha pouco crédito no mercado17, como as referidas origem historia e razões de ser também não se moldam à CML.

Afigura-se-nos assim que o enquadramento jurídico do comportamento negocial da R é de qualificar como "assunção de dívida", pois estamos perante um contrato entre o novo devedor e o credor através do qual se transmitiu, a título singular, uma dívida, transmissão ou assunção que aliás não depende do consentimento do antigo devedor (cfr. art.° 595° n°l ai. b) do CC).

Ou seja, juridicamente, estamos perante aquilo que o próprio nome sugere ou indica: "a assunção de dívida é a operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem", operando-se assim "uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo nem da identidade da obrigação". In casu, considerando que não vem alegado nem provado que o credor exonerou o antigo devedor, estamos em rigor perante um caso de "co-assunção de dívida", em que o credor "não exonerando expressamente o antigo devedor, pode exigir o cumprimento da obrigação de qualquer deles". Por outro lado, nenhumas dificuldades se colocam quanto à forma contratual pois "à semelhança de outras legislações, também o nosso Código é menos exigente quanto à forma da co-assunção ou da assunção da dívida do que quanto à forma da fiança (art. 628°, n° l)", por exemplo e, assim, nenhuns obstáculos se levantam quanto ao facto de a referida "assunção de dívida" ter sido formalizada pelo referido documento escrito.

Nestes termos é de concluir que a R., por força da referida assunção de dívida, se constituiu na obrigação de pagar à A o "sobrecusto considerado tecnicamente razoável" da nova configuração do viaduto em causa. O sobrecusto em causa ascendeu a € 1 026 955,07 e tal valor foi aceite pela R (cfr. n°s 9 e 15 da f.p), pelo que não pode deixar de se considerar que tendo sido aceite pela R é um valor "tecnicamente razoável", sendo certo aliás que já assim tinha sido estimado (cfr. n° 8 da f.p.).

Na medida em que a A era devedora da R do montante de € 105,96 (cfr. n° 10 da f.p.) e logo na p.i operou a compensação desse crédito da R com o seu crédito perante a mesma R, o que é possível nos termos do estatuído nos art.°s 847° e 848°, ambos do CC, conclui-se que assiste razão à A ao pugnar pela condenação da R pelo montante resultante da diferença (€ 1 026 955.07 - € 105,96), ou seja €1026 849,11.

4. Inconformada com tal sentido decisório, interpôs a Parque Expo a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões:


1. - A vontade das partes, da Recorrente, foi determinada de acordo com o alcance que um declaratário normal atribuiria às respectivas declarações constantes dos documentos o que, constituindo matéria de direito, é objecto do presente recurso, art. 236 n° l do Cód. Civil.

2. - Neste conspecto, e agora no que respeita aos n°s 12, 13 e 14 de factos provados, deve igualmente ser sindicada a forma como foram formalmente usados pela Relação os respectivos poderes de alteração da matéria de facto, devendo antes ter-se como provado que nas cartas em cada um deles identificadas a Recorrente informou/reiterou/expressou não só o estratado naqueles n°s 12, 13 e 14 mas, igualmente, o demais constante das mesmas cartas.

3. - Não é possível concluir sem mais, de acordo com as regras da experiência, que ao assinar o Protocolo de 03/04/1995, na sua precisa versão inicial, a Recorrida tenha excluído a sua responsabilidade pelo sobrecusto em razão de ter devolvido aquele Protocolo (assinado) com a carta de 17/05/1995.

4. - Ao renovarem, pelo Protocolo de 27/09/1996, a estipulação que as obras de construção do viaduto eram (apenas) da responsabilidade da Recorrida, reproduzindo nessa parte sem qualquer alteração ou convenção adicional o anterior Protocolo de 03/04/1995, é patente que as partes não quiseram, em Maio de 1995, e tão pouco em Setembro de 1996, seja excluir a responsabilidade da Recorrida pelo sobrecusto, seja constituir a Recorrente como responsável - obrigação própria - pelo mesmo sobrecusto.

5. - A declaração da Recorrente constante da respectiva carta de 16/05/1995 tem o significado que lhe foi atribuído pela primeira instância. O de uma garantia, relativamente à cobertura do sobrecusto, pressupondo portanto uma obrigação da C.M.L. de reembolsar a Recorrida do valor correspondente ao sobrecusto. Efectivamente, garantir a cobertura do sobrecusto significa assumir o contencioso, o pagamento, caso o devedor (o obrigado principal) não o faça tempestivamente.

6. - Na consideração e em conformidade com os concretos termos do Protocolo de 22/08/1994, firmado entre a C.M.L. e a Recorrente, esta razoavelmente representou o sobrecusto como passível de ser incluído nas obras/trabalhos aí previstos, dada a relação entre aquele sobrecusto e a nova via paralela ao caminho de ferro. Fixando o mesmo Protocolo o custo limite a ser suportado pela Recorrente com aquelas obras/trabalhos, bem como os correspectivos projectos terem de ser objecto de aceitação/acordo pela C.M.L., a referida inclusão do sobrecusto importaria (significaria) o reconhecimento por esta (C.M.L.) da respectiva responsabilidade relativamente ao mesmo.

7. - Assim, a alusão nos autos à carta da Recorrente de 16/05/1995 ter alguma semelhança com as cartas de conforto não é de todo infundada - aquela configura-se igualmente como uma manifestação de conforto, de um compromisso de intervenção por parte da Recorrente, junto da C.M.L., nomeadamente no âmbito da gestão daquele Protocolo de 22/08/1994, com o objectivo de tranquilizar a Recorrida quanto ao reconhecimento e cumprimento em tempo oportuno pela C.M.L. do reembolso, a fim de facilitar a assinatura (pela Recorrida) do Protocolo de 03/04/1995.

8. - Vindo a C.M.L. a não aceitar suportar o sobrecusto, entendeu então a Recorrente que, muito embora não se encontrasse juridicamente adstrita ao pagamento do sobrecusto, atento contudo aquele compromisso de intervenção que havia tomado devia manter essa atitude e, nessa medida, no quadro de um dever de rectidão, de busca de uma solução justa que incluísse o reembolso à Recorrida do valor do sobrecusto, propôs à Tutela tal solução - um acerto de contas entre várias empresas públicas do sector dos transportes. Neste quadro é que se compreendem e têm de ser lidas as cartas de 05/06/2007, de 15/06/2010 e de 30/09/2010 a que respeitem os n°s 12 a 14 de factos provados.

9. - Assim, a identificação (nessas cartas) de um saldo em aberto a favor da Recorrida, na contabilidade da Recorrente, é portanto então aduzido a propósito e no quadro desse encontro de contas, o qual é tido e manifestado como a única solução admissível, tal como que a Recorrida se deveria abster de qualquer promoção judicial.

10. - Não foram alegados, nem se encontram provados factos dos quais resulte a obrigação da C.M.L. pagar à Recorrida o valor correspondente ao sobrecusto. Donde, na inexistência de que transmissão (de dívida) seja, pois não está demonstrada (provada) que obrigação seja - do (suposto) primitivo credor - passível de ser transmitida, inexiste qualquer assunção de dívida pela qual a Recorrente se tenha constituído na obrigação de pagar (à Recorrida) o sobrecusto, art. 595 do Cód. Civil.


Pelo exposto e pelo que doutamente for suprido deve ser concedida a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, em conformidade com o ora defendido, mantida a sentença de primeira instância. Assim se espera por ser de JUSTIÇA.

A entidade recorrida contra alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

5. - A primeira questão suscitada pela entidade recorrente prende-se com a alteração da matéria de facto determinada pela Relação, ao exercer o duplo grau de jurisdição sobre a factualidade tida por assente na 1ª instância.

Na verdade, face ao modo excessivamente genérico como haviam sido definidos os temas da prova, sem a indispensável densificação e concretização factuais, a decisão proferida em 1ª instância tinha-se limitado a considerar não provada a matéria genericamente enunciada nos referidos temas da prova, sem ter na devida conta a natureza factualmente indeterminada e puramente conclusiva dos mesmos, na enunciação efectuada: ou seja, no caso, a excessiva fluidez e falta de densificação factual que afectava a definição dos temas da prova acabou por inquinar ou contaminar as respostas às questões de facto ali genericamente enunciadas, levando a considerar não provados – não propriamente os factos alegados e que serviam de suporte a tal enunciação vaga dos temas da prova – mas apenas e directamente a mera conclusão, factualmente indeterminada, que os integrava.

Tal vício foi suprido pela Relação, no exercício legítimo dos seus poderes cognitivos sobre a matéria de facto impugnada, referenciando na enunciação da matéria de facto a concreta factualidade alegada oportunamente e de que dependia decisivamente a resposta a dar, no concreto plano factual, à conclusão genericamente enunciada na fase de saneamento e condensação – ou seja, os comportamentos, escritos e afirmações da recorrente de cuja análise e ponderação se poderia concluir efectivamente, em termos fundamentados e concludentes, se havia ou não actos de reconhecimento ou admissão da existência da dívida.

Ora, ao contrário do sustentado pela recorrente, ao realizar tal tarefa, no exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, referenciando expressamente e especificadamente os factos com base nos quais se poderia ou não concluir acerca da existência de actos de reconhecimento do débito, não violou a Relação qualquer norma adjectiva referente à delimitação dos seus poderes cognitivos, que exerceu adequadamente.

Não se vê, por outro lado, que a factualidade descrita nos pontos de facto aditados pela Relação haja omitido ou desconsiderado qualquer elemento relevante que constasse das cartas enviadas à A., obrigando a uma indivisibilidade na valoração do conteúdo de tais documentos particulares: na realidade, o seu teor, no que releva para a existência ou inexistência de actos de reconhecimento ou admissão da dívida, resulta plenamente dos extractos incluídos na especificação dos factos provados – não podendo deixar de concluir-se, como refere a Relação no acórdão recorrido, que as afirmações e diligências nelas mencionadas não podem deixar de indiciar – na óptica do critério da impressão do destinatário - um reconhecimento ou admissão da existência de uma vinculação juridicamente relevante no confronto da A.

6. - No entanto, a questão fulcral de que depende a decisão do litígio situa-se a montante desses actos de admissão ou reconhecimento pela R. de uma vinculação juridicamente relevante, no confronto da A., prendendo-se essencialmente com a interpretação – na óptica do critério da impressão do destinatário - do segmento da carta, datada de 16/5/95, em que a R. se compromete, caso a CML o não faça em tempo oportuno, a garantir a cobertura do sobrecusto da obra em causa, considerado tecnicamente razoável, incluindo-o na gestão do protocolo de 22/8/94.

Note-se que foi este compromisso, assumido explicitamente pela R. perante a A., que desbloqueou o impasse existente quanto à assinatura do Protocolo datado de 3/4/95, relativo à realização da infra estrutura em causa, permitindo a efectivação material da obra.

E foi essencialmente sobre a exacta interpretação do sentido deste compromisso, assumido pela R. na referida carta, que as instâncias divergiram:

- na verdade, a sentença proferida em 1ª instância considerou que tal compromisso devia ser equiparado a uma carta de conforto, destinando-se a tranquilizar a A. quanto ao cumprimento pela CML, a fim de facilitar a assinatura do protocolo e, consequentemente, o rápido lançamento das empreitadas, tendo, para o efeito, a R. assumido a obrigação de pagar se a CML o não fizesse: a obrigação da R. seria, portanto, uma obrigação acessória, pelo que a A. teria de alegar e provar factos dos quais se pudesse concluir a obrigação da CML de reembolsar a A. do valor correspondente ao sobrecusto;

- pelo contrário, na óptica da Relação, tal compromisso, assumido pela A., exprime uma assunção cumulativa de dívida que – não envolvendo liberação da CML, enquanto possível e hipotética devedora da quantia pecuniária correspondente ao sobrecusto da obra, resultante de imposição autárquica – traduz a assunção pela declarante de uma obrigação própria e autónoma no confronto da A., não pressupondo, nem dependendo, a exigibilidade dessa obrigação de demonstração da existência juridicamente relevante de uma prévia obrigação principal a cargo da autarquia; e a causa ou motivo deste acto de assunção de dívida pela A. radicou precisamente na urgência no arranque da obra, essencial para a plena realização do interesse público prosseguido pela BB.

Ora, não se vê qualquer razão para – movendo-nos no âmbito da aplicação do referido critério normativo da impressão do destinatário – pôr em causa o entendimento seguido pela Relação, no que se refere à verdadeira natureza jurídica e efeitos da declaração negocial da R.: note-se que, no caso dos autos, o que essencialmente se configurava como duvidoso ou controvertido era precisamente a questão da existência de uma obrigação a cargo da CML de suportar o sobrecusto decorrente da configuração que impôs quanto à obra pública em causa: na verdade, a circunstância de, no uso dos seus poderes em matéria urbanística, ter decidido que o viaduto a edificar devia assumir determinada configuração, geradora de maior onerosidade, não traduz, ao menos de modo claro e inequívoco, a assunção de uma obrigação de suportar, ela própria, tal custo acrescido.

E foi precisamente esta indefinição ou indeterminação quanto à existência e exigibilidade de uma obrigação a cargo da CML de suportar o sobrecusto da obra que gerou a intranquilidade da CP quanto à assinatura do protocolo e efectivação da empreitada destinada à edificação – suprida precisamente pela garantia cabalmente assumida, como principal pagadora, pela sociedade R.

Ou seja: na peculiar situação dos autos, tal garantia não visava proteger a contraparte contra os riscos de incumprimento ou insolvabilidade do devedor de uma obrigação inquestionavelmente existente no plano jurídico - e vinculativa da CML - , mas antes ultrapassar as dúvidas razoáveis acerca da própria existência jurídica de um tal débito na esfera da CML: e, assim sendo, é manifesto que, nesta concreta e peculiar configuração dos interesses contrapostos, não teria real utilidade e funcionalidade condicionar o funcionamento da garantia categoricamente prestada pela R. à prévia demonstração da efectiva existência de uma obrigação a cargo da CML, reportada ao sobrecusto decorrente do modo - imposto pela autarquia - de edificação da obra pública em questão.

Deste modo, nenhuma censura merece o decidido pela Relação, ao interpretar tal declaração de compromisso como assunção cumulativa de dívida pela sociedade R., destinada a ultrapassar as dúvidas existentes quanto a uma hipotética vinculação da CML pelo sobrecusto da obra, assumindo autonomamente a R. tal obrigação no confronto da AA, face à urgência no arranque da obra pública em questão, conexionada com a realização, em data pré determinada, da Expo 98.

7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, nega-se provimento à revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Novembro de 2014

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor