Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1729/12.6TBCTB-B.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO PROMESSA
COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES - DIREITOS REAIS - POSSE.
DIREITO FALIMENTAR - RECURSOS - APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DAS NORMAS DO PROCESSO CIVIL - IMPUGNAÇÃO DA SENTENÇA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Calvão da Silva, R.L.J., Ano 133.
- Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Anotado, 2008, p. 113.
Legislação Nacional:
CIRE: - ARTIGO 14.º, N.ºS1 E 2, 17.º, 41.º, Nº1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 754.º, 755.º, N.º1, AL. F), 759.º, N.º2, 1263.º, ALÍNEA B).
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGO 671.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 19-4-2001, PUBLICADO NA R.L.J. Nº133-367 E SEGS, NA MESMA R.L.J., P. 370 E ANO 134, P. 21.
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº 594/03, DE 3-12-2003 E Nº 356/04, DE 19-4-2004, EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :



1 – São três os pressupostos que marcam o direito de retenção:
- a existência de um crédito emergente de um contrato promessa de transmissão ou constituição de um direito real ; a entrega ou tradição da coisa abrangida ou objecto da promessa ; o incumprimento definitivo imputável ao promitente, como fonte de crédito do retentor.

2 – A tradição de que fala o art. 755, nº1, al. f) do C.C. não se confunde com a posse e pode existir sem esta.

3 – A tradição da coisa é constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e por um elemento positivo (acto que exprima a tomada de poder sobre a coisa).

4 – A alínea b) do art. 1263 do C.C. confere igual valor à tradição material e à tradição simbólica.

5 – A tradição material é a realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.

6 – É válida e eficaz a tradição para os promitentes compradores, ainda que meramente simbólica, do andar objecto do contrato promessa, por estar provado que através de aditamento ao contrato promessa inicial, a promitente vendedora transmitiu aos promitentes compradores a “posse” do referido andar em construção, e que, aquando da assinatura do mencionado aditamento, a mesma promitente vendedora entregou a estes as chaves de acesso ao prédio, onde se localizava o andar, e ainda que, a partir de então, os recorrentes acederam ao prédio em questão, fazendo uso da chave que lhes foi entregue, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

7 – O acesso ao prédio onde se localiza o andar prometido vender, por parte dos recorrentes, promitentes compradores, fazendo uso da chave que lhes foi entregue pela promitente vendedora, não pode ser interpretado como um acto de simples turismo ou recreio, mas antes como a expressão possível do domínio material sobre o espaço de implantação do dito andar.

8 - A não conclusão da construção do andar e o facto deste ainda não ter porta ou fechadura, não é causa de impedimento ou impossibilidade da tradição do andar, pois a entrega efectuada pela promitente vendedora aos recorrentes foi feita no estado em que o andar se encontrava, para estes passarem a ser os seus detentores, e não para, de imediato, o usarem ou habitarem.

9 – A previsão do art. 759, nº2, do C.C. não é inconstitucional.

Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

         Nos autos de verificação e reclamação de créditos, a correr termos por apenso à insolvência de AA – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA, que foi declarada no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, veio o respectivo Administrador de Insolvência apresentar a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos e para os efeitos do art.129, nºs 1 e 2, do CIRE.

No prazo que lhes foi concedido, impugnaram a referida lista os credores BB e mulher CC, sustentando que o seu crédito, proveniente do incumprimento do contrato promessa celebrado com a insolvente, deveria ter sido graduado como dispondo de garantia, visto beneficiar do direito de retenção sobre o imóvel prometido vender.

Respondendo, o credor BANCO DD, SA, alegou que o crédito dos impugnantes se cingia ao sinal prestado no contrato promessa que celebraram com a insolvente, e não ao dobro dessa quantia (por eles reclamado); e também que esse crédito deveria ser graduado como comum por aos seus titulares não assistir qualquer direito de retenção.

Prosseguiram os autos com a selecção da matéria assente e a organização da base instrutória, de forma que a final se prolatou sentença do seguinte teor:

I. Julgam-se verificados os créditos identificados na lista de credores elaborada pelo Sr. Administrador de Insolvência;

II. Reconhece-se como privilegiado, por direito de retenção, o crédito reclamado por BB e mulher CC; e

III. Procede-se à graduação dos créditos reconhecidos para serem pagos pelo produto da massa insolvente da seguinte forma:

(…);

Relativamente ao bem imóvel identificado no auto de apreensão de bens de fls. 2 do apenso A:

- Em primeiro lugar, deverá pagar-se o crédito privilegiado da Fazenda Nacional referente ao IMI, no valor de € 1.475,93;

- Em segundo lugar, o crédito privilegiado, por direito de retenção, de BB e mulher CC;

- Em terceiro lugar, o crédito, garantido por hipoteca, do Banco DD, SA, até ao montante máximo inscrito no registo;

- Em quarto lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Segurança Social;

- Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

6. Por fim, depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência, em conformidade com o disposto nos art.ºs 48, alínea b) e 177 do CIRE.

                                                        *

Desta sentença, apelou o credor BANCO DD. S.A.

         A Relação de Coimbra, através do seu Acórdão de 10-12-2013, concedeu provimento à apelação, revogou em parte a sentença recorrida e decidiu:

1-  declarar que o crédito reclamado por BB e mulher CC tem a natureza de crédito comum;

2- determinar que relativamente ao bem imóvel identificado no auto de apreensão de fls. 2 do apenso A, aludido em B), da sentença, o pagamento obedece à seguinte ordem:

- Em primeiro lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Fazenda Nacional referente a IMI, no valor de € 1.475,93;

- Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito, garantido por hipoteca,  do apelante Banco DD, SA, até ao montante máximo inscrito no registo;

- Em terceiro lugar, pagar-se-á o crédito da Segurança Social;

- Em quarto lugar, dar-se-á pagamento aos créditos comuns reconhecidos.

3- No mais, foi mantida a sentença recorrida.

                                                        *

         Agora, são os credores BB e mulher CC que pedem revista, ao abrigo dos arts 14 e 17 do CIRE, invocando que o Acórdão recorrido está em oposição com o Acórdão da Relação de Coimbra de 15-1-2013, transitado em julgado, proferido no Proc. nº 511/10.OTBSEI-E.C1, sobre a mesma questão fundamental de direito, ao entender não ter havido tradição, para os recorrentes, do andar objecto do contrato promessa de compra e venda, por a construção ainda não se encontrar concluída e o apartamento ainda não ter porta de entrada ou fechadura, não podendo por isso, valerem-se da garantia do direito de retenção.

         Os recorrentes concluem, resumidamente, as suas alegações, nos termos seguintes:

         1 – O Acórdão recorrido, ao ter entendido não ter havido tradição do andar objecto do contrato promessa, por a construção não se encontrar concluída e o apartamento ainda não ter porta de entrada ou fechadura, não podendo, por isso, os recorrentes valerem-se da garantia do direito de retenção, é violador do disposto no art. 755, nº1, f) do C:C. e arts 174 e 175 do CIRE.

         2 – A tradição a que se refere o art. 755, nº1, al. f) do C.C. pode ser efectuada por tradição material, caracterizada pela existência de uma actividade exterior que traduz actos de entregar e receber, ou por tradição simbólica, que se opera através de um acto, ou de um objecto, que simboliza a entrega da coisa cuja posse se pretende transferir (por ex. entrega das chaves).

         3 – A tradição exigida para que se constitua o direito de retenção reclama apenas a detenção material lícita da coisa, não sendo necessário, para esse efeito, a posse.

         4 – No caso de promessa de venda de um apartamento integrado num prédio a submeter ao regime de propriedade horizontal, a tradição exigida para o direito de retenção a que se reporta o art. 755, nº1, al. f) do C.C. não necessita que a construção do prédio e, assim, do apartamento se encontrem concluídas.

         5 – O que está em causa é a detenção, e não a posse, bem como a garantia do pagamento de um crédito, e não o uso da coisa.

         6 – A tradição verificou-se através da estipulação constante da cláusula 6ª do aditamento de 27-8-2010 ao contrato promessa de compra e venda, bem como pela entrega das chaves do prédio, que então foi feita pela AA aos recorrentes.               

         7 – Tal acordo é inteiramente válido e eficaz, devendo ser respeitado e reconhecido pelo tribunal.

         8 – A não conclusão da construção não é causa de impedimento ou impossibilidade de tradição do andar.

         9 – Em consequência, o Acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que confirme e mantenha a sentença da 1ª instância, ou seja, que reconheça o crédito reclamado pelos aqui recorrentes como privilegiado e o gradue em segundo lugar, relativamente ao bem imóvel identificado no auto de apreensão de bens de fls 2, do apenso A, logo após o crédito privilegiado da Fazenda Nacional referente a IMI, no valor de 1.475,93 euros, nos termos conjugados dos arts 755, nº1, al. f) e 759, nº2, ambos do Cód. Civil, e arts 174 e 175 do CIRE.

                                                        *

         O Banco DD, S.A., contra-alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, por considerar que não há oposição entre o Acórdão recorrido e o invocado Acórdão da Relação de Coimbra de 15-1-2013 sobre a mesma questão fundamental da direito, na medida em que, apesar de ambos os Acórdãos se tratar da mesma questão (o direito de retenção), o certo é que no Acórdão fundamento não se discute se a coisa dada em tradição tem ou não de estar concluída e apta a desempenhar a função a que se destina, como acontece no Acórdão recorrido.         

         Para hipótese de assim não ser entendido, defende a manutenção do julgado.

                                                        *

                  Corridos os vistos, cumpre decidir.

                                                        *

         A Relação considerou provados os factos seguintes:

1. Por sentença datada de 20 de Novembro de 2012, foi declarada a insolvência de “AA – Investimento Imobiliário, Lda”.

2. Da relação de créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador de Insolvência, e notas explicativas à mesma, consta, além do mais, o seguinte:

 “ BB e mulher CC (…) crédito reconhecido como comum de €100.000,00 de capital e €5.358,90 de juros de mora: (z) Crédito reclamado: Origem do mesmo: Da entrada a título de sinal e principio de pagamento no montante de € 50.000,00, acrescido deste montante em dobro, ou seja, €100.000,00 pelo incumprimento do contrato promessa de compra e venda, sendo que, por isso os reclamantes disseram em tempo que perderam todo o interesse na aquisição do objecto do contrato promessa de compra e venda, dando por resolvido o mesmo, salientando também que a devolução em dobro do valor do sinal prestado (…) é nos termos do art. 442º, nº 2 do Código Civil.

- de juros vencidos desde a resolução do contrato até à data da declaração de insolvência no montante de € 5.358,90.   

O crédito global reclamado de 105.358.90 deve ser reconhecido como crédito comum nos termos da alínea c) do nº 4 do art.º 47º do CIRE.”

3. Em 25 de Setembro de 2009 a insolvente acordou, por escrito, com os aqui impugnantes que lhe prometia transmitir, e estes prometeram-lhe receber, livre de ónus e encargos, o apartamento correspondente ao 3º andar esquerdo e o parqueamento número 10 a construir no terreno destinado a construção urbana, sito em Quinta ..., freguesia e concelho de Castelo Branco, inscrito na respectiva matriz sob o art. 14257, que se encontra em construção, com o alvará de construção nº 01/2008, ainda não averbado na matriz nem sujeito ao regime da propriedade horizontal.

4. Pelo valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).

5. Como sinal e pagamento integral do preço os impugnantes entregaram à insolvente a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), na data da assinatura de do acordo referido em 2).

6. A aqui insolvente e os impugnantes acordaram que a escritura de compra e venda seria outorgada até dia 28 de Fevereiro de 2010, em dia, hora e local a designar pela insolvente, por carta registada e aviso de receção a enviar os impugnantes com antecedência mínima de 30 dias (…).

7. Consta da cláusula sétima que a aqui insolvente compromete-se transmitir a posse do imóvel prometido aos impugnantes, logo que os acabamentos estejam efetuados.

8. No mencionado acordo ficou, ainda, estipulado que, caso a construção do prédio não estivesse concluída até ao dia 28 de Fevereiro de 2010, haveria lugar a uma penalização mensal de 1% sobre o mencionado preço de € 150.000,00, a descontar neste e contada a partir daquela data (28 de Fevereiro de 2010).

9. O prédio identificado em 3) está descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco sob o nº ... da freguesia de Castelo Branco.

10. A Insolvente AA não concluiu a construção do prédio nem em 28 de Fevereiro de 2010 nem posteriormente.

11. Em 27 de Agosto de 2010, a pedido da insolvente, esta e os aqui impugnantes acordaram, por escrito, outorgar o aditamento ao “contrato promessa de compra e venda ” aludido em 3) junto nos autos a fls. 21 a 24 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

12. Consta da cláusula sexta do aditamento que a insolvente transmite de imediato aos aqui impugnantes a posse da fracção autónoma e parqueamentos, prometidos vender (3º andar esquerdo e o parqueamento número 10).

13. A insolvente obrigou-se ainda a efectuar os acabamentos na fracção autónoma (3º andar esquerdo) e parqueamento (nº 10) prometidos vender.

14. Nos termos da cláusula nona do referido aditamento, os aqui impugnantes também poderiam designar data para a celebração da escritura de compra e venda.

15. Aquando da assinatura do aditamento identificado em 11), a insolvente entregou aos aqui impugnantes as chaves de acesso ao prédio, sendo que nessa data o apartamento aludido em 3) não tinha, e ainda não tem, porta de entrada nem fechadura.

16. A partir de então os aqui impugnantes já acederam ao prédio em causa fazendo uso da chave que lhe fora entregue, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

17. Por carta datada de 30 de Janeiro de 2011, os aqui impugnantes notificaram a Insolvente para comparecer no dia 28 de Fevereiro de 2011, pelas 14 horas, no Cartório Notarial da Drª EE, em Castelo Branco, para outorgar da escritura de compra e venda, que a insolvente não respondera.

18. Por carta registada com aviso de recepção, datada de 30 de Junho de 2011, os aqui impugnantes notificaram a Insolvente para comparecer no dia 1 de Agosto de 2011, pelas 14 horas, no Cartório Notarial da Dr.ª EE, em Castelo Branco, para outorgar da escritura de compra e venda.

19. Por carta datada de 5 de Julho de 2011, junta nos autos a fls. 32 a 33 cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido, a insolvente comunicou aos aqui impugnantes que não compareceria, no dia 1 de Agosto de 2011, no Cartório Notarial da Drª EE, em Castelo Branco, para outorga da escritura de compra e venda.

20. Por a insolvente não estar em condições de celebrar a escritura de compra e venda, nomeadamente por os acabamentos do prédio não se encontrarem concluídos, faltar a licença de habitação e ter ocorrido a caducidade da licença de construção do prédio, os aqui impugnantes perderam interesse na aquisição do imóvel identificado em 3) e por carta datada de 21 de Julho de 2011, junta nos autos a fls. 36 a 38, cujo teor se reproduz, comunicaram à insolvente que consideravam resolvido o supra identificado contrato-promessa de compra e venda, com a obrigação da Insolvente de proceder à em dobro do valor do sinal prestado, ou seja da quantia de € 100.000,00 (€ 50.000,00 x 2), nos termos do art.º 442º, nº 2, do Cód. Processo Civil.

21. Recebida tal carta, a Insolvente AA não entregou aos aqui impugnantes a quantia de € 100.000,00.

22. Os aqui impugnantes entregaram à insolvente a quantia de €50.000,00 aludida em 5).

                                                        *

         A questão prévia da inadmissibilidade do recurso, suscitada nas contra-alegações do Banco recorrido:

         O art. 14, nº1, do CIRE dispõe:

         “No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da Relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732º-A e 732ª-B do Código do Processo civil, jurisprudência com ele conforme”.

         No caso concreto, trata-se de um apenso do processo de insolvência, que tem por objecto a verificação e reclamação de créditos.

         Como resulta das palavras do próprio texto legal, a limitação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça abrange o processo de insolvência e os embargos opostos à sentença declaratória da insolvência, constituindo estes embargos apenas um dos vários apensos possíveis do processo de insolvência (art. 41, nº1).

         Assim, inculca-se aqui a intenção de limitar o regime estabelecido, excluindo dele todos os apensos que não os embargos.

         Esta solução surge reforçada pelo cotejo do nº1 com o nº2 do mencionado art. 14, onde a propósito do decurso do prazo de alegações, a lei inequivocamente contempla “todos os recursos interpostos no processo ou em qualquer dos seus apensos “ .

         Neste sentido, opinam Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, pág. 113).

         Por isso, como não há dupla conforme (art. 17 do CIRE e art. 671, nº3, do novo C.P.C.), independentemente de pretensa oposição de Acórdãos, o presente recurso de revista é admissível, nos termos gerais.

        

                                                        *

         O mérito do recurso.  

         A questão a decidir consiste em saber se os recorrentes BB e mulher CC gozam de direito de retenção sobre o andar objecto do ajuizado contrato promessa de compra e venda, por ter havido tradição da coisa e, em caso afirmativo, se o seu crédito, garantido por direito de retenção, deve ser graduado em segundo lugar, à frente e imediatamente antes do crédito do recorrido Banco DD, S.A., garantido por hipoteca.

                                                        *

       Na sentença da 1ª instância, foi decidido que os recorrentes dispunham de direito de retenção sobre o imóvel apreendido, nos termos do art. 755, nº1, al. f) do C.C., pelo seu crédito resultante do incumprimento pela insolvente do contrato promessa de compra e venda, por ter havido tradição da coisa, face aos factos provados nos pontos 11º, 12º,15º e 16º da fundamentação de facto.

         Por isso, perante a previsão do art. 759, nº2, do C.C., o crédito dos recorrentes foi graduado em segundo lugar, imediatamente à frente do crédito do Banco recorrido, garantido por hipoteca.  

         Ao contrário, no acórdão recorrido, foi entendido que os recorrentes não gozavam de direito de retenção, por não ter havido tradição do andar objecto do contrato promessa, em virtude da construção não se encontrar concluída e o apartamento ainda não ter porta de entrada e fechadura.    

         Argumentou-se no aresto impugnado (fls 496):

 “Sem porta de entrada ou fechadura não é viável uma relação material com a coisa transmitida, segundo a funcionalidade a que esta se destina : o apartamento não pode ser usado e fruído com essa natureza, pelo que também não pode ser objecto de qualquer traditio, seja material ou simbólica.

         Sem a privacidade e o isolamento que advêm da porta e da fechadura, e mesmo que praticamente concluído interiormente, o apartamento prometido vender aos credores impugnantes poderia reunir algumas das características que proporcionam a aparência de uma habitação, mas não se apresentava com todos os elementos necessários ao exercício de um poder fáctico exclusivo pelos beneficiários de tal promessa.

Não tinha autonomia em relação ao edifício na sua globalidade, nem podia ser transmitido a alguém com a natureza e função próprias de um imóvel vocacionado para habitação” (fls 496).

         Daí que, por não ter sido considerado que havia tradição da coisa, não foi reconhecida a garantia do direito de retenção, tendo o crédito dos recorrentes sido graduado como comum.

         Que dizer?

Preceitua o art. 754 do C.C:

O devedor que disponha de um crédito sobre o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.

 

Por sua vez, estabelece o art. 755, nº 1, alínea f), do mesmo diploma:

“1. Goza ainda do direito de retenção:

(…)

f) O beneficiário de promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442 do CC.

2. (…)”.

Deste modo, são três os pressupostos que marcam o direito de retenção:

- a existência de um crédito emergente de promessa de transmissão ou constituição de um direito real, que pode não coincidir com o direito de propriedade;

- a entrega ou tradição da coisa abrangida ou objecto da promessa;

- o incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor.

Assim, é possível concluir que, radicando o direito de retenção num contrato-promessa, não é necessário que o beneficiário da promessa tenha a posse da coisa objecto do contrato prometido.

É suficiente que a detenha, por simples tradição.

A tradição de que fala a alínea f), do nº 1, do art. 755 do CC não se confunde com a posse e pode existir sem esta.

O conceito de tradição da coisa vem tratado de forma exemplar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-4-2001 (publicado na R.L.J. nº133-367 e segs, com Anotação favorável do Prof. Calvão da Silva, na mesma R.L.J. Ano 133 - pág. 370 e Ano 134 - pág. 21), a propósito de um caso paradigmático, pelo que não resistimos a transcrever o seguinte passo desse douto Acórdão (R.L.J. Ano 133-368):

“A tradição da coisa exprime, na disciplina dos direitos reais, a transmissão da detenção de uma coisa entre dois sujeitos de direito, sendo constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e um elemento positivo, a tradicionalmente chamada apprehensio (acto que exprime a tomada de poder sobre a coisa).

         A alínea b) do artigo 1263 do C.C., na esteira de uma velha tradição romanista, confere igual valor à tradição material e à tradição simbólica.

         É no elemento positivo da traditio (apprehensio) que se verificam as variações que explicam a distinção entre tradição material e tradição simbólica.

         A tradição é material quando, p. ex., o livreiro entrega em mão o livro ao comprador, ou o vendedor de uma casa leva o comprador a entrar nela, abandonando-a de seguida; será simbólica quando o vendedor de um apartamento entrega as chaves ao comprador, ou o vendedor de uma quinta entrega ao comprador os títulos ou os documentos que justificavam o seu direito, ou, como nos antigos costumes, lhe entregava uma porção de terra do prédio ou, p.ex., uma cepa de uma vinha.

         A tradição material é, portanto, a realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.

         A relevância atribuída à tradição simbólica foi a natural consequência de nem sempre a apprehensio poder ser materialmente realizada, por impossibilidade objectiva ou subjectiva, mas o seu uso generalizou-se e diversificou-se de acordo com as necessidades do comércio jurídico.

         O valor simbólico de um acto depende, naturalmente, do tipo de coisa que se transmite, como supra ficou exemplificado e explicado.

         Mas também a traditio material varia de configuração e intensidade, de acordo com a natureza da coisa alienada.

         A chamada traditio longa manu ou traditio oculis et affectu, que exprimiam o consenso das partes junto das coisas transmitidas, com o significado de abandono e apprehensio, sofreu, nos direito romano e comum,      

uma evolução no seio da tradição material, para formas atenuadas de transmissão da coisa.

         A traditio material, suposta pelo legislador, não implica, portanto, um acto plasticamente representável, de largar e tomar, bastando-se com a inequívoca expressão de abandono da coisa e a consequente expressão de tomada de poder material sobre a mesma, por parte do beneficiário”.        

        

         No caso dos autos, face aos factos provados nos pontos 11º,12º,15ºe 16º, é de considerar verificados os necessários pressupostos da tradição da coisa.

Com efeito, encontra-se provado, pela cláusula sexta do aditamento de 27-8-2010, constante de fls 21 e segs, efectuado ao contrato promessa de compra e venda inicial, que a promitente vendedora, AA-Investimentos Imobiliários, L.da, transmitiu aos ora recorrentes a “posse” (poder de facto) do andar (3º andar esquerdo) e do parqueamento nº10, objecto do contrato promessa.

Nessa ocasião, a promitente vendedora obrigou-se ainda a efectuar os acabamentos em falta no citado andar e parqueamento, prometidos vender. 

Aquando da assinatura do mencionado aditamento, a promitente vendedora entregou aos recorrentes as chaves de acesso ao prédio, sendo que nessa data o aludido andar não tinha, e ainda não tem, porta de entrada nem fechadura.        

A partir de então, os recorrentes acederam ao prédio em causa, fazendo uso da chave que lhes foi entregue, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.  

O acesso ao prédio, onde se localiza o andar e o aparcamento prometidos vender, por parte dos recorrentes, fazendo uso da chave que lhes foi entregue pela promitente vendedora, não pode ser interpretado como um simples acto social de turismo ou recreio, mas antes como a expressão possível de domínio material sobre o espaço de implantação do dito andar e respectivo aparcamento.

O que mostra que a recepção do andar, por banda dos recorrentes, se não resumiu a um simples acordo ou expressão verbal, sem consequências físicas, mas se materializou nos actos de detenção que, até aí, eram possíveis, enquanto aguardavam o seu acabamento final.    

A não conclusão da construção não é causa de impedimento ou impossibilidade da tradição do andar, pois a entrega efectuada pela promitente vendedora aos recorrentes foi feita no estado em que o andar se encontrava, para os mesmos recorrentes passarem a ser os seus detentores, e não para de imediato o usarem ou habitarem, embora com a obrigação, para aquela promitente, de ainda efectuar os acabamentos em falta, no mesmo andar e respectivo aparcamento.

Uma vez que o andar não se encontrava apto para a sua habitação, é irrelevante ter ou não ter porta de entrada ou fechadura, pois o importante era ter sido entregue aos recorrentes, como ocorreu, a chave de acesso ao prédio, para estes poderem livremente aceder, como fizeram, ao andar e respectivo aparcamento, cuja detenção lhes foi concedida pela promitente vendedora.

O que está em causa é a detenção da coisa, nas circunstâncias possíveis, face ao estado em que a construção se encontrava, e não a sua posse, bem como a garantia do pagamento de um crédito, e não o uso da coisa, segundo a funcionalidade a que esta se destina.

No caso de promessa de compra e venda de um andar integrado num prédio a submeter ao regime de propriedade horizontal, a tradição exigida para o direito de retenção previsto no art. 755, nº1, al. f) do C.C. não necessita que a construção do andar prometido vender e do prédio em que se insere esteja concluída.

Basta a inequívoca expressão de abandono da coisa, por parte do transmitente, e a consequente expressão de tomada de poder material sobre mesma, por parte do beneficiário, como aconteceu no caso em apreço.

Consequentemente, a tradição do terceiro andar esquerdo e do respectivo parqueamento nº10, ainda que meramente simbólica, efectuada a favor dos recorrentes, é válida e eficaz, integrando o direito de retenção destes, previsto no art. 755, nº1, al. f), do C.C.

O direito de retenção sobre coisas imóveis prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido anteriormente registada, nos termos do art. 759, nº2, do C.C.

Nas suas contra-alegações, o recorrido invoca que a existência do invocado direito de retenção e a previsão do citado 759, nº2, do C.C., torna praticamente inviável a cobrança do seu crédito hipotecário, pondo em causa a certeza e a segurança jurídicas emergentes da garantia da hipoteca, com isso violando os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da proibição do excesso de defesa.

Mas não há qualquer inconstitucionalidade na opção legislativa.  

No tocante ao princípio da igualdade, importa recordar que não se pode tratar de forma igual aquilo que à partida é desigual.

O tratamento desta problemática depende essencialmente da ponderação de interesses e valores legítimos, vigentes na sociedade num determinado momento histórico, e da respectiva harmonização entre si.

Considerações semelhantes valem no tocante aos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso de defesa.

Como em muitos outros sectores do ordenamento jurídico, também aqui, no domínio do contrato promessa, o legislador, no seu poder-dever de corrigir desequilíbrios e tomando em linha de conta os interesses em jogo, entendeu propender para a protecção da parte mais débil, que é o promitente comprador, face ao credor hipotecário, desde que aquele tivesse entregue ao outro um sinal e obtido a tradição da coisa, objecto do contrato promessa.

O Tribunal Constitucional, nos seus Acórdãos nº 594/03, de 3-12-03 e nº 356/04, de 19-4-04 (www. tribunalconstitucional.pt) para cuja fundamentação se remete, já teve ocasião de se pronunciar sobre a solução do mencionado art. 759, nº2, do C.C., tendo entendido que tal solução não ofende quaisquer valores ou princípios constitucionais.     

Assim sendo, impõe-se a revogação do Acórdão recorrido e a repristinação do decidido na sentença da 1ª instância, devendo o crédito dos recorrentes AA e mulher, garantido por direito de retenção, ser pago à frente e imediatamente antes do crédito do Banco recorrido, garantido por hipoteca.   

                                                        *

         Sumariando:

1 – São três os pressupostos que marcam o direito de retenção:

- a existência de um crédito emergente de um contrato promessa de transmissão ou constituição de um direito real ; a entrega ou tradição da coisa abrangida ou objecto da promessa ; o incumprimento definitivo imputável ao promitente, como fonte de crédito do retentor.    

2 – A tradição de que fala o art. 755, nº1, al. f) do C.C. não se confunde com a posse e pode existir sem esta.

3 – A tradição da coisa é constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e por um elemento positivo (acto que exprima a tomada de poder sobre a coisa).

4 – A alínea b) do art. 1263 do C.C. confere igual valor à tradição material e à tradição simbólica.

5 – A tradição material é a realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.

6 – É válida e eficaz a tradição para os promitentes compradores, ainda que meramente simbólica, do andar objecto do contrato promessa, por estar provado que através de aditamento ao contrato promessa inicial, a promitente vendedora transmitiu aos promitentes compradores a “posse” do referido andar em construção, e que, aquando da assinatura do mencionado aditamento, a mesma promitente vendedora entregou a estes as chaves de acesso ao prédio, onde se localizava o andar, e ainda que, a partir de então, os recorrentes  acederam ao prédio em questão, fazendo uso da chave que lhes foi entregue, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.   

7 – O acesso ao prédio onde se localiza o andar prometido vender, por parte dos recorrentes, promitentes compradores, fazendo uso da chave que lhes foi entregue pela promitente vendedora, não pode ser interpretado como um acto de simples turismo ou recreio, mas antes como a expressão possível do domínio material sobre o espaço de implantação do dito andar.  

8 - A não conclusão da construção do andar e o facto deste ainda não ter porta ou fechadura, não é causa de impedimento ou impossibilidade da tradição do andar, pois a entrega efectuada pela promitente vendedora aos recorrentes foi feita no estado em que o andar se encontrava, para estes passarem a ser os seus detentores, e não para, de imediato, o usarem ou habitarem.

9 – A previsão do art. 759, nº2, do C.C. não é inconstitucional. 

                                                        *

         Termos em que, concedendo a revista, revogam o Acórdão recorrido e decidem:

- que o crédito reclamado pelos recorrentes BB e mulher CC tem a natureza de crédito garantido por direito de retenção;

- que relativamente ao bem imóvel identificado no auto de apreensão de fls. 2 do apenso A, aludido em B) da sentença, o pagamento obedece à seguinte ordem:

- Em primeiro lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Fazenda Nacional referente a IMI, no valor de € 1.475,93;

         - Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito dos recorrentes BB e mulher CC, garantido por direito de retenção;

- Em terceiro lugar, pagar-se-á o crédito do recorrido Banco DD, SA, garantido por hipoteca, até ao montante máximo inscrito no registo;

- Em quarto lugar, pagar-se-á o crédito da Segurança Social;

- Em quinto lugar, dar-se-á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

- Em sexto lugar, depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os juros vencidos após a declaração da insolvência .

 

Em tudo o mais, mantém-se o decidido.

                                               *

         Custas pelo Banco recorrido.

                                                                           Lisboa, 25-3-2014

Azevedo Ramos (Relator)
Nuno Cameira
Sousa Leite