Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
399/18.2T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
GRAVAÇÃO DA PROVA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Tendo a recorrente especificado os pontos da matéria de facto que considera mal julgados; indicado os concretos meios de prova, documental e testemunhal, que, em seu entender, impunham decisão diversa sobre esses pontos de facto; indicado com exactidão as passagens da gravação em que se funda (o início e o termo de cada um dos depoimentos), apresentando até a respectiva transcrição; e indicado a decisão que deveria ter sido proferida sobre os pontos de facto impugnados, tanto basta para se poder afirmar que a recorrente cumpriu os ónus que sobre si impendiam quanto à fundamentação da impugnação da decisão de facto.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA. intentou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra BB. e marido CC. e DD. e marido EE..

Pedindo que fosse decretada:

a) A nulidade do negócio jurídico celebrado por escritura pública de compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por simulação absoluta; ou, caso assim não se entenda,

b) A nulidade do negócio jurídico celebrado por escritura pública de compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por o mesmo ser ofensivo dos bons costumes; ou, caso assim não se entenda,

c) A anulação do negócio jurídico celebrado por escritura pública de compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por o mesmo ser usurário; ou, caso assim não se entenda,

d) A anulação do negócio jurídico celebrado por escritura pública de compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por o mesmo ser doloso; ou, caso assim não se entenda,

e) A nulidade parcial do negócio jurídico celebrado por escritura pública de compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por simulação relativa, validando-se a doação modal realizada, sempre se constituindo usufruto a favor da autora e do filho desta sobre todos os imóveis assim doados, e fazendo sempre depender a doação do encargo sobre os réus e prestação de auxílio e assistência ao filho da autora, nos termos e para os efeitos do artigo 963.º do CC;

ou, caso assim não se entenda, e no caso de tudo quanto se pede improceder,

f) Devem os réus ser condenados a pagar à autora o valor de mercado dos imóveis adquiridos.

Como fundamento, alegou a autora a sua especial fragilidade e necessidade; que, por via da sua idade avançada, estado de saúde, analfabetismo e necessidade de acautelar o bem-estar futuro do filho, que padece de doença psicológica, sucumbiu na teia de promessas frívolas e astuciosas dos réus,  o que determinou a celebração de negócio totalmente viciado, ferido pela simulação, pela ofensa aos bons costumes, pela usura e pelo dolo, consistente na declarada venda aos demais réus de vários imóveis que integravam o património comum da autora e marido, falecido.

Pessoal e regularmente citados, os réus vieram contestar, pedindo a improcedência da acção, alegando serem falsos os factos alegados para substanciar os vícios invocados.

Foi realizada audiência final, após o que foi proferida sentença com este dispositivo:

Julga-se a acção improcedente, por não provada, absolvendo os 1ºs réus, BB. e seu marido CC. e 2ºs réus, DD. e marido EE., da totalidade das pretensões contra si deduzidas, sem prejuízo agora da condenação dos réus a reconhecerem estarem obrigados a prestar assistência à autora até à morte desta.

Discordando, a autora interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Ainda inconformada, a autora vem pedir revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

I – No recurso de apelação que a Recorrente interpôs da decisão proferida em 1ª instância, esta impugnou, além do mais, a decisão proferida quanto à matéria de facto, cumprindo todas as exigências legais relativas à impugnação da matéria de facto, nomeadamente as previstas nos nºs 1 e 2 do artigo 640.º do CPC a saber:

- A especificação dos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados – cfr. páginas 2, 45, 67, 77, 103 e 109 das suas alegações de recurso.

- Especificação e indicação dos meios probatórios que impunham, sobre aqueles concretos pontos da matéria de facto, decisão diversa da proferida na sentença recorrida – cfr. páginas 2 a 45; 45 a 67; 67 a 7; 77 a 103; 103 a 109; 109 das alegações de recurso e as conclusões nºs I a IV; V, VI a VIII; IX a XI; XII e XIII e XIV das suas alegações de recurso.

- Indicando a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre cada um dos pontos da matéria de facto por si impugnados – cfr. conclusões das alegações de recurso nºs IV; V; VIII; XI; XII e XIII e XIV.

II – Ao rejeitar o recurso em causa, no que respeita à impugnação da matéria de facto, violou o acórdão recorrido o disposto nos artigos 640º e 662.º do CPC;

III – O acórdão recorrido, ao rejeitar como rejeitou, a impugnação da matéria de facto com fundamento no não cumprimento dos ónus do artigo 640º do CPC, violou normas processuais que este Tribunal pode apreciar – cfr. alínea b) do nº 1 do artigo 674.º do CPC

IV – Razões pelas quais deverá o acórdão em apreço ser anulado, determinando-se que o processo baixe ao Tribunal da Relação ……., para que aí seja reapreciada a prova produzida nos autos nos moldes peticionados pela recorrente e, em consequência, se revogue a decisão da 1º instância, substituindo-a por outra que reaprecie a matéria de facto e, em consequência, a matéria de direito.

V- O acórdão recorrido violou o disposto no artigo 640.º do Código do Processo Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Discute-se se, no recurso de apelação, foram satisfeitos pela recorrente os requisitos legais da impugnação da decisão de facto.

III.

Foram considerados provados os seguintes factos:

1. A autora e o seu filho, FF., sucederam a GG. que faleceu a …… de 2011.

2. Compunha o património hereditário naquela data os seguintes imóveis:

- A fracção autónoma designada pela letra “A”, composta pelo rés-do-chão …, destinado a comércio, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua …….., da freguesia ……., concelho ………, descrito na Conservatória do Registo Predial …….. sob o n.º …….. e inscrito na respectiva matriz sob o n.º …….;

- A fracção autónoma designada pela letra “B”, composta pelo …….. andar ……. e sótão para arrumos, destinado a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua ……, da freguesia ……., concelho de ….., descrito na Conservatória do Registo Predial …… sob o n.º ……. e inscrito na respectiva matriz sob o n.º …….;

- A fracção autónoma designada pela letra “C”, composta pelo …….. andar …. e sótão para arrumos, destinado a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua ……, da freguesia …….., concelho de ……., descrito na Conservatória do Registo Predial ……. sob o n.º ……. e inscrito na respectiva matriz sob o n.º ……., tudo nos exactos termos melhor e integralmente constante do documento junto sob o n.º 1 com a petição inicial e que aqui se tem por reproduzido para todos os efeitos da lei.

3. No ano de 2012, a herança indivisa de GG. estava em processo de regularização de dívida tributária, tendo a mesma sido paga em prestações.

4. Por escritura pública de 9 de Agosto de 2012, os 1.º e 2.ª réus declararam comprar e a autora vender-lhes os imóveis a que se alude no ponto 2.

5. Na mesma data foi celebrada uma escritura de constituição de usufruto a favor da autora relativamente à fracção designada pela letra “C” identificada no ponto 2.

6. A autora, o filho desta e os restantes réus são vizinhos.

7. O filho da autora outorgou procuração a favor da 1.ª ré, BB., junta a fls. 21 e 22, que aqui se dá por integralmente reproduzida, mediante a qual conferia à mesma poderes para em nome dele, vender os imóveis descritos no ponto 2, pelo preço e nas condições que entendesse, para dar quitação e ainda celebrar negócio consigo mesma.

8. A 1.ª ré interveio na escritura a que se alude no ponto 4, em representação do filho da autora, na qualidade de vendedor.

9. Após a morte do seu marido, a autora sentiu-se sozinha e abatida, pela perda do cônjuge e sempre manifestou preocupação em acautelar o futuro do seu filho.

10. O filho da autora, apesar de plenamente capaz, padece, ao menos, de perturbação emocional/comportamental, que se traduz em episódica falta de vontade em participar nas actividades habituais/normais, num comportamento ora apático ora hiperactivo, em mudanças imprevistas e rápidas nos sentimentos e nos níveis de energia; tendo que cumprir determinada medicação, sob pena de evidenciar ao menos alterações do humor, da energia e do comportamento social.

11. No quadro deste isolamento/solidão da autora e da preocupação desta sobre quem a assistiria em caso de doença e no fim da sua vida, como quem assistiria o seu filho se a autora se tornasse incapaz de o fazer e quem o faria depois dela falecer, a autora e o seu filho entenderam que deveriam arranjar alguém que tratasse de ambos, auxiliando-os na fase em que se encontravam, e auxiliando o filho da autora depois da morte desta ou quando esta já não pudesse fazê-lo.

12. Os 1.º e 2.º réus eram presença assídua na vida destes e mantinham com a autora e com o filho desta uma relação de amizade e grande proximidade existencial, assistindo o filho da autora e a própria, nomeadamente nas deslocações a médicos, mas ainda na solução de problemas práticos destes (dívidas fiscais do marido e pai, falecido), proporcionando-lhes variadas vezes refeições e convidando-os para sair e conviver, partilhando a vida familiar com eles.

13. Foi neste quadro que a autora e o seu filho combinaram com os réus a transmissão da propriedade do prédio composto pelas três fracções já identificadas, conquanto estes assumissem também o encargo de tratarem da autora e do filho da autora até à morte de ambos, quando esta já não o pudesse fazer, obrigação, esta, que não ficou consignada no título de transmissão.

14. O filho da autora tomou conhecimento dos termos do negócio a outorgar ao menos na ocasião em que passou procuração à co-ré.

15. O preço fixado na referida escritura de compra e venda a que se alude no ponto 4, é inferior ao valor de mercado dos referidos imóveis.

16. Em Setembro de 2015, os réus ocuparam a fracção “A” e logradouro que lhe é contíguo, usando aquela fracção destinada ao comércio.

Foram considerados não provados os seguintes factos:

a) Para além do referido em 9, após a morte do marido da autora, esta sucumbiu num estado enfermo, afirmando-se para ela a constatação de uma necessidade prática e urgente de acautelar o futuro do filho, ora autor.

b) Para além do referido em 10, o filho da autora padece de perturbação mental, doença mental que se traduz em problemas de concentração e memória, associado a uma vaga sensação de estar desligado de si próprio e dos que os rodeiam, medo e desconfiança dos outros e uma estranha sensação de se sentir nervoso, com alterações graves no sono e no apetite.

c) O filho da autora, fruto da doença de que padece, é uma pessoa frágil e influenciável.

d) Se não cumprir a medicação, o filho da autora evidencia alterações do pensamento.

e) A autora é analfabeta, sabendo apenas desenhar o seu nome.

f) Para além do referido em 11, era urgente/premente a preocupação da autora em acautelar a situação do seu filho, já que o estado de saúde da autora piorava a cada dia que passava e também o filho da autora era assolado por crises próprias da sua perturbação – que o obrigavam a ficar de cama sem se poder mexer.

g) Para além do provado em 12, a autora combinou com os restantes réus que lhes doaria a sua casa – prédio composto pelas três fracções já identificadas.

h) E reservando para ela e para o autor, o usufruto de todas as fracções autónomas, até á morte de ambos.

i) Foi com vista à celebração de um negócio com este conteúdo que o filho da autora subscreveu a procuração assente em 7.

j) Munidos dessa procuração, os 1ºs e 2ºs réus conseguiram afastar o filho da autora da celebração do negócio, proferindo em seu nome, declaração diversa das instruções dadas pelo mesmo.

l) Conseguiram assim abster-se de constituir usufruto a favor do filho do autor sobre todos aqueles imóveis.

m) Os réus não pagaram o preço declarado pelos imóveis.

n) A autora, ao outorgar a declaração de venda, pelo estado psicológico em que se encontrava, o ascendente dos demais réus sobre ela e o seu analfabetismo, fê-lo porque os demais réus a convenceram que os termos do negócio como declarado, os beneficiaria (no confronto agora com o querido) perante a Administração Fiscal, não alterando já as obrigações assumidas reciprocamente.

o) A autora e o seu filho nunca quiseram o negócio que foi efectivamente celebrado em seu nome e desconheciam-no, ao menos nos moldes em que foi celebrado;

p) Os demais réus convenceram a autora a outorgar uma venda não querida, sob a argumentação de que esta seria fiscalmente mais favorável para si compradores ou para a vendedora e bem assim a convenceram a que não ficasse a constar o usufruto a favor daquela e do filho desta sobre a totalidade dos prédios.

q) A autora suportou os custos associados à transmissão dos imóveis.

r) A autora só consentiu que os réus ocupassem a fracção nos termos referidos no ponto 16 no pressuposto que estes iriam cumprir o acordo a que se alude no ponto 13.

s) A autora, após ter recuperado da operação cirúrgica a que foi sujeita e face à detioração da sua relação com os réus, com a ajuda de terceiros, em 2017 descobriu que não existia qualquer usufruto a favor do seu filho e que apenas tinha constituído usufruto a favor dela e de uma das fracções.

IV.

Afirma-se na fundamentação do acórdão recorrido que a ora recorrente não cumpriu cabalmente os ónus de impugnação da matéria de facto nos termos estabelecidos no citado art. 640º do CPC.

A recorrente tem entendimento diferente, defendendo que cumpriu as exigências legais da impugnação e que o acórdão recorrido incorre em erro de interpretação e aplicação das referidas normas.

Vejamos.

Dispõe o art. 640º do CPC:

1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido (…)

Tem sido reiteradamente entendido neste Supremo que a impugnação da decisão de facto não se destina a que a Relação proceda a "uma apreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência", "incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar"[2].

Recai assim sobre o recorrente "um especial ónus de alegação", quer quanto à delimitação do objecto do recurso, quer no que respeita à respectiva fundamentação.

Essa delimitação do âmbito do recurso, circunscrevendo o seu objecto, concretiza-se através da apontada exigência de especificação dos concretos pontos de facto impugnados.

Para fundamentar a impugnação deve o recorrente especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso (prova gravada), indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda.

O recorrente deve ainda especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida no que respeita aos factos impugnados.

É com base nos referidos elementos, assim delimitados e concretizados, que o tribunal irá reapreciar a prova, sem prejuízo de, oficiosamente, estender a sua análise a outras provas que tenha por relevantes.

A inobservância pelo recorrente dos apontados requisitos é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afectada – citado art. 640º, nº 1 e nº 2, al. a).

Essa cominação parece indiscutível no que toca às especificações expressamente previstas no nº 1, dada a sua indispensabilidade: constituem elementos essenciais e necessários à viabilidade da impugnação, pelo que parece inevitável e ajustada a rejeição liminar.

Sublinhe-se, no entanto, que, no caso da al. b) do nº 1, a exigência não fica satisfeita com a mera especificação dos meios de prova: a fundamentação da impugnação deve ser feita para cada facto distinto, com indicação dos meios de prova que justificavam uma resposta diferente da que foi dada a cada um dos factos.

O sistema, como tem sido reconhecido, não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto[3].

Por outro lado, no que respeita ao requisito previsto no nº 2, al. a) – indicação exacta das passagens da gravação em que se funda a impugnação –, apesar da letra do preceito, parece justificar-se alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão; daí que se entenda que a omissão só deve relevar se dificultar gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária ou o exame pelo tribunal de recurso[4].

É esta, no fundo, uma preocupação constante na jurisprudência do Supremo sobre esta questão: em atenção aos princípios que devem enformar o processo civil (designadamente o da prevalência do mérito sobre os requisitos meramente formais), as razões que podem obstar à reapreciação da matéria de facto pela Relação carecem de "uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação – evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais"[5].

Assim, como se decidiu no Acórdão de 08.11.2016:

"Apenas violações grosseiras, mormente, quanto ocorre omissão absoluta e indesculpável do cumprimento do ónus contido no art. 640º do Código de Processo Civil, que comprometam decisivamente a possibilidade do Tribunal da Relação proceder à reapreciação da matéria de facto, a saber: a) indicação dos pontos de facto que se pretendem ver reapreciados; b) indicação dos meios de prova convocados para a reapreciação; c) indicação do sentido das respostas a alterar; d) indicação, com referência à acta da audiência de discussão e julgamento, dos depoimentos gravados em suporte digital, podem conduzir à rejeição liminar, imediata, do recurso – art. 640º, nº2, al. a), 1ª parte, do Código de Processo Civil.

Postas estas considerações, vejamos o caso dos autos.

No acórdão recorrido, depois de se expor desenvolvidamente o regime aplicável, escreveu-se o seguinte:

«"In casu”, analisadas as conclusões do recurso de apelação em apreço, verifica-se que nelas a apelante referindo-se abundantemente a temática relativa à impugnação da matéria de facto e à prova gravada, todavia não indicou os concretos pontos de facto, decididos em 1.ª instância que no seu entendimento foram incorrectamente julgados, limitando-se por fim a expressar o que, no seu entender deve ser julgado agora provado, sendo certo que o teor dessa factologia que agora aventa e considerando o objecto do recurso quanto à questão da impugnação da decisão da matéria de facto é sempre a respectiva decisão proferida em 1.ª instância e não um julgamento autónomo feito por este tribunal de recurso, não corresponde a serem agora julgados não provados, factos que tenham sido julgados provados em 1.ª instância, nem a que se julguem agora como provados factos que tenham sido julgados não provados em 1.ª instância.

Mas mais, foi com muita dificuldade e esforço que não nos é exigível que, depois da análise das abundantes e manifestamente prolixas alegações da apelante que chegámos à conclusão que a mesma se insurge, sem, contudo, nunca o afirmar expressamente, contra as questões factuais decididas em 1.ª instância e constantes das alíneas a), c), f), g), h), m), o) e s) do complexo fáctico julgado não provado em 1.ª instância e, contra o facto constante do ponto 15 do complexo fáctico julgado provado em 1.ª instância. E como acima já deixámos consignado, relativamente a tais factos decididos em 1.ª instância, propõe a autora/apelante, ao que nos podemos aperceber, que em substituição de tais factos se dêem como provados os que agora indica, os quais, contudo, vendo o teor da sua p. inicial, não correspondem exactamente ao que alegou nessa peça processual. Ora, como já se referiu acima, preceitua o n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (…)” e como se entendeu no Ac. do STJ de 1.10.2015, in www.dgsi.pt, “Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificadas com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso”, cujo entendimento, é nesta matéria, o nosso.

E finalmente, não obstante a apelante ter junto aos autos a transcrição integral da gravação de todos os depoimentos proferidos em audiência de julgamento dos autos e de ter ainda, em sede quer de alegações, quer de conclusões ter indicado com exactidão as passagens da gravação dos depoimentos em que estriba a sua impugnação da decisão de facto e de ainda ter procedido à transcrição dos enxertos das mesmas que reputa de relevantes, certo é que a apelante se limitou a uma tal objectividade, ou seja, em parte alguma das suas extensas alegações e conclusões a autora/apelante desenvolveu uma, ainda que mínima, análise crítica dessas provas, por forma demonstrar a este tribunal de recurso que a decisão proferida em 1.ª instância sobre cada um desses concretos pontos de facto não é plausível, possível ou não é a mais razoável.

Na verdade, para que o ónus a cargo do recorrente seja cumprido é também necessário, isto é, exige-se ao recorrente, uma análise crítica da prova invocada, em confronto com o que consta da motivação da sentença recorrida, que permita justificar a alteração da decisão proferida sobre determinados factos.

Todas estas exigências constituem uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo da parte recorrente com o decidido em 1.ª instância. Trata-se, além disso, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário atendendo, por um lado, que ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e, qual a concreta divergência detectada, não só à luz dos depoimentos objectivos que invoca, mas e, principalmente, à luz da análise crítica que o julgador de 1.ª instância fez dos mesmos e, por outro lado, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar, assim se garantindo o efectivo cumprimento do princípio do contraditório, cfr. art.ºs 638.º n.º 5 e 640.º n.º 2 al. b), isto sempre tendo por fundo a motivação da respectiva decisão ora impugnada constante da decisão recorrida.

“In casu”, temos de concluir, atento tudo o que acima já deixámos consignado que a apelante não cumpriu devidamente os ónus de impugnação da decisão da matéria de facto que sobre si impendiam, razão pela qual, nos termos do preceituado nas normas citadas e fundamentalmente no n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civil, pelo que se rejeita o recurso no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância, excepção feita à peticionada alteração da resposta dada ao facto 15., do complexo factual julgado provado em 1.ª instância, que apesar de tudo, em nossa convicção não merece qualquer censura, devendo manter-se inalterado, já que na economia de toda a decisão da causa, se trata de uma precisão factual absolutamente inócua, não obstante resultar do teor do relatório pericial junto a fls.153 a 161 dos autos.

Improcedem as respectivas conclusões da apelante».

Crê-se que não se decidiu bem.

Como se reconheceu nesta fundamentação, apesar da dificuldade invocada, a recorrente indicou os pontos da matéria de facto que, em seu entender, foram incorrectamente julgados pela 1ª instância. É evidente que a sistematização utilizada na exposição da recorrente poderia ser diferente, tornando mais clara a especificação dos pontos de facto impugnados, em consonância e correspondência com a sua enumeração no elenco dos factos julgados (na maioria) não provados e respectivo teor.

É indiscutível, porém, que, não obstante essa falta de correspondência formal explícita, tal não obstou a uma completa identificação dos pontos de facto em questão, como acabou por ser reconhecido no acórdão recorrido (e é agora confirmado pela recorrente na revista).

Reconhece-se também no acórdão recorrido que:

- A apelante juntou aos autos a transcrição integral da gravação de todos os depoimentos prestados na audiência de julgamento;

- Indicou também com precisão as passagens da gravação desses depoimentos em que fundou a impugnação;

- Transcreveu ainda os excertos das passagens que reputou relevantes; e

- Indicou a decisão que deveria ter sido proferida sobre os pontos de facto impugnados.

Entendeu-se, porém, no acórdão recorrido que a recorrente não desenvolveu uma análise crítica das provas por forma a demonstrar a este tribunal de recurso que a decisão proferida em 1.ª instância sobre cada um desses concretos pontos de facto não é plausível, possível ou não é a mais razoável.

Com todo o respeito, afigura-se-nos que esta exigência é excessiva, carecendo de fundamento legal.

Os requisitos que o impugnante da decisão de facto tem de satisfazer são os indicados no art. 640º do CPC, como acima se referiu, e nestes não se inclui a aludida análise crítica das provas, pelo menos com a amplitude e desenvolvimento exigidos no acórdão recorrido, pois é certo que o recorrente não deixa de proceder a uma, ainda que mínima, análise crítica, ao partir de determinados meios de prova e, com base neles, defender que estes deveriam ter conduzido a decisão diferente da proferida[6].

No caso, como decorre das conclusões do recurso de apelação e foi reconhecido no acórdão recorrido, a recorrente identificou os pontos da matéria de facto que considera mal julgados; indicou a prova documental e os depoimentos das testemunhas que, em seu entender, impunham decisão diversa sobre esses pontos de facto; indicou o início e o termo de cada um desses depoimentos e apresentou a transcrição dos mesmos; e indicou a decisão que deveria ter sido proferida sobre os pontos de facto impugnados.

Tanto basta, parece-nos, na linha da jurisprudência acima citada, para se poder afirmar que a recorrente cumpriu os ónus que sobre si impendiam quanto à fundamentação da impugnação da decisão de facto.

O acórdão recorrido não pode, pois, manter-se.

Em conclusão:

Tendo a recorrente especificado os pontos da matéria de facto que considera mal julgados; indicado os concretos meios de prova, documental e testemunhal, que, em seu entender, impunham decisão diversa sobre esses pontos de facto; indicado com exactidão as passagens da gravação em que se funda (o início e o termo de cada um dos depoimentos), apresentando até a respectiva transcrição; e indicado a decisão que deveria ter sido proferida sobre os pontos de facto impugnados, tanto basta para se poder afirmar que a recorrente cumpriu os ónus que sobre si impendiam quanto à fundamentação da impugnação da decisão de facto.

V.

Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, determinando-se que a Relação proceda à apreciação da impugnação da decisão de facto formulada na apelação, se possível, pelos mesmos Srs. Juízes Desembargadores.

Custas desta revista pelos recorridos.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2021

F. Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

Tem voto de conformidade dos Exmos Adjuntos (art. 15ºA aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] Proc. nº 399/18.2T8PNF.P1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 388)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Preâmbulo do DL 39/95, de 15/2. Cfr. Acórdão de 19.02.2015 e de 28.05.2015, em www.dgsi.pt, como os demais adiante citados. Também Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 163.
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 28.04.2016.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 19.02.2015.
[5] Acórdão do STJ de 29.10.2015.
[6] Parecendo, aliás, que, pelo teor das conclusões 4ª, 8ª e 9ª da apelação e no que respeita aos factos não provados das als. m), g) e h) e o), se vai além desse patamar mínimo.