Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20085/16.7PRT.P1.S1.S1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ACÁCIO DAS NEVES
Descritores: CONFIANÇA JUDICIAL
ADOPÇÃO
Data do Acordão: 09/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / ADOPÇÃO / CONFIANÇA COM VISTA A FUTURA ADOPÇÃO.
Doutrina:
- Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume II, Direito da Filiação, Tomo I, p. 64;
- Sara Caçador, Tese de Mestrado “Abordagem Teórico-Prática da Intervenção do Tribunal na Aplicação da Medida de Confiança a Instituição com Vista a Futura Adopção”, in https:// repositório.ucp.pt…/10400…/Tese%20 de %20 Mestrado%Sara%20 Caçador.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1978.º, N.º 1, ALÍNEA D).
LEI DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO, APROVADA PELA LEI N.º 147/99 DE 01-09: - ARTIGOS 35.º, N.º 1, ALÍNEA G) E 38.º-A.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-11-2014, PROCESSO N.º 99/10, IN SUMÁRIOS 2014, P. 618.
Sumário :

Revelando a factualidade provada que os progenitores não chegaram a criar verdadeiros laços de afetividade com a criança, mostrando-se comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, conclui-se ser a situação dos autos subsumível no art. 1978.º, n.º 1, al. d), do CC, sendo, por isso, adequada a medida de confiança do menor a instituição com vista a futura adoção.


Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

No âmbito dos presentes autos de promoção e proteção, por decisão da 1ª instância, foi aplicada à criança AA, filha de BB e de ..., a medida de confiança à “CC” com vista à sua futura adoção.

 Inconformada, a mãe da criança, BB, recorreu de apelação, tendo a Relação do Porto, por acórdão constante dos autos, confirmado, sem voto de vencido, aquela decisão da 1ª instância.

Mais uma vez inconformada, veio a mãe da criança, BB, interpor recurso de revista excecional.

A Formação a que alude o nº 3 do art. 672º do CPC, a quem os autos foram distribuídos, por acórdão de 03.05. 2018, tomando posição no sentido da necessidade prévia de verificação dos requisitos de admissibilidade da revista nos termos normais, determinou que a revista fosse distribuída como revista normal, voltando os autos à Formação no caso de se considerar ser recorrível a decisão recorrida e, por despacho do Relator, após se considerarem como verificados os requisitos gerais relativos à tempestividade, legitimidade e admissibilidade resultante do valor da alçada, e por se entender estarmos em presença de uma situação de dupla conforme – determinou-se a remessa dos autos de novo à Formação, a fim de ali se tomar posição no sentido da verificação dos pressupostos invocados pela recorrente para fundamentar a revista excecional que interpôs, nos termos do nº 3 do art, 672º do CPC.

No seguimento disso, a Formação, por considerar verificado o pressuposto da excecionalidade, admitiu a revista.

Na revista, formulou a recorrente as seguintes conclusões:

I - Vem o presente recurso interposto do douto acórdão da Relação do Porto que confirmou a medida de confiança judicial de criança, Filho da ora Recorrente, com vista a futura adoção.                                                  

II - A questão de Direito que se leva à apreciação de V. Exas. prende-se com o preenchimento factual do conceito jurídico indeterminado inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação, enquanto pressuposto imprescindível de uma decisão de confiança de criança com vista a futura adoção, prevista no artigo 1978.º, n.º 1, do Código Civil (CC).    

III - Em concreto, importa aquilatar se, a partir da matéria factual dada como assente pelas instâncias, se encontram preenchidos os pressupostos para se concluir que inexiste ou se verifica algum comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação da Recorrente em relação ao seu Filho.     

  IV - Segundo a doutrina mais autorizada, “é requisito autónomo comum, de todas as situações tipificadas no n.º 1, do artigo 1978.º, a não existência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação, vistos na perspetiva dos pais para com os filhos e nas dos filhos para com os pais, não bastando a verificação e prova de qualquer das circunstâncias tipificadas, seno, pois, condição de decretamento da medida de confiança judicial que se demonstre não existir ou se encontrarem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, não bastando igualmente que o estejam os vínculos, por assim dizer, económico-sociais dela”, in Pereira Coelho, Direito da Família, vol. 2, pag. 278.

V - A apreciação desta questão jurídica é de importância fulcral no caso concreto, visto que nela assenta o requisito básico (e autónomo dos demais) de uma medida tão gravosa, como a entrega de uma criança com vista à futura adoção, no que isso tem de efeito incontornável: o corte, absoluto, radical e definitivo, da filiação biológica e natural e cessação imediata de contactos entre progenitora e Filho, cujo superior interesse importa acautelar, pois ficará privado, para todo o sempre, do contacto com a Mãe.                                                                                             VI - A medida de confiança de criança para futura adoção está prevista e é regulada pelos artigos 1978.º, n.º 1, do CC, e 35.º, n.º 1, alínea g), e artigo 38- A da Lei nº 147/99, na redação catual, exigindo o preenchimento de dois requisitos:                       (i) a não existência ou o sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação, e (ii) essa inexistência ou comprometimento se deva à verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:                              

   a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;                   

 b) Se tiver havido consentimento prévio para a adoção;    

c) Se os pais tiverem abandonado a criança;                                         

d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;                                                   

e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.                     

VII      - A decisão recorrida considerou preenchido o segundo requisito, especificamente a alínea d) do nº 1, do artigo 1978.º do CC, mas quanto ao requisito da vinculação afetiva, da Mãe em relação ao Filho, refere-se na decisão recorrida os factos provados números 33, 34 e 40, para os quais, com a devida vénia, acima se remete.                                                                                                                     

VIII - Quanto à relação Filho-Mãe, apenas está dado como provado que “O AA não demonstra sofrimento no momento da separação” (nº 35).                            

IX - Da matéria factual assente pelas instâncias não é possível concluir que inexiste vinculação afetiva, quer da Mãe em relação ao Filho, quer deste em relação à Mãe, visto que este requisito é autónomo dos demais e deve ser apreciado em perspetival bilateral: dos pais em relação aos filhos e dos filhos em relação aos pais.      

X - No que respeita à perspetival do vínculo Filho-Mãe, a decisão recorrida múltiplas interrogações por responder:                                                                           

- A criança reconhece a Recorrente como Mãe?                                                

- A criança fica contente ao ver a Mãe nas visitas? Ou é indiferente?              

- De que forma a criança trata a Mãe?                                   

   - A criança procura contacto visual e/ou físico com a Mãe?   

- A criança tem alguma figura adulta de referência? Quem?                         

XI - Na ausência de respostas a estas questões, parece não poder concluir-se no sentido negativo, até porque em momento algum a decisão recorrida diz que inexistem ou se encontram comprometidos os vínculos afetivos do Filho em relação à Mãe.                                                                                                                                          

XII -Não pode concluir-se (como faz a decisão recorrida) que há impedimento da criação de vínculo afetivo próprio da filiação em resultado de a progenitora se ter colocado em situação de ausência de meios (sem que isso resulte sequer dos factos provados), pois pode haver carência de meios económicos e, mesmo assim, continuar a existir vinculação afetiva, existindo para essas situações medidas de promoção e proteção menos gravosas (para todos) e mais proporcionais e adequadas do que a confiança de criança para futura adoção.                                       

XIII - Não pode confundir-se o requisito da situação de perigo para a criança com o distinto e autónomo requisito da inexistência de laços afetivos, nem pode decretar-se a confiança para futura adoção apenas com base numa situação de perigo, eventualmente até por “responsabilidade” da Mãe, se continuar a existir vinculação afetiva, até em nome do direito da criança a manter os laços com a família biológica.           

XIV - Ocorre, pelo menos, insuficiência da matéria de facto dada como provada para a inferência a que chegou o tribunal a quo de que não existem vínculos afetivos, pelo que, se não for de concluir no sentido da existência e persistência dos vínculos, pelo menos se impunham averiguações e diligências adicionais para ampliação da matéria de facto.                                                                                     

XV- Reconhecendo-se erro na interpretação e aplicação do artigo 1978.º, nº 1, do CC, há lugar à revogação da decisão de confiança do menor para futura adoção, substituindo­-se por outra decisão que julgue verificado o requisito da existência de vinculação afetiva entre progenitora e Filho e decrete outra medida de promoção e proteção proporcional e adequada à situação, em obediência ao primado da família biológica - art. 24.º, alínea g), da Lei n.º 147/99, na redação catual.                           

XVI - Foram violados os artigos 36.º, n.º, 5, 6 e 7, 18.º, n.º 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, os artigos 1978.º, nº 1 do CC, e artigos 4.º, alíneas a), e), g) e h),  35/1/g), 38-A, da Lei n.º 147/99, na redação catual.                       

Termos em que, e nos mais de Direito cujo suprimento se impetra a V. Exas., vem pedir-se que, admitido o presente recurso de Revista Excecional, seja julgado procedente e, por via disso.                                                                                                    

A) Revogado o douto acórdão a quo, sendo ordenada a sua substituição por outra decisão que aplique medida de promoção e proteção distinta da confiança para futura adoção, Subsidiariamente, se assim não for entendido,                                           

B) Revogada a decisão recorrida e, reconhecida a insuficiência da matéria de facto para a decisão, sejam ordenadas diligências adicionais tendentes a averiguar da persistência de vínculos afetivos próprios da filiação, em perspetival bilateral (Mãe-Filho e Filho-Mãe), para esclarecimento e ampliação da matéria de facto, assim se fazendo Justiça e Direito.

O Ministério Público contra-alegou, tomando posição, para além da inadmissibilidade da revista (questão esta já ultrapassada, nos termos supra mencionados), no sentido da improcedência desta.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir:

           Perante o conteúdo das conclusões da recorrente, enquanto delimitadoras do objeto da revista, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:                              

- falta de verificação do requisito relativo à existência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação;                                     

- insuficiência da matéria de facto.  

É a seguinte a factualidade dada como provada pelas instâncias:

1. AA nasceu em .../2016 e é filho de AA e de ...;

2. Em Janeiro de 2016, quando já se encontrava grávida do AA, a progenitora recorreu ao serviço de Acão social da ..., solicitando acolhimento na sequência de ter sido alvo de despejo, por falta de pagamento da renda;

3. À data, encontrava-se desempregada e sem rendimentos, por ter perdido o emprego que tinha na área da restauração, devido a confrontos com colegas e com a entidade patronal;

4. Inicialmente recusou integrar um Centro de Acolhimento, por entender que a Segurança Social deveria pagar-lhe a renda de um quarto, tendo recuado face à recusa de tal pagamento;

5. Em 29 de janeiro de 2016, foi integrada no Centro de Acolhimento Social da Santa Casa da Misericórdia, tendo abandonado esta Instituição, por iniciativa própria, em 16 de fevereiro de 2016;

6. No período em que permaneceu nesta Instituição, ausentava-se vários dias e noites sem aviso prévio, pernoitando em casa de pessoas suas conhecidas, cuja morada se recusou a disponibilizar;

7. No dia 22 de fevereiro de 2016 recorreu novamente ao serviço de Acão social da ..., em situação de sem abrigo, por se ter incompatibilizado com o casal que então a acolhia;

8. Recusou o regresso ao Centro de Acolhimento Social, tendo sido apoiada no aluguer de um quarto na freguesia do ...;

9. Na altura, foi apoiada através de cabazes alimentares e na cantina social, bem como na aquisição de medicação, tendo-lhe ainda sido atribuído apoio económico para comparticipação de despesas com transporte, a fim de se deslocar às consultas de acompanhamento pré-natal no Hospital de ...;

10. Era frequente não cumprir os horários para levantamento das refeições, e por vezes nem sequer as levantava;

11. Incompatibilizou-se com a senhoria e, em 22 de março de 2016, abandonou o quarto;

12. Residiu entretanto num quarto alugado na ..., cuja morada se recusou a identificar;

13. Em 01 de abril de 2016, integrou o Lar ...;

14. Durante a sua permanência no Lar, não respeitava as hierarquias, teve dificuldade em estabelecer relações interpessoais (não criou laços de amizade ou afetividade);

15. Nunca quis colaborar nas tarefas diárias, sendo que, quando não saía, passava o dia deitada;

16. Passava praticamente todo o dia fora da Instituição, alegando ir tratar de assuntos de saúde e burocráticos, chegando normalmente ao Lar sem os resolver;

17. A equipa técnica do Lar tentou ajudar a progenitora a delinear o seu projeto de vida, que passaria pela inserção no mercado de trabalho, tendo-se a mesma mostrado sempre resistente e pouco colaborante, verbalizando não precisar de ajuda;

18. Na altura, planeava estar na Instituição até aos quatro meses do AA, e após entregá-lo a outra Instituição para poder refazer a sua vida;

19. Foi igualmente tentado o apoio a nível psicológico, no sentido de alterar os comportamentos da progenitora com o grupo de pares e hierarquia, assim como fomentar a sua auto-estima e as suas competências parentais, intervenção que não se revelou bem sucedida, devido às constantes ausências e resistência da progenitora;

20. Durante a gravidez, cumpriu com as consultas e exames agendados;

21. Foi internada por ameaça de parto pré-termo, tendo continuado, durante o internamento, com hábitos tabágicos;

22. O AA nasceu com trinta e três semanas e três dias de gestação, tendo ficado internado na unidade de cuidados intensivos neonatais;

23. Após o parto, a progenitora exigiu alta a 24 de julho, contra parecer médico, tendo a criança permanecido internada;

24. Durante o internamento, acompanhou diariamente o filho, mostrando interesse nos cuidados a prestar e colaborando com as orientações dos profissionais;

25. Em 9 de agosto de 2016, a progenitora subscreveu acordo de promoção e proteção, com aplicação da medida de apoio junto da mãe, tendo-se aí comprometido, para além do mais, a cumprir com as regras do Lar ... e com todas as orientações da equipa técnica e a manter relação de cordialidade e respeito com todos os elementos integrados no Lar;

26. Durante a sua permanência no Lar com o AA, não aceitava a orientação nem supervisão dos profissionais, contrariando as indicações destes, tais como: dormia diariamente com o AA na sua cama, tapando-o todo; não preparava o banho e a muda de roupa do menor; o quarto apresentava-se sujo e desarrumado; não administrava a medicação ao AA de acordo com a prescrição médica;

27. Em 28 de agosto de 2016 a progenitora foi expulsa do Lar, em consequência de um episódio de agressividade física para com uma colega, na presença de outras mães, crianças e uma funcionária;

28. O menor integrou a “CC” em 28/09/2016;

29. A progenitora foi na altura viver para uma pensão na ...;

30. Em 13/10/2016 foi aplicada ao menor a medida provisória de acolhimento residencial, a qual foi sucessivamente prorrogada;

31. Aquando da integração na “CC”, o AA apresentava bom estado geral e aceitou satisfatoriamente os cuidados prestados;

32. É uma criança com desenvolvimento adequado à sua idade, quer em termos motores, quer em termos de relacionamento com o meio envolvente, mostrando-se simpático e com capacidade comunicacional;

33. A progenitora foi sempre assídua nas visitas, inicialmente agendadas duas vezes por semana e ultimamente cinco vezes por semana;

34. Assumiu sempre uma postura afetuosa para com o filho, conversando com este e brincando com o mesmo de forma adequada;

35. O AA não demonstra sofrimento no momento da separação;

36. No decurso das visitas, apresentou oscilações de humor e resistência a cumprir as orientações e sugestões dos técnicos, assumindo para com estes, por vezes, uma postura conflituosa e hostil;

37. Compareceu por mais de uma vez com sinais de ter ingerido bebidas alcoólicas;

38. Nunca aderiu aos planos de catividades lúdicas e formativas promovidos pela “CC”, recusando participar em eventos relacionados com festas;

39. Num desses eventos, recusou escrever uma frase alusiva ao Dia da Mãe e rasgou o postal elaborado como presente;

40. Acompanhou sempre a criança a consultas médicas e durante um período de internamento;

41. Aquando do acolhimento do AA, a progenitora residia numa pensão na zona do ... e em outubro de 2016 residia numa pensão na Rua ...;

42. Em novembro de 2016 residia num quarto sido na Rua ..., com direito ao uso das partes comuns;

43. À data, dedicava-se à prostituição, preferencialmente em horário diurno, angariando os seus clientes a partir da via pública, nas proximidades de uma pensão sita na zona da ...;

44. Ao longo do seu percurso, procurou encontrar outras alternativas profissionais, acabando por regressar por os rendimentos auferidos não serem compatíveis com o nível de vida a que estava habituada;

45. Por despacho proferido em 15/11/2016, foi determinada a intervenção do CAFAP, tendo em vista a reorganização da vida da progenitora;

46. Contactada pelo CAFAP em dezembro de 2016, com vista ao agendamento de sessões de trabalho, afirmou estar muito ocupada e não poder comparecer, solicitando o adiamento do mesmo para 2017;

47. Posteriormente, assumiu que não pretendia colaborar com a intervenção do CAFAP;

48. Apresentou diversas fases de consumo excessivo de álcool, problema que nunca reconheceu, tendo chegado a faltar a consulta agendada para o Centro Regional de Alcoologia do ..., entidade onde chegou a iniciar acompanhamento terapêutico, o qual abandonou perto do final, por não poder receber visitas nem telefonemas;

49. Em agosto de 2017 dirigiu-se ao aludido centro, com vista a obter declaração em como estava abstinente;

50. Em finais de 2016 a progenitora trabalhou como copeira na cantina da Faculdade de Engenharia, catividade que exerceu durante uma semana;

51. Posteriormente, voltou a dedicar-se à prostituição;

52. Em fevereiro de 2017 residia na casa de uma amiga, no alto da ...;

53. Em março residia num quarto num apartamento sito na ..., apartamento dividido com mais quatro hóspedes;

54. Em abril de 2017 passou a residir na Rua ..., em apartamento arrendado, tipo T1, cuja renda mensal é de € 300,00, onde se mantém;

55. Foi apoiada pelos filhos mais velhos no pagamento da renda referente a dois meses, tendo-se um deles disponibilizado a ser fiador;

56. Dispõe de equipamento mínimo, sendo que a cozinha não é frequentemente utilizada, não dispondo de frigorífico;

57. Entre 1 de fevereiro e meados de abril de 2017 trabalhou como empregada de limpeza numa confeitaria, posto de trabalho que abandonou, apesar de ter sido contratada até 31 de julho;

58. Há cerca de cinco meses passou a exercer funções de copeira no Hotel ..., com turnos das 7h00 às 14h30 ou das 16h00 às 23h00, auferindo o salário mínimo nacional, emprego que mantém até hoje, ao abrigo de um contrato a termo que termina em outubro de 2017;

59. Tem duas folgas semanais, acrescidas de mais duas folgas mensais, se cumprir os requisitos de assiduidade;

60. Já verbalizou junto da técnica social que a acompanha que pretende arranjar um outro emprego, devido aos horários deste, assim como continuar a dedicar-se à prostituição;

61. A progenitora tem mais quatro filhos: ..., nascido em .../1994; ..., nascido em .../1998; ..., nascida em .../1999 e ..., nascido em .../2002;

62. O ... foi encaminhado para adoção;

63. A ... vive com o pai em ..., não mantendo contactos com a progenitora;

64. O ... e o ... integraram a Obra ... em 2002, no âmbito de medida de acolhimento institucional aplicada em processo de promoção e proteção;

65. O ... deixou a Instituição em 2002 e o ... ainda aí permanece, pretendendo continuar no apartamento de semiautonomia onde atualmente reside;

66. Pelo menos por duas vezes — em 2006 e 2009 - esteve programado o regresso dos menores a casa da mãe, o qual nunca se concretizou, por falta de condições desta, tais como rendas em atraso e situações de desemprego;

67. Na altura, chegou a admitir que não tinha condições para assumir os filhos;

68. Durante a permanência dos jovens na Instituição, a progenitora chegou a aí criar diversos desacatos, tendo partido um vidro e agredido uma funcionária da Instituição;

69. Mostrou-se sempre afetuosa com os filhos;

70. A progenitora não conta com qualquer suporte em eventuais cuidados a prestar ao AA, por parte de familiares ou amigos;

71. Apresenta uma história biográfica sugestiva de perturbação da personalidade;

72. Apresenta frágeis recursos cognitivos (com limitações ligeiras) e emocionais, os quais condicionam negativamente uma resposta psicológica mais ajustada no que respeita ao seu equilíbrio individual e, consequentemente, no que toca à maternidade;

73. Revela um funcionamento psicológico marcado por instabilidade emocional, desgaste psicológico e indicadores depressivos;

74. Apresenta fragilidades ao nível da consciência moral e de planificação da sua vida;

75. Apresenta dificuldade, em situações mais críticas, de controlar os seus impulsos, assumindo facilmente atitudes de ira;

76. Não reconhece tais limitações;

77. As limitações supra referidas são passíveis de pôr em causa o exercício da parentalidade de uma criança da idade do AA sem que a mesma corra riscos;

78. Mesmo com apoio parental e atenta supervisão do agregado, é reservado o prognóstico relativamente à capacidade da progenitora de assumir os cuidados referentes ao AA;

79. O progenitor visitou o AA na “CC” por três vezes, entre fevereiro e abril de 2017;

80. Desde essa data reside em França, tendo estabelecido alguns contactos via e-mall com a Instituição, procurando inteirar-se do estado do AA;

81. Nunca assumiu pretender ter o menor ao seu cuidado;

82. Não tem quaisquer familiares em Portugal;

83. O irmão do menor, ..., vive com a namorada, desempenhando atividade como animador hoteleiro em diversas partes do país;

84. A namorada trabalha num cruzeiro, com duas semanas de férias por cada três meses de trabalho;

85. Pretende emigrar para ...;

86. Não está disponível para acolher o AA.

           

Quanto à falta de verificação do requisito relativo à inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação:

           No âmbito dos presentes autos de promoção e proteção foi aplicada, na 1ª instância, relativamente à criança AA, em causa nos presentes autos (atualmente com cerca de dois anos de idade), a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção – decisão essa com a qual a progenitora se não conformou, recorrendo para a Relação que, conforme supra referimos, acabou por confirmar aquela decisão da 1ª instância.

           E, recorrendo do acórdão da Relação, vem uma vez mais questionar a justeza da aplicação de tal medida – medida essa prevista nos arts. 35º, nº 1, al. g) e 38º-A da Lei nº 147/99 de 01.09 e 1978º do C, Civil.                             

       Não questionando a necessidade de aplicação de qualquer uma das outras medidas de promoção e proteção, elencadas também no nº 1 do art. 35º da Lei nº 147/99 (pedindo a final das conclusões a substituição da medida aplicada por qualquer outra medida de promoção e proteção), a recorrente apenas se manifesta contra a aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, ou seja, contra aquela que foi aplicada nos autos.                                                                

Não colocando assim em causa a verificação dos pressupostos relativos à necessidade de intervenção judicial para promoção dos direitos e proteção da criança, resultantes da efetiva existência de perigo, ou seja, a verificação das situações elencadas nas alíneas c) e f) do nº 2 do art. 3º da Lei nº 147/99, conforme foi considerado pelas instâncias, a progenitora ora recorrente apenas considerara que da factualidade provada não se pode concluir no sentido de se considerar verificado o requisito (exigível e autónomo), previsto no nº 1 do art. 1978º do C. Civil, relativo à inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação.

           

           Defende a recorrente que tal requisito elencado neste nº 1 (o qual estabelece que “o tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva das seguintes circunstâncias:”) se diferencia e é independente da verificação de todas as situações tipificadas nas diversas alíneas deste mesmo nº 1 e, particularmente da situação que foi considerada como verificada pelas instâncias, referida na alínea d) deste nº 1 (“se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor”).

           Ora o certo é que, conforme se alcança da sentença da 1ª instância (e se transcreve no acórdão recorrido), a 1ª instância até se pronunciou no sentido da verificação da inexistência dos referidos vínculos afetivos.                                                  

Isto, na medida em que na sentença, a propósito da afetuosidade que a progenitora manifestava nas visitas à criança, se fez consignar o seguinte:        

Ora, tal vinculação não se basta com um tratamento afetuoso. Exige que a criança tenha quem se responsabilize por si, que tenha uma família — biológica ou adotiva — que satisfaça todas as suas necessidades ao nível da saúde, educação, alimentação, higiene e que o faça sentir seguro. Não consideramos, assim, que do tratamento dado pela mãe ao Alonso resulte a existência de vínculos afetivos próprios da filiação, tanto mais que o AA não demonstra sofrimento no momento da separação. Verificam-se assim os pressupostos de aplicação da medida de confiança com vista a futura adoção”.

E o certo é que tal posição, nem sequer foi questionada no âmbito do recurso para a Relação.                                                                                                  

Trata-se assim de uma questão sobre a qual, em bom rigor, já houve pronúncia definitiva.

Não obstante, e tendo-se em atenção a natureza dos presentes autos, de jurisdição voluntária (art. 110º da Lei 147/99), sempre se poderá considerar que a revista tem por objeto, uma vez mais, a verificação, no seu todo, do pressuposto ou pressupostos da aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção previsto(s) no art. 1978º do C. Civil.

Aceitamos como válido o entendimento defendido pela recorrente, no sentido de que a aplicação de tal medida, para além da prova do pressuposto referido na al. d) do nº 1 daquele artigo - o que, in casu, está em causa (“se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor”) depende ainda da prova do pressuposto, complementar, referido no corpo do nº 1 (não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação”).

Isto, na linha do entendimento efetivamente preconizado na doutrina, pelos Professores Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in Curso de Direito da Família, Vol. II, Direito da Filiação, Tomo I, pag. 64) e ainda por Sara Caçador (in Tese de Mestrado “Abordagem Teórico-Prática da Intervenção do Tribunal na Aplicação da Medida de Confiança a Instituição com Vista a Futura Adopção”, in https:// repositório.ucp.pt…/10400…/Tese%20 de %20 Mestrado%Sara%20 Caçador).

E na jurisprudência, neste sentido, veja-se ainda o acórdão deste tribunal de 20.11.2014 (proc. nº 99/10, in Sumários 2014, pag. 618), segundo o qual o art. 1978º do CC faz depender a medida de confiança do menor a instituição com vista a futura adoção da verificação do pressuposto relativo ao comprometimento sério do vínculo afetivo da criança com mãe.

Todavia, conforme bem defende Sara Caçador (in ob. cit.), tendo-se por pano de fundo o princípio base do superior interesse da criança, para os efeitos em questão basta a quebra dos vínculos afetivos das crianças para com os pais.                                  

E, no mesmo sentido, o referido aresto deste tribunal, de 20.11.2014, ao defender que a formalização das visitas pela mãe e a vontade verbalizada, por esta, de ter o filho consigo, não esbatem o comprometimento sério do vínculo afetivo, nas situações em que se não chegaram a estabelecer por parte da criança laços de afetividade intensos, próprios da filiação.

Ora, face à factualidade dada como assente nos autos, e contrariamente ao que defende a recorrente, impõe-se considerar (conforme o fizeram as instâncias) como verificado o requisito em questão relativo à inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação – particularmente (e , conforme supra referimos, é isso que releva) na perspetiva dos vínculos afetivos da criança para com a progenitora.

Senão vejamos:

Relativamente à criança, está provado quer a mesma tem apenas cerca de dois anos (nasceu em 21.07.2016), nasceu quanto a mãe estava integrada numa instituição (Lar ...), sendo que esta planeava entregar o filho a outra instituição ao fim de 4 meses para refazer a sua vida.                                                                       

Mais resulta provado que a criança tem estado internada numa Instituição (CC) e que, após as visitas da progenitora “não demonstra sofrimento no momento da separação”.                                                                                                      

É assim manifesto que não só não existem como nunca se chegaram a criar verdadeiros laços de afetividade da criança para com a mãe.                                      

E ainda muito menos com o pai, que apenas visitou a criança 3 vezes entre fevereiro e abril de 2017, passando desde então a residir em França, tendo apenas estabelecido alguns contactos via e-mail com a Instituição para se inteirar do estado do AA e sendo que “nunca assumiu pretender ter o menor ao seu cuidado”.

Estamos perante uma situação equivalente (ou até mais relevante para os efeitos em questão, dada a diferença de idade) àquela a que respeita o supra referido acórdão de 20.11.2014, no qual se considerou (para além do que já supra referimos) o seguinte:                                                                                                                        

“É de concluir pelo comprometimento sério do vínculo afetivo, próprio da filiação, face ao circunstancialismo provado, que evidencia (i) que o relacionamento da criança com a mãe se revela de fraca qualidade e sem uma componente afetiva intensa (tendo em atenção que o menor tem apenas 3 anos); (ii) uma indiferença da criança quando confrontada com o afastamento da mãe, no final das visitas; (iii) uma apatia e falta de interação da recorrente/mãe com o filho, no decurso dessas mesmas visitas; (iv) mesmo quando a mãe permaneceu durante um ano e meio na instituição que acolhia a criança – sem daí poder ausentar-se –, apesar do contacto intenso e da vivência diária, não se estabeleceram, ao contrário do que seria expectável, laços de afetividade intensos, próprios da filiação.”

           Para além e independentemente disso, o certo é que a factualidade dada como provada aponta claramente no sentido da verificação em termos globais da inexistência ou de, pelo menos, um sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação, no âmbito do relacionamento entre a criança e os progenitores e vive versa.                                    

            Isto, sendo certo que, face ao estatuído no nº 1 do art. 1978º do CC, o juízo relativo à inexistência ou sério comprometimento dos referidos vínculos afetivos, terá de ser feito com base em critérios de objetividade – assentes na realidade dos factos.

           

Com efeito, para além da irrelevante ou quase inexistência de interação entre o progenitor e a criança (uma vez que aquele, conforme já supra aludimos, nunca assumiu verdadeiramente as suas responsabilidades parentais nem pretende assumir a guarda da criança), a progenitora revela claramente, pelo seu comportamento, e ao longo do (muito) tempo, uma clara falta de assunção das suas responsabilidades parentais, de que resulta a inexistência de verdadeiros laços de afetividade.

           

É o que resulta claramente do seu sucessivo e errático modus vivendi, que nada tem a ver com a mera falta de condições materiais (que, com adequada ajuda, sempre poderiam ser supridas ou menorizadas) – comportamento esse que emerge (nos termos da factualidade provada) de uma vida de constantes mudanças, de acolhimentos institucionais, de incapacidade de manutenção de relacionamentos e de aceitação de regras (nesses acolhimentos), de intermitência laboral e de dedicação à prostituição.                        

E, a tudo isso, acresce a evidente incapacidade de assunção do papel de mãe e de criação de reais laços de afetividade face à seguinte factualidade dada como provada (nºs 71 a 76):

- Apresenta uma história biográfica sugestiva de perturbação da personalidade;

- Apresenta frágeis recursos cognitivos (com limitações ligeiras) e emocionais, os quais condicionam negativamente uma resposta psicológica mais ajustada no que respeita ao seu equilíbrio individual e, consequentemente, no que toca à maternidade;

- Revela um funcionamento psicológico marcado por instabilidade emocional, desgaste psicológico e indicadores depressivos;

- Apresenta fragilidades ao nível da consciência moral e de planificação da sua vida;

- Apresenta dificuldade, em situações mais críticas, de controlar os seus impulsos, assumindo facilmente atitudes de ira;

- Não reconhece tais limitações;

- As limitações supra referidas são passíveis de pôr em causa o exercício da parentalidade de uma criança da idade do AA sem que a mesma corra riscos;

E foi esse comportamento errático e essa incapacidade (objetivamente reveladores de ausência de verdadeiros laços de afetividade para com os filhos) que levou a que dos outros seus quatro filhos, um (... ) tenha sido encaminhado para adoção, outra (...) viva com o respetivo pai e sem contactos com a progenitora e os outros dois (... e ...) tenham integrado a obra ... em 2002, no âmbito de acolhimento institucional no âmbito de medida de acolhimento (sendo que um deles, o ..., ainda aí permanece e o outro vive com a namorada).

Assim, in casu, é a nosso ver manifesta a inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação.                                                                                                                                                             Desta forma, e uma vez que a progenitoranão conta com qualquer suporte em eventuais cuidados a prestar ao AA, por parte de familiares ou amigos”, o progenitor “nunca assumiu pretender ter o menor ao seu cuidado” e o irmão ... (dos irmãos, o único que o poderia fazer) “não está disponível para acolher o AA”é manifesta a falência da família natural.

Ora, conforme bem se considerou no acórdão da Relação de Lisboa de 26.01.2017 (sumário publicado na internet no sítio da PGDL) “se os progenitores não estabelecerem com os filhos uma relação afetiva segura e estável, encontram-se seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação” pelo que “verificando-se a falência da família natural… a solução que melhor se ajusta ao seu caso, por ser a que mais se aproxima da família natural, é a do seu encaminhamento para a adoção”.

É esta a situação dos autos, razão pela qual não pode merecer censura a aplicação da medida em questão, de confiança do AA a instituição com vista a futura adoção – adotada pelas instâncias.

Improcedem assim nesta parte as conclusões do recurso.

Quanto à insuficiência da matéria de facto:

Conforme supra se refere, a recorrente defende subsidiariamente que, não se optando pela substituição da medida aplicada ao AA por uma das outras medidas, deve ser reconhecida a insuficiência da matéria de facto, devendo ser ordenada a realização diligências adicionais tendentes a averiguar da persistência de vínculos afetivos próprios da filiação, em perspetiva bilateral (Mãe-Filho e Filho-Mãe), para esclarecimento e ampliação da matéria de facto.

Trata-se todavia de questão cujo conhecimento se mostra claramente prejudicado face ao que supra expusemos ou seja, face à solução dada à questão que acabámos de apreciar – razão pela qual dela se não conheceremos.                                                                                                                                                                   

De resto, para além de não indicar quais as diligências que em seu entender seriam relevantes, nem sequer diz quais os factos que em seu entender poderiam vir a ser dados como provados.

Termos em que se acorda em negar a revista e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

                                               Lisboa, 25 de setembro de 2018

                                              

Acácio das Neves (Relator)

                                                                                                         Maria João Vaz Tomé

                               

 Garcia Calejo





(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)