Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P0035
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOARES RAMOS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME CONTINUADO
PRESSUPOSTOS
CULPA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
COITO ORAL
AGRAVANTE
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
LENOCÍNIO
MENOR
Nº do Documento: SJ200905140000355
Data do Acordão: 05/14/2009
Nº Único do Processo:
Votação: MAIORIA COM 2 VOTOS DE VENCIDO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :


I - Nos termos do art. 30.º, n.º 2, do CP, a prática repetida do mesmo tipo de crime ou de tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico, desde que executada de forma homogénea e próxima, do ponto de vista temporal, e no quadro de uma mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, constitui um só crime (continuado).

II - A razão de ser da unificação de uma pluralidade de condutas radica, pois, na diminuição da culpa, pelo que a mera reiteração criminosa, ainda que homogénea na sua execução, será insuficiente para unificar as diversas condutas, assim como o será uma qualquer situação externa que eventualmente facilite a reiteração, desde que essa facilitação não constitua uma “solicitação” suficientemente forte que envolva ou traduza uma diminuição considerável da culpa do agente.

III - Essencial é distinguir entre a ocorrência ou subsistência de uma mesma situação externa que “empurre” o agente para a repetição da mesma conduta, por um lado, e a procura ou organização pelo agente de novas oportunidades para repetir uma conduta anteriormente praticada, por outro. Por outras palavras: há que distinguir entre a reiteração criminosa que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente. Neste segundo caso, são obviamente razões endógenas que levam à reiteração criminosa e portanto não existe atenuação da culpa, antes uma culpa agravada, estando pois excluído o crime continuado.

IV - Acrescente-se que o n.º 3 do art. 30.º do CP, aditado pela Lei 59/2007, de 04-09, não alterou os dados da questão. O que esse número veio estabelecer, aliás de forma algo redundante, não é que nos crimes contra bens pessoais, tratando-se da mesma vítima, se deve sempre unificar as condutas, mas sim que nesses crimes a pluralidade de vítimas é obstáculo a essa unificação; ou seja, nesse tipo de crimes, a continuação criminosa só pode estabelecer-se em torno de cada vítima, e desde que estejam reunidos os demais requisitos do crime continuado, nomeadamente a mitigação substancial da culpa do agente.

V - No caso dos autos:
- o recorrente PI foi, além do mais, condenado [em 1.ª instância] como autor de nove crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 172.º, n.ºs 1 e 2, do CP (na versão anterior à Lei 59/2007), na pessoa do menor DS, de quatro crimes idênticos na pessoa do menor FS, e também de quatro crimes análogos na pessoa do menor JC;
- os factos que estão assentes demonstram que os menores em causa exerciam a prostituição com vários homens, ou acompanhavam os prostitutos, em local notoriamente conhecido da cidade, pelo que era muito fácil ao arguido procurá-los para manter com eles relações sexuais remuneradas; por outro lado, tendo já o arguido mantido relações sexuais remuneradas, ou não, anteriormente, com cada um deles, era-lhe bem mais acessível a abordagem individual para repetir tais actos;
havendo vários elementos externos facilitadores dos contactos sexuais, quando estes eram praticados com o mesmo menor e uma vez que foram realizados de forma essencialmente homogénea, em período relativamente próximo (atenta a «actividade» em causa), deve considerar-se, neste caso, que houve um crime continuado por cada uma das vítimas.

VI - Trata-se de uma situação peculiar, pois a maioria dos abusos sexuais de menores são praticados sobre vítimas «indefesas», que são violentadas física ou psicologicamente, pelo que o STJ tem muitas vezes entendido que, em regra, existe um agravamento de culpa por cada um dos crimes cometidos, incompatível com o crime continuado. Por isso, nesses casos, tem-se considerado que há um único crime de trato sucessivo (que a moldura penal permite graduar de forma mais intensa) e não um crime por cada contacto sexual.

VII - Mas não neste caso particular, pelas suas especiais circunstâncias. Não se pode dizer que “o arguido promoveu activamente a verificação de novas ocasiões favoráveis para que tal sucedesse”, antes que estes menores “ofereciam” os seus favores sexuais em local conhecido da cidade e, desse modo, facilitavam o contacto com os “clientes”, o que diminui substancialmente a culpa destes, embora, como é óbvio, se mantivesse a ilicitude da conduta punida nos termos da lei. Consequentemente, neste caso, é de acolher a figura do crime continuado em relação à reiteração de conduta com os menores DS, FS e JC.

VIII - Deve entender-se excluída da previsão típica do n.º 2 do art. 172.º do CP (na redacção anterior à Lei 59/2007) a excitação do pénis do ofendido com a boca do agente, ou seja, a chamada fellatio.

IX - O que justifica a agravação estabelecida no n.º 2 do art. 172.º do CP (na redacção anterior à Lei 59/2007) é a maior ilicitude que a imposição à vítima da penetração do seu corpo necessariamente envolve. Desde logo, pelas eventuais (e normais) consequências físicas que pode determinar (dores, lesões). Mas sobretudo pela carga psicológica que o acto envolve.

X - É claro que, no tipo legal de crime e nas circunstâncias em análise [em que, quanto ao crime cometido contra o menor SG, a cinco crimes cometidos contra o menor DS e a todos os crimes cometidos contra os menores FS e JC, o recorrente “limitou-se” a introduzir os pénis dos menores na sua própria boca, “chupando-os”], quem comanda o acto, quem tem o domínio do facto, é aquele que “sofre” a penetração, mau grado a vítima assuma sexualmente o papel activo. Mas esse é precisamente o pressuposto da ilicitude: que a vítima assuma um papel sexualmente activo porque é isso que o agente quer, para satisfazer o seu desejo sexual, não o da vítima. É em função da vontade do agente que o acto se desenrola. A “superioridade” da vítima é falsa. Contudo, o acto em si comporta, pelas razões atrás expostas, uma menor lesão para a vítima. E por isso deve ser distinguido daqueles actos em que a vítima é reduzida a um papel puramente passivo.

XI - Na verdade, são completamente diferentes actos, como a fellatio, que, sendo com o corpo da vítima, não são no seu corpo, pois não o invadem, antes constituem penetração do corpo do próprio agente. O acto é dentro do corpo do agente, é ele quem sofre a penetração, a invasão do seu corpo, com tudo o que isso pode encerrar de humilhante ou agressivo, limitando-se a vítima a colaborar com ele na realização do seu desejo. O acto não determinará, em princípio, quaisquer consequências físicas no corpo da vítima. Assim, quer do ponto de vista psicológico, quer do ponto de vista simbólico, pelo papel activo que a vítima aí desempenha, não adquire, esse acto, uma carga negativa semelhante ao acto de “ser penetrado”.

XII - Em conclusão, é o especial desvalor de ser penetrado que a lei queria punir no n.º 2 do art. 172.º do CP, na versão anterior à Lei 59/2007.

XIII - A entender-se que seria antes a participação num acto de penetração, qualquer que fosse o papel assumido pela vítima, estaria a atribuir-se à incriminação a intenção de tutela de um bem jurídico não propriamente individual (focalizado nas consequências que para a vítima resultam do acto), antes social (o valor que é socialmente atribuído aos actos sexuais em que ocorre a penetração, mesmo alheia), o que não se compagina com a natureza essencialmente individualista ou personalista do direito penal sexual. Com efeito, e como é consensual, o bem jurídico protegido nos crimes sexuais é a liberdade sexual, ou, na sua dimensão mais intensa, a autodeterminação sexual, e não os valores ético-sociais dominantes. Excluída se deve entender, pois, e em conclusão, a fellatio da previsão típica do n.º 2 do art. 172.º (versão anterior) ou do n.º 2 do art. 171.º (versão vigente) do CP.

XIV - No que respeita ao crime de lenocínio de menores previsto no art. 176.º, n.ºs 1 e 3, do CP (na versão anterior à Lei 59/2007) e agora no art. 175.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CP (na redacção actual), elemento nuclear da infracção é o fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição por menor. Não suscita grandes dúvidas a interpretação destes conceitos, que se traduzem, o primeiro, na determinação da vontade do menor à prática da prostituição, e os restantes na disponibilização de meios para o seu exercício. Na determinação da vontade deve compreender-se não só a produção da mesma (quando inexistente antes da intervenção do agente), como a sua persistência (mediante essa intervenção).

XV - Encontrando-se provado que:
- o recorrente AN, que “frequentava”, tal como o menor LD, o P…, local onde se conheceram, propôs ao menor que vivessem juntos, num quarto de uma pensão, a fim de que este último suportasse as despesas inerentes ao arrendamento do quarto e ao sustento de ambos;
- o menor aceitou, passando a ser ele, com os rendimentos provenientes do exercício da prostituição, a pagar as despesas com o quarto e com o sustento de ambos;
- o recorrente AN apresentou uma vez o menor a um dos co-arguidos nos autos, CS, para que este mantivesse relações sexuais com o dito companheiro, LD, recebendo em troca € 5, não tendo no entanto chegado a concretizar-se qualquer relação sexual entre esse indivíduo e o menor, apesar de ser essa, inicialmente, a intenção de CS;
praticou o recorrente uma tentativa de lenocínio, tentativa punível, atento o disposto nos arts. 23.º, n.º 1, e 175.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CP.

XVI - Não se pode afirmar que o recorrente tivesse determinado o menor LD a prostituir-se, pois este já se dedicava à prostituição antes de conhecer aquele. É certo que, quando passaram a viver juntos, foi exclusivamente o menor que sustentou o “casal”, com os rendimentos provenientes da prostituição. Mas, embora esse facto pudesse de alguma forma ter intensificado a necessidade de o menor recorrer à prática de actos sexuais venais, para assim obter maiores rendimentos, não pode ser caracterizado como determinação, já que nenhum indício existe de que, de outra forma, o menor teria abandonado a prostituição. Por outras palavras, o arguido mais não fez do que aproveitar-se economicamente da actividade desenvolvida pelo menor, vivendo à custa dele, mas esse aproveitamento não integra o elemento típico fomento do exercício da prostituição, constante do tipo legal do crime de lenocínio de menores.

XVII - Mas, tendo-se provado que o arguido apresentou o menor LD a um terceiro, para com ele manter relações sexuais, recebendo em troca desse “serviço” a quantia de € 5, sendo que a relação sexual, porém, não se consumou, esta “apresentação” constitui sem dúvida um acto de favorecimento da prostituição, pois que, dessa forma, o arguido “recrutou”, esporadicamente embora, um cliente para o menor, dirigindo-se este último e o dito cliente para uma pensão, para a prática de actos sexuais remunerados, que, todavia, não vieram a concretizar-se, por razões desconhecidas.


Decisão Texto Integral:



Recurso Penal n.º 36/07-5.ª


AA, assessor autárquico, nascido em 23/11/1960 e BB, desempregado, nascido em 01/02/1975, ambos em liberdade, actualmente, depois de terem suportado, já, prisão preventiva à ordem destes autos (o primeiro, desde 24/04/2004 a 25/10/2006, perfazendo 30 meses; o segundo, por seu turno, de 23/04/2004 a 15/06/2004, de 08/07/2004 a 12/10/2005 e de 09/01/2006 a 12/02/2007, perfazendo 30 meses), foram julgados, para além de outros, no domínio do processo comum colectivo n.º 1193/04.3TDLSB, na 6ª Vara Criminal de Lisboa, 3.ª Secção, aí se tendo proferido acórdão, em 23/02/2006, julgando-se parcialmente procedentes tanto a acusação como os pedidos de indemnização civil formulados contra o primeiro, pelos demandantes CC e EE.

Consequentemente, foi o arguido AA condenado, pela prática, entre data não apurada de Outubro de 2002 e inícios de 2004, em autoria material e na forma consumada, dos seguintes crimes:
- um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º, nºs 1 e 2, do Código Penal (CP), que teve como ofendido o menor DD, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- nove crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º, nºs 1 e 2, do CP, que tiveram como ofendido o menor CC, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, por cada um;
- quatro crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º, nºs 1 e 2 do CP, que tiveram como ofendido o menor EE, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, por cada um;
- um outro crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º, n.º 3, alínea a), do CP, que teve como ofendido o dito menor EE, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- cinco crimes de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo art. 175º do CP, que tiveram como ofendido o menor FF, na pena de 10 (dez) meses de prisão, por cada um;
- sete crimes de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo art. 175º do CP, que tiveram como ofendido o menor GG, na pena de 10 (dez) meses de prisão, por cada um;
- oito crimes de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo art. 175º do CP, que tiveram como ofendido o menor HH, na pena de 10 (dez ) meses de prisão, por cada um;
- oito crimes de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo art. 175º do CP, que tiveram como ofendido o menor II, na pena de 10 (dez ) meses de prisão, por cada um;
- sete crimes de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo art. 175º do CP, que tiveram como ofendido o menor JJ, na pena de 10 (dez ) meses de prisão, por cada um;
- quatro crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º, nºs 1 e 2, do CP, que tiveram como ofendido o menor LL, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, por cada um;
- um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6º, n.º 1, da Lei 22/97, de 27-6, na redacção da Lei n.º 98/2001, de 25-8, na pena de 9 (nove) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 19 (dezanove) anos de prisão.

Foi condenado, ainda, o arguido BB, pela prática, entre inícios de Fevereiro de 2004 e, pelo menos, inícios de Abril do mesmo ano, em autoria material e na forma consumada, dos seguintes crimes:
- um crime de lenocínio de menor, qualificado, p. e p. pelo art. 176º, nºs 1 e 3, do CP, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- nove crimes de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo art. 175º do CP, que tiveram como ofendido o menor FF, na pena de 1 (um) ano de prisão, por cada um.
Em cúmulo jurídico, foi este outro arguido condenado na pena única de 8 (oito) anos de prisão.

Foi condenado, também, o arguido/demandado AA, a pagar aos demandantes civis CC e EE as quantias de, respectivamente, € 45.000,00 e € 30.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
*
Tanto assim, face ao seguinte elenco circunstancial, pertinente ao objecto de ambos os recursos, consensualmente adquirido:

««1. Desde há vários anos que a zona do Parque Eduardo VII, em Lisboa, se tornou num dos locais onde vários adultos do sexo masculino procuram crianças e jovens desse mesmo sexo para com eles praticarem relações sexuais;
2. Essencialmente, essas crianças e jovens são desprovidos de meio familiar normal, apresentando graves carências afectivas e económicas e, através da prática de relações sexuais com adultos a troco de dinheiro, essas crianças e jovens obtêm proventos monetários que lhes permitem fazer face às suas necessidades pessoais;
3. Muitas dessas crianças e jovens têm idade inferior a 16 anos e são procurados pelos frequentadores que têm essas preferências sexuais;
4. Devido à sua imaturidade psicológica e à fragilidade das suas ligações familiares, tais crianças e jovens são presas fáceis desses indivíduos e, pelo menos um indivíduo mais velho, ofereceu protecção e acolheu um dos menores no local onde residia, sendo que em troca dessa “protecção” esse menor entregava parte do dinheiro angariado àquele indivíduo;
5. O menor FF nasceu em 06-06 1989;
6. O pai deste menor faleceu e a sua mãe não tem condições para cuidar de si;
7. Esta situação determinou o internamento do menor FF na “Casa do Lago”, em Lisboa, por decisão do Tribunal de Família e Menores de 22-12-2003;
8. No entanto, o menor FF nunca se adaptou à vida na instituição, fugindo frequentemente e faltando às aulas, frequentando com regularidade a zona do Parque Eduardo VII e ocasionalmente o Centro Comercial Colombo;
9. É descrito no relatório social de fls. 19 a 24 do Apenso L como sendo “um rapaz diferenciado e inteligente que encontra dificuldades na vida institucional, pois facilmente assume o papel de vítima, sem capacidade para se defender dos conflitos. Proveniente de uma família em dificuldades, este rapaz manifesta fragilidades narcísicas, uma forte insegurança nas suas capacidades e principalmente dificuldades a nível da identidade. Não houve, em idades dominantes, figuras parentais com quem ele se pudesse identificar e construir uma relação sólida, que lhe mostrassem afectividade e lhe atribuíssem valor. Encontramos, também, no FF uma grande dificuldade em fazer lutos e desenvolver-se de forma saudável. Parece-nos que este rapaz necessita de se sentir protegido e valorizado nas suas competências”;
10. Neste contexto, o menor frequentou regularmente o Parque Eduardo VII, onde a troco de dinheiro, mantinha relações sexuais com indivíduos adultos do sexo masculino que ali se deslocavam esse propósito;
11. O menor CC nasceu em 17-03-1990 e deu entrada como aluno interno da Casa Pia de Lisboa em 05-01-2000, na sequência de decisão do Tribunal de Família e Menores de Lisboa;
12. Aquando do ingresso na Casa Pia de Lisboa, o menor CC foi descrito no relatório de avaliação psicológica de fls. 125 do Apenso H como sendo “um garoto muito triste e que sofre imenso com a sua situação familiar de grande desorganização e de falta de investimento afectivo. Reage pelo evitamento quando se apercebe de que poderá ter inêxito ou a sofrer alguma perda afectiva”;
13. O menor CC não teve uma adaptação fácil ao internamento na Casa Pia de Lisboa e a partir do ano de 2003 começou a ausentar-se por períodos prolongados, passando a frequentar a zona do Parque Eduardo VII em Lisboa;
14. O menor EE nasceu em 16-05-1991 e deu entrada como aluno interno da Casa Pia de Lisboa em 05-01-2000, na sequência de decisão do Tribunal de Família e Menores de Lisboa;
15. Aquando do ingresso na Casa Pia de Lisboa foi descrito no relatório de avaliação psicológica de fls. 84 do Apenso I como sendo “um menino inseguro, triste e com um sentimento inicial de incapacidade perante as dificuldades que vão surgindo, desistindo facilmente das tarefas se não conotado positivamente. Revela marcas de sofrimento bem evidentes, transmitindo-nos uma necessidade de protecção não alcançada (...)”;
16. Os menores EE e CC são irmãos;
17. Apesar de se ter adaptado bem à vida no interior da Casa Pia de Lisboa, o menor EE, dada a forte ligação que tinha ao irmão CC, passou a acompanhá-lo esporadicamente ao Parque Eduardo VII em Lisboa;
18. O menor II nasceu em 28-04-1989 e pertence a uma família de nove irmãos e os seus pais dedicam-se à venda ambulante;
19. Em virtude das dificuldades com que vivem, os pais do menor II acompanham-no muito pouco e este vive entregue a si próprio, sem qualquer tipo de horários ou de obrigações;
20. O menor II frequentou a Escola Básica do Bairro Padre Cruz e fora do seu horário lectivo costumava deambular pelas ruas de Lisboa com outros menores da sua idade, frequentando ocasionalmente o Parque Eduardo VII, a fim de conseguir obter dinheiro;
21. O menor HH nasceu em 18-06-1989 e vive com o pai e três irmãos numa casa camarária do Bairro Padre Cruz, em Lisboa;
22. O pai do HH não tem trabalho fixo e a família vive com graves carências económicas;
23. O menor HH frequenta a Escola Básica do Bairro Padre Cruz e o pai não pode e não consegue acompanhar a vida do menor, passando estas largas temporadas sozinho, sem horários e sem qualquer controlo sobre os seus actos por parte do progenitor;
24. O menor HH costumava vaguear pela cidade de Lisboa, frequentando as proximidades do Parque Eduardo VII;
25. Os menores GG, nascido em 15-04-1988 e LL, nascido em 22-06-1990, são irmãos e residem numa casa camarária do Bairro Padre Cruz, juntamente com a sua mãe e outro irmão;
26. O pai dos menores GG e LL faleceu e estes ficaram a cargo da mãe que é vendedora ambulante e não pode e não sabe acompanhar devidamente os filhos, que passam a maior parte do tempo sozinhos e entregues a si próprios, vagueando pela cidade de Lisboa sem qualquer controlo por parte daquela ou de qualquer outro adulto;
27. A família dos menores GG e LL tem graves dificuldades económicas;
28. É costume os menores GG e LL frequentarem as proximidades do Parque Eduardo VII;
29. O menor JJ nasceu em 05-08-1989 e vive com o pai e um irmão numa habitação social do Bairro Padre Cruz, em Lisboa;
30. O pai do menor JJ não sabe e não pode acompanhar o crescimento deste, vivendo o menor entregue a si próprio sem horários nem regras;
31. Neste contexto, o menor passou a frequentar o Parque Eduardo VII a fim de conseguir algum dinheiro;
32. O menor DD nasceu em 16-10-1989 e foi colocado no Centro de Acolhimento Social de Lisboa quando tinha cerca de 11 anos de idade e daí, em Março de 2004, transitou para a Casa do Lago;
33. O menor DD é filho de pais separados, que não puderam tomar conta daquele, tem graves carências afectivas e teve problemas inerentes à institucionalização;
34. Frequentou a Escola Básica 1,2,3 de Marvila e, aproveitando o facto de ter de se ausentar do referido Centro de Acolhimento para ir para a escola, passou a frequentar o Centro Comercial Colombo e o Parque Eduardo VII na companhia de outros menores que aí procuravam forma de ganhar dinheiro através da prática de actos sexuais com adultos do sexo masculino;
35. A adaptação do menor DD ao aludido Centro de Acolhimento não foi fácil, as fugas da mesma passaram a ser frequentes;
36. O menor MM nasceu em 12-08-1990, esteve internado na Casa do Lago e aí conheceu o menor FF, tendo passado a frequentar com este, com alguma frequência, o Parque Eduardo VII;
37. O menor MM frequenta o 4º ano de escolaridade e revela grandes dificuldades de aprendizagem;
38. O arguido AA era, em Abril de 2004, assessor do vereador NN, responsável pelos pelouros do Desporto, Cultura e Educação da Câmara Municipal de O...;
39. O arguido AA desempenhava o referido cargo desde Junho de 1999;
40. A actividade desenvolvida pelo arguido AA, enquanto assessor do vereador referido traduzia-se em dar a este apoio técnico na área do desporto;
(…)
43. O arguido sempre esteve ligado ao desporto e à juventude, foi treinador de vários clubes desportivos e, em Abril de 2004, além de sócio da empresa “F...C... – Escolas de Aprender Futebol”, era presidente da Mesa da Assembleia Geral do Clube Atlético e Cultural da P... e seleccionador e treinador das selecções de infantis e escolas da Associação de Futebol de Lisboa;
44. O arguido AA era ainda membro da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens do concelho de O..., tendo sido nomeado para esse cargo em Novembro de 2003;
45. O arguido AA era um dos indivíduos que frequentava o Parque Eduardo VII, aí se deslocando com frequência com o intuito de contactar com menores que sujeitava a práticas sexuais, na sua residência, sita na Rua Cidade de Cabinda, n.º ..., 7º Dto., em Lisboa, num escritório em Lisboa, com sede na Rua Conde Sabugosa, n.º ..., 5º-D, e no interior dos veículos automóveis que habitualmente conduzia, quer nos seus veículos particulares, quer nos veículos da Câmara Municipal de O... que lhe foram confiados apenas para utilização nas deslocações efectuadas no âmbito das suas atribuições profissionais, enquanto assessor do vereador do pelouro do Desporto;
46. Em data em concreto não apurada do ano de 2002, mas seguramente em data próxima posterior a 16 de Outubro, o arguido AA deslocou-se ao Parque Eduardo VII, onde abordou o menor DD, que à data tinha 13 anos de idade;
47. O arguido AA perguntou ao menor DD se queria ir dar uma volta com ele e, tendo menor acedido, levou-o para o referido escritório;
48. No interior do escritório, o arguido AA mexeu no pénis do menor DD, em movimentos ritmados e sucessivos e, de seguida, colocou o pénis do segundo na sua boca e chupou-o;
49. O arguido AA ainda beijou as pernas do menor;
50. Depois de ter praticado os actos descritos, o arguido AA deu ao menor DD a quantia de €30,00 (trinta euros) e levou-o de regresso ao Parque Eduardo VII;
51. O arguido AA conheceu o menor CC no ano de 2003, quando este já tinha completado 13 anos de idade;
52. Em Maio de 2003, o arguido AA abordou o menor CC no Parque Eduardo VII e levou o segundo num veículo automóvel para um local ermo;
53. No interior da viatura, o arguido AA colocou o pénis do menor CC na sua boca e chupou-o;
54. A partir deste contacto, o arguido AA passou a encontrar-se com o menor CC na sua residência e no escritório mencionado, para onde levou o segundo mais três vezes, até Dezembro de 2003;
55. Em todas essas ocasiões o arguido AA colocou o pénis do menor CC na sua boca e chupou-o;
56. Nos referidos quatro contactos que o arguido AA manteve com o menor CC, em número indeterminado de vezes o segundo também introduziu o pénis do primeiro na sua boca e chupou-o e também em número de vezes que não se logrou apurar o arguido roçou o seu pénis no ânus do menor;
57. Nas ocasiões descritas nos pontos 54. a 56., em duas delas os factos mencionados ocorreram no aludido escritório e, na restante, na residência do arguido AA;
58. Para além desta ocasião referida no ponto 57 em que estiveram apenas o arguido AA e o menor CC na residência daquele, em outras cinco ocasiões acompanharam-nos também os menores EE e FF, nas circunstâncias a seguir descritas;
59. Por intermédio do menor CC, em Outubro ou Novembro de 2003, o arguido AA conheceu também os menores FF e EE, o primeiro numa ocasião em que encontrou o CC na companhia desse menor no Centro Comercial Colombo e o segundo numa ocasião em que o mesmo estava na companhia do irmão e do FF junto do centro comercial Colombo;
60. Os menores CC e FF andavam com frequência juntos, nomeadamente nas incursões regulares que faziam pelo Parque Eduardo VII;
61. Também o menor EE, irmão do CC, deslocava-se com frequência com este e com o FF ao Parque Eduardo VII, sendo que, não obstante, para além dos factos que se irão descrever relativos a relacionamento sexual que manteve com o arguido AA, não mantinha relações sexuais com outros adultos que frequentavam o local, limitando-se a circular por aquela zona;
62. Depois de ter conhecido também os menores FF e EE, o arguido AA passou a levar para a sua casa, além do CC, também aqueles menores;
63. Logo na ocasião em que conheceu o EE, tinha este 12 anos de idade, o arguido AA levou o mesmo, assim como os menores CC e FF para a sua residência;
64. Na sala de estar da residência, o arguido AA colocou em exibição, no aparelho de vídeo, um filme pornográfico, de natureza heterossexual, contendo imagens de relações de sexo explícito, que os três menores visionaram;
65. Enquanto os três menores assistiam ao filme, o arguido AA, na presença do EE, chupou os pénis do CC e do FF;
66. Em mais quatro ocasiões, o arguido AA levou para a sua residência os menores EE, CC e FF, depois de se encontrar com os mesmos, normalmente, junto à Igreja de Carnide, em Lisboa, e de combinar previamente telefonicamente com aqueles o encontro;
67. Em todas essas quatro ocasiões o arguido AA conduziu os três menores à sala, exibiu-lhes filmes pornográficos de natureza heterossexual e colocou, sucessivamente, os pénis daqueles na sua boca e chupou-os, até os menores por vezes ejacularem;
68. O arguido AA praticava tais actos, assistindo os três menores aos actos que aquele ia praticando em cada um deles;
69. O arguido AA costumava também, nessas ocasiões, tirar fotografias aos três menores, umas vezes com estes vestidos e outras com o pénis dos mesmos em exibição, utilizando para o efeito uma máquina Polaroid;
70. Depois de praticar os actos descritos, o arguido AA entregou a cada um dos três menores uma quantia que podia variar entre €30,00 (trinta euros) e €40,00 (quarenta euros);
71. Nalgumas dessas ocasiões os três menores pernoitaram na residência do arguido AA;
72. Além de entregar dinheiro aos três menores, o arguido AA, por vezes, levava-os a jantar e comprava-lhes roupa;
73. O arguido AA ofereceu também um telemóvel a cada um daqueles três menores, a fim de, facilmente, poder contactar com os mesmos;
74. O OO, primo dos menores CC e EE, acompanhou, numa das aludidas ocasiões, aqueles dois menores e o FF à residência do arguido AA e este chupou não só os pénis dos três menores mas também o do OO;
75. Em meados do ano de 2003, no mês de Junho, o arguido AA conheceu os menores II, JJ, GG, LL e HH;
76. Estes menores costumavam ir juntos para a zona do Parque Eduardo VII e suas imediações, tendo o arguido conhecido alguns deles, nomeadamente o GG e o HH numa ocasião em que os menores foram visitar a Feira do Livro realizada no ano de 2003, no Parque Eduardo VII;
77. O arguido AA abordou os menores e travou conhecimento com os mesmos, na sequência do que veio a sujeitá-los a práticas sexuais, não só aos dois menores acabados de referir mas também ao II e ao JJ, que veio a conhecer pouco tempo depois, na zona do Parque Eduardo VII, tendo com esses menores praticado os actos a seguir descritos, no período compreendido entre Junho de 2003 e o início do ano de 2004;
78. Em dia em concreto não determinado do mês de Junho de 2003, o arguido AA deslocou-se ao Parque Eduardo VII, fazendo-se transportar no veículo automóvel da marca Citröen, modelo C3, de cor cinzenta e com a matrícula ...-...-UL e, ao avistar os menores GG, à data com 15 anos de idade, e HH, à data com 14 anos de idade, chamou-os e perguntou-lhes se queriam ir dar uma volta de carro;
79. O arguido AA disse àqueles dois menores para entrarem dentro do carro, ao que estes acederam, e explicou-lhes que lhes daria dinheiro e tabaco se o deixassem chupar-lhes o pénis;
80. Em data em concreto não determinada, o arguido AA levou os menores GG e HH a jantar a um restaurante McDonald’s;
81. Em data próxima daquela em que ocorreram os factos acabados de mencionar, o arguido AA dirigiu-se ao Parque Eduardo VII, onde abordou os menores HH e II, tendo este à data 14 anos de idade, que se encontravam juntos;
82. O arguido AA, conduzindo um veículo automóvel, levou os dois menores para sua casa, onde, depois de estes se terem sentado no sofá da sala e de ter colocado em exibição um filme pornográfico, contendo cenas de sexo explícito, chupou o pénis de cada um dos segundos;
83. Depois de ter praticado os actos descritos, o arguido AA deu aos menores HH e II o seu número de telefone, a fim de combinarem mais encontros, e entregou a cada um cerca de €20,00 (vinte euros), tendo ido levar, no veículo automóvel mencionado, os menores ao Bairro Padre Cruz, em Lisboa, onde os mesmos residiam;
84. Em data próxima, em concreto não apurada, o arguido AA encontrou-se com os menores HH, GG, II e JJ, tendo este à data 13 ou 14 anos de idade;
85. O arguido AA transportou para sua casa os quatro menores num veículo automóvel;
86. O arguido AA, depois de colocar em exibição um filme pornográfico contendo cenas de sexo explícito, chupou, sucessivamente, o pénis de cada um dos quatro menores referidos;
87. O arguido AA levou os quatro menores de regresso às proximidades das residências dos mesmos, tendo-os deixado nas proximidades do Bairro Padre Cruz;
88. Nessa ocasião, o arguido AA deu a cada um dos quatro menores a quantia de cerca de €20,00 (vinte euros) e tabaco para os quatro;
89. Em datas em concreto não apuradas, mas até ao início do ano de 2004, ocorreram encontros entre o arguido AA e os quatro menores HH, GG, II e JJ em pelo menos mais quatro ocasiões, tendo aquele transportados os últimos num veículo automóvel;
90. Em todas essas ocasiões, os quatro menores, depois de entrarem em casa do arguido, foram para a sala, onde se sentaram no sofá e por vezes o arguido AA serviu-lhes bebida alcoólica;
91. O arguido AA, depois de colocar em exibição um filme pornográfico contendo cenas de sexo explícito, chupou, sucessivamente, o pénis de cada um dos quatro menores;
92. Com frequência, o arguido AA, utilizando a sua máquina fotográfica Polaroid, tirou fotografias aos quatro menores, quer com estes vestidos, quer com os mesmos exibindo o respectivo órgão genital;
93. Em cada uma das aludidas quatro ocasiões o arguido AA pagou a cada um dos quatro menores entre €15,00 (quinze euros) a €20,00 (vinte euros) e levou-os de regresso ao Bairro Padre Cruz;
94. Pelo menos em duas ocasiões, o arguido AA levou os quatro menores HH, GG, II e JJ, transportando-os num veículo automóvel e pelo menos em uma dessas vezes na viatura da marca Citröen, modelo C3, de cor cinzenta e com a matrícula ...-...-UL, para um descampado sito na zona das Calvanas, onde, depois de estacionar o veículo, dizia aos menores para saírem, chamando-os depois um a um;
95. Enquanto o arguido AA permanecia sentado no banco do condutor do veículo automóvel, os menores entravam, um de cada vez, em tal viatura, sentando-se no banco ao lado daquele e baixavam as calças;
96. O arguido AA chupava então o pénis de cada um dos quatro menores, um de cada vez;
97. Nessas ocasiões, o arguido AA também entregava a cada um dos quatro menores uma quantia que podia variar entre €15,00 (quinze euros) e €20,00 (vinte euros) e levava-os de regresso ao bairro onde residiam;
98. Em data em concreto não determinada, a seguir ao Natal de 2003, o arguido AA conheceu o menor LL, à data com 13 anos de idade, irmão do menor GG;
99. O arguido AA abordou o menor LL pela primeira vez quando este ia a sair do Carrefour de Telheiras, tendo-lhe perguntado se queria ir dar uma volta, ao que o menor não acedeu;
100. Cerca de uma semana depois, o arguido AA voltou a ver o menor LL que, na altura, caminhava a pé pela zona da Igreja do Bairro Padre Cruz;
101. O arguido AA imobilizou o carro que conduzia, da marca Citröen, modelo C3, de cor cinzenta e com a matrícula ...-...-UL, e perguntou ao menor LL se não queria ir dar uma volta, tendo o segundo acabado por aceder;
102. O arguido AA levou o menor LL, fazendo-se ambos transportar no veículo mencionado para o escritório a que já se fez referência;
103. O arguido AA mandou o menor LL sentar-se num sofá e perguntou-lhe se o deixava chupar-lhe o pénis, ao que o menor respondeu afirmativamente;
104. O arguido AA colocou então o pénis do menor LL na sua boca e chupou-o;
105. Depois, o arguido AA disse ao menor LL que lhe ia tirar fotografias, tendo, utilizando a sua máquina fotográfica Polaroid, fotografado o segundo, quer vestido quer despido da cintura para baixo;
106. Após ter praticado os actos descritos, o arguido AA entregou ao menor LL €20,00 (vinte euros) e, conduzindo o referido veículo automóvel da marca Citröen, modelo C3, de cor cinzenta e com a matrícula ...-...-UL, levou o segundo até perto do hipermercado Carrefour de Telheiras;
107. Em data em concreto não determinada, pouco tempo depois da ocorrência dos factos acabados de descrever, seguramente anterior a Junho de 2004, na sequência do que havia combinado com o menor LL, o arguido AA, enquanto conduzia o veículo automóvel da marca Citröen, modelo C3, de cor azul e com a matrícula ...-...-VM, encontrou-se com o primeiro junto do Carrefour de Telheiras e levou-o para sua casa;
108. Na sala da residência, o arguido AA disse ao menor LL para se sentar no sofá e colocou o pénis do menor na sua boca, tendo-o chupado;
109. O arguido AA deu ao menor LL €20,00 (vinte euros) e, no veículo mencionado, transportou-o de regresso às imediações do Carrefour de Telheiras;
110. Após a ocorrência dos factos acabados de descrever, em dia em concreto não determinado, seguramente anterior a Junho de 2004, o arguido AA encontrou-se novamente com o menor LL, nas imediações do Carrefour de Telheiras, tendo-o levado para o mesmo escritório, fazendo-se ambos transportar na viatura da marca Citröen, modelo C3, de cor azul e com a matrícula ...-...-VM, conduzida pelo primeiro;
111. Em tal escritório, o arguido AA voltou a chupar o pénis do menor LL;
112. Depois, o arguido AA deu ao menor LL €20,00 (vinte euros) e levou-o de regresso às imediações do Carrefour de Telheiras;
113. O arguido AA voltou a encontrar-se com o menor LL, em data seguramente anterior a Junho de 2004, desta vez no parque de estacionamento de Telheiras, na zona das Torres, tendo o primeiro, nesse local e no interior do carro onde se fez transportar, um Citröen, modelo C3, de cor azul e com a matrícula ...-...-VM, chupado o pénis do segundo;
114. Também nessa ocasião o arguido AA deu ao menor LL a quantia de €20,00 (vinte euros);
115. O arguido AA admitiu como possível que os referidos nove menores tivessem as idades mencionadas e, ainda assim, quis agir como descrito, não se tendo importado com aquela circunstância;
116. Quanto aos demais factos descritos ao mesmo respeitantes, o arguido AA tinha conhecimento dos mesmos;
117. Ainda assim, o arguido AA quis agir como mencionado, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
(…)
126. No início do ano 2004 o arguido BB conheceu no Parque Eduardo VII o menor FF, à data com 14 anos de idade;
127. O arguido BB frequentava o Parque Eduardo VII;
128. O arguido BB, no início de Fevereiro de 2004, propôs ao menor FF que o mesmo fosse morar consigo numa pensão, ao que o menor acedeu, a fim de ser o segundo a suportar as despesas inerentes ao arrendamento do quarto e ao sustento de ambos;
129. Passou a ser o menor FF, com o dinheiro que obtinha como pagamento pelas práticas sexuais a que era sujeito pelos indivíduos que frequentavam o Parque Eduardo VII, alguns deles arguidos nestes autos, quem assegurava o pagamento das despesas com o arrendamento do quarto da pensão onde residia com o arguido BB e das despesas com o sustento de ambos, nomeadamente alimentação;
130. O arguido BB tinha conhecimento que alguns indivíduos mantinham contactos sexuais com o menor FF, apresentou a este um desses indivíduos e sabia que o dinheiro com que o segundo provia ao sustento de ambos era proveniente dos encontros sexuais mantidos entre o menor FF e aqueles indivíduos;
131. Em data em concreto não determinada do mês de Fevereiro de 2004, no Parque Eduardo VII, o arguido BB, que se encontrava na companhia do menor FF, apresentou este ao arguido PP para que este e o menor mantivessem relações sexuais;
132. O arguido PP, como retribuição, deu ao arguido BB €5,00 (cinco euros) e levou consigo o menor FF, transportando-o no seu veículo automóvel para a pensão Safira, em Lisboa;
133. No interior de um quarto de tal pensão, o arguido PP e o menor FF apenas se despiram;
134. Ao levar o menor FF para a referida pensão, o arguido PP queria sujeitar aquele a práticas de natureza sexual;
135. O arguido PP admitiu como possível que o menor FF tinha menos de 16 anos de idade e, ainda assim, quis agir como descrito, não se tendo importado com aquela circunstância;
136. O arguido BB conhecia a idade do menor FF quando praticou os factos descritos, nomeadamente quando, a troco de dinheiro, apresentou ao arguido PP aquele menor, com o objectivo de o arguido PP sujeitar o FF a actos de índole sexual;
137. O arguido BB sabia que, mercê da sua intervenção, o menor FF poderia ser sujeito a actos de índole sexual;
138. O arguido BB tinha conhecimento dos factos acima descritos ao mesmo respeitantes e, ainda assim, quis agir da forma mencionada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
139. O arguido BB, desde que começou a partilhar o quarto com o menor FF, pelo menos desde Fevereiro de 2004, e durante pelo menos dois meses, passou também a manter com o segundo, com regularidade, contactos sexuais;
140. Tais práticas ocorreram entre uma a duas vezes por semana, e consistiram na prática de sexo oral recíproco, chupando o arguido BB o pénis do menor FF e este o pénis daquele;
141. Além das práticas acabadas de descrever, o menor FF introduziu o seu pénis erecto no ânus do arguido BB;
142. O menor FF não gostava de ser sujeito a práticas sexuais com adultos a troco de dinheiro;
143. O arguido BB tinha conhecimento dos factos acima descritos ao mesmo respeitantes e, ainda assim, quis agir da forma mencionada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
(…)
238. O arguido AA encontra-se preso preventivamente à ordem destes autos desde 24-04-2004;
239. Antes de ser sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, o arguido AA vivia sozinho;
240. A trajectória de vida do arguido AA, que nasceu em 23-11-1960, decorreu num contexto familiar instável sob o ponto de vista emocional, mas sócio-económico adequado e equilibrado no âmbito social e profissional;
241. Tem como habilitações literárias a licenciatura em psicologia;
242. O arguido AA beneficia de acompanhamento psiquiátrico desde 17-03-2004 para tratamento de problema do foro sexual que referiu ter aos médicos que o assistem;
243. O arguido AA confessou que manteve o relacionamento sexual acima descrito, quer quanto à natureza do mesmo, quer quanto ao número de vezes em que tal sucedeu, com os menores DD, FF, EE, II, HH, GG, LL e JJ;
244. O arguido AA confessou ainda que praticou o relacionamento sexual acima descrito com o menor CC, excepto no que ao número de vezes em que tal sucedeu concerne, tendo o primeiro admitido a prática de relações sexuais com o segundo por menos uma vez do que as que acima se descreveram;
245. O arguido AA confessou que tinha a noção de que os menores EE e LL tinham 12 ou 13 anos de idade;
246. No que se refere aos menores DD, FF, CC, II, HH, GG e JJ, o arguido AA afirmou que quando ocorreram os factos acima descritos estava convencido de que os mesmos tinham entre 14 e 17 anos de idade;
247. O arguido AA referiu ainda em sede de audiência de discussão e julgamento que o que fez e que acima se descreveu “não é deplorável”;
248. O arguido AA não tem antecedentes criminais;
249. O arguido BB encontra-se preso preventivamente à ordem dos presentes autos desde 09-01-2006;
250. O arguido BB, que nasceu em 01-02-1975, abandonou a casa dos pais em 1998 e desde essa altura durante alguns períodos de tempo trabalhou em Inglaterra e noutras ocasiões residiu em Lisboa sem ocupação definida;
251. Desde que abandonou a casa dos pais, os contactos do arguido BB com os familiares foram escassos;
252. Tem a intenção de no futuro ir trabalhar para Inglaterra;
253. A infância e a adolescência do arguido BB decorreram num contexto sócio-económico rural e tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade;
254. O arguido BB não tem antecedentes criminais;
(…)
299. Os menores CC e EE provêm de uma família de dez irmãos, sem condições para cuidar e promover a educação, a segurança e o desenvolvimento integral dos mesmos;
300. O arguido AA sabia que o menor EE era oriundo de uma família disfuncional e que o segundo tinha carências afectivas e económicas;
301. O(s) arguido(s) AA (…) sabia(m) que o menor CC era oriundo de uma família disfuncional e que o último tinha carências afectivas e económicas; (…)»»
*
Desse acórdão, interpuseram recurso para a Relação de Lisboa, entre outros, os nomeados arguidos.
Por acórdão de 03/08/2006, a Relação decidiu reduzir a pena única aplicada ao arguido AA para 14 (catorze) anos de prisão e, relativamente ao arguido BB, confirmou a decisão de 1ª Instância.
*
Desse outro acórdão, interpuseram ambos novo recurso, desta feita para o STJ.
São as seguintes as conclusões do recurso do arguido AA:

«1. O arguido AA suscitou na sua contestação bem como na motivação de recurso apresentada no Tribunal da Relação de Lisboa a inconstitucionalidade da norma do artigo 175° do Código Penal, por violação dos artigos 13° n° 2 e 26° n° 1 da Constituição da República Portuguesa;
2. Reitera-se a posição assumida, por não se conformar com o tratamento discriminatório revelado nesse normativo - por confronto com o artigo 174° do mesmo diploma - das relações homossexuais face às heterossexuais.
3. Com efeito, enquanto para a incriminação da conduta do agente heterossexual - prevista no artigo 174° do Código Penal - se exige o abuso da inexperiência da vítima,
4. Tal requisito já não se impõe para a punição do autor de actos homossexuais através do artigo 175° do diploma em apreço, o qual apenas dispõe que: "Quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias".
5. Mais, enquanto o mesmo artigo 175° do Código Penal pune a prática de quaisquer actos homossexuais de relevo, o âmbito de aplicação do artigo 174° é mais restrito, sendo apenas objecto de incriminação a cópula, o coito anal e oral.
6. Ou seja, o legislador é mais severo e abrangente na punição dos comportamentos homossexuais.
7. Pelo exposto, a questão de inconstitucionalidade que, mais uma vez, se pretende ver decidida resume-se ao tratamento desigual e discriminatório das relações homossexuais face às heterossexuais, plasmado no artigo 175° do Código Penal e aplicado pelo tribunal a quo, para a condenação do recorrente,
8. Na medida em que não exige a inexperiência da vítima e se basta com a prática de qualquer acto sexual de relevo para a punição das primeiras, assim tratadas de forma diversa e mais severa, quando o bem jurídico tutelado pela incriminação é exactamente o mesmo nas duas previsões, reconduzindo-se ao direito à autodeterminação sexual do menor entre os 14 e os 16 anos de idade, através da punição de actos sexuais de relevo susceptíveis de afectar o livre desenvolvimento da sua personalidade em matéria sexual, com assento no disposto no artigo 26°, n° 1, da CRP.
9. Ora e na esteira da Jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, o recorrente entende não existir fundamento válido ou racional para que, no campo das relações homossexuais, o agente que se relaciona com um adolescente - ainda que este seja sexualmente experiente e perfilhe essa orientação sexual - seja punido pela prática de qualquer acto sexual de relevo, enquanto que no domínio das relações heterossexuais se imponha a prática de cópula, coito anal ou oral, aliados ao abuso da inexperiência da vítima.
10. Conclui, por isso, que o confronto do artigo 174° com o artigo 175° do Código Penal revela um juízo pejorativo e um preconceito do legislador, face à homossexualidade e às práticas homossexuais, sendo, nessa medida, tal norma (e respectiva aplicação pelo Julgador) ofensiva dos artigos 13° e 26° n° 1 da Constituição da República Portuguesa enquanto pune a conduta (homossexual) aí prevista, ainda que não se abuse da inexperiência do menor, quando a norma do artigo 174° apenas pune a conduta (heterossexual) nele prevista se ela for praticada com abuso da inexperiência do mesmo.
11. Tal inconstitucionalidade foi já duas vezes confirmada pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos n° 247/05 e 372/05 (de 10-05-2005 e de 5-07-2005 em http://www.tribunalconstitucional.pt).
12. O tribunal recorrido, que de resto subscreve o entendimento da primeira instância, vai mais longe, afirmando que "a presunção (iuris et de iure) de que a vítima é inexperiente tanto vale nos casos do art°. 174° como nos do art°. 175º."
13. Tal entendimento, salvo melhor e mais douta opinião é ilegal, porquanto configura uma interpretação do art°. 175° do Código Penal, no mínimo, extensiva por analogia com o art°. 174°, maxime, ab-rogante da lei, que não é permitida em Direito Penal face ao princípio da legalidade.
14. Com tal interpretação do art°. 175° do Código Penal, pretende o acórdão recorrido à revelia de todos e quaisquer princípios enformadores do direito penal, ficcionar um elemento do tipo - o abuso da inexperiência - para aquele normativo, quando na verdade tal elemento não existe, donde aliás deriva a inconstitucionalidade da norma.
15. Por outro lado, o tribunal recorrido ao subscrever o acórdão condenatório de primeira instância que por sua vez remete para as Actas da Comissão de Revisão do Código quando se refere "que é a heterossexualidade que representa a situação mais normal, não está em causa discriminação em função da orientação sexual do agente, mas sim avaliação do que representa maior ou menor perigo de agressão do bem jurídico tutelado",
16. Tal entendimento é puramente discriminatório e ofensivo do mais elementar princípio da igualdade conforme resulta da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, o bem jurídico tutelado é precisamente o mesmo numa situação ou noutra, sendo que o maior ou menor perigo de agressão prende-se com o modo como é comprimido a liberdade sexual da vítima, designadamente, a sua auto-determinação sexual e não com o facto de esta ser do sexo masculino ou feminino.
17. Mesmo que se admitisse que o requisito ou elemento do tipo - abuso da inexperiência das vítimas - também se encontra contemplado no art°. 175° do C.P., o que não se concede, afastando assim a pertinência da inconstitucionalidade invocada e fazendo vingar o entendimento do tribunal a quo,
18. Seria necessário que o tribunal em primeira instância tivesse dado como provado que o arguido AA, a par de outros arguidos, abusou da inexperiência das vítimas, o que, em seu entender,
19. Contudo, nunca o acórdão condenatório em primeira instância deu como provado tal facto, não figurando entre a matéria considerada assente tal abuso.
20. Donde, ainda que se entenda que a existência de abuso da inexperiência das vítimas, por parte do recorrente, prejudica a apreciação da questão em análise - o que sempre se contesta -, sempre estaria o acórdão recorrido ferido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410° n° 2 alínea a) do C.P.P., o qual se argui, para os devidos efeitos legais.
21. Por outro lado, entende-se que a inexperiência prevista pelo legislador no artigo 174° do Código Penal só pode reconduzir-se ao campo sexual, isto é, o normativo em apreço visa proteger a vítima que, por falta de experiência a nível sexual, se deixa arrastar até à prática dos actos desse cariz ali tipificados.
22. Donde, num clima de prostituição - no qual a vítima tem pleno conhecimento do acto sexual que terá de praticar, para auferir uma contrapartida económica -, não há lugar à inexperiência pensada pelo legislador (a nosso ver, próxima da ingenuidade e da ignorância) e prevista no artigo 174° no Código Penal.
23. Acresce que a ter pretendido agravar a conduta do agente em caso de carência económica da vítima, o legislador teria seguramente aditado tal requisito ao ilícito criminal em questão, o que também não se verifica.
24. Pelo exposto, deverá ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 175° do Código Penal, por violação dos artigos 13° e 26° da Constituição da República Portuguesa e, em conformidade, o arguido recorrente absolvido da prática dos 35 crimes de actos homossexuais com adolescentes, pelos quais foi condenado, por impossibilidade de aplicação do artigo 175° do Código Penal.
25. O recorrente foi condenado pela prática de vários crimes do mesmo tipo, todos protectores do mesmo bem jurídico - 18 crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s 1 e 2 do Código Penal; 1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n° 3 alínea a) do Código Penal e 35 crimes de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal - e executados de forma essencialmente homogénea.
26. Para o comportamento do recorrente concorreram factores de ordem diversa que diminuem sensivelmente a sua culpa e que justificavam a sua condenação nos moldes do crime continuado.
27. O Tribunal da Relação de Lisboa na esteira da doutrina enunciada por Eduardo Correia, a qual se subscreve, vem que "estaremos perante um só crime se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas se este estiver interligado por factores ou situações externas que arrastam o agente para a reiteração de condutas, de que, (...) são exemplos as seguintes: ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos; voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa; a circunstância do agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar haver possibilidades de alargar o âmbito da sua actividade. (Acórdão recorrido, págs. 198 e 199.)
28. Considerando, por um lado, os factos provados resultantes do acórdão de primeira instância, e por outro, as doutas palavras enunciadas pelo tribunal a quo, atrever-se-ia o ora recorrente a dizer que a sua conduta pautada por várias resoluções criminosas (tem sido entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, que no crime continuado tem de haver pluralidade de desígnios ou resoluções criminosas, sem o que esta figura não poderá verificar-se - vide Acs. do STJ, de 20-01-94, proc. n° 45406 e de 02-03-83, in BMJ n° 235 pág. 383 e 30-01-86, BMJ n° 353 pág. 240 e de 20-04-90 proc. 44603) encontra-se em total sintonia com o supra descrito.
29. Todavia, o tribunal a quo, fazendo letra morta do que o mesmo escreveu, justifica a não concessão da pretensão do recorrente em sede de crime continuado no expressivo e liminar parágrafo que se transcreve:
"Não é seguramente, o quadro de prostituição pública e notória no Parque Eduardo VII, a doença do foro sexual, a relação afectiva e continuada no tempo com os menores, a depressão originada no falecimento do seu pai ou o sofrimento e a carência afectiva, que consubstancia uma disposição exterior das coisas para o facto, criando um clima de menor exigibilidade, com a consequente diminuição progressiva da culpa do arguido AA, como este pretende." (Acórdão recorrido, págs. 200)
30. Aliás, questiona o recorrente, como é que o Tribunal da Relação, na esteira de Eduardo Correia, enuncia vários exemplos/critérios de aferição de crime continuado, todos eles com aplicação prática ao caso concreto, e depois, sem qualquer justificação cabal, decide em completo desacordo com os cânones acolhidos e vertidos no texto decisório?
31. Não se conforma o recorrente com a decisão recorrida que numa "apreciação singela" do caso complexo em questão, se bastou com um simples "não é seguramente".
32. Ora, resulta claro que o Tribunal recorrido, em sede de crime continuado, não explicou, nem fundamentou a sua decisão.
33. De facto, o tribunal "a quo", após enunciar os critérios que ele próprio acolheu para, no caso concreto, aferir da subsunção jurídico-penal dos factos dados como provados, chegado ao momento de decidir, encontrou clara receptividade destes naqueles, e não concedendo razão ao recorrente, quando bem sabia que este a tinha, fez o mais prático, decidiu sem na verdade decidir!
34. Os actos foram praticados pelo arguido num clima de prostituição -praticada de forma pública e notória no Parque Eduardo VII (cfr. artigos 1, 2, 3 e 4 da fundamentação do acórdão de primeira instância mantida pelo Ac. da Relação nos seus precisos termos);
35. Com efeito, os factos sub judice foram praticados a partir de um local onde se anuncia e pratica a prostituição publicamente e que, por facilitar comportamentos desviantes, potencia o acto criminoso do agente que, tal como o recorrente, sofre de uma parafilia que coarcta a sua vontade e, consequentemente, diminui a sua culpa.
36. Nas sábias palavras de Eduardo Correia, citadas pelo aresto do qual se recorre, verifica-se "uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa".
37. E, por outro lado, verifica-se ainda a "perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa".
38. A doença do foro sexual diagnosticada ao recorrente pelo médico psiquiatra, que o impediu de se determinar ante a avaliação crítica do seu comportamento, é também um factor claramente diminuidor da sua culpa.
39. Nem se alegue em defesa que tal factor é endógeno ao recorrente, porquanto, deverá entender-se por factores exógenos, todos aqueles que o agente criminoso tenha, de per si, sérias dificuldades em controlar, isto é, exteriores à sua vontade.
40. O facto de o recorrente ter estabelecido, após o conhecimento dos menores, uma relação afectiva e continuada no tempo com os mesmos (vide artigos 54, 58, 62, 71, 72, 73, 75, 76, 77 da fundamentação do acórdão de primeira instância mantida pelo Ac. da Relação nos seus precisos termos) por facilitar a reiteração da sua conduta, torna igualmente menor a sua culpa.
41. O recorrente iniciou os comportamentos sub judice, passando a frequentar o Parque Eduardo VII, num quadro de depressão, com origem no falecimento do seu pai.
42. Tal facto, pelo sofrimento e pela carência afectiva que motivou no recorrente, conduziu-o até às vítimas e à prática de actos relativamente aos quais o mesmo assume uma consciência crítica mas que não conseguiu deixar de praticar, até procurar apoio clínico.
43. Desse modo, o acontecimento em apreço torna a culpa do arguido menor, sendo mais um elemento justificativo da sua condenação nos moldes do crime continuado.
44. Qualquer um dos factos supra expostos, era suficiente para o tribunal "a quo" ter acolhido a argumentação do recorrente e ter decidido pelo crime continuado nos termos do art°. 30° n° 2 do Código Penal, à luz dos próprios critérios e exemplos que enunciou.
45. Tem vindo o STJ a defender actualmente que se por um lado é necessário uma pluralidade de resoluções criminosas, no caso de abuso sexual de menores, para a figura do crime continuado operar, importa também atender às diferentes formas de compressão da liberdade das vítimas, designadamente da sua intimidade e auto-determinação sexuais (Nesse sentido vide Ac. do STJ de 25-05-2005, Proc. n.° 646/05 – 5ª Secção, Costa Mortágua (relator), Quinta Gomes, Rodrigues da Costa e Arménio Sottomayor.
46. Ora, tendo o recorrente AA, com todas as vítimas utilizado sempre o mesmo "modus operandi" no que diz respeito à compressão das suas liberdades sexuais, que consistia na masturbação oral que ele lhes fazia, estamos perante mais um factor de homogeneidade da sua conduta para operar a figura do crime continuado.
47. Também a nossa jurisprudência e doutrina mais actuais aconselham o enquadramento dos comportamentos equivalentes ao do ora recorrente, no art.° 30° n° 2 do C.P., considerando geralmente que "a inexistência de oposição expressa da vítima, após a primeira cedência, pode ser um factor de facilitação da prática de novos crimes, contribuindo para a diminuição da culpa." (Nesse sentido v. Inês Ferreira Leite, Pedofilia - Repercussões das Novas Formas de Criminalidade na Teoria Geral da Infracção, Almedina, pág. 153).
48. A afirmação pelo tribunal "a quo" que as situações ou circunstâncias exteriores supra expostas, não surgiram por acaso, mas foram procuradas pelo arguido, é no mínimo absurda e paradoxal, na medida em que se as circunstâncias acima identificadas são exteriores ou exógenas ao próprio recorrente, não podem ter sido por ele propiciadas ou procuradas voluntariamente, já que elas existem para além da vontade deste.
49. Nestes termos, deve o recorrente ver apreciada a sua conduta nesses termos e, condená-lo somente pela prática de 1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s. 1 e 2 do Código Penal que teve como ofendido DD; 1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s 1 e 2 e 30° n° 2 do Código Penal que teve como ofendido CC; 1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s 1, 2 e 3 e 30° n° 2 do Código Penal que teve como ofendido EE; 1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s 1 e 2 e 30° n° 2 do Código Penal que teve como ofendido LL;
50. Caso V. Exas decidam não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 175° do Código Penal, antes aceitando a condenação do recorrente por tal ilícito, deve o mesmo ser tão só condenado pela prática de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido FF; de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido GG; de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido GG; de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido HH; de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido II; de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido JJ; 51. Defende o tribunal recorrido que "independentemente, de ser sujeito passivo ou activo na relação mantida, o acto confessadamente praticado pelo arguido AA é, efectivamente integrável na noção de coito oral, e assim, deverá estar incluído na previsão do n° 2 do citado art°. 172° do Código Penal". (Ac. recorrido, pág. 212)
52. Com efeito, dispõe o art° 172° n° 2 do C. Penal que "Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos..."
53. Com a singela explicação supra exposta entendeu o tribunal "a quo" que os actos praticados pelo arguido, designadamente ter "chupado o pénis" dos menores DD, CC (este quanto a 5 crimes dos pontos 63 a 69), EE e LL integravam a previsão deste tipo legal, que constitui uma clara especificação dos actos sexuais de relevo contidos no n° l.
54. Tendo consistido tais actos na introdução pelo arguido dos pénis das vítimas na sua própria boca, praticando ele arguido, na pessoa dos menores o que se designa por "fellatio", afigura-se-nos que o tribunal "a quo", na esteira do acórdão condenatório em primeira instância errou na integração típica dos comportamentos provados mercê de uma errada interpretação do conceito inscrito na previsão.
55. Importa, por isso, precisar o sentido normativo jurídico de expressões como cópula ou coito já que o respectivo significado etimológico é o mesmo, pois a definição de coito, do latim "cauto" é o de "cópula carnal".
56. A definição de cópula como a "penetração da vagina pelo pénis" na afirmação lapidar e peremptória do Professor Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. II, pgs. 472 parece indubitável por recurso aos elementos literal e teleológico, sendo a única dúvida suscitada doutrinal e jurisprudencialmente a de saber se o conceito abrange ainda a "cópula vestibular" ou "vulvar", isto é o contacto entre pénis e vagina sem efectiva introdução.
57. Desta definição avulta como elemento essencial da acção típica a penetração ou introdução do pénis em espaço localizado no corpo da mulher.
58. Do mesmo modo no coito, seja ele anal ou oral, o acto proibido é a introdução do pénis em espaço inviolável.
59. Nas claras palavras do Prof. Figueiredo Dias (Loc. Cit. Pgs. 472) "À cópula é equiparado tipicamente, para efeitos do art°164°, o coito anal e o coito oral. O primeiro consiste na penetração do ânus, o segundo na penetração da boca pelo pénis".
60. Aceitamos que o nosso legislador ao utilizar a expressão "coito" limitou a penetração relevante à penetração pelo pénis.
61. Indubitável é que o autor do crime é quem efectua a penetração, no modelo da penetração qualquer pessoa que proceda à introdução de um objecto ou artefacto na vagina, ânus ou boca da vítima, no nosso Código e de acordo com a doutrina dominante qualquer homem que introduza o seu pénis na vagina de uma mulher, ou no ânus ou na boca de outrem.
62. Se as expressões usadas pela lei - cópula e coito - afastam a possibilidade de punir as penetrações por objectos, afastam do mesmo passo a possibilidade de punir no quadro da violação ou do abuso sexual agravado os actos sexuais que não sejam de penetração.
63. A única interpretação correcta no que ao art°. 172° concerne, tendo presente a economia global do preceito, os elementos literal, teleológico e sistemático é a que considere que comete o crime agravado do seu n° 2 o agente que penetre, com o seu pénis, a vagina, o ânus ou a boca de menor de 14 anos e que comete o crime previsto no seu n° l o agente que obriga o menor a penetrá-lo no seu ânus ou na sua boca.
64. O elemento literal, porque a redacção do preceito induz a ideia de posição activa na relação de cariz sexual - "tiver"; e usa conceitos que pressupõem penetração - "cópula" e "coito".
65. O elemento teleológico, porque a especialização do tipo consubstanciada numa agravação da ilicitude só se justifica para comportamentos que lesem o núcleo central dos valores protegidos, quais sejam penetrações indesejadas no corpo, já que este é o espaço inviolável, o reduto sagrado cuja violação merece severa punição.
66. Constituindo, no abuso de menores, o bem jurídico tutelado o livre e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade parece óbvia a diferença de gravidade de um comportamento que obriga o menor a sofrer a introdução do pénis no seu ânus ou na sua boca, daquele outro que o impele a introduzir o seu pénis na boca ou no ânus do abusador.
67. O primeiro, para além da extrema violência que representa, deixará marcas indeléveis na sua auto-estima pela humilhação que encerra, inibirá, no futuro, relações saudáveis pela vergonha da sua condição de vítima passiva de abuso, determinará a angústia de um segredo a esconder;
68. O segundo assume a natureza de uma virilidade precoce, representa um estereótipo de dominação, pode potenciar desvio mas não arrasa a personalidade.
69. Finalmente, o elemento sistemático, porque no tipo fundamental se prevê o comportamento quer activo, quer passivo, sem que idêntica previsão do comportamento passivo se formule de forma explícita no tipo agravado.
70. Acresce que só a interpretação que defendemos permite a compatibilização da leitura do tipo com a proibição constitucional de discriminação em função do género. Ao invés, a interpretação adoptada pelo tribunal conduz a soluções claramente inconstitucionais nos termos do art°. 13° n° 2 da CRP.
71. Se o coito oral abrangesse também os casos em que o agente do crime usa a boca no pénis da vítima, este segmento da norma protegeria apenas vítimas do sexo masculino, já que exigindo a expressão cópula ou coito a presença de pénis na relação, o contacto físico da boca do abusador com o órgão genital feminino seria remetido para o abuso sexual simples.
72. Pelo contrário, a interpretação que vimos defendendo, de que a norma do art°. 172° n° 2 prevê os casos em que o agente do crime introduz o seu pénis na boca da vítima, permite a aplicação deste preceito tanto a vítimas do sexo masculino como feminino.
73. Inconstitucionalidade da interpretação seguida pelo tribunal "a quo" que desde já se suscita para ser apreciada em sede de recurso e para todos os demais efeitos legais.
74. Nestes termos, o tribunal "a quo", subscrevendo o acórdão de primeira instância, violou as normas dos art°. 172° n° l e 2 do C. Penal e adoptou uma interpretação inconstitucional do art°. 172° n° 2 do C. Penal ao considerar que o arguido teve coito oral com menores de 14 anos a quem, comprovada e confessadamente, se limitou a chupar os respectivos pénis sem que, alguma vez, eles tivessem feito o mesmo a si.
75. Devia, pois, o arguido ter sido condenado, no que à prática desses actos concerne, pelo crime p. e p. pelo art°. 172° n° l do C. Penal, que prevê os casos em que o agente leva o menor a praticar sobre si actos sexuais de relevo, como é claramente o caso de introduzir o seu pénis na boca do agente.
76. No que ao crime de abuso sexual de menores concerne e sem considerar a natureza típica da acção que permitiu, no entender do tribunal (com o qual aliás se discorda) definir o crime concreto cometido e encontrar a respectiva moldura legal, constata-se que a gravidade do comportamento assumido pelo arguido é diminuta face ao conjunto de acções puníveis por este tipo.
77. Desde logo, o facto de os actos do arguido se enquadrarem num clima de prostituição - praticada de forma pública e notória no Parque Eduardo VII.
78. O arguido não usou o seu ascendente sobre menores que lhe eram próximos, não forçou os menores a manterem as práticas consigo sob ameaça, não os intimou posteriormente ao silêncio, procurou jovens que se ofereciam ("orientavam") em local público, que praticavam estes actos reiteradamente e com indivíduos diversos.
79. Que fique claro, o consentimento expresso, o oferecimento não é juridicamente relevante em sede de tipicidade, as causas da disponibilidade para esta prática, o abandono, o mau trato, a miséria, transformam-na numa dura e crua realidade que nos deve interpelar enquanto sociedade para a protecção que (não) damos às nossas crianças e jovens; mas a diferença entre o abuso no interior da família, cometido por um familiar próximo para com crianças em situação de total dependência, o abuso perpetrado com ameaças prévias ou com chantagem para o silêncio posterior; o abuso com recurso a redes organizadas de exploração sexual de crianças indefesas tem uma gravidade objectiva claramente diferenciada de um outro que assenta em relação consentida quando não procurada, sem ameaças ou chantagem, sem violência associada, sem silêncio necessário, sem a angústia de uma continuação indesejada e de uma impotência desmedida para lhe pôr cobro -São necessariamente diferentes as gravidades, merecem diferente juízo de ponderação.
80. Outro factor que acentua a diminuta gravidade da ilicitude é as idades dos menores vítimas - No acervo das idades passíveis de abuso, sobretudo nos menores de 12 anos, detinham a idade limite, medicamente jovens púberes, não eram já as crianças meninos típicas do abuso intra familiar.
81. Ainda em matéria de grau da ilicitude, mas agora, no domínio da gravidade das consequências não resulta da matéria provada (porque efectivamente não decorreu da prova) nenhuma consequência causalmente determinada nas vítimas pelo comportamento do arguido.
82. Estando perante crimes de perigo a inexistência de prova de efectiva lesão do bem protegido não afecta a punibilidade da acção, mas terá de ser ponderada nesta sede, na cominação de uma pena inferior à que resultaria de um juízo que apontasse efectivo prejuízo para o normal desenvolvimento das vítimas.
83. Com duas excepções, o tribunal classifica o dolo do arguido quanto a um elemento essencial do tipo, a idade dos menores, como eventual.
84. Constituindo esta modalidade de dolo, a menos grave, no limiar mesmo da negligência consciente é óbvia a sua menor intensidade.
85. Mas se analisarmos os factos considerados provados, sempre no pressuposto, que não se aceita, de que o arguido admitiu a possibilidade dos jovens terem a idade exigida pelo tipo e se conformou com essa possibilidade, importa reter que os jovens afirmavam idade superior à que efectivamente tinham.
86. Ou seja, estando o arguido condenado, exclusivamente, porque no âmbito das suas práticas homossexuais alguns dos parceiros aleatoriamente escolhidos tinham uma idade em que a lei exclui a relevância do consentimento, o facto do arguido desconhecer a idade exacta, sendo-lhe mesmo, em regra, indicada idade superior não pode deixar na aferição da intensidade do dolo com acentuado peso atenuativo.
87. No domínio da culpa, o comportamento do arguido adquire uma singularidade, que até no domínio da prevenção geral, merecia um tratamento diferencial que premiasse, erigindo-a em exemplo, a sua atitude.
88. Da confissão, cuja relevância não pode deixar de ser medida pela tranquilidade com que as vítimas encararam este julgamento, confissão que, sublinhe-se ocorreu desde o primeiro interrogatório judicial; ao arrependimento sempre expresso, diríamos sempre convictamente expresso; da cessação voluntária do comportamento por interiorização do desvalor da conduta; à procura por sua iniciativa de tratamento para o desvio que o compelia à prática; da preocupação com a sorte das vítimas, à persistência no tratamento como garantia de não reiteração, tudo circunstâncias únicas, num tipo de crime em que a negação é a regra e a compulsão o risco.
89. A que acrescem as circunstâncias que o determinaram à prática e os termos em que essa prática teve lugar.
90. A doença do foro sexual diagnosticada ao recorrente pelo médico psiquiatra que o segue ao impedi-lo de se determinar ante a avaliação crítica do seu comportamento é também um factor claramente diminuidor da sua culpa.
91. Ainda ter passado a frequentar o Parque Eduardo VII, num quadro de depressão com origem no falecimento do seu pai.
92. Tal facto, pelo sofrimento e pela carência afectiva que motivou no recorrente, conduziu-o até às vítimas e à prática de actos relativamente aos quais o mesmo assume uma consciência crítica mas que não conseguiu deixar de praticar, até procurar apoio clínico.
93. A culpa deste concreto arguido é, assim, tão diminuta que, qualquer pena, para qualquer dos crimes, que se afaste do mínimo da respectiva moldura legal é injustificada por exagerada.
94. Mais as finalidades da pena criminal ficarão todas cumpridas com a cominação de penas parcelares no mínimo.
95. A finalidade ético-retributiva satisfaz-se, por definição, com uma pena no âmbito da moldura legal.
96. A prevenção especial está acautelada pelo comportamento responsável do arguido que previamente a qualquer perseguição procurou tratamento que tem mantido ininterruptamente recorrendo mesmo a fármacos de inibição sexual.
97. A prevenção geral já o dissemos supra será melhor servida se, no castigo exigido, se premiar a diferença de comportamentos sinalizando a importância da confissão e do arrependimento, bem como da cessação voluntária.
98. E a ressocialização só estará garantida com uma pena única bem inferior à cominada já que penas de prisão de longa duração inibem qualquer eficaz retoma de uma vida normal, introduzindo, ao invés, factores de risco acrescido no regresso ao seio da comunidade pela inevitável perda dos laços e dos apoios que se vão desvanecendo com o tempo de afastamento.
99. Postulando como critério da sua medida o art°. 77° n° l in fine do C. Penal, em conjunto, os factos e a personalidade do agente e tendo presente que é nesta sede que maior peso na ponderação deve revestir a finalidade da "reintegração do agente na sociedade" como expressamente impõe o art°. 40° n°l do C. Penal, o critério estritamente quantitativo quanto aos factos; e a equiparação da culpa às necessidades de prevenção geral, uma vez mais; determinou que a pena cominada pelo tribunal "a quo" continue a violar os critérios legais impostos.
100. Mesmo aplicando-se a regra normal do terço, aplicação que não teria em conta a excepcionalidade do comportamento do arguido decorrente da sua singular personalidade, a pena ainda aparece desajustada já que segundo essa regra a pena situar-se-ia pouco acima dos 10 anos de prisão.
101. Com a singularidade do comportamento do arguido, a confiança que ainda merece no seio da comunidade que o acolhe, a consciência crítica que demonstrou, a atitude que assumiu, a pena única adequada, no contexto da condenação que engloba os crimes que o tribunal "a quo" deu por verificados, não deveria exceder os 9 anos de prisão.
102. Excluídos os crimes de actos homossexuais com adolescentes, por óbvia inconstitucionalidade, a pena adequada situar-se-ia nos 7 anos de prisão.
103. Sufragada integralmente, como esperamos, a tese desenvolvida no presente recurso quer quanto ao crime continuado, quer quanto às normas incriminadoras esta pena não poderá exceder os 5 anos de prisão.
104. Com as penas parcelares e única concretamente cominadas ao arguido violou o tribunal "a quo" as disposições conjugadas dos art°s 40° n°s l e 2, 70° (no crime de detenção de arma proibida), 71° e 77° n° l do C. Penal.
105. Dispõe o art° 72° n° l do C. Penal que o tribunal atenua especialmente a pena sempre que se verifiquem circunstâncias anteriores, posteriores ou contemporâneas do crime que diminuam por forma acentuada a culpa do agente ou a necessidade da pena.
106. Dispõe o n° 2 deste artigo que entre outras circunstâncias relevantes deve relevar-se (al. c) ) o facto de "ter havido actos demonstrativos do arrependimento sincero do agente..." surgindo a reparação como exemplificativa dessa demonstração.
107. O arguido teve sempre uma vida exemplar, não é o facto de ser primário é a dedicação à educação e formação de jovens, sem registo de incidente e mantendo intacto o capital de confiança dos pais e educadores.
108. Sem registo histórico de comportamento idêntico neste tipo de crime, a singularidade de tal comportamento merece consideração especial e, por isso, é credor de um juízo de atenuação especial das penas.
109. Com a não aplicação da atenuação especial violou o tribunal "a quo" o disposto no art°72° do C. Penal.
110. O tribunal em primeira instância condenou o arguido recorrente a pagar uma indemnização de € 30.000,00 ao ofendido e demandante cível EE e € 45.000,00 ao ofendido e demandante CC.
111. Radicou tal condenação na invocada verificação de danos não patrimoniais ressarcíveis causalmente imputáveis à conduta do arguido.
112. Percorrida aquela decisão fáctica constata-se que o tribunal descreve sumariamente as condições (penosas) de vida dos ofendidos e a razão do respectivo internamento, bem como a adaptação à instituição (factos 11 a 17), descreve as práticas sexuais mantidas pelo arguido com estes menores (factos 61 a 73) mas em nenhum momento considera provados quaisquer efectivos prejuízos para a saúde, a estabilidade psicológica ou emocional, o desenvolvimento destes menores.
113. O Tribunal da Relação mais uma vez com um parágrafo lapidar pretensamente resolve a questão: " Ao contrário do alegado pelo arguido AA, é procedente o pedido cível, na medida em que se mostram preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil (...)." (Ac. recorrido, pág. 220)
114. Não existe uma única referência na decisão sobre matéria de facto às consequências do concreto comportamento do arguido nestes menores, ao contrário, aliás, do que acontece com o menor FF em que, no facto 142, o tribunal afirma que ele não gostava de ser sujeito a práticas sexuais com adultos a troco de dinheiro.
115. Sem essa indicação não podia o tribunal em primeira instância ter proferido a decisão condenatória, nem agora o Tribunal da Relação tê-la confirmado, deferindo ao arguido a responsabilidade pela indemnização e fixando o respectivo quantum.
116. Em resumo, o tribunal apenas considerou como provados os factos ilícitos da responsabilidade do arguido que tiveram por vítimas os ofendidos, não indicando, especificando-os, um único facto que se possa considerar dano não patrimonial sofrido por esses ofendidos.
117. Mais, não indicou o nexo causal entre as condutas dos arguidos e esses eventuais danos.
118. Incorreu assim, de forma clara no vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art°. 410° n° 2 al. a) do C.P.P., devendo o julgamento ser anulado e o processo reenviado para novo julgamento nos termos do art°. 426° n° l do C.P.P.
119. Mais, ao assim decidir, não fundamentando a sua decisão, o tribunal "a quo" neste caso o primeiro a pronunciar-se sobre a questão levantada pelo arguido no recurso interposto da decisão de primeira instância nos termos do art°. 410° n° 2 al. a) do C.P.P., aplicou este mesmo artigo com base numa interpretação, que por frustrar o plasmado no n° 1 do art°. 32° da Constituição da República Portuguesa que reclama todas as garantias de defesa nomeadamente em sede de recurso, está ferido de óbvia inconstitucionalidade que neste momento e para todos os efeitos legais desde já se arguiu.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas doutamente suprirão, requer respeitosamente o recorrente que, concedendo-se provimento ao recurso se decida alterar a decisão recorrida:
A) Declarando-se a inconstitucionalidade do artigo 175° do Código Penal, por violação dos artigos 13° e 26° da Constituição da República Portuguesa e, em conformidade, absolvendo-se o arguido recorrente da prática dos 35 crimes de actos homossexuais com adolescentes, pelos quais foi condenado, por impossibilidade de aplicação do referido preceito legal.
B) Apreciando a conduta do recorrente em obediência ao comando do art° 30° n° 2 do C. Penal, em sede de crime continuado, condenando-o somente pela prática de:
- 1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s 1 e 2 do Código Penal que teve como ofendido DD;
- 1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s 1 e 2 e 30° n° 2 do Código Penal que teve como ofendido CC;
-1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s 1,2 e 3 e 30° n° 2 do Código Penal que teve como ofendido EE;
-1 crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172°, n°s 1 e 2 e 30° n° 2 do Código Penal que teve como ofendido LL;
Mais, caso V. Exas. decidam não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 175° do Código Penal, antes aceitando a condenação do recorrente por tal ilícito, deve o mesmo ser tão só condenado pela prática:
- de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido FF;
- de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido GG;
- de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido HH;
- de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido II;
- de 1 crime de actos homossexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 175° do Código Penal, contra o ofendido JJ;
C) Condenando-se o arguido apenas pela prática do crime p. e p. pelo art°. 172° n° l do C. Penal nos casos em que o arguido manteve actos sexuais de relevo com os menores introduzindo os pénis daqueles na sua boca.
D) Determinando-se a aplicação da atenuação especial prevista no art°. 72° do C. Penal e condenando-se o recorrente no limite mínimo das molduras legais aplicáveis e numa pena única situada abaixo do terço da diferença entre os limites mínimo e máximo.
E) Anulando-se o julgamento e determinando-se o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art°. 410° n° 2 al. a) por insuficiência da matéria de facto provada para a decisão cível, bem como declarando-se inconstitucional a interpretação que o tribunal "a quo" fez da norma referida.»»

Estas outras, por seu turno, as do arguido BB:

««1. O arguido é jovem, homossexual, e não tem antecedentes criminais. Prostituía-se no Parque Eduardo VII a fim de providenciar o seu sustento.
2. O recorrente conheceu o ofendido FF, como prostituto, também no Parque Eduardo VII. No início do ano de 2004 propôs que ambos tossem viver juntos, partilhando um quarto na Pensão Sevilha para o efeito.
3. Durante cerca de 2 meses tiveram relações homossexuais sem contrapartidas monetárias e consentidas.
4. Por ser mais velho e pela frequente procura de prostitutos mais novos, o recorrente viu-se em dificuldades financeiras que levaram o ofendido FF a pagar as despesas de alojamento e de alimentação sempre que o recorrente não conseguia prover os seus sustentos.
5. De referir ainda que o ofendido FF, durante a prisão preventiva do recorrente, continuou a se prostituir no Parque Eduardo VII.
6. O Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se no douto acórdão n° 8512/2005 pela inexistência de suporte fáctico que preenchesse o nº 3 do artigo 176° do C.P.
7. Ao contrário do douto acórdão condenatório, não nos parece que o simples facto de partilhar um quarto numa pensão e respectivas despesas de alojamento de alimentação leve à conclusão de que o recorrente fomentasse, por que forma fosse, o exercício da prostituição. Pelo contrário, nada se provou que não havendo partilha de quarto e convivência mútua os mesmos deixassem de se prostituir. A “comunhão de mesa e habitação” não são factores consubstanciadores de ilícitos criminais.
8. Mais se refere, nas palavras do ofendido FF, que o recorrente só por esta única vez e durante dois meses de convívio, recebeu dinheiro para que o adolescente FF se prostituísse com outros, e pela quantia irrisória de 5 Euros (cinco euros). Estando essa quantia destinada à sobrevivência de ambos com o pagamento de alojamento e alimentação, da mesma não se pode retirar a intenção lucrativa constante do artigo l76° n°3 do C.P.
9. Se o douto acórdão entende o crime de lenocínio como um crime de resultado, então os factos provados apenas conduziriam à condenação do recorrente por tentativa do crime de lenocínio, uma vez que o ofendido FF não teve actos sexuais, nem sequer de relevo, com o “cliente” PP, co-arguido nos autos e que foi absolvido.
10. De qualquer forma, os factos provados nunca poderiam levar à condenação de nove crimes de actos homossexuais com adolescentes, porquanto estamos em plena sede de continuação criminosa.
11. Na verdade, o simples facto de recorrente e o ofendido viverem em comunhão de mesa e habitação constitui o factor exógeno determinante do crime continuado. De referir que a comunhão de mesa e habitação não são factores consubstanciadores de ilícitos criminais.
12. O acórdão condenatório concluiu pela inexistência de inconstitucionalidade do artigo 175º do C.P., ao arrepio da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
13. No seguimento da arguição de inconstitucionalidade do citado artigo efectuado em audiência de julgamento reitera-se aqui tal pedido.
14. No caso concreto, o ofendido FF, há muito que era experiente, pois o mesmo prostituía-se no Parque Eduardo VII, mesmo antes de conhecer o recorrente.
15. Pelo que se argúi a inconstitucionalidade do artigo 175° do C.P. por violação dos artigos 13°, n° 2, e 26°, n° l, da Constituição, na parte em que pune a prática de actos homossexuais com adolescentes mesmo que se não verifique, por parte do agente, abuso da inexperiência da vítima (acórdãos do Tribunal Constitucional 247/2005 e 351/2005).
Violaram-se:
1. O artigo 13° n° 2 e 26° n° l da C.R.P, porquanto se violou o princípio da igualdade aplicando-se no acórdão recorrido o artigo 175° do C.P., manifestamente inconstitucional.
2. O artigo 30° n° 2 do C.P., porquanto os factos provados consubstanciam um único crime continuado e nunca um concurso real de nove crimes de actos homossexuais com adolescentes.
3. O artigo 176° n° 3 do C.P., porquanto não existe agravação do crime de lenocínio, o qual, alias, só poderia ser punido por tentativa – artigo 23° do C.P. »»

O sr. Procurador-Geral Adjunto na Relação respondeu às petições de recurso, concluindo pela seguinte forma:

«1) O acórdão recorrido não enferma de quaisquer vícios ou nulidades;
2) Deverá proceder-se à unificação de condutas no âmbito do crime continuado, considerando sempre a unidade de ofendido;
3) Em consequência da alteração da qualificação jurídico-penal e das regras punição impostas por aquele instituto, devem ser revistas as medidas concretas de algumas penas, no sentido do abaixamento;
4) O artigo 175.° do Código Penal, quando confrontado com o artigo 174.° do mesmo diploma, não é inconstitucional.»
*

Por acórdão proferido em 15/03/2007 (fls. 5794-5806), este STJ decidiu, ao abrigo do art. 400º, nº 1, e) do CPP, rejeitar o recurso do arguido AA, na parte referente ao crime do art. 172º, nº 3, alínea a) e aos do art.º 175.º, ambos, ambos do CP, bem assim no que concerne ao crime do art.º 6º, nº 1 da Lei nº 22/97;rejeitando, também, o do arguido BB, na parte relativa aos crimes do art. 175º do CP.

Deste acórdão recorreram os mesmos arguidos para o Tribunal Constitucional, onde, por veredicto sumário de 25/06/2007 (fls. 5862-5869), confirmado por acórdão de fls. 5970-5975, foi decidido não conhecer do objecto do recurso interposto pelo arguido BB; tendo-se ajuizado, depois, nesse mesmo tribunal, consoante acórdão proferido a 02/07/2008 (fls. 6054-6079), conhecer do objecto do recurso do arguido AA quanto à inconstitucionalidade material do art. 175º do CP e negar provimento à restante matéria do recurso, ou seja, às deduzidas inconstitucionalidade orgânica do referido art. 175º do CP, na versão anterior à Lei nº 59/2007, de 4-9, e inconstitucionalidade material do art. 400º, nº 1, e) do CPP.
*
Colhidos os vistos e realizada a audiência de julgamento, decidir-se-á, procedendo-se à elaboração de acórdão congregador da maior consensualidade possível, com máximo aproveitamento do projecto originariamente submetido a apreciação.

* * *
Previamente ao conhecimento dos recursos, na parte subsistente, haverá que considerar, porém, que a Lei nº 59/2007, de 04/09, veio modificar profundamente o quadro legal de punição dos actos sexuais com adolescentes, que agora estão incriminados no art. 173º do CP, sem distinção entre actos heterossexuais e homossexuais, tendo-se assim eliminado o tipo legal previsto (anteriormente) no art. 175º do CP, pelo qual tanto os arguidos recorrentes, como os não recorrentes, vêm condenados.

Esta alteração do quadro legislativo terá de ser analisada à luz do art. 2º do CP, entendendo-se, no entanto, maioritariamente, que não caberá ao STJ fazê-lo, circunscrita que estará a sua cognição ao domínio da parcela não rejeitada dos recursos dos arguidos AA e BB.

Caberá, isso sim, neste entendimento, à 1ª instância, após a decisão dos recursos, determinar as consequências da alteração legislativa, relativamente, aliás, a todos os arguidos, recorrentes e não recorrentes.

* * *

RECURSO DO ARGUIDO AA

São cinco as questões colocadas por este arguido:
A) Inconstitucionalidade do crime previsto no art. 175º do CP;
B) Continuação criminosa;
C) Agravação do n.º 2 do art. 172º CP;
D) Medida concreta das penas/Atenuação especial;
E) Insuficiência da matéria de facto para a decisão cível.

Pelas razões antecedentemente expostas, a apreciação da questão enunciada em A) está prejudicada.
Analisemos as restantes.

Continuação criminosa

Pretende o recorrente (nºs 25 a 49 das suas conclusões) que as condutas integráveis, ao tempo, no art. 172º, nºs 1 e 2 do CP foram praticadas devido a factores que diminuem acentuadamente a culpa, devendo portanto ser punidas nos moldes do crime continuado, integrando quatro crimes, pois tantas foram as vítimas.
Invoca, para tanto, e em síntese, além da homogeneidade do seu comportamento com os mesmos menores, o ambiente de prostituição do Parque Eduardo VII, a doença diagnosticada ao recorrente que lhe limitava a autodeterminação, o estado de depressão em que se encontrava, e ainda a relação afectiva criada e mantida com os menores, como factores exógenos que o induziram a repetir aquela conduta delituosa.
Nos termos do art. 30º, nº 2 do CP, a prática repetida do mesmo tipo de crime ou de tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico, desde que executada de forma homogénea e próxima, do ponto de vista temporal, e no quadro de uma mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, constitui um só crime (continuado).
A razão de ser da unificação de uma pluralidade de condutas radica, pois, na diminuição da culpa, pelo que a mera reiteração criminosa, ainda que homogénea na sua execução, será insuficiente para unificar as diversas condutas, assim como o será uma qualquer situação externa que eventualmente facilite a reiteração, desde que essa facilitação não constitua uma “solicitação” suficientemente forte que envolva ou traduza uma diminuição considerável da culpa do agente.
Essencial é distinguir entre a ocorrência ou subsistência de uma mesma situação externa que “empurre” o agente para a repetição da mesma conduta, por um lado, e a procura ou organização pelo agente de novas oportunidades para repetir uma conduta anteriormente praticada, por outro.
Por outras palavras: há que distinguir entre a reiteração criminosa que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente.
Neste segundo caso, são obviamente razões endógenas que levam à reiteração criminosa e portanto não existe atenuação da culpa, antes uma culpa agravada, estando pois excluído o crime continuado.
Acrescente-se que o nº 3 do art. 30º do CP, aditado pela Lei nº 59/2007, não alterou os dados da questão.(1) O que esse número veio estabelecer, aliás de forma algo redundante, não é que nos crimes contra bens pessoais, tratando-se da mesma vítima, se deve sempre unificar as condutas, mas sim que nesses crimes a pluralidade de vítimas é obstáculo a essa unificação; ou seja, nesse tipo de crimes, a continuação criminosa só pode estabelecer-se em torno de cada vítima, e desde que estejam reunidos os demais requisitos do crime continuado, nomeadamente a mitigação substancial da culpa do agente.
Partindo destas considerações, que se afiguram aliás incontroversas, vejamos agora o caso dos autos.
O recorrente foi, além do mais, condenado como autor de nove crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 172º, nºs 1 e 2 do CP (na versão anterior à Lei nº 59/2007), na pessoa do menor CC, de quatro crimes idênticos na pessoa do menor EE, e também de quatro crimes análogos na pessoa do menor LL.
Da matéria de facto (nºs 51-113) resulta que o arguido travou conhecimento com o menor CC no Parque Eduardo VII, em Lisboa, local conhecido por ser onde crianças e jovens do sexo masculino se dedicam à prostituição e que este menor frequentava regularmente para esse fim, tendo, quando abordado pelo arguido a primeira vez, imediatamente aceite a sua proposta.
A partir daí, o arguido passou a contactar o mesmo menor, combinando as coisas de forma a poder encontrar-se com ele facilmente, indo buscá-lo a locais previamente combinados e levando-o depois para o lugar onde praticaria os actos sexuais (casa ou escritório).
Através do menor CC, o arguido conheceu o menor EE, irmão daquele, e FF (maior de 14 anos). Este último também frequentava o Parque Eduardo VII regularmente, a fim de se prostituir. O menor EE, embora acompanhasse o irmão ao Parque, não mantinha, porém, contactos sexuais com adultos, limitando-se a “circular” pela zona…, como vem referido da 1.ª instância.
A partir do conhecimento com estes dois outros menores, o arguido passou a ter contactos sexuais com eles, à semelhança do que fazia com o menor CC, para tanto os contactando previamente, por telefone, indo depois recolhê-los de carro; sendo ainda que, para facilitar tais contactos, o arguido forneceu um telemóvel a cada um dos menores.
Note-se que o menor EE não se dedicava à prostituição, ao menos com adultos, mas por vezes “circulava” no Parque Eduardo VII, na companhia do seu irmão, que se prostituía, esse sim, e que foi por “intermediação” deste que o arguido o conheceu, pelo que é de admitir, por falta de prova em contrário, que o arguido o tomasse também como prostituto.
Quanto ao menor LL (factos nºs 98-113), o arguido sabia que “frequentava” o Parque Eduardo VII e, por isso, sabendo do seu modo de vida, abordou-o fora desse local e, à segunda vez, o menor logo aceitou relacionar-se sexualmente com ele. Repetiu mais três vezes essas práticas sempre mediante contacto prévio e directo, indo o arguido recolhê-lo ao local combinado.
Os factos que estão assentes, por isso, demonstram que os menores em causa exerciam a prostituição com vários homens, ou acompanhavam os prostitutos, em local notoriamente conhecido da cidade, pelo que era muito fácil ao arguido procurá-los para manter com eles relações sexuais remuneradas. Por outro lado, tendo já o arguido mantido relações sexuais remuneradas, ou não, anteriormente, com cada um deles, era-lhe bem mais acessível a abordagem individual para repetir tais actos.
Assim, havendo vários elementos externos facilitadores dos contactos sexuais, quando estes eram praticados com o mesmo menor e uma vez que foram realizados de forma essencialmente homogénea, em período relativamente próximo (atenta a «actividade» em causa), deve considerar-se, neste caso, que houve um crime continuado por cada uma das vítimas.
Trata-se de uma situação peculiar, pois a maioria dos abusos sexuais de menores são praticados sobre vítimas «indefesas», que são violentadas física ou psicologicamente, pelo que o STJ tem muitas vezes entendido que, em regra, existe um agravamento de culpa por cada um dos crimes cometidos, incompatível com o crime continuado. Por isso, nesses casos, tem-se considerado que há um único crime de trato sucessivo (que a moldura penal permite graduar de forma mais intensa) e não um crime por cada contacto sexual.
Mas não neste caso particular, pelas suas especiais circunstâncias.
Não se pode dizer que “o arguido promoveu activamente a verificação de novas ocasiões favoráveis para que tal sucedesse”, antes que estes menores “ofereciam” os seus favores sexuais em local conhecido da cidade e, desse modo, facilitavam o contacto com os “clientes”, o que diminui substancialmente a culpa destes, embora, como é óbvio, se mantivesse a ilicitude da conduta punida nos termos da lei.
Consequentemente, neste caso, é de acolher a figura do crime continuado em relação à reiteração de conduta com os menores CC, EE e LL.
A invocação pelo arguido de uma doença de foro psíquico (parafilia), bem como a situação depressiva em que alegadamente se encontraria, com origem no falecimento do pai, jamais lhe aproveitará: pois que a matéria de facto não faz qualquer referência a essas circunstâncias (apenas se provou o que consta do nº 242, ou seja, que o arguido “beneficia de acompanhamento psiquiátrico desde 17.3.2004 para tratamento de problema de foro sexual que referiu ter aos médicos que o assistem”).
Em qualquer caso, o recurso do arguido AA procederá quanto à verificação, nos apontados termos, da figura do crime continuado, nas pessoas daqueles 3 menores.

Agravação do nº 2 do art. 172º do CP

Contesta o recorrente, em seguida, o conceito de “coito oral” adoptado pelas instâncias, que nele incluíram também a conduta passiva, a excitação do pénis do ofendido com a boca do agente, ou seja, a chamada “fellatio”.
Em seu entender, esta conduta está excluída do âmbito do nº 2 do art. 172º do CP, sendo subsumível antes ao seu nº 1, pois o conceito de “coito” ou de “cópula” só inclui a penetração ou introdução do pénis do agente no corpo da vítima.
Quid juris?
O recorrente foi condenado como autor de dezoito crimes de “abuso sexual de crianças”, conforme o citado art. 172º, nºs 1 e 2 do CP (na versão anterior à Lei nº 59/2007), um na pessoa do menor DD, nove na pessoa do menor CC, quatro na pessoa do menor EE e outros quatro na pessoa do menor LL.
Compulsada a matéria de facto, constata-se que, quanto ao crime cometido contra o menor DD (nº 48), a cinco crimes cometidos contra o menor CC e a todos os crimes cometidos contra o menor EE (nºs 65-67), e também quanto a todos os crimes cometidos contra o menor LL (nºs 104, 108, 111 e 113) o recorrente “limitou-se” a introduzir os pénis dos menores na sua própria boca, “chupando-os”, como vem referido da 1.ª instância.
Como subsumir esta conduta: ao nº 2 ou ao nº 1 do art. 172º do CP?
Preliminarmente, importa recordar que também este artigo foi, efectivamente, alterado pela Lei nº 59/2007, modificação essa que importa analisar.
Era o seguinte o texto dos nºs 1 e 2 do art. 172º do CP, na redacção anterior a essa Lei:

«1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de l a 8 anos.
2. Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
(…)»

Actualmente, a previsão do mesmo crime (“Abuso sexual de crianças”) consta do art. 171º, com a seguinte redacção:

«1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2. Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal ou coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
(…)»

Do confronto das duas redacções parece que não pode deixar de concluir-se que o nº 2 tem agora uma previsão mais extensa, uma vez que, além da cópula, do coito anal e do coito oral, abrange agora a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.
Mas, simultaneamente , esta ampliação típica acaba por delimitar e de alguma forma restringir o conceito de coito oral (e eventualmente o de coito anal). Na verdade, a “equiparação” desses actos à introdução de partes corporais ou de objectos, revela que essa introdução incidirá necessariamente sobre o corpo da vítima, sendo, pois, essa exacta introdução no corpo da vítima que o legislador pretende punir.
Aliás, mesmo sem a alteração legislativa, teria de se entender assim. Com efeito, o que justifica a agravação estabelecida no nº 2 do artigo é precisamente a maior ilicitude que a imposição à vítima da penetração do seu corpo necessariamente envolve.
Desde logo, pelas eventuais (e normais) consequências físicas que pode determinar (dores, lesões). Mas sobretudo pela carga psicológica que o acto envolve.
Na verdade, “ser penetrado sexualmente”, ainda que com consentimento, não é o mesmo que penetrar, do ponto de vista psíquico e simbólico. “Sofrer” a introdução de um membro ou de um objecto no próprio corpo constitui sempre uma invasão da intimidade, uma agressão à esfera mais pessoal e irredutível da pessoa humana, já que o corpo constitui um reduto do mais íntimo da pessoa humana e o suporte da sua personalidade.
Acresce que, simbolicamente, a penetração envolve para o penetrado a assunção de um papel passivo, subordinado, submisso, que desencadeia naturalmente sentimentos de humilhação e de vexame. Por isso, tal acto só é admissível quando praticado consensualmente entre adultos.
É claro que, no tipo legal de crime e nas circunstâncias em análise, quem comanda o acto, quem tem o domínio do facto, é aquele que “sofre” a penetração, mau grado a vítima assuma sexualmente o papel activo. Mas esse é precisamente o pressuposto da ilicitude: que a vítima assuma um papel sexualmente activo porque é isso que o agente quer, para satisfazer o seu desejo sexual, não o da vítima. É em função da vontade do agente que o acto se desenrola. A “superioridade” da vítima é falsa.
Contudo, o acto em si comporta, pelas razões atrás expostas, uma menor lesão para a vítima. E por isso deve ser distinguido daqueles actos em que a vítima é reduzida a um papel puramente passivo.
Na verdade, são completamente diferentes actos, como a “fellatio”, que, sendo com o corpo da vítima, não são no seu corpo, pois não o invadem, antes constituem penetração do corpo do próprio agente. O acto é dentro do corpo do agente, é ele quem sofre a penetração, a invasão do seu corpo, com tudo o que isso pode encerrar de humilhante ou agressivo, limitando-se a vítima a colaborar com ele na realização do seu desejo. O acto não determinará, em princípio, quaisquer consequências físicas no corpo da vítima. Assim, quer do ponto de vista psicológico, quer do ponto de vista simbólico, pelo papel activo que a vítima aí desempenha, não adquire, esse acto, uma carga negativa semelhante ao acto de “ser penetrado”(2).

Em conclusão, é o especial desvalor de ser penetrado que a lei queria punir no nº 2 do art. 172º do CP, na versão anterior à Lei nº 59/2007.
A entender-se que seria antes a participação num acto de penetração, qualquer que fosse o papel assumido pela vítima, estaria a atribuir-se à incriminação a intenção de tutela de um bem jurídico não propriamente individual (focalizado nas consequências que para a vítima resultam do acto), antes social (o valor que é socialmente atribuído aos actos sexuais em que ocorre a penetração, mesmo alheia…), o que não se compagina com a natureza essencialmente individualista ou personalista do direito penal sexual.
Com efeito, e como é consensual, o bem jurídico protegido nos crimes sexuais é a liberdade sexual, ou, na sua dimensão mais intensa, a autodeterminação sexual, e não os valores ético-sociais dominantes.
Excluída se deve entender, pois, e em conclusão, a “fellatio” da previsão típica do nº 2 do art. 172º (versão anterior) ou do nº 2 do art. 171º (versão vigente) do CP.
Consequentemente, há que alterar a qualificação dos factos referidos acima, que integrarão outros tantos crimes do nº 1 do mesmo artigo, com as consequentes repercussões na medida das penas, matéria adiante tratada.

Já os factos descritos nos nºs 52 a 57 da transposta resenha (prática continuada, em quatro ocasiões, de “fellatio” do arguido na pessoa do menor CC e, como bem se colhe do facto n.º 56, do menor na pessoa do arguido) integram indiscutivelmente, tendo em conta o atrás exposto, o crime do art. 172º, nºs 1 e 2 (actualmente art. 171º, nºs 1 e 2) do CP, pelos quais o arguido deverá ser condenado. (3)

Medida concreta das penas/Atenuação especial

Pretende o arguido beneficiar da atenuação especial das penas, prevista no art. 72º do CP, fundado, basicamente, em duas ordens de argumentos. No plano da ilicitude: inserir-se a sua conduta num clima de prostituição a que os menores espontaneamente se dedicavam, não os tendo forçado a manterem as práticas sexuais consigo, nem os intimando ao silêncio;e a idade dos menores, situada no limite da punibilidade; a ausência de consequências para os menores. No plano da culpa: a confissão e o arrependimento; a procura de tratamento para a doença do foro sexual que o compeliria à prática das infracções e a situação de depressão em que se encontraria após a morte do pai.
Analisemos .
É um facto que o arguido recrutou para as suas práticas sexuais menores que se dedicavam à prostituição em lugar geralmente conhecido como sendo frequentado por eles com a finalidade de encontrar “clientes”, o Parque Eduardo VII, em Lisboa (nºs 1 e 2 da matéria de facto). O arguido não “desviou” os menores, não os aliciou para aquelas práticas sexuais, pois eles já estavam disponíveis para praticar esses actos, em troca de remuneração. Este facto, como acentua o recorrente, não obsta à verificação da tipicidade, uma vez que o consentimento é juridicamente irrelevante, mas não pode deixar de constituir uma atenuante de relevo.
Relativamente à idade dos menores, tendo ficado provado que o arguido… “admitiu como possível”… que eles tivessem as idades mencionadas nos autos, não se importando, todavia, com isso (nº 115 da matéria de facto), tanto caracterizando, sempre, inequívoco dolo eventual, não se vislumbra qualquer atenuação da ilicitude pelo facto de as idades estarem próximas do limite mínimo fixado no tipo.
Aspecto relevante já será o da ausência de particulares consequências (negativas) para os menores em resultado da conduta do arguido. Com efeito, na matéria de facto não se refere nenhuma consequência específica para os menores dos comportamentos assumidos pelo arguido. É certo que se provou que um dos menores teve, pela primeira vez, no universo dos adultos, relações sexuais com o arguido, mas nada se refere quanto às consequências desse facto. Repete-se: o arguido conheceu os menores no Parque Eduardo VII, onde eles se encontravam com vista ao exercício da prostituição. Por outro lado, nunca as práticas exercidas pelo arguido com os menores assumiram características agressivas ou desviantes relativamente à “normalidade” do comportamento “contratado”. Não há efectivamente motivos para crer que os menores tenham sofrido sequelas específicas dessas práticas.
Quanto às atenuantes relativas à culpa, só muito parcialmente procedem os argumentos do recorrente.
Na verdade, se a confissão pode dar-se como assente (nºs 243-245 da matéria de facto), já o arrependimento não se provou, o mesmo sucedendo quanto à preocupação pela sorte das vítimas. E igualmente ficou por provar ___ como atrás, a propósito do crime continuado, já se referiu ___, a alegada doença do foro sexual que o compeliria à prática dos factos descritos e consequentemente o impediria de se determinar segundo a avaliação crítica do seu comportamento. Tanto assim, igualmente, quanto à alegada situação depressiva. O que se provou foi apenas que o arguido beneficia de acompanhamento psiquiátrico desde 17/03/2004 “para tratamento de problema do foro sexual que referiu ter aos médicos que o assistem” (nº 242 da matéria de facto). Não se provou, portanto, nenhuma diminuição da capacidade de autodeterminação, nem sequer de avaliação crítica do seu comportamento, nenhuma situação de menor exigibilidade.
Não se verifica, pois, de forma alguma, diminuição acentuada da ilicitude ou da culpa que permita o recurso à atenuação especial da pena, prevista no art.º 72.º do CP.
As atenuantes apuradas deverão, porém, ser consideradas, em termos gerais,
para fixação da medida concreta das penas.

Indemnização civil/Insuficiência da matéria de facto

O arguido foi condenado a pagar aos ofendidos CC e EE as quantias de, respectivamente, € 45.000,00 e € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais, condenação que foi mantida no acórdão recorrido.
Contesta o arguido, como vimos, essa condenação, reputando-a de nula, por violação do art.º 410º, nº 2, alínea a) do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada), já que, em seu entender, apenas ficaram provados os factos ilícitos da sua responsabilidade que tiveram por vítimas os ofendidos, não se indicando factos que possam considerar-se danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos ofendidos, nem o nexo causal entre a sua conduta e esses eventuais danos.
Nos termos do art. 496º do Código Civil, são indemnizáveis os danos não patrimoniais, provocados por facto ilícito, que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. É pacífico que os simples incómodos ou contrariedades são irrelevantes. Mas não assim os danos de carácter físico (lesões, sofrimentos, dores) ou de ordem psíquica (desgosto, ofensa, humilhação, tristeza, depressão, etc.).
Necessário se torna, pois, para responsabilizar alguém por danos não patrimoniais, que se comprove, além da prática de um facto ilícito, que essa conduta causou no ofendido danos dessa natureza. Esses danos, insiste-se, têm de resultar inequivocamente da matéria de facto, não se podem presumir.
Percorrendo a matéria de facto dos autos, constata-se que dela não consta nenhuma referência a quaisquer danos provocados nos demandantes pelos comportamentos do recorrente (que são referidos nos nºs 51 a 70).
Dos pedidos de indemnização formulados pelos demandantes apenas foram considerados provados os factos constantes dos nº 299 a 301, que não contêm nenhuma referência a danos provocados pelo comportamento do arguido.
Ora, não basta, como vimos, a prática de um facto ilícito para constituir o seu autor em responsável civil perante o ofendido; necessário é que se prove que houve danos e que esses danos foram causados por aquele facto ilícito.
Sucede, contudo, que, os pedidos de indemnização civil continham alusões a danos alegadamente sofridos pelos demandantes. Na verdade, sustentou o demandante CC (fls. 2268):

«93. Os arguidos tinham perfeito conhecimento de que os actos de natureza sexual a que submeteram o ofendido prejudicavam o seu normal desenvolvimento físico e psicológico e que influíam negativamente na formação da respectiva personalidade.
94. Actuaram de modo voluntário, livre e consciente, não se preocupando com as consequências das suas condutas, que sabiam ser proibida por lei penal.
95. Com um quotidiano pobre de afectos, de educação, de normas sociais básicas que lhe permitam, no futuro, uma integração comunitária saudável e equilibrada, foi a estrutura de modelação da personalidade e carácter desta criança afectiva e psicologicamente amputada e o seu futuro irremediavelmente comprometido pela conduta criminosa imputada ao arguido. (…)
97. O ofendido nunca mais ao longo da sua vida deixará de sentir em cada instante o seu passado cujos contornos são imputados aos ofensores do modo descrito, que se aproveitaram de uma forma especialmente censurável da situação precária do aqui demandante, da sua inexistência social e da sua idade particularmente vulnerável.»

Tanto o fez, igualmente, nesses mesmos precisos termos, consignados nos art.ºs 32 a 34 e 36 da sua peça, o demandante EE (fls. 2272-2273).

Estes factos, reportados aos danos alegadamente sofridos pelos demandantes, e como tal sustentáculo dos pedidos de indemnização civil por eles formulados, não constam da matéria de facto, nem como provados, nem como não provados.
A Relação, ao apreciar o recurso do arguido, limitou-se a dizer, numa fórmula meramente tabelar, que estavam verificados todos os requisitos da responsabilidade civil.
Verifica-se, pois, a nulidade parcial do acórdão recorrido, nos termos do art. 379º, nº 1, c), 1ª parte, do CPP.
Impor-se-á, portanto, a anulação da decisão recorrida, nesta parte, para que o tribunal aprecie os factos acima mencionados, alegados pelos demandantes, dando-os como provados ou não provados, retirando daí as devidas consequências em termos de direito.

A medida das penas parcelares

Em virtude da desqualificação do crime de abuso sexual de crianças, há que fixar a pena relativamente a cada crime, dentro da moldura do nº 1 do art. 172º (agora 171º) do CP, que é de 1 a 8 anos.
Tendo em conta as circunstâncias agravantes e atenuantes já descritas, sopesadas as exigências de prevenção geral, particularmente fortes neste domínio, bem como de prevenção especial, entende-se ser adequada uma pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um dos crimes em referência, com excepção do crime cometido contra o menor DD, constituído por uma única conduta, cuja pena é fixada em 2 (dois) anos de prisão, penas estas que, sem ultrapassarem a medida da culpa, são suficientes para salvaguardar as exigências preventivas.
Relativamente ao crime do art. 172º, nºs 1 e 2 do CP (actualmente art. 171º, nºs 1 e 2) fixa-se, com base nos mesmos critérios, a pena de 5 (cinco) anos de prisão.

Pena essa que, tal como as demais parcelares que agora ficam definidas, deverá, em princípio, vir a conformar uma pena única privativa de liberdade, considerada a presumível realização, em breve, na 1.ª instância, de cúmulo jurídico e ressalvado, tão só, o desconto da prisão preventiva entretanto suportada: é que, em qualquer das situações sob análise, se evidenciam, do nosso ponto de vista, a par de fortes necessidades de prevenção especial, reportadas a firmes exigências de emenda cívica, acrescidas necessidades de prevenção geral, dada a chocante disseminação de tais práticas sexuais, contra crianças (“…tantas vezes transformadas sem escrúpulo em meros instrumentos de satisfação libidinosa…”, com bem se ajuizou no Ac. do STJ de 08/05/2003, Proc. n.º 1090/03-3.ª; SASTJ, n.º 71, 104), atentando-se, assim, gravemente contra o basilar princípio da protecção da segurança e da autodeterminação sexual das mesmas.

“Sabendo-se que a pena que vai ser efectivamente aplicada não é a pena parcelar, mas a pena conjunta [ora relegada para 1.ª instância], torna-se claro que só relativamente a esta tem sentido pôr a questão da sua substituição” Figueiredo Dias, “As Consequências Jurídicas do Crime”, § 409).

Não se procede, de imediato, ao cúmulo das penas (parcelares) aplicadas ao arguido, porquanto haverá que, previamente, ser decidida a suscitada questão da aplicação da lei nova, ou seja, da Lei nº 59/2007, que alterou nomeadamente o (anterior) art. 175º do CP, questão a decidir em 1ª Instância, tudo assim, conforme se deixou já referido (fls. 32/33).
* * *

RECURSO DO ARGUIDO BB

Coloca este arguido três questões: a inconstitucionalidade do art. 175º do CP (na versão anterior à Lei nº 59/2007); a unificação num crime continuado dos nove crimes do referido art. 175º, pelos quais vem condenado; e a não verificação do crime do art. 176º, nºs 1 e 3 do CP (mesma versão do CP).
As duas primeiras questões estão excluídas do âmbito de cognição do STJ, pelas razões já expostas.

Resta a última questão, a do crime de lenocínio de menores.
Também este tipo legal sofreu alteração com a Lei nº 59/2007. Consta agora do art. 175º do CP (do qual foi destacado o crime de tráfico de menores, anteriormente constante do nº 2 do art. 176º, e agora incluído no art. 160º, nºs 2 e 3).
Era a seguinte a redacção anterior à Lei nº 59/2007:

«1. Quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menor entre 14 e 16 anos, ou a prática por este de actos sexuais de relevo, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos. (…)
3. Se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil, manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima, ou de qualquer outra situação de especial vulnerabilidade, ou se esta for menor de 14 anos, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.»

É a seguinte a redacção actual do art. 175º do CP:

«1. Quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menor é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
2. Se o agente cometer o crime previsto no número anterior:
a) Por meio de violência ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho;
d) Actuando profissionalmente ou com intenção lucrativa;
e) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima;
é punido com pena de prisão de dois a dez anos.»

Como vemos, as modificações legislativas foram no sentido de ampliar a previsão (quanto à idade da vítima e, no referente à agravação, quanto ao abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela), mas também no sentido de restringir essa previsão, ao ser eliminada a referência à prática de actos sexuais de relevo.
Por outro lado, a medida da pena também sofreu uma alteração ligeira no limite mínimo da prevista no n.º 1 (de 6 meses para 1 ano de prisão).
Verifiquemos agora se a factualidade apurada integra essa a infracção.
Ora, os factos respeitantes à mesma são os descritos nos nºs 126 a 138 da transposta matéria. Foi considerado provado, em síntese, que o recorrente ___ que “frequentava”, tal como o menor FF, o Parque Eduardo VII, local onde se conheceram ___ propôs ao menor que vivessem juntos, num quarto de uma pensão, a fim de que este último suportasse as despesas inerentes ao arrendamento do quarto e ao sustento de ambos. O menor aceitou, passando a ser ele, com os rendimentos provenientes do exercício da prostituição, a pagar as despesas com o quarto e com o sustento de ambos. E mais se provou que o recorrente apresentou uma vez o menor a um dos co-arguidos nos autos, PP, para que este mantivesse relações sexuais com o dito companheiro, FF, recebendo em troca € 5, não tendo no entanto chegado a concretizar-se qualquer relação sexual entre esse indivíduo e o menor, apesar de ser essa, inicialmente, a intenção de PP.

Integrarão os factos o crime anteriormente previsto no art. 176, nºs 1 e 3 e agora no art. 175º n.ºs 1 e 2, alínea d), do CP?
Elemento nuclear da infracção é o fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição por menor.
Não suscita grandes dúvidas a interpretação destes conceitos, que se traduzem, o primeiro, na determinação da vontade do menor à prática da prostituição, e os restantes na disponibilização de meios para o seu exercício.(4) Na determinação da vontade deve compreender-se não só a produção da mesma (quando inexistente antes da intervenção do agente), como a sua persistência (mediante essa intervenção).
Terá o recorrente praticado algum desses actos?
Não se pode afirmar que o recorrente tivesse determinado o menor FF a prostituir-se, pois este já se dedicava à prostituição antes de conhecer aquele.
É certo que, quando passaram a viver juntos, foi exclusivamente o menor que sustentou o “casal”, com os rendimentos provenientes da prostituição. Mas, embora esse facto pudesse de alguma forma ter intensificado a necessidade de o menor recorrer à prática de actos sexuais venais, para assim obter maiores rendimentos, não pode ser caracterizado como determinação, já que nenhum indício existe de que, de outra forma, o menor teria abandonado a prostituição.
Por outras palavras, o arguido mais não fez do que aproveitar-se economicamente da actividade desenvolvida pelo menor, vivendo à custa dele, mas esse aproveitamento não integra o elemento típico fomento do exercício da prostituição, constante do tipo legal do crime de lenocínio de menores.
Mas ter-se-á verificado algum acto de favorecimento ou facilitação?
Provou-se de facto, como ficou atrás referido, que o arguido apresentou o menor FF a um terceiro, para com ele manter relações sexuais, recebendo em troca desse “serviço” a quantia de € 5,00 (n.º 131, 132 e 136), sendo que a relação sexual, porém, não se consumou (n.º 133).
Esta “apresentação” constitui sem dúvida um acto de favorecimento da prostituição, pois que, dessa forma, o arguido “recrutou”, esporadicamente embora, um cliente para o menor, dirigindo-se este último e o dito cliente para uma pensão, para a prática de actos sexuais remunerados, que, todavia, não vieram a concretizar-se, por razões desconhecidas.
Estamos, portanto, defronte de uma tentativa de lenocínio, tentativa punível, atento o disposto nos art.ºs 23.º n.º 1e 175.º n.ºs 1 e 2, alínea d) do C.P..
Considerando que se trata de acção pontual e sendo de muito pequena expressão económica a vantagem obtida, entende-se adequada a pena (mínima) de 1 (um) ano de prisão.

Pena essa cuja substituição por sanção pecuniária ou outra qualquer não privativa de liberdade se não decreta, nem se decide neste momento, pela suspensão da respectiva execução, desde logo, por razões idênticas às já consignadas a respeito do tratamento da similar pretensão do co-arguido AA (fls. 46/47), antes tudo isso se negando; tanto assim nesta sede se fazendo, aliás, reforçadamente, visto que, na mesma linha de entendimento ali versada, não teria qualquer sentido apreciar-se se deveria ou não suspender-se ou substituir-se uma pena privativa de liberdade que estivesse ou devesse ter-se por integralmente cumprida, por efeito de desconto da prisão preventiva já suportada.
* * *

DECISÃO

Com base no exposto, e tendo em conta que apenas subsistem, e só parcialmente, os recursos dos arguidos AA e BB, por força da decisão tomada a fls. 5805-5806, e tendo ainda em atenção a necessidade de a 1.ª instância tomar posição nos autos, nos termos do art. 2º do CP, sobre as consequências da alteração introduzida pela Lei nº 59/2007 no quadro legal de punição dos actos sexuais com adolescentes, em especial sobre a eliminação do tipo legal de crime anteriormente previsto no art. 175º do CP, ao abrigo do qual todos os arguidos, recorrentes e não recorrentes, foram condenados, decide-se:

a) Subsumir a factualidade indicada nos nºs 48, 65 a 67, 104, 108, 111 e 113 da matéria de facto ao tipo legal de crime p.p. pelo art. 172º, nº 1 (actualmente, art. 171º, nº 1) do CP;
b) Subsumi-la à figura do crime continuado, quanto aos menores EE e LL (mas não, por se ter tratado de actuação isolada, relativamente ao menor DD);
c) Condenar o arguido AA, por cada um desses dois crimes continuados de abuso sexual de crianças, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, e pelo crime de abuso sexual de crianças cometido contra o ofendido DD, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
d) Manter a subsunção dos factos contidos nos nºs 52 a 57, todos atinentes ainda ao menor CC, ao tipo legal do art. 172º, nºs 1 e 2 do CP (actualmente, art. 171º, nºs 1 e 2), novamente se configurando, aqui, continuação criminosa;
e) Condenar, pela prática de tal infracção (nela incluídos ___ porque integrantes da mesma continuação criminosa ___, os factos n.ºs 65 a 67), o arguido AA, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
f) Anular o acórdão recorrido na parte referente aos pedidos de indemnização civil em que o arguido AA foi condenado, tanto assim, nos termos do art. 379º, nº 1, alínea c), 1ª parte, do CPP, na parte relativa aos danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelos demandantes CC e EE, devendo a 6ª Vara Criminal de Lisboa tomar posição sobre os factos por ambos articulados nas respectivas petições (o primeiro nos nºs 93 a 95 e 97, e o segundo nos nºs 32 a 34 e 36), dando-os como provados ou não provados, e daí retirando as consequências devidas em sede de direito;
g) Julgar improcedente, no mais, o recurso do arguido AA;
h) Conceder provimento parcial ao recurso do arguido BB, condenando-se o mesmo, agora, ___ pela prática de um crime de lenocínio tentado, p.p. pelos art.ºs 175.º n.º 1, 22.º, 23.º n.ºs 1 e 2 e 73.º do C.P. ___ na pena (integralmente expiada ___ se eventualmente isolada ___ por desconto da prisão preventiva) de 1 (um) ano de prisão;
i) Condenar os arguidos AA e BB em 8 (oito) e 5 (cinco) UC de taxa de justiça, respectivamente;
j) Determinar que a 6ª Vara Criminal de Lisboa decida, nos termos do art. 2º do CP, relativamente a todos os arguidos, recorrentes e não recorrentes, quais as consequências a retirar das alterações introduzidas pela Lei nº 59/2007 no quadro legal de punição dos actos sexuais com adolescentes, nomeadamente da eliminação do tipo legal de crime anteriormente previsto no art. 175º do CP, pelo qual todos os arguidos foram condenados, fixando, a final, as pertinentes penas únicas, dado o concurso de penas.

Lisboa, 14 de Maio de 2009

Soares Ramos (relator, por vencimento)

Simas Santos ( acompanhando a declaração de voto do Senhor Conselheiro Santos Carvalho)

Santos Carvalho (com declaração de voto que junto)

Maia Costa (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta)

Carmona da Mota (com voto de desempate, a favor da posiçaõ do relator, a respeito da questão “Agravação no n.º 2 do art. 172.º do CP”)

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(1) É o seguinte o texto desse número: “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.”

(2) Note-se que, no crime de violação (art. 164º do CP), se pune o constrangimento à cópula, coito anal ou coito oral, quer sob a forma passiva (obrigar a sofrer), quer como activa (obrigar a praticar). Aqui, sim, quer a “fellatio”, quer o “cunnilingus” estão abrangidos pela previsão típica, pois está previsto quer o comportamento passivo, quer o activo, do ponto de vista sexual, por parte da vítima. Mas é diferente a redacção do art. 172º, nº 2 (agora art. 171º, nº 2) que apenas fala de cópula, coito anal ou coito oral do agente com menor de 14 anos, de forma que se deve entender que só o comportamento sexualmente passivo (sofrer o coito oral, o que abrange a “fellatio” e o “cunnilingus”) está incluído na previsão típica.

(3) Também aqui as condutas devem ser unificadas como crime continuado, já que se verificam os mesmos pressupostos de facto atrás analisados.

(4) Anabela Miranda Rodrigues, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pp. 524-525.
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DECLARAÇÃO DE VOTO

Fiquei vencido no que respeita à questão de saber se os crimes de abuso sexual de menores cometidos pelo recorrente AA nas pessoas dos menores CC, EE e LL são os do n.º 1 ou os do n.º 2 do art.º 171. do C. Penal.
A doutrina, mesmo a propósito da anterior redacção do então art.º 172.º, n.º 2, defendia tese diferente da do projecto:
Agente pode ser qualquer pessoa, homem ou mulher, os familiares ou mesmo os pais da vítima. Vítima é necessariamente uma criança ou um jovem menor de 14 anos, de qualquer sexo. Tipicamente indiferente é que a vítima seja já ou não sexualmente iniciada, que possua ou não capacidade para entender o acto sexual que nela, com ela ou perante ela se pratica ou se leva a praticar, que lhe caiba uma intervenção activa (mesmo a iniciativa!) ou puramente passiva no processo (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, p. 543, em anotação ao art.º 172.º).
Por outro lado, a razão de ser da agravante não é a penetração, considerada por si própria, mas o enorme relevo que do ponto de vista ético e social têm os actos sexuais em que ocorre a penetração.
Efectivamente, a graduação penal vai desde os actos sexuais de relevo (v.g. coacção sexual e abuso sexual simples de menor) até aos actos sexuais de muito relevo (v.g. violação e abuso sexual agravado de menor), sendo que a diferença entre uns e outros é a existência nestes últimos da penetração. Esta tese foi reforçada com a nova redacção do art.º 171.º, n.º 2, pois agora a penetração pode também ser vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.
Nesta última hipótese (penetração de partes do corpo ou de objectos), é óbvio que a criança tem de estar na posição passiva, pois só nessa hipótese se pode dar relevo à “penetração”. Mas, quando o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral a lei não exige a penetração da criança, mas exigirá uma «penetração», característica de tais actos, pelo que o agente pode estar quer na posição sexualmente activa quer na passiva (a praticar ou a sofrer, na linguagem masculinizada da lei). Note-se que o n.º 2 do actual art.º 171.º do CP reporta-se a um tipo particular dos “actos sexuais de relevo”, referidos no n.º 1, estes «com ou em menor de 14 anos».
No caso do abuso sexual agravado de crianças, a vítima (mesmo quando tenha experiência sexual anterior ou tenha tomado a “iniciativa”) é uma criança - nunca é de mais realçar - pelo que na cópula ou coito com ela o agente é quem tem o domínio efectivo da situação. Por isso, a criança, quer esteja na posição sexualmente activa quer na passiva, acaba sempre por sofrer, sem que propriamente se diga que está a praticar, enquanto que o adulto, homem ou mulher, colocado na posição sexualmente activa ou passiva, está a praticar e não a sofrer.
Aliás, só com esta interpretação é possível estender o crime agravado de abuso sexual a um agente homem ou mulher, em pé de igualdade, enquanto na tese do projecto a mulher só poderia ser autora no caso de penetração vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, pois não poderia ter, para cometer o crime, cópula ou coito com o menor, por impossibilidade física. E a lei penal tem feito um esforço nos últimos anos para não diferenciar o homem e mulher no caso dos crimes sexuais, quer como agentes, quer como vítimas.
É claro, que configurada que seja determinada situação como crime qualificado de abuso sexual de crianças, terá de se dar um relevo atenuativo de carácter geral ao facto da criança não ter sido penetrada, pois essa será uma situação menos dolorosa em termos físicos e psicológicos para ela (1).
Por isso, entendi que se devia manter a qualificação jurídica que já vem da 1ª e da 2ª instâncias quanto aos crimes do art.º 172.º, n.º 2 (agora art.º 171.º, n.º 2).

(1) Ainda assim, deve ser em resultado de perícia, devidamente fundamentada, que se deve determinar qual o grau de perturbação psicológica que uma criança tem quando nas suas primeiras experiências sexuais é aliciado e excitado por um adulto para com ele ter cópula ou coito na posição sexualmente activa. Não podemos descartar a hipótese dessa perturbação ser igual à da criança que, em idêntica situação, é colocado na posição sexualmente passiva. .

Santos Carvalho

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Voto de vencido
Votei vencido quanto à questão do crime continuado, pelas razões que sinteticamente seguem.
Da matéria de facto apurada resulta abundantemente, a meu ver, que não foram os menores que procuraram o arguido AA, que o contactaram, que se lhe ofereceram. Foi o arguido que, depois do primeiro contacto, organizou o processo de promover novos contactos.
Foi, em suma, o arguido, com o objectivo de satisfazer o seu desejo sexual, que procurou os lugares, as pessoas (vítimas), as ocasiões e oportunidades e organizou os meios necessários para concretizar os seus propósitos. Não cedeu, pois, a solicitações externas. Pelo contrário, procurou e organizou as oportunidades propícias para continuar a repetir a conduta ilícita.
Em síntese: a repetição criminosa foi possível porque o arguido promoveu activamente a verificação de novas ocasiões favoráveis para que tal sucedesse.
O facto de alguns dos menores (seguramente o menor CC, possivelmente o menor LL, mas não o menor EE) se dedicarem à prostituição não é relevante, para efeitos de qualificação dos factos como crime continuado, pois apenas o primeiro contacto terá sido facilitado por essa circunstância, mas não os seguintes, que o arguido organizou cuidadosamente, como ficou descrito.
Consequentemente, a meu ver, os factos apurados não permitiriam o enquadramento no crime continuado.
Não existindo continuação criminosa, poderá, no entanto, colocar-se a hipótese de unificar as condutas através da figura do trato sucessivo.
Com efeito, vem-se entendendo jurisprudencialmente que, a par do crime continuado, caracterizado pela cedência sucessiva do agente a uma solicitação exterior, que não domina, não estando portanto os actos subsequentes ao primeiro abrangidos pelo dolo inicial, pode admitir-se a unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que também essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma (uma só) resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente.
É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos sucessivos num só crime. O dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe desde logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização.
Ou seja, tanto no crime continuado, como no crime de trato sucessivo, estamos no plano da unidade criminosa. Mas, enquanto naquele a repetição reflecte uma culpa diminuída, no segundo, a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada, embora dentro do plano da unidade criminosa, insiste-se.
Sendo, pois, a figura do trato sucessivo mais favorável ao agente que a pluralidade de crimes, importa analisar se a conduta do arguido pode ser nela enquadrada.
Perante os factos anteriormente descritos e analisados, não suscitará grandes dúvidas a correcção do enquadramento dos mesmos no trato sucessivo.
Na verdade, o arguido, ao contactar com os menores, pretendia fazer deles seus parceiros sexuais, mantendo com eles relações desse tipo sempre que lhe aprouvesse. E assim de facto procedeu, “convidando” os menores vezes sucessivas para casa ou para o escritório, no quadro de um relacionamento que ele queria e tudo fez para que fosse duradouro, organizando as condições para que tal viesse a suceder.
Sem dúvida que há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas, e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo.
Assim, entendo que o arguido praticou dois crimes do art. 172º, nº 1 do Código Penal (actualmente art. 171º, nº 1), por tantas serem as vítimas (ofendidos EE e LL), praticados não sob a forma continuada, mas em trato sucessivo (a que acresce o crime, também do art. 172º, nº 1, praticado na pessoa do menor Samuel Gomes, contra o qual foi praticado um único acto ilícito, pelo que não se coloca a questão).
O que envolve uma ponderação da medida das penas à luz de uma culpa agravada, e não diminuída.
Atento o circunstancialismo apurado, condenaria o arguido na pena de 4 anos de prisão, por cada um dos crimes cometidos nas pessoas dos ofendidos EE e LL.
Quanto aos factos ilícitos cometidos contra o menor CC (nºs 52-57 e 65-67) integram, a meu ver, um crime do art. 172º, nº 2 (actualmente nº 2) do Código Penal, igualmente sob a forma de trato sucessivo, por se verificar circunstancialismo idêntico ao daquelas infracções.
Por esse crime, condenaria o arguido na pena de 6 anos de prisão.

Maia Costa