Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A356
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PAULO SÁ
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONTRATO DE SEGURO
NULIDADE
ANULABILIDADE
SEGURO OBRIGATÓRIO
SEGURO AUTOMÓVEL
DECLARAÇÃO INEXACTA
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: SJ20080408003561
Data do Acordão: 04/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - A “nulidade” a que se refere o art. 429.º do CCom não é uma nulidade, mas simples anulabilidade, numa situação paralela à dos vícios na formação do contrato (dolo e erro), neste sentido devendo ser interpretado o art. 14.º do DL n.º 522/85.

II - Resultando dos autos que a 1.ª Ré, seguradora, aceitou celebrar com a 2.ª Ré um contrato de seguro, inicialmente para um determinado veículo, tendo posteriormente a mesma apólice sido utilizada para o ciclomotor, cuja condução pelo Réu deu causa ao acidente/atropelamento do Autor, sem que aquela 1.ª Ré tivesse feito qualquer indagação acerca da propriedade do ciclomotor, é de crer que não considerava tal elemento como decisivo na formação da sua vontade contratual.

III - Tendo a 2.ª Ré declarado que era a condutora habitual do ciclomotor ou outros devidamente habilitados, tudo indica que a Ré seguradora sempe teria celebrado o contrato mesmo que soubesse que a 2.ª Ré não seria a condutora habitual, aceitando que o veículo fosse conduzido habitualmente por qualquer condutor habilitado.

IV - Aliás, a invocação de que a falta de verdade da segurada na celebração do contrato se estendeu à falta de habilitação do Réu (relativamente ao qual não se provou que não fosse detentor de licença de condução, mas apenas que não detinha título de habilitação válido) ou do seu consumo imoderado de álcool (com a taxa de 2,95 gr/l) não pode ser atendida como relevante para efeitos da validade e eficácia do contrato de seguro, uma vez que a Ré seguradora não alegou tais factos na contestação, momento em que toda a defesa deve ser deduzida (art. 489.º, n.º 1, do CPC).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. AA propôs, no Tribunal Judicial de Grândola, acção declarativa de condenação, com processo comum sob a forma ordinária, contra Companhia de Seguros T..., SA, BB e CC, na qual peticiona a condenação solidária dos réus ao pagamento ao A. da quantia de € 40.283,34 (quarenta mil duzentos e oitenta e três euros e trinta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de 4%, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu, bem como no pagamento da quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença e correspondente aos danos patrimoniais e não patrimoniais das intervenções cirúrgicas a que irá ainda ser submetido.

Para tanto alega, em síntese:

No dia 1 de Maio de 2002, cerca das 22 horas e 30 minutos, na Estrada Municipal n.º ..., do Concelho de Alcácer do Sal, circulava, no sentido Norte – -Sul, o veículo ciclomotor, com a matrícula 1-...-00-50, conduzido pelo seu proprietário o R. BB, sob influência do álcool (taxa de alcoolemia de 2,95g/l, o qual não possuía licença de condução, e havia transferido a respectiva responsabilidade civil por acidentes de viação para a Ré Companhia de Seguros T... S.A., por contrato titulado pela apólice n.º ..., titulado por sua mãe a R. CC.
Nessa ocasião, o R. BB saiu cerca de 20 centímetros para fora da respectiva faixa de rodagem, invadiu a faixa de terreno que lhe é adjacente e foi colidir contra o peão AA que por esta caminhava.
Da colisão resultaram para o A. estragos na sua indumentária e ferimentos graves, pelos quais foi e terá futuramente que ser submetido a intervenções cirúrgicas e que lhe causaram dores e limitações definitivas de movimentos que o impedem de exercer o seu trabalho na agricultura e depressão.

Regularmente citados, contestou a Ré seguradora, por excepção, invocando a nulidade do contrato de seguro que celebrou com a ré CC, por esta nada ter declarado sobre a propriedade do veículo (do R. BB, com 18 anos de idade) e posteriormente ter substituído o veículo inicialmente seguro por outro, declarando ser ela a condutora habitual, bem como outros habilitados. E contestou, também, por impugnação.

A Ré CC contestou, igualmente, por excepção e impugnação.
Respondeu o Autor à contestação da Ré seguradora, reafirmando a legitimidade desta ré e requerendo a intervenção provocada do Fundo de Garantia Automóvel.

Admitida tal intervenção, contestou o Fundo de Garantia Automóvel, excepcionando a sua legitimidade e por impugnação.

O Hospital Ortopédico Santiago do Outão deduziu incidente de intervenção principal activa, que foi deferido, peticionando a condenação da seguradora ré a pagar-lhe a quantia de 12.343,94 euros, relativa à assistência prestada ao A. AA, em consequência do acidente, acrescida dos juros vencidos, desde a data da citação, até à data do efectivo pagamento.

Proferido despacho saneador, no qual se julgaram as partes dotadas de legitimidade e se organizou a matéria assente e a base instrutória.

Agendado e realizado julgamento, com observância do formalismo legal, respondeu-se à matéria de facto, sem que tivesse havido reclamações.

A final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:
Condenar a Ré Companhia de Seguros T..., SA, a pagar ao A. a quantia de quinze mil e quinhentos euros, a título de danos morais, e de trezentos e setenta e nove e cinquenta e um cêntimos, a título de danos patrimoniais, acrescida dos respectivos juros à taxa de 4%, a contar desde a data da citação; o montante a liquidar em sede de execução de sentença relativo às quantias que o autor deixou de auferir como resineiro, entre a data do acidente (1-05-2002) e a data da referida decisão e às quantias que deixará de auferir entre esta data e a data em que era previsível que cessasse a sua capacidade laboral, bem como nos juros respectivos.
Condenar a Ré Companhia de Seguros T..., SA, a pagar ao Hospital Ortopédico Santiago do Outão a quantia de € 12.343,94 euros. (A esta quantia acrescem juros vencidos desde a data da citação, à taxa de 1% ao mês, nos termos do artº 3º do Decreto-Lei 73/99 de 16 de Março de 1969, conjugado com a al. b) do nº 2 da Base XXXIII da Lei 48/90 de 24 de Agosto, até à data do efectivo pagamento).
– Absolver a ré seguradora do pagamento ao A. da quantia relativa aos danos patrimoniais e não patrimoniais relacionados com intervenções cirúrgicas futuras.
– Absolver os réus BB e CC, bem como o Fundo de Garantia Automóvel dos pedidos contra os mesmos formulados.

Recorreu, de apelação, a R. seguradora, tendo a Relação de Évora julgado parcialmente procedente o recurso apresentado e, em consequência, revogado a decisão recorrida no segmento em que condenou a Ré seguradora a pagar indemnização a liquidar em execução de sentença, pelos danos patrimoniais futuros do A., ou seja, posteriores à data da sentença, mas confirmá-la quanto à condenação indemnizatória, em quantia a liquidar em execução, pelos danos patrimoniais, desde a data do acidente até àquela data e, em confirmá-la, também, quanto à parte restante.

Desta decisão recorre, de novo, a R. seguradora, de revista, para este STJ, recurso que foi admitido.

A recorrente conclui as suas alegações do seguinte modo:

1º A Apólice n.º ... foi obtida através de falsas declarações, sem as quais o contrato não seria aceite;
2º Qualquer seguro é, ou não, concretizado após prévia estimativa dos riscos que acarreta;
3º Pela segurada foi omitido que o veículo não lhe pertencia, mas sim a seu filho, que não tinha carta ou licença de condução e consumia álcool em excesso, como decorre do auto de notícia da GNR;
4º A situação de falsas declarações, caracterizadamente fraudulentas, decorre do disposto nos art.ºs 236º, 240º, n.ºs 1 e 2, 244º e 245° do Código Civil e 428° e 429° do Código Comercial;
5º As reiteradas falsas declarações da segurada conduziram à aceitação do seguro, por não terem permitido uma correcta avaliação do risco;
6º Jamais seria aceite um seguro de motociclo conduzido por um não encartado e, para mais, consumidor excessivo de álcool;
7º Acresce que foi omitida à recorrente que o veículo pertencia ao co-R. BB e não à segurada, como decorre do auto de notícia da GNR;
8º O seguro foi celebrado com omissão fraudulenta de circunstâncias essenciais, como a propriedade do veículo e a condução sem habilitações;
9º Está provada a conexão directa entre as falsas declarações e as circunstâncias que determinaram o evento;
10º Assim, o seguro foi celebrado com o vício da respectiva nulidade, face ao disposto nos já citados art°s. 428º e 429º do Código Comercial, que são inafastáveis;
11º Não há que distinguir nulidade e anulabilidade face ao texto legal e às circunstâncias averiguadas, sendo inadequadas analogias com outros diplomas;
12º O que está em causa não é o montante do prémio, mas sim os pressupostos de aceitação do contrato, que não foram transmitidos à recorrente;
13º Não é legítimo confundir o cálculo do prémio com os pressupostos de aceitação dum contrato de seguro;
14º Não está minimamente em causa a função social do seguro, uma vez que o Fundo de Garantia Automóvel foi criado, com a participação das seguradoras, para suprir a inexistência material de seguros válidos;
15º Foi, portanto, inobservado o estabelecido no art.º 22º do D.L. 522/85, de 31.12., pois a função social do seguro é, em primeira linha, assegurada pelo Fundo de Garantia Automóvel;
16º Nestes termos, o douto Acórdão recorrido fez errada aplicação dos factos e violou o disposto nas disposições invocadas nas conclusões 4ª, 10ª e 15ª da presente alegação;
17º Nestes termos, deve ser concedido provimento à revista, revogando-se o douto Acórdão impugnado e absolvendo-se a recorrente do pedido.

O A. R. apresentou contra-alegações ao recurso da R. seguradora, pugnando pela sua improcedência e o mesmo fez o FGA, que requereu, que, na hipótese de procedência do recurso da R. T..., se ampliasse o âmbito do recurso, nos termos do artigo 684.º-A do Código de Processo Civil, às questões da condenação por lucros cessantes e danos patrimoniais futuros e à questão da condenação ultra petitum.

II. Fundamentação

De Facto

II.A. São os seguintes os factos dados como provados, face ao oportunamente especificado e ao resultado do julgamento:

a) Entre a Ré Seguradora e CC celebrou-se um acordo, titulado pela apólice n.º ..., pelo qual ficava transferido para a primeira, a responsabilidade civil por acidentes relativos ao ciclomotor 1-...-00-50 (alínea a) dos factos assentes).
b) No dia 1 de Maio de 2002, cerca das 22 horas e 30 minutos, na estrada municipal 543, do concelho de Alcácer do Sal, Distrito de Setúbal, ocorreu um sinistro (resposta ao artigo 1º da base instrutória).
c) Foram intervenientes o veículo ciclomotor, com a matrícula 1-...-00-50, conduzido por BB, por ele conduzido na altura do acidente e o peão AA, ora A (resposta ao artigo 2º da base instrutória).
d) O veículo ciclomotor, conduzido pelo R., BB, circulava na Estrada Municipal n.º 543, no sentido NorteSul e o peão circulava na berma da estrada (resposta ao artigo 3º da base instrutória).
e) O ciclomotor foi embater no autor (resposta ao artigo 4º da base instrutória).
f) Em consequência do embate, o A, foi projectado no ar e caiu numa valeta com um desnível aproximado de 2 metros (resposta ao artigo 5º da base instrutória).
g) O réu foi submetido no local ao teste qualitativo de álcool no sangue pelo aparelho SD2, e acusou um resultado positivo (resposta ao artigo 6º da base instrutória).
h) Foi efectuada recolha de sangue no Centro de Saúde de Grândola e efectuou-se análise quantitativa no I.M.L. que revelou uma taxa de 2,95 gr/I de álcool no sangue (resposta ao artigo 7º da base instrutória).
i) O R. não possuía licença de condução válida para conduzir o ciclomotor (resposta ao artigo 8º da base instrutória).
j) Em consequência do acidente, o A foi transportado para o Centro de Saúde de Grândola, onde lhe foi diagnosticado fractura exposta com perda óssea da perna direita e fractura da perna esquerda, ferida com perda de substância da mão direita (resposta ao artigo 9º da base instrutória).
l) O A. foi, de imediato, transferido para o Hospital de São Bernardo Setúbal onde teve perda de conhecimento (resposta ao artigo 10º da base instrutória).
m) Foi reanimado e aí permaneceu toda a noite (resposta ao artigo 11º da base instrutória).
n) No dia seguinte 02.05.2002 deu entrada no Hospital Ortopédico Santiago do Outão (resposta ao artigo 12º da base instrutória).
o) Em virtude do atropelamento, o A. sofreu fractura exposta dos ossos da perna direita e fractura dos ossos da perna esquerda (resposta ao artigo 13º da base instrutória).
p) Foi operado no dia 08.05.2002, com encavilhamento fechado da tíbia com 2 varetas de Rush a ambos os membros inferiores (resposta ao artigo 14º da base instrutória).
q) Em 07.06.2002, o A. teve alta e passou a ser seguido em consulta externa (resposta ao artigo 15º da base instrutória).
r) Foi reinternado no dia 13.06.2002, por apresentar ferida infectada na tíbia direita e efectuou antibioterapia e pensos diários (resposta ao artigo 16º da base instrutória).
s) Em 17.07.2002 foi novamente operado e colocado enxerto livre de pele (resposta ao artigo 17º da base instrutória).
t) Em 12.08.2002 apresentava boa evolução (resposta ao artigo 18º da base instrutória).
u) O A. teve alta a 02.08.2002, mantendo-se em regime ambulatório (resposta ao artigo 19º da base instrutória).
v) Em 26.11.2002 o A. foi novamente reinternado e operado no dia seguinte 27.11.2002 para reintrodução de varetas de Rush (resposta ao artigo 20º da base instrutória).
x) A partir de 27.11.02 tem-se mantido em regime ambulatório resposta ao artigo 21º da base instrutória).
z) As lesões físicas sofridas em virtude do atropelamento, causaram-lhe uma incapacidade geral temporária total desde 02/05/2002 a 07/06/2002 1 mês e 5 dias e desde 13/06/2002 a 02/08/2002 1 mês e 20 dias, como consta do relatório médico do Hospital Ortopédico de Santiago do Outão (resposta ao artigo 22º da base instrutória).
aa) Durante estes períodos começou a dar pequenos passos, a deambular com andarilho, iniciando marcha com canadiana e muletas (resposta ao artigo 23º da base instrutória).
bb) Para se deslocar, o A. recorria ao uso das muletas, por não ter força nas pernas, designadamente na perna direita (resposta ao artigo 24º da base instrutória).
cc) O A. precisava de ser ajudado pela sua mãe, nomeadamente para lavar os pés, calçar peúgas e sapatos (resposta ao artigo 25º da base instrutória).
dd) O autor vivia com os pais e ainda hoje vive com a mãe, pessoa idosa e doente (resposta ao artigo 26º da base instrutória).
ee) Em 12/08/2002, o médico aconselhou a marcação de uma consulta de fisiatria e tratamentos com carácter de urgência (resposta ao artigo 27º da base instrutória).
ff) O A. efectuou consulta de fisiatria no Centro de Saúde de Grândola (resposta ao artigo 28º da base instrutória).
gg) Por indicação do médico do Hospital do Outão, começou a fazer fisioterapia em Santiago do Cacém no consultório do Dr. J...B..., para onde se deslocava de ambulância (resposta ao artigo 29º da base instrutória).
hh) O A. foi, por diversas vezes, a consultas externas ao Hospital do Outão, onde teve de suportar as taxas moderadoras e os pedidos de radiografias, no montante de € 18,50 (resposta ao artigo 30º da base instrutória).
ii) O A. pagou consultas e meios complementares de diagnóstico através do Centro de Saúde de Grândola no montante de € 12,00 e € 216,00 (resposta ao artigo 31º da base instrutória).
jj) O A. esteve sem trabalhar desde a data do acidente até ao fim da fisioterapia (resposta ao artigo 32º da base instrutória).
ll) O A. desde a data do acidente 01.05.02 e até ao presente momento jamais trabalhou (resposta ao artigo 34º da base instrutória).
mm) Em virtude do sinistro, o A. ficou com grandes e feias cicatrizes (resposta ao artigo 35º da base instrutória).
nn) Em consequência do acidente, ficaram destruídas as calças do A., no montante de € 14,96, camisa no montante de € 18,00, camisola no montante de € 24,98 e sapatos no montante de € 30,00 (resposta ao artigo 36º da base instrutória).
oo) No ano do acidente o autor ia prestar serviço sazonal como resineiro, por conta de DD (resposta ao artigo 37º da base instrutória).
pp) O AA tinha à data do acidente 39 anos (resposta ao artigo 38º da base instrutória).
qq) O autor continua nos dias de hoje, com queixas, designadamente, dores nas pernas direita e esquerda, dificuldade em inclinar o corpo para baixo flectindo os joelhos e em manter-se na posição vertical (resposta ao artigo 39º da base instrutória).
rr) O autor sente-se triste (resposta ao artigo 40º da base instrutória).
ss) O autor usou medicação, no que despendeu € 45,07 (resposta ao artigo 42º da base instrutória).
tt) A Ré CC assinou a proposta de seguro em 01.07.96 e nada declarou sobre a propriedade do ciclomotor (resposta ao artigo 44º da base instrutória).
uu) A celebração do contrato de seguro pelo R. BB tornava-o mais oneroso (resposta ao artigo 45º da base instrutória).
vv) Em 10.01.98 a R, CC substituiu o veículo indicado na apólice pelo ciclomotor 1-...--00-50 subscrevendo nova apólice de seguro (resposta ao artigo 46º da base instrutória).
zz) Nessa proposta a R, CC declarou ser condutora habitual ou outros devidamente habilitados (resposta ao artigo 47º da base instrutória).
aaa) O Hospital Ortopédico Santiago do Outão prestou assistência ao A., computada em € 12.343,94 euros (resposta ao artigo 48º da base instrutória).

II.B. De Direito

Suscita a recorrente a seguinte questão:

a) nulidade do contrato de seguro.

Na hipótese de proceder tal pedido terão que ser apreciadas as questões suscitadas pelo FGA que são:

b) condenação por danos patrimoniais futuros
c) juros de mora a aplicar às dívidas hospitalares.

II.B.1. A ré seguradora defende a nulidade do contrato de seguro, nos termos do artigo 429.º do Código Comercial e, que tal vício implica necessariamente a sua irresponsabilidade no tocante ao ressarcimento dos danos causados pela circulação do veículo.

Resultou, efectivamente, dos autos que:

Entre a Ré Seguradora e CC se celebrou um acordo, titulado pela apólice n.º 4101461463, pelo qual ficava transferido para a primeira, a responsabilidade civil por acidentes relativos ao ciclomotor 1-...--00-50.

O réu, BB não possuía licença de condução válida para conduzir o ciclomotor e, aquando da ocorrência do acidente, era portador de uma taxa de álcool no sangue de 2, 95 g/l.

CC, mãe do réu BB e que foi a subscritora do referenciado contrato de seguro, nada declarou sobre a propriedade do ciclomotor e declarou ser a condutora habitual do referido veículo ou outros devidamente habilitados.

Está em causa a aplicação ao caso vertente do artigo 429.º do Código Comercial, que dispõe:

“Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.

Por outro lado, o artigo 14.º do D.L. nº 522/85 (seguro obrigatório), de 31 de Dezembro, estipula o seguinte:

“Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato (…), ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro”.

Antes de abordarmos a questão da interpretação e aplicação das normas em causa, importa fazer ainda algumas considerações complementares sobre a matéria de facto.

Resulta dos autos que a ré CC, aquando da celebração do contrato de seguro nada declarou sobre a propriedade do ciclomotor seguro, tendo ainda referido ser a condutora habitual do referido veículo ou outros devidamente habilitados.

No entendimento da primeira instância que a Relação não questionou, a omissão da ré CC sobre a titularidade do veículo não pode sequer ser considerada uma falsa declaração. Na verdade, tudo indica que a ré seguradora, aceitou a celebração do referido contrato, sem sequer ter tido acesso à documentação comprovativa da propriedade do ciclomotor, sendo relevante invocar o facto de que o contrato de seguro se fez inicialmente para um determinado veículo e que, posteriormente, a mesma apólice foi utilizada para um outro.

A ré seguradora, ao agir desta forma, descurou a indagação de um elemento importante, dando azo a considerar que, para ela, tal facto não era elemento decisivo na formação da sua vontade contratual.

De igual modo, resulta do processo que a ré seguradora sempre teria celebrado o contrato, mesmo que soubesse que a Ré CC não seria a condutora habitual, aceitando que o veículo fosse conduzido habitualmente por qualquer condutor habilitado.

Também não está demonstrado que a omissão de declaração sobre a propriedade do veículo visasse ocultar a falta de habilitação do seu proprietário, sendo certo que nem sequer se provou que o réu BB não fosse detentor de licença de condução, mas apenas que não detinha título de habilitação válido.

Aliás, a invocação de que a falta de verdade da segurada na celebração do contrato se estendeu à falta de habilitação do Réu BB ou do seu consumo imoderado de álcool não pode ser atendida como relevante para efeitos da validade e eficácia do contrato de seguro, uma vez que a seguradora não alegou tais factos na contestação, momento em que toda a defesa deve ser deduzida (artigo 489.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), salvo nos incidentes que, nos termos legais devam ser deduzidos separadamente, excepção que não se aplica ao caso vertente.

Consequentemente, a única falta imputada à ré CC é a de ter omitido a declaração de ser proprietária.

A natureza do vício referido no artigo 429.º do Código Comercial, já se encontra amplamente debatida e reúne consenso ao mais alto nível da nossa doutrina (MOITINHO DE ALMEIDA, O Contrato de Seguro, p. 61, nota 29; JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro, p. 379) e da jurisprudência (além de outros a que adiante se fará referência, o Ac. do STJ de 10.5.01, CJSTJ, IX, 2º, 60 e o Ac. do STJ de 4.3.04, CJSTJ, XII, 1º, 102).

Tal consenso é assinalado na decisão da 1.ª instância, que, de seguida, cita, como exemplo, o acórdão deste Tribunal, relatado pelo Sr. Conselheiro Moitinho de Almeida, em 18.12.2002, proc. 02B3891, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual:

“Tudo está, pois, em saber se a "nulidade" prevista no artigo 429º do Código Comercial, resultante de falsas declarações sobre o risco, deve ser considerada "nulidade" para efeitos do disposto naquele preceito.
A este respeito importa observar que o seguro obrigatório automóvel destina-se a garantir o ressarcimento dos lesados em consequência de acidentes de trânsito. Imperativas razões de ordem social impõem que a reparação das vítimas seja rápida e segura, isto é, que não haja dúvidas quanto à pessoa do responsável, que o processo a seguir seja célere e que a efectiva indemnização não seja posta em causa pela insolvabilidade do causador do acidente.
Estas exigências impõem um seguro obrigatório em que a responsabilidade é garantida pela seguradora, salvo nos casos excepcionais em que a garantia é assumida pelo Fundo de Garantia.
Daí que nos regimes do seguro obrigatório se encontre amplamente consagrado o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais. Assim, a Convenção de Estrasburgo de 20 de Abril de 1959 já o contemplava ao determinar que "O segurador não pode opor à pessoa lesada a nulidade ou a cessação do contrato, a sua suspensão ou a da garantia, a menos que se trate de sinistros ocorridos finda a expiração do prazo de 16 dias seguintes à notificação pelo segurador da nulidade, cessação ou suspensão" (artigo 9º, nº 2).
Preceito semelhante encontra-se, por exemplo, na lei italiana nº 990, de 24 de Dezembro de 1969: "dentro do máximo garantido na apólice o segurador não pode opor ao lesado, que o demanda directamente, excepções derivadas do contrato, nem cláusulas que prevejam eventual participação do segurado no ressarcimento do dano. O segurador beneficia contudo de direito de regresso contra o segurado na medida em que teria contratualmente direito de recusar ou de reduzir a própria prestação".
Também o artigo 76º da Lei do Contrato de Seguro espanhola, estabelece que a acção directa "está isenta das excepções que o segurador disponha contra o segurado", e o artigo 13º da lei belga de 1 de Julho de 1956 segue a mesma orientação.
É certo que estas disposições têm sido interpretadas no sentido de que a nulidade (absoluta) do contrato de seguro é sempre oponível aos lesados (Antonio La Torre, Le Assicurazioni, L´Assicurazione nei Codici, Le Assicurazioni Obligatorie, Milão 2000, p.714, J. Boquera Matarredona, J.Bataller Grau e J.Olavarría Iglesia, Comentarios a la Ley de Contrato de Seguro, Valencia, 2002 p. 849). Mas, o vício do contrato resultante de falsas declarações sobre o risco por parte do tomador do seguro gera nas legislações referidas mera anulabilidade.
Tem-se no nosso país entendido que a "nulidade" a que se refere o artigo 429º do Código Comercial não é uma nulidade mas simples anulabilidade. Com efeito, a nulidade é um vício do contrato imposto pela salvaguarda do interesse geral, o que no caso de falsas declarações quanto ao risco se não verifica: estamos aqui numa situação paralela à dos vícios na formação do contrato (dolo e erro) que determinam mera anulabilidade.
E é neste sentido que deve ser interpretado o artigo 14º do Decreto-Lei nº 522/85.
Tal interpretação, que faz coincidir o nosso ordenamento jurídico com os acima referidos, é ainda imposta pela finalidade do seguro obrigatório: um regime que faça depender a determinação do responsável de eventual nulidade resultante de falsas declarações sobre o risco seria fonte de incerteza para os lesados quanto à forma de jurisdicionalmente exercerem os respectivos direitos. Os atrasos que daí resultariam, e o caso dos autos é disso um exemplo, afectariam de modo intolerável a protecção jurídica das vítimas de acidentes de circulação”.

No mesmo sentido, vêm citados, de seguida, outros acórdãos deste Tribunal: de 20.10.2005, proc. 05B2347 (Conselheiro Oliveira Barros), de 08.06.2006, proc. 06A1435 (Conselheiro Azevedo Ramos) e de 12.09.2006, proc. 06A2276 (Conselheiro Alves Velho), disponíveis em www.dgsi.pt.

A estes se aditam os acórdãos de 14.11.06, proc. 06A3465 (Conselheiro Alves Velho) e o de 06.11.07, proc. 07A3447 (Conselheiro Nuno Cameira), igualmente disponíveis no sítio atrás referido.

Deste último permitimo-nos citar um longo excerto, por ser idêntica a situação aí contemplada à dos presentes autos:

“A natureza particular dos interesses em presença, por um lado, e a inexistência de violação de qualquer norma imperativa, por outro, justificam que deva ser a anulabilidade a consequência jurídica associada à emissão de declarações inexactas ou reticentes do segurado, passíveis de influir na existência ou nas condições do contrato de seguro. A tudo acresce que tal sanção se harmoniza por completo com a estabelecida em geral para os vícios na formação da vontade – art.ºs 247º e 251º a 257º do Código Civil; e sendo certo que o art.º 429º do C. Comercial integra um caso da espécie erro do declaratário, não se vê que deva merecer um tratamento diverso do previsto para tal vício (citados art.ºs 247º e 251º), tendo presente, além do exposto, que as normas devem ser interpretadas ponderando a unidade do sistema jurídico, cânone interpretativo destacado logo no nº 1 do art.º 9º do CC.
Também resulta claramente do texto legal que não é uma qualquer declaração inexacta ou reticente que pode desencadear a possibilidade de anulação do seguro. Conforme vem sendo entendido maioritariamente, torna-se indispensável que as declarações inexactas ou reticentes influam na existência e nas condições do contrato, de sorte que o segurador, se as conhecesse, não contrataria ou teria contratado em diversas condições.
Ora, no caso presente apenas se provou que à data da celebração do seguro FF não era proprietário do veículo (…), facto que manifestamente não se integra na previsão do art.º 429º do C. Comercial. De resto, como bem se observa na sentença, o encargo que recai sobre o tomador do seguro de declarar o risco sem omissões, reticências ou inexactidões envolve de igual modo a seguradora, “que não pode abandonar-se totalmente às declarações do proponente com o fundamento de que a sanção legal a protegerá das declarações erróneas, devendo entender-se que sobre ela impende, no mínimo, o dever de sindicar as respostas que o tomador dá aquando da proposta de seguro ao questionário, ou o seu não preenchimento. A questão da propriedade é de fácil indagação, na medida em que basta exigir o título de registo de propriedade. No caso dos autos, não faz sentido que a ré pretenda prevalecer-se de uma declaração inexacta de tão fácil indagação ” (…).
Portanto, não tendo a ré seguradora provado, como lhe competia – art.º 342º, nº 2, do CC – que não teria celebrado o contrato de seguro se conhecesse a verdadeira identidade do condutor habitual do veículo (…), ou que, conhecendo tal identidade, teria contratado em condições diversas (exigindo, por exemplo, prémio diferente do convencionado), não pode deixar de decair na excepção que opôs à validade do seguro, como as instâncias decidiram.
Deve, contudo, sublinhar-se ainda o seguinte: mesmo que se entendesse, perante o disposto no art.º 429º do C. Comercial, que o seguro era anulável, essa anulabilidade seria inoponível aos recorridos, face ao art.º 14º do DL 522/85, de 31/12, que dispõe: “Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora só pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro”. Desta norma infere-se que no âmbito do seguro obrigatório a seguradora não pode livrar-se da sua obrigação perante o lesado mediante a invocação duma mera anulabilidade não prevista no DL 522/85, como é o caso, justamente, da consagrada no art.º 429º do C. Comercial. E compreende-se que assim seja porque a instituição do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel teve em vista, como medida de relevante alcance social, a protecção directa (e célere) dos legítimos interesses e direitos das pessoas lesadas em consequência de acidentes de viação, o que postula um seguro em que, sendo a responsabilidade, em regra, garantida pela seguradora (e, excepcionalmente, pelo FGA), vigore com a máxima amplitude o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais, do que resulta que só a nulidade, não a anulabilidade, do contrato de seguro possa ser oposta aos lesados em acidente de viação, nos termos do citado art.º 14º do DL 522/85.”

Temos, pois, por isenta de censura a parte da decisão recorrida de que a seguradora recorreu.

A improcedência deste recurso dispensa-nos de conhecer das questões suscitadas pelo FGA, em sede de ampliação do recurso.


III. Pelo exposto, acordam em negar provimento à revista, confirmando-se o acórdão da Relação.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 08 de Abril de 2008
Paulo Sá (Relator)
Mário Cruz
Garcia Calejo