Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
291/11.1TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: DUPLA CONFORME
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Galvão Telles, Obrigações, 2.ª ed., 328.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGO 671.º, N.º3.
LEI N.º 4/2013: - ARTIGO 7.º, N.º1.
Sumário :

I - Se a decisão de 1ª instância foi proferida antes da entrada em vigor do novo CPC e a decisão da Relação depois de estar em vigor este Código, para efeitos de verificação de ocorrência de dupla conforme, aplica-se a nova legislação, porque é aquela de aplicação imediata e só no momento da prolação da decisão da 2ª instância é que se coloca a referida questão da dupla conforme. II - Embora para «efeitos práticos» possa existir dupla conforme, entre uma absolvição total e uma condenação parcial, na medida em que, há uma zona de coincidência entre as decisões, face à nova lei, não ocorre essa dupla conforme, uma vez que os fundamentos de uma e outra decisão não possam ser considerados essencialmente idênticos. III - As cautelas necessárias ao consumir peixe, devido à natureza deste produto alimentar, nomeadamente por conter espinhas, não podem ser invocadas para o facto de o consumidor ter ficado lesado por uma anzol que se encontrava integrado no mesmo produto.IV - Não é exigível ao consumidor que preveja a presença desse anzol. V - O estabelecimento comercial retalhista que vendeu o peixe onde existia invisível um anzol, incorre na obrigação de reparar as lesões que daí advierem para o consumidor.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

           I

AA moveu a presente acção ordinária contra BB- Distribuição Alimentar, S.A. CC, Lda. e DD SA Sucursal em Portugal, pedindo:

condenação solidária no pagamento de: € 2.700,00, por danos patrimoniais; € 60.000,00, por danos não patrimoniais, quantia a que acrescem juros de mora vencidos no valor de €4.856,00 e vincendos, até integral e efectivo pagamento, bem como em danos futuros a liquidar em execução de sentença.

Alega, em resumo, que em 29.1.2009, adquiriu na loja da primeira ré um peixe-espada fresco; ao consumi-lo depois de cozinhado, espetou na boca um anzol que se encontrava na posta do peixe, o que lhe causou danos, cujo ressarcimento pede nesta sede.

A segunda ré foi demandada na sua qualidade de fornecedora/produtora.

As rés contestaram.

A ré BB referiu que seria impossível, não obstante todos os cuidados, verificar a existência de um anzol alojado no interior do peixe; tendo em conta as verificações que leva a efeito ao pescado e as especiais cautelas que tem, quer por si, quer pelo seu fornecedor, não é sequer de considerar um comportamento negligente, pelo que a presente acção terá de improceder.

Requereu a intervenção principal provocada de "DD, S.A., Sucursal em Portugal", por via de um contrato de seguro celebrado e que tem por objecto a responsabilidade civil extracontratual emergente da sua actividade comercial e/ou industrial e dos seus produtos. Nos termos de tal contrato, a DD garante o pagamento das indemnizações legalmente exigíveis ao segurado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais ou materiais causados a terceiros.

A ré CC defendeu-se por excepção: o autor para fazer valer os seus direitos de consumidor, teria de ter denunciado o alegado defeito do peixe, perante a ré, no prazo de dois meses; a ré só teve conhecimento do sucedido através da carta junta à petição inicial de 6.4.2009 e que foi recebida pela ré em data posterior à dela constante;

Encontra-se extinto por caducidade o direito que o A. reclama.

Por impugnação, alegou, que o peixe que comercializa é sujeito a várias verificações e inspecções de qualidade; encontrando-se o anzol alojado na massa muscular do peixe, no seu interior, apenas ao consumidor é possível detectá-lo aquando da sua preparação e confecção.

Conclui, pedindo, a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.
O autor replicou, alegando que a denúncia foi feita em prazo, porém, foi-o à primeira ré, já que a segunda ré só pode ser contactada por informação da primeira ré;
Foi admitida a intervenção principal, porém a título acessório e ordenada a citação da interveniente, que alterou a sua denominação para "EE, SA-Sucursal em Portugal"

Veio a mesma contestar, alegando que o contrato de seguro não cobre a responsabilidade contratual do BB por incumprimento definitivo ou cumprimento defeituoso de um contrato de venda de bens de consumo ao autor, sendo por essa vertente que o autor caracteriza a sua pretensão.

A entender-se que a factualidade invocada integra matéria de responsabilidade civil por dano causado por produto defeituoso a R. BB apenas se há-de considerar produtor aparente enquanto vendedora do produto em causa. Conclui, pedindo a improcedência da acção.

O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento,

Foi proferida sentença que concluiu pela improcedência da acção.

Apelou o autor.

A ré CC requereu ampliação do recurso, quanto à matéria de facto.

O Tribunal da Relação proferiu a seguinte decisão:


Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, concedendo parcial provimento à apelação, altera-se a decisão recorrida e, em consequência condena-se:

(a) - a R. BB a pagar ao A. a quantia de €5.000 e

(b)- a R. seguradora, a pagar-lhe a quantia de €350, num total de €5.350

(c)-mais vão as RR condenadas a pagar ao A. os juros de mora que serão contados à taxa legal do seguinte modo:

- sobre o montante de €350, desde a data do acidente;
- sobre o montante de €5.000, desde a data desta decisão, tudo na proporção das respectivas condenações.

Custas pelas RR. e pelo apelante, na proporção do vencimento.

    Recorre novamente o autor, o qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes conclusões:

1 A culpa do lesado não era questão a resolver, por não alegada, nem provada não podendo decidi-la o acórdão recorrido.

 2 Decidi-la com base em presunção judicial é ilegal, por se reportar à experiência comum e não à prova testemunhal, acrescendo que não se reporta à experiência concreta do julgador.

      Corridos os vistos legais, cumpre decidir.  

           II

           Vêm dados por provados os seguintes factos:


1. Em 29.1.2009, pelas 17hl9m foi adquirido na loja da primeira R., na ..., em Lisboa, entre outros produtos, peixe-espada fresco;
2. Com data de 30 de Janeiro de 2009, o A. enviou à primeira R. uma carta, que esta recebeu, solicitando-lhe explicações e questionando-a se pretendia ressarci-lo pelas dores suportadas e tratamentos médicos, conforme documento junto a fls.12, e que aqui se dá por integralmente reproduzido;
3. A primeira R. enviou ao A. a carta datada de 18.2.2009, informando-o de que, para além do mais, que logo que existisse decisão da seguradora, entrariam em contacto a fim de dar conhecimento, conforme documento junto a fls. 14, e que aqui se dá por integralmente reproduzido;
4. Por carta de 24.3.2009, a primeira R. informa o A. de que o anzol se encontraria dentro do peixe, pelo que seria impossível detectar a sua existência e informando-o da identificação do fornecedor, conforme documento junto a fls.15, e que aqui se dá por integralmente reproduzido;
5. O A. envia ao fornecedor segunda R. carta datada de 6.4.2009 solicitando se pronuncie sobre o sucedido, conforme documento de fls.17, e que aqui se dá por integralmente reproduzido;

6. O Autor, com data de 09104/2009, envia à primeira R. carta, do seguinte teor: Assunto: Reclamação sobre produto adquirido na loja BB da ..., Lisboa
V/missiva de 24/03/2009 Exmo. Senhor,
Sobre o assunto em epígrafe solicitámos informação ao fornecedor/produtor por V. Ex á indicado.
Independentemente da resposta deste, que, caso tenha fornecido o produto é responsável pelos danos nos termos do artigo 122, n. 92 da Lei n.224/96 de 31/07, não podemos deixar de salientar que a responsabilidade é também da v/ empresa, como vendedor/distribuidor do bem, por tal resultar dos art°s. 72, n.2 1 e 2 ai b) do DL. n9 69/2005 de 17/03 e art92°, n.2 1 e art2 39, n.91(cfr. também art9 6 do D.L. n. 2 67/2003 de 08/04 (redacção do D.L. n2 84/2008 de 21/05).

Assim sendo, a n/ actuação, quer ao nível da reparação dos danos próprios sofridos, quer ao nível de responsabilização perante o Estado (ASAE; IDC; CSSBC etc), terá necessariamente que ser também contra v/ empresa, como deve calcular, independentemente da responsabilidade de cada um (vendedor e fornecedor), que para nós não é relevante, interessando apenas àqueles nas suas relações internas. Assim, e logo recebamos resposta do produtor supra referido, teremos que accionar os respectivos meios judiciais e  administrativos,  se  não  houver acordo  através de mediação/arbitragem/conciliação. Sem nada mais de momento, Atenciosamente (assinatura)
7. A segunda R. enviou ao A. a carta datada de 13/04/2009, com o seguinte teor: N/Ref: P. 697(85).NG
Assunto : Reclamação: Peixe-espada adquirido na loja BB', na ..., Lisboa Resposta à s/carta datada de 6/4/2009. Exmo. Senhor
Recebemos a sua referenciada carta, que mereceu a nossa melhor atenção e a que, prontamente, vimos responder.

Desde logo, não nos é possível confirmar, pelos dados que temos em nosso poder, se o peixe-espada que é objecto da sua reclamação foi especificamente fornecido pela 'CC - Comércio de Peixe, Lda." 'à BB Distribuição Alimentar, S.A. ': posto que, também outras empresas fornecem peixe-espada aos supermercados "BB".

 Em qualquer caso, admitindo hipoteticamente que fomos os fornecedores do peixe em questão, cumpre-nos dizer o seguinte:

1) Esta empresa adquire, em território comunitário, todo o peixe-espada por si comercializado à seguinte sociedade: 'FF SARL', Zone Industrie/1 e, lot n.2 12, GG, Marrocos; Se V. Exa. concluir que o pescado em questão foi fornecido pela "CC - Comércio de Peixe, Lda.  "então, deverá remeter a sua reclamação àquela sociedade, nossa fornecedora;
2) E, qualquer caso, asseguramos que todo o pescado que é comercializado por esta sociedade é prévia e rigorosamente inspeccionado pelo nosso pessoal, com qualificação adequada, para verificação de quaisquer anomalias;
3) Depreendemos da sua reclamação que o anzol se encontrava alojado dentro do peixe-espada, razão por que não foi detectado aquando do seu amanho, nem aquando da sua confecção, e apenas quando estava a ser mastigado, por aqui se concluindo que o anzol nunca por esta sociedade poderia ter sido detectado; Assim, pelos motivos acima apontados não pode esta sociedade assumir qualquer responsabilidade no caso que é objecto da reclamação de V. Exa..

Manifestamos, porém, a nossa disponibilidade para qualquer esclarecimento adicional que entenda conveniente.

Sem outro assunto de   momento, subscrevemo-nos   apresentando   os   melhores cumprimentos. A Gerência (assinatura)

8. À carta referida em 7), respondeu o A. por carta datada de 1610412009, cujo teor a abaixo se descreve, remetendo em anexo, fotocópia da carta transcrita em 6; Assunto: Reclamação sobre produto adquirido na loja BB da 5 de Outubro, Lisboa t//missiva de 13/03/2009

Exmo. Senhor,
Sobre o assunto em epígrafe, cumpre informar que, porque Exas. reconheceram que adquiriram todo o peixe-espada "em território comunitário" (sic) a uma empresa sediada em Marrocos, temos por desnecessário a apresentação de qualquer "reclamação" a esta, já que a mesma não pertence à União europeia, e os Acordo piscatórios que Marrocos com esta tem não abrangem a questão, sendo a responsabilidade do fornecedor/produtor português face á legislação portuguesa e comunitária (cfr. v.g. Directiva n. 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03/12).

Neste sentido, a(s) responsabilidade(s) a accionar tem que ser necessariamente também contra a v/ empresa, conforme, aliás, já informámos o BB, S.A. (doe. n. P 1). Sem nada mais de momento, Atenciosamente (assinatura)


9.  Em 1 de Junho de 2009, pelo Autor, foi apresentada, no DIAP, queixa-crime contra os RR., bem como contra os legais representantes singularmente considerados, conforme cópia junta aos autos a fls. 34 e seguintes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
10. Em 12/01/2010, pelo Serviço de Clínica Forense da Delegação do Sul, do Instituto Nacional de Medicina Legal, foi realizada perícia médico-legal, na pessoa do Autor, nos termos descritos no relatório junto aos autos de fls. 41 a 43;
11. Foi determinado o arquivamento de processo-crime referido em 1), por despacho de 22/02/2010, com fundamento em insuficiência de prova para sustentar a acusação, conforme documento junto aos autos de fls. 45 a 47, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
12. A primeira R.. é uma Sociedade que se dedica à venda ao Público de produtos alimentares e outros, exercendo a sua actividade em diversos estabelecimentos de pequena e média superfície localizados por todo o território nacional;

13. Foi celebrado entre a Empresa HH, S.G.P.S., S.A. (J.M.), Sociedade Gestora de Participações Sociais do grupo empresarial a que a l.á R. pertence, e a Sociedade DD, S.A. Sucursal em Portugal (DD) um contrato de Seguro de Responsabilidade Civil conforme cópia do referido contrato condições Gerais e especiais, e acta adicional (Does. n.°s 1, 2 e 3) juntos e cujo conteúdo foi por integralmente reproduzido e de onde se retira nomeadamente que
14. Esse contrato teve por objecto a "Responsabilidade Civil Geral Extracontratual das Seguradas (nas quais a primeira R. se inclui) emergente da sua Actividade comercial e ou/industrial e dos seus produtos e titulado pela apólice n.° AO3050012;
15. O peixe referido em 1) foi confeccionado, no próprio dia, cerca das 20h, através da grelha para ser consumido pelo A., sua companheira e um colega do A.;

16. O peixe foi lavado e cortado na loja, e entregue pronto a consumir;
17. Ao mastigar parte de uma posta o A. sentiu dor na bochecha direita, tendo verificado ter a dor sido provocada por um anzol de pesca com 3,2 x 1,2 cm preso à bochecha, que foi retirado por um médico;
18.   O A. despendeu a quantia de €700,00 com a extracção médica do anzol e tratamentos até à alta;
19. A lesão, determinou ao A., um período de cinco dias com afectação para o trabalho em geral e cinco dias com afectação para o trabalho profissional;
20. O A. ficou com cicatriz nacarada, com 1 cm de comprimento, na região mucosa jugal direita, junto ao ângulo intermaxilar.
21. 0 A. sofreu forte dor no momento em que o anzol se cravou; 22.E sentiu dores durante cerca de duas semanas;
23. A primeira R. inspecciona todos os peixes e verifica as condições do seu corte;
24. Foi a segunda R. quem forneceu o peixe à primeira R.;

25. A segunda R. adquiriu o peixe referido em 1) à sociedade marroquina FF, em Algeciras, e até ser comercializado pela segunda R. foram feitas duas verificações em Marrocos, uma em Algeciras, e outra no MARL pelos serviços veterinários; 26. Foram feitas verificações de qualidade pelo BB, através de médicos veterinários e engenheiros alimentares;

27. Verificada anomalia no pescado, o mesmo é destruído;

28. A segunda R. procede à venda do peixe por inteiro, em caixas de 15120Kg;

29. O peixe-espada é capturado por meio de anzol;

30. O anzol estava alojado na massa muscular do peixe, no seu interior, apenas sendo detectável aquando da sua confecção.

Este tribunal considera ainda provado que:

31. O contrato de seguro referenciado em 13 destes factos prevê uma franquia de   € 5000 (art° 14 das Condições Gerais - fls. 101 - e n° 10 das Condições Particulares - fls. 96).

III

           Apreciando

1 Nos presentes autos de revista foi proferido acórdão em que se decidiu não conhecer do objecto do recurso nos seguintes termos:

1 Suscita-se a questão prévia da admissibilidade do recurso.

          Diz a lei que não há recurso para o STJ quando ocorra a dupla conforme nas instâncias, ou seja, quando estas estejam de acordo quanto a uma determinada solução jurídica. Nessa medida, aquela parte que pretende com o recurso a alteração dessa solução não o pode fazer.

          No entanto, não tem sido pacífico o entendimento sobre o que possa ser a referida conformidade.

        Para alguns, numa visão mais formal, só existirá dupla conforme quando a Relação se limitar a confirmar o decidido em 1ª instância, sendo, pois, necessário, pois, existir uma sobreposição integral de decisões.

           Outra visão da questão tem, entretanto, feito caminho.

           A conformidade em causa afere-se pela medida em que as soluções jurídicas, por diversas que sejam, ainda assim coincidem.

           Exemplificando:

          

A - Se o réu é condenado a pagar 100 em 1ª instância e 80 na Relação, não pode ele recorrer para o Supremo pretendendo ver diminuído o valor da condenação, uma vez que as instâncias estão de acordo de que “pelo menos “ deve pagar 80. Mas já o poderá fazer o autor, dado que não existe dupla conforme sobre o limite máximo da dita condenação.

          

B - Na hipótese inversa, 80 em 1ª instância e 100 na segunda, pode o réu recorrer pedindo a diminuição da condenação até o limite da dupla conforme que continua a ser o de 80.  Por seu lado, o autor, não pode recorrer, uma vez que as instâncias estão de acordo que a condenação não deve ser superior a 100. O acordo da 1ª instância deriva do facto de que quem não dá mais de 80, logicamente, não dá mais de 100.

          

É esta uma visão substancial da questão, que olha ao modo como a regulação da relação jurídica controvertida é feita pelas instâncias. Independentemente de aspectos formais, que podem até ir ao ponto de num caso haver uma absolvição da instância e noutro uma condenação.

        E que é o caso dos autos.

        Em 1ª instância decidiu-se que a ré nada devia a título de indemnização. Entendeu a Relação que a esse título devia 5.000. A dupla conforme que é a da hipótese B traduz-se no facto de que quem nada dá, logicamente não dá mais do que aquilo que foi determinado pela Relação. Não pode, por isso, o autor recorrer pretendendo o aumento do valor que lhe foi arbitrado.

Termos em que não admissível o recurso.

Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do recurso

O recorrente arguiu a nulidade do acórdão por não lhe ter sido dado a oportunidade de se debruçar sobre a questão da existência de dupla conforme.

Anulado o dito acórdão, veio o mesmo defender que não existia a referida dupla conforme, acentuando, nomeadamente, que a actual configuração da aludida dupla conforme não contempla  o caso dos autos.

A dupla conforme tem de ser aferida face ao que foi decidido em 2ª instância.

Por outro lado, se a decisão do Tribunal da Relação foi proferida depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, é-lhe inteiramente aplicável o disposto nesta lei, quando a acção, como é o caso, foi instaurada após 2008. Cf. o artº 7º nº 1 da Lei 4/2013.

É, portanto, face ao actual C.P.Civil que tem de se ver se há dupla conforme.

O que significa que a dupla conforme não existe, de acordo com o artº 671º nº 3 da nova lei de processo civil, se as decisões provierem de fundamentação “essencialmente diferente”.

Ora, é manifesto que a sentença que entendeu que não ocorria responsabilidade civil e o acórdão que entendeu que ocorria essa responsabilidade  têm fundamentação essencialmente diferente.

Deste modo, revendo a posição assumida no acórdão anulado, considera-se que não existe dupla conforme, razão pela qual se admite o conhecimento do objecto do recurso.

2 Entrando na apreciação do mérito do recurso.

Reage o recorrente nas suas conclusões de recurso quanto à atribuição pelo acórdão recorrido de 50% de culpa ao próprio lesado, o que fez com que a a indemnização de € 10.000,00, calculada para o ressarcimento dos danos não patrimoniais, acabasse por vir a ser fixada em € 5.000,00.

A Relação procedeu à referida distribuição culpa com o fundamento de que “deve ter-se em conta que o peixe é um animal com espinhas, o que requer também da parte do consumidor, uma atenção adequada à remoção das mesmas”

Salvo o devido respeito, não concordamos com este entendimento.

A diligência normal, ao ter-se cuidado para evitar qualquer lesão provocada por espinhas do peixe que se está a consumir, nada tem a ver com o cuidado que seria exigível para evitar uma lesão pela presença nesse peixe de um objecto estranho, nomeadamente de um anzol. Com efeito, este último cuidado não fica satisfeito com as usuais cautelas de consumo de um peixe. É outro tipo de cuidado que não pode ser exigido do consumidor, porque não se coaduna com a normalidade das coisas expectáveis. E o dever de diligência inscreve-se dentro dessa normalidade.

A mera culpa, acabamos de ver, traduz-se na omissão da diligência exigível. O agente devia ter usado uma diligência que não empregou. Devia ter previsto o resultado ilícito a fim de o evitar e nem sequer o previu.” – Galvão Telles Obrigações 2ª ed. 328 -.

Ora, como já dissemos, prever espinhas no peixe que se consome é uma coisa e nele prever um anzol é outra. E esta última previsão não integra um dever do respectivo consumidor.

Deste modo, não há a aludida concorrência de culpas.

Tem, por isso, o recorrente o direito a ser indemnizado pela totalidade dos danos que sofreu e que foram contemplados no acórdão em causa.

Na fixação das quantias devidas há que ter em conta o valor da franquia de € 5.000,00. que limita a responsabilidade da seguradora.

Termos em que procede o recurso.

Pelo exposto, acordam em conceder a revista e, em consequência, alteram o acórdão recorrido determinando a condenação das rés pelo seguinte modo:

a ré BB vai condenada no pagamento ao autor da quantia de € 5.000,00;

a ré seguradora vai condenada a pagar ao autor da quantia de € 5.700,00;

ambas as rés vão condenadas nos juros de mora legais, contados desde a data do acidente, salvo quanto aos correspondentes à quantia indemnizatória pelo danos não patrimoniais, que serão contados desde a data da decisão na Relação.

Custas pelas recorridas.

                                                           Lisboa, 18 de Junho de 2014

Bettencourt de Faria (Relator)

Pereira da Silva

João Bernardo