Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6554/15.0T8MAI.P1.S2
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE PROPOSITURA DA AÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/24/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

A norma do art. 1817º, nº 1, do Código Civil, ao fixar o prazo de caducidade de dez anos para a instauração da acção de investigação de paternidade, não é inconstitucional, não violando as disposições dos arts 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo tribunal de Justiça:

I.

AA intentou a presente acção declarativa para investigação de paternidade, com processo comum, contra BB.

Pediu que seja declarado que o réu é seu pai e que este seja condenado a reconhecê-lo como tal, com o respectivo averbamento desta paternidade no assento de nascimento.

Como fundamento, alegou que nasceu em …. de ……. de …….. e que, apesar de constar do registo apenas como filho de CC, também é filho do réu, em virtude de a mãe e o réu terem mantido relação de namoro e de intimidade iniciada em inícios de 1964 e até Agosto de 1965, conhecida dos amigos e conhecidos do autor, com relações sexuais de cópula completa, vindo a mãe a engravidar e a dar à luz o autor. Mais alegou que, durante os primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o seu nascimento, a mãe só manteve relações sexuais de cópula completa com o réu.

O réu contestou impugnando a factualidade invocada na petição, negando quer a paternidade do autor quer a existência de relações sexuais com a mãe dele e alegando que não conhece o autor ou a sua mãe.

Concluiu pela improcedência do pedido.

Percorrida a tramitação normal, veio a ser proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando-se que o autor AA é filho do réu BB.

Discordando, o réu interpôs recurso de apelação, que a Relação, por maioria, julgou improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Ainda inconformado, o réu vem pedir revista, formulando as seguintes conclusões:

I. O presente Recurso tem por objecto o douto Acórdão da Relação do …… que julgou a Apelação apresentada pelo falecido Réu BB improcedente, mantendo a decisão de Primeira Instância, com o voto de vencido do Exm.º Senhor Desembargador EE, quanto á matéria da caducidade da ação e do abuso de direito no seu exercício.

II. A ação que culminou com o Acórdão de que agora se recorre, foi instaurada quando o Autor/ recorrido e o Réu, tinham nessa data, 50 e 75 anos de idade, respetivamente.

III. O n.º 1 do artigo 1817.º, ex vi art.º 1873.º, na redacção emergente da Lei nº 14/2009, ambos do C. Civil, dispõe que a ação de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

IV. O referido normativo estabelece assim um verdadeiro prazo de caducidade, o que constitui uma exceção perentória de conhecimento oficioso (arts. 298.º, n.º 2, e 333.º, nº1 do C. Civil).

V. Ora quando o Autor instaurou a acção de investigação de paternidade já tinha atingido a maioridade (18 anos) há muito mais de 10 anos, mais concretamente em 1983.

VI. Da análise da petição inicial, não consta qualquer factualidade susceptível de fundamentar a aplicação dos nºs 2 e/ou 3 do art. 1817º do Código Civil;

VII. Nem o Recorrido na sua P. I. alegou quaisquer factos que afastassem liminarmente a aplicação do n.º 1 do art. 1817º C.C. constituindo essa falta de elementos, verdadeira condição de viabilidade da ação.

VIII. De modo que, à data da propositura da acção, encontrava-se sobejamente ultrapassado o prazo previsto no n.º 1 do art. 1817.º, procedendo a exceção perentória da caducidade do direito da acção.

IX. Assim, o direito do Autor de propor a ação de investigação de paternidade já havia caducado há mais de vinte e dois anos quando esta (acção) foi interposta, devendo tal exceção (perentória de caducidade), proceder com as legais consequências, designadamente a absolvição do pedido (cfr. arts. 576º, nºs 1 e 3 do C.P.C.).

X. Embora tal facto pudesse e devesse ter saltado aos olhos do julgador porque tal exceção de caducidade é do conhecimento oficioso (n.º 1 do art. 333º do C. C.) por estarem em causa direitos indisponíveis, onde claramente se estipulam prazos para o exercício dos direitos previstos na lei substantiva.

XI. A caducidade sendo imposta por lei, e nos casos que colidam com direitos indisponíveis, estando em questão direitos de personalidade, fica excluída da disponibilidade das partes (art. 81º do CC), impondo-se a apreciação oficiosa da caducidade, ao abrigo do n.º 1, do art. 333º do CC.

XII. Processualmente, e dado que o seu efeito é extintivo do direito, a caducidade tem a natureza de exceção perentória, acarretando a absolvição do pedido art. 576º nº 3 do CPC.

XIII. O prazo de caducidade da acção de dez anos após a maioridade do recorrido, fixado para o efeito pela Lei n" 14/2009, de 01.04, é um prazo razoável para o exercício do direito a ver reconhecido o direito à filiação biológica, enquanto vertente do direito à identidade e do direito a constituir família, constitucionalmente consagrados nos art° 26°, n° 1 e 36°, n° 1, da CRP de 1976, não havendo in casu lugar à aplicação de qualquer das previsões das alíneas do nº 3 do art° 1817.°, no 1, do Código Civil, na redacção dada pelo art° 1° da Lei n° 14/2009, de 01.04, pelas razões expressas no douto Ac. do Tribunal Constitucional nº 401/2011, de 22.09.2011, in DR, 2ª Série, de 03.11.2011.

XIV. O prazo plasmado na Lei 14/2009, já teve em consideração os legítimos direitos de quem verdadeiramente procura os seus progenitores, prazo esse equilibrado pelos direitos daqueles que já tendo uma idade avançada, com famílias e várias gerações, só pretendem a paz e a estabilidade familiar, que ações deste tipo, baseadas no laxismo e/ou movidas por interesses patrimoniais pretendem desestabilizar.

XV. Na verdade, a falta de paz e estabilidade decorrentes da presente ação, conduziram o réu BB aos 75 anos ao desespero desgosto e infelicidade deste, da esposa e filhos, o que obrigou ao seu divórcio e posterior falecimento.

XVI. Caso a situação em concreto não importasse caducidade do direito de acção do Recorrido, impõe-se que a tutela do direito à filiação do Autor, nas circunstâncias do factuais do caso, seja considerada ilegítima em virtude de se revelar violadora das regras da boa fé e dos bons costumes, devendo intervir a figura do abuso do direito – Art. 334° do Código Civil, de molde a impedir as intenções do recorrido.

XVII. No entanto apesar do que se referiu supra a mais recente jurisprudência deste Tribunal vai no sentido do equilíbrio entre a tutela do interesse da pessoa que pretende saber quem são os seus pais e estabelecer o inerente vínculo e a concreta proteção dos investigados e suas famílias mediante a fixação legal de prazos de caducidade para a propositura de ações de investigação da paternidade, desde que tais prazos se mostrem proporcionados ou razoáveis como é o caso do actual art. 1817.º do C. Civil.

XVIII. Neste sentido veja-se o mais recente Acordão deste STJ de 10 de Dezembro de 2019, 6.ª Secção, proc. 211/17.0T8VLN.G1.S2 (…).

XIX. A decisão recorrida viola, entre outros, as normas e os princípios jurídicos constantes dos artigos 1817º, nº 1, 1869º e 1873º (todos) do Código Civil, 493º, nº 3, 576º, nºs 1 e 3, e als. b) e d), nº 1, do artigo 615º als. c) e d) do Código Processo Civil e os artigos 1º, 2º, 13º, 18º, nº 2, 25º, 26º e 36º da Constituição da República Portuguesa.

XX. Deverá assim a decisão de que se recorre ser alterada e ser proferida decisão que declare a caducidade da ação de investigação de paternidade nos termos do art. 1817.º do C. Civil; ou assim não se entendendo,

XXI. Ser considerada ilegítima a tutela do direito à filiação do Autor, nas circunstâncias do factuais do caso, em virtude de se revelar violadora das regras da boa fé e dos bons costumes, devendo intervir a figura do abuso do direito – Art. 334°, em qualquer caso, absolvendo os recorrentes do pedido.

Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra, em que com a observância dos preceitos legais, se considere procedente a invocada exceção da caducidade da ação ou do abuso de direito.                                    

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Sustentam os recorrentes que a norma do art. 1817º, nº 1, do CC, ao estabelecer o prazo de 10 anos para a instauração da acção de investigação de paternidade, não é inconstitucional, devendo, por isso, proceder a excepção de caducidade.

Se assim não se entender, deve, nas circunstâncias do caso, considerar-se que a pretensão do autor integra abuso do direito.

III.

Após a reapreciação efectuada pela Relação, foi fixada a seguinte matéria de facto provada:

1. O autor nasceu a 18 de Outubro de 1965.

2. Por declaração da mãe, o autor foi registado como filho de DD, casado e de CC, casada, residentes ele na cidade do …….. e ela na ……….., nº ……, ………., pelo Assento de nascimento nº ……, lavrado em ……….., na Conservatória do Registo Civil de ………… .

3. Por sentença de 14.07.1967, transitada em julgado em 01.08.1967, em acção de impugnação da paternidade registada, foi declarado que o ora autor não era filho daquele DD e averbado tal facto no assento de nascimento em ……….. .

4. Não existiam entre o autor e o réu relações de parentesco ou de afinidade.

5. A mãe do autor e o réu conheceram-se em data não concretamente apurada do ano de 1964, tendo iniciado uma relação de intimidade.

6. Relacionamento esse que culminou em relações sexuais de cópula completa entre a mãe do autor e o réu.

7. Esta relação de índole amorosa foi vivida de forma regular e assídua entre aqueles até data não concretamente apurada, vindo a mãe do autor a ter conhecimento que o réu era casado.

8. Os amigos e conhecidos da mãe do autor tinham conhecimento da relação entre esta e o réu.

9. Durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do autor, a sua mãe só manteve relações sexuais de cópula completa com o réu.

10.  Em consequência dessas relações sexuais, a mãe do autor engravidou e posteriormente deu à luz o autor.

11. O réu nega a paternidade do autor.

12. Em inícios de 1964 o réu era casado desde 11.05.1958 e pai de dois filhos.

13. Em 1964 e 1965, a mãe do autor era casada com DD.

14. À data da propositura da acção, o réu tinha 75 anos de idade.

IV.

A Lei 14/2009, de 1/4, veio dar nova redacção ao art. 1817º do CC, estabelecendo novos prazos para a propositura da acção de investigação de paternidade: dez anos posteriores à maioridade ou emancipação do investigante (nº 1); três anos a contar da ocorrência de algum dos factos previstos no nº 3.

Não obstante este alargamento de prazos – a norma que estabelecia anteriormente o prazo de dois anos havia sido declarada inconstitucional, face à exiguidade deste, pelo Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional – continuou a manifestar-se uma forte corrente no sentido da inconstitucionalidade da referida norma.

Foi neste contexto que veio a ser proferido pelo plenário do Tribunal Constitucional o Acórdão nº 401/2011, que se pronunciou pela constitucionalidade do regime legal introduzido pela Lei 14/2009, concluindo que se mostrava satisfeito o mínimo constitucionalmente exigido.

Afirmou-se então:

"Apesar da inexistência de qualquer prazo de caducidade para as acções de investigação da paternidade, permitindo que alguém exerça numa fase tardia da sua vida um direito que anteriormente negligenciou, poder corresponder a um nível de protecção máximo do direito à identidade pessoal, isso não significa que essa tutela optimizada corresponda ao constitucionalmente exigido.

Como já vimos, o direito ao estabelecimento do vínculo da filiação não é um direito absoluto que não possa ser harmonizado com outros valores conflituantes, incumbindo ao legislador a escolha das formas de concretização do direito que, dentro das que se apresentem como respeitadoras da Constituição, se afigure mais adequada ao seu programa legislativo. Assim o impõe a margem de liberdade que a actividade do legislador democrático reclama. Caberá, assim, nessa margem de liberdade do legislador determinar se se pretende atingir esse maximalismo, protegendo em absoluto o referido direito, ou se se opta por conceder protecção simultânea a outros valores constitucionalmente relevantes, diminuindo proporcionalmente a protecção conferida aos direitos à identidade pessoal e da constituição da família.

Ao ter optado por proteger simultaneamente outros valores relevantes da vida jurídica através da consagração de prazos de caducidade, o legislador não desrespeitou, as fronteiras da suficiência da tutela, uma vez que essa limitação não impede o titular do direito de o exercer, impondo-lhe apenas o ónus de o exercer num determinado prazo.

É legítimo que o legislador estabeleça prazos para a propositura da respectiva acção de investigação da paternidade, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada do investigante, não sendo injustificado nem excessivo fazer recair sobre o titular do direito um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação, não fazendo prolongar, através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de incerteza indesejável.

Necessário é que esse prazo, pelas suas características, não impossibilite ou dificulte excessivamente o exercício maduro e ponderado do direito ao estabelecimento da paternidade biológica".


Apesar desta decisão, a questão da constitucionalidade dos prazos estabelecidos no art. 1817º do CC continuou – e continua – a ser controvertida, mormente na jurisprudência do STJ.
Com efeito, alguns acórdãos adoptam a tese de que qualquer prazo de caducidade nesta matéria é inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade do investigante (neste sentido, entre os mais recentes, os Acórdãos de 15.02.2018 (P. 2344/15), de 06.11.2018 (P. 1885/16) e de 14.05.2019 (P. 1731/16), acessíveis em www.dgsi.pt, como os demais acórdãos do STJ adiante citados).
Outra corrente, maioritária, preconiza o entendimento de que a fixação desses prazos não é inconstitucional, como não o são os prazos concretamente fixados, por estes se mostrarem proporcionais e razoáveis, não ofendendo o núcleo essencial dos referidos direitos fundamentais do investigante (Neste sentido, também entre os mais recentes, os Acórdãos de 13.03.2018 (P. 2947/12), de 03.05.2018 (P. 454/13), de 05.06.2018 (P. 65/14), de 12.09.2019 (P. 503/18), de 07.11.2019 (P. 317/17) e de 10.12.2019 (P. 211/17)).

Em recente Acórdão – nº 394/19 – o Tribunal Constitucional pronunciou-se, mais uma vez, em plenário, sobre esta questão, decidindo, por maioria (para além de revogar o anterior Acórdão nº 488/2018, largamente reproduzido na fundamentação do acórdão aqui recorrido):

Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º, nº1, do Código Civil, na redação da Lei nº 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.

Lê-se na fundamentação deste Acórdão:

"A procedência da ação de investigação da paternidade determina a constituição da relação jurídica de filiação, que é, note-se, uma relação jurídica bilateral, com direitos e obrigações recíprocas, de natureza pessoal e patrimonial, para ambos os sujeitos da relação (pai e filho), especialmente para o primeiro, considerando o especial relevo legal conferido à matéria das «responsabilidades parentais». Tem, por isso, uma forte repercussão na vida pessoal, familiar, social e patrimonial do investigado.

Ora, se na fase da infância e juventude do filho a estabilidade do pai claramente não merece tutela constitucional, quando comparada com os prementes direitos do filho, já não é possível afirmar-se que esse valor seja constitucionalmente irrelevante quando o filho é já uma pessoa adulta e formada e o pai está numa fase avançada do seu percurso individual de vida. (…)

Tal como se esclareceu, a fixação de limites temporais ao exercício do direito de ação de investigação da paternidade tem também por objetivo estimular a rápida instauração deste tipo de ações, de modo a não deixar desprotegidos os bens eminentemente pessoais que os direitos fundamentais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico protegem (…).

Como também se defendeu, o estabelecimento de prazos de caducidade para o exercício desse direito de ação constitui paralelamente uma medida de política legislativa que encontra justificação na necessidade de proteção dos próprios direitos fundamentais do investigado à identidade e à família (artigos 26.º, n.º 1, e 36.º) (…).

É, pois, à luz destas duas finalidades que se deve aferir a adequação e proporcionalidade do prazo de caducidade fixado no n.º 1 do artigo 1817.º do CC.

Quanto ao primeiro requisito constitucional, o da adequação, parece claro que o prazo de caducidade estabelecido no n.º 1 do artigo 1817.º do CC é apto a assegurar a tutela jurisdicional efetiva (…), quer dos direitos fundamentais do investigante a saber quem é o seu pai e a estabelecer com ele o respetivo vínculo jurídico, quer dos direitos fundamentais do investigado a saber quem é o seu filho e a estabelecer com ele a correspondente relação jurídico-familiar.

Com efeito, ao fixar-se o termo final do referido prazo nos 28 anos de idade do investigante (ou nos 26, em caso de emancipação), garante-se, desde logo, que as ações de investigação da paternidade sejam instauradas na «infância» e «juventude» dos filhos, fases da vida de uma pessoa que, na avaliação do próprio poder constituinte, mais reclamam a intervenção protetora e educativa dos pais (artigo 68.º, n.º 1, 69.º e 70.º da Constituição). Por outro lado, assegura-se igualmente a inclusão identitária do próprio filho na esfera de vivência pessoal e familiar do pai, permitindo-se, em caso de procedência da ação, que o vínculo genético se possa ainda converter numa relação de proximidade histórico-existencial e de apoio recíproco, como é próprio das relações familiares. (…)

Em relação ao requisito da proporcionalidade stricto sensu, também não se afigura que a lei tenha ido longe de mais na concretização das finalidades visadas com o estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade. (…)

Na infância e juventude, que são fases de crescimento e preparação para a autonomia de vida, o direito a ter um pai assume um conteúdo valorativo extremamente amplo e intenso, que inclui todos os bens pessoais indispensáveis ao desenvolvimento estruturado e equilibrado da pessoa em formação, designadamente os bens da segurança, saúde e educação.

Uma norma que, nessas fases decisivas, negasse o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, deixaria desprotegidos todos esses bens jurídicos pessoais, afetando, na essência, o direito ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade (precisamente por esta razão, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o prazo de caducidade de dois anos estabelecido pela anterior redação do n.º 1 do artigo 1817.º do CC).

Porém, com a passagem do tempo, este direito vai adquirindo novas cambiantes. Mostrando-se doutro modo assegurados esses mesmos bens jurídicos, seja pela restante família, seja pelo Estado, na falta ou incapacidade daquela, o direito ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade passa a assumir na fase adulta uma dimensão essencialmente patrimonial.

É que nesta fase já não é materialmente possível dar satisfação aos bens jurídicos pessoais tutelados por aqueles direitos, que, por isso, viram o seu conteúdo original irremediavelmente comprimido, não por força de qualquer norma, mas por efeito da mera passagem do tempo. Pura e simplesmente, deixou de fazer sentido falar em proteção, saúde e educação; a assistência tutelável por meio dos tribunais é, agora, exclusivamente patrimonial e assume a forma obrigacional de direito a alimentos, em vida do pai [artigos 2003.º, n.º 1, 2004.º, 2009.º, n.º 1, alínea c), e 2013.º, alínea a), do CC], e de direitos sucessórios, após a sua morte (artigo 2157.º, do mesmo código). (…)

Ora, comparando os benefícios, individuais e sociais, acima descritos, assegurados pelo prazo de caducidade, com os custos, essencialmente patrimoniais, sofridos pelo investigante por causa da sua inobservância, parece claro que não estamos perante uma medida legal desproporcional, e, muito menos, manifestamente desproporcional, como se sustenta no acórdão recorrido.

Indispensável é que esteja assegurado o exercício efetivo do direito de ação de investigação da paternidade dentro do prazo de caducidade legalmente previsto e em termos compatíveis com a natureza especialmente pessoal do direito fundamental a tutelar. E afigura-se que está, considerando a função essencialmente corretiva que os n.ºs 2 e 3 do artigo 1817.º do CC exercem na economia global do preceito.

Como o Acórdão n.º 401/2011 sublinhou, estas normas previnem a hipótese de não estarem reunidas as condições de facto e de direito necessárias ao exercício do direito de ação dentro do prazo (objetivo) de dez anos previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal, aditando a este prazo mais três anos, que apenas começará a correr quando essas mesmas condições estiverem efetivamente verificadas. A extinção do direito ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico só operará depois de esgotados todos os prazos de caducidade previstos no artigo 1817.º do CC – o que constitui uma importante válvula de segurança do sistema. (…)

Desse modo, garante-se ao titular do direito fundamental virtualmente afetado pelo prazo de caducidade a possibilidade de instaurar a ação quando, uma vez decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do CC, surjam factos ou circunstâncias que tornem razoável o exercício tardio do direito de ação. A ausência de uma tipificação fechada dos factos ou circunstâncias justificativos da instauração da ação após o transcurso desse prazo permite ao aplicador do direito, em especial ao juiz, a formulação de juízos de ponderação suscetíveis de cobrir a especificidade de cada caso concreto sujeito à sua apreciação e integrar no conceito legal todos os factos e circunstâncias concretas, de natureza objetiva e/ou subjetiva, que possam justificar, à luz desse padrão de razoabilidade, o exercício do direito de ação após os 28 (ou 26) anos de idade do investigante.

O que a lei não consente – e a Constituição manifestamente não tutela – é o exercício arbitrário do direito de ação de investigação da paternidade a qualquer tempo. (…)

Por tudo quanto se disse, não se afigura que a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, ao estabelecer o prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, seja inconstitucional, conclusão que sai reforçada pelo facto de o efeito extintivo que lhe está associado apenas se produzir quando se esgotar, não apenas o prazo aí previsto, mas todos os outros que o mesmo preceito legal prevê, com grande amplitude, nos seus números 2 e 3".

Concorda-se com esta jurisprudência do Tribunal Constitucional e com o juízo de não inconstitucionalidade da norma do art. 1817º, nº 1, do CC, entendendo-se que o prazo aí fixado para a propositura da acção de investigação concretiza, de forma adequada e proporcional, uma indispensável harmonização entre os direitos fundamentais, quer do investigante (pessoa já adulta e formada), quer do investigado (pessoa em fase avançada do seu percurso de vida, no caso, entretanto falecido) e seus familiares.

Assim, tendo-se também em consideração a competência específica desse Tribunal (art. 221º da CRP), remete-se para os fundamentos do referido Acórdão, concluindo-se, tendo em atenção a data do nascimento do autor e a data da propositura da acção, pela procedência da invocada excepção de caducidade, com a consequente absolvição dos réus do pedido (art. 576º, nº 3, do CPC).

Fica prejudicado o conhecimento da outra questão colocada no recurso (art. 608º, nº 2, do CPC).

Em conclusão:

A norma do art. 1817º, nº 1, do Código Civil, ao fixar o prazo de caducidade de dez anos para a instauração da acção de investigação de paternidade, não é inconstitucional, não violando as disposições dos arts 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.

V.

Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido e a sentença que o mesmo confirmou e, em consequência, na procedência da excepção de caducidade, julga-se a acção totalmente improcedente, absolvendo-se os réus do pedido.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 24 de Novembro de 2020

F. Pinto de Almeida

José Rainho

Graça Amaral – vencida, com a seguinte declaração de voto:

Ainda que ciente do entendimento (maioritário) assumido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 394/19, continuo a partilhar do entendimento daqueles que pugnam no sentido de que a limitação temporal ínsita no n.º1 do artigo 1817.º do Código Civil, viola, de forma desproporcionada, os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional.

Assim sendo, atenta a tempestividade da instauração da acção, julgaria improcedente a excepção de caducidade e confirmaria o acórdão recorrido.

Tem voto de conformidade do 1º Adjunto, Conselheiro José Rainho (art. 15ºA aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).