Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5408/10.0TBVFX-C L1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
SOCIEDADE ANÓNIMA
DIREITOS DOS SÓCIOS
VIDA PRIVADA
DEVER DE INFORMAÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
RECUSA
EXAME
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGADO O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DA LISBOA NA PARTE EM QUE CONFIRMA A DECISÃO DA 1ª INSTÂNCIA.
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE.
DIREITO COMERCIAL – ESCRITURAÇÃO / EXIBIÇÃO JUDICIAL DA ESCRITURA MERCANTIL.
Doutrina:

-COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial,Volume I, 10.ª Edição, 2016, p. 192 a 194;
-F.V. GONÇALVES DA SILVA, A regulamentação legal da escrituração mercantil, tese de doutoramento, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, p. 1938, in file:///C:/Users/fatima%20gomes/Downloads/TD-FVGS-1938.pdf;
-L. BRITO CORREIA, Direito Comercial, I, p. 309;
-LUIS DA CUNHA GONÇALVES, comentador do Código Comercial de 1888, p. 112 a 115;
-MÀRIO DE FIGUEIREDO, Lições de Direito Comercial, 1928, p. 180.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 417.º, N.º 3.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM.): - ARTIGOS 42.º E 43.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 22-04-1997, PROCESSO N.º 2/98, IN DR I-A DE 08-01-1998;
- DE 25-11-1997, PROCESSO N.º 97A826;
- ACÓRDÃO N.º 2/98.


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-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-DE 15-12-2010, PROCESSO N.º 964/09, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT.


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ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE17-04-2008, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - Não há contradição de acórdãos, se ambos, recorrido e fundamento, conhecem da questão da recusa de prestação de informação ao tribunal por parte de uma sociedade anónima, terceira à acção, e concluem não aceitar o acesso livre à lista de accionistas/livro de registo de acções, nem o dever de ser apresentado o livro em tribunal, em resguardo da identidade da titularidade dos detentores de participações no capital da sociedade.
II - O objecto da recusa de informação no acórdão fundamento – cópia do livro de registos de acções e lista de accionistas –, e, no acórdão recorrido – a lista de presenças em determinadas assembleias gerais –, sendo formalmente diferente é, no essencial, idêntico, dado que a lista de presenças, ao identificar os sócios que compareceram, tem uma função acessória de identificação dos mesmos, e, nessa medida, a sua disponibilização a terceiros não deve poder ser feita irrestritamente e sem balizas, devendo cumprir requisitos de adequação e de proporcionalidade.
III - Como tal, verifica-se contradição material entre os acórdãos recorrido e o fundamento, se o primeiro confirmou a decisão da 1.ª instância de junção aos autos da lista de presenças das assembleias gerais, desde o ano de 2000 até à data da morte do inventariado; e o segundo considerou legítima a recusa de sociedade anónima, terceira à acção, em comunicar ao tribunal a lista dos seus accionistas/livro de registo de acções.
IV - O dever de colaboração – cooperação para a descoberta da verdade –, previsto no CPC (art. 417.º), não obriga as sociedades a fornecer informação que não se conforme com as disposições legais a que se reportam os arts. 42.º e 43.º do CCom.
V - Ao determinar a colaboração das entidades comerciais, ao abrigo do estabelecido no art. 42.º ou no art. 43.º do CCom, o tribunal deve atentar nos interesses da requerida, ordenando apenas o estritamente necessário à satisfação dos direitos e legítimos interesses do requerente, que mereçam tutela, ainda que apenas potencial.
VI - Não ocorre violação do dever de colaboração, imposto pelo art. 417.º, n.º 3, do CPC, se a recusa da sociedade em cumprir ordem judicial de junção de documentos é legítima, por ter esta sido proferida em desrespeito do art. 42.º do CCom, que apenas prevê a sua exibição e não a referida junção.
VII - Ponderando a tutela do interesse que justifica a informação a prestar em processo de inventário, com a tutela dos direitos das sociedades envolvidas à não divulgação aberta da identidade dos seus sócios, constitui uma intromissão desproporcional na vida da sociedade e um exercício desproporcionado do dever de colaboração com os tribunais, a ordem de apresentação de lista de presenças em assembleias gerais por um período de dez anos, sem motivação clara ou fundamentada em factos concretos, não oferecendo dúvidas a admissibilidade da opção pelo exame dos documentos em causa, nos termos do art. 43.º do CCom., que não foi revogado, conforme decidiu o Ac. do STJ n.º 2/98.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. relatório

1. Nos autos de inventário abertos por óbito de AA veio a cabeça de casal, BB, requerer que as sociedades "CC, SGPS, S.A", "DD, SGPS, S.A" (actualmente denominada "EE, SGPS, S.A"), "FF, S.A", ( actualmente denominada "GG, S.A."), "HH, S.A". ( actualmente denominada "II, S.A."), "JJ, S.A.", "LL, S.A.", "MM, S.A" e "NN, S.A." venham juntar aos autos a lista de presenças das Assembleias Gerais, desde o ano de 2000 até à data da morte do inventariado (15/01/2010), e o livro de registo de acções referente ao mesmo período.

Em 17/10/2011 foi deferido o requerido pela cabeça de casal. Foram juntas parte das actas requeridas (anos 2009 e 2010) e foi requerida pelas indicadas sociedades a dispensa da junção dos demais documentos.O despacho anterior foi renovado.

A referidas sociedades arguiram a nulidade do anterior despacho, por falta de fundamentação e invocaram a natureza sigilosa dos documentos cuja junção foi determinada e a impertinência dos mesmos para a boa decisão da causa.

Foi dada vista ao Ministério Público que promoveu que as sociedades em causa prestem as informações e apresentem os documentos solicitados (referindo que, em data anterior ao seu óbito, o falecido poderá ter sido titular de acções e importa averiguar se tais acções foram alienadas e apurar eventuais situações de inoficiosidade).


1


Em 15/05/2013 foi indeferida a requerida arguição de nulidade e determinada a junção dos elementos já pedidos, pelas razões indicadas pelo Ministério Público. Em 31 de Maio de 2013 as empresas acima identificadas vieram arguir a nulidade deste despacho e requerer a sua dispensa de junção dos documentos integrantes da sua escrituração mercantil, ao abrigo do disposto na alínea c) do n°3 do artigo 519.° do CPC. Em 09/09/2013, foi proferido despacho onde se consignou que nada importava determinar quanto à nulidade arguida, por estar esgotado o poder jurisdicional. Foi ainda determinada a notificação das referidas sociedades para concretizarem os factos com base nos quais deduziram escusa na apresentação dos documentos. Em 30/09/2013 foi, de novo, invocada pelas mesmas sociedades a natureza sigilosa dos indicados documentos que permitiriam identificar os accionistas, desvirtuando o tipo societário por que optaram aquando da sua constituição ou transformação (sociedade anónima). Em 20/02/2014 foi proferido despacho, julgando injustificada a recusa na apresentação dos documentos em causa e determinando que os mesmos sejam apresentados no prazo de 10 dias, sob pena de condenação em multa.
As sociedades acima identificadas recorreram deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 11 de Maio de 2017, julgou parcialmente procedente o recurso de apelação e revogou a decisão recorrida na parte em que determinou a junção aos autos pelas recorrentes do livro de registo de acções referente ao período de 2000 até 15.01.2010, mantendo, no mais, a decisão recorrida.

2. Inconformadas com o resultado, interpuseram recurso de revista as sociedades indicadas, fundamentando a admissibilidade do recurso nos art.º 671.º, 672.º, 674.º, 675.º e 676.º do CPC, indicando que se trata de uma revista excepcional, com subida em separado e efeito suspensivo.
Nas suas conclusões afirmam (transcrição):

“1. Não se podendo as recorrentes conformar com o acórdão recorrido, vêm interpor o presente recurso, na parte que lhes é desfavorável - manutenção da decisão da 1ª instância.

2. Entendem as recorrentes que se encontram verificados os pressupostos referidos no nº 1, alíneas a) e b), do artigo 672.° do CPC, devendo o presente recurso de revista excecional ser admitido e apreciado por este Venerando Tribunal

3. No caso em análise, a questão prende-se com a interpretação do disposto nos artigos 417.°, n.º 3, alínea c) do NCPC (anterior 519.°, n.º 3 alínea c) do CPC), 435.0 do NCPC (anterior 534.0 do CPC) e 42.0 e 43.0 do Código Comercial, pondo-se em causa, nomeadamente, o sentido que lhes é dado pelo Tribunal da Relação, no acórdão recorrido, na medida em que considera:

"Retomando agora ao caso concreto, vejamos, em primeiro lugar, se a situação em apreço está ao abrigo de sigilo mercantil. Ora, o artigo 420 do Código Comercial considera que em questões de "sucessão universal" poderá ser ordenada a exibição judicial da escrituração mercantil No que concerne ao exame parcial da escrituração (previsto no artigo 43.º do mesmo diploma legal das limitações expostas ficam ressalvados os casos previstos no artigo anterior. A junção das listas de presença das Assembleias Gerais das recorrentes durante o período temporal indicado é equiparável ao exame parcial, que, tal como nos casos de exibição da escrituração, poderá constituir meio de prova desde que respeite a questões de sucessão universal. Referem as recorrentes que o recorrido não tem a qualidade de interessado. Ora, a questão de saber se o recorrido tem efectivamente a titularidade do direito invocado só poderá ser objecto de apreciação posterior. Para a questão que ora nos ocupa, importa apreciar se o mesmo invoca a titularidade de um direito cuja prova pretende efectuar. E essa titularidade foi invocada nos termos acima indicados. A junção das listas de presenças das Assembleias Gerais, como meio de prova documental, não se afigura, neste contexto, impertinente e irrelevante para a descoberta da verdade.

4. E mais não diz. O douto Tribunal da Relação de Lisboa analisa os artigos 42.º e 43.º do Código Comercial, porém, sem sequer se pronunciar no caso concreto sobre a norma contida no artigo 417.º, n.º 3 do CPC (anterior 519.° n.º 3 do mesmo diploma legal), que prevê que é legítima a recusa em apresentar documentos e fornecer informações aos processos judiciais, nomeadamente, e para o que ao caso releva, se isso importar intromissão na vida privada e/ou violação do invocado sigilo profissional.

5. Entendem as recorrentes que a questão de saber o alcance da legitimidade da recusa em fornecer aos processos judiciais elementos que entendam estar abrangidos pelo segredo profissional - e nomeadamente pelo segredo comercial - é uma questão de elevada relevância jurídica porquanto mexe com os princípios básicos do comércio, que merecem toda a proteção jurídica, num estado de direito democrático e economia liberal, como é o caso português.

6. Isto porque, os agentes do comércio, que necessitam de tutela jurídica bastante por forma a operarem no mercado com garantias suficientes ao exercício do comércio de forma livre, terão de sentir a salvaguarda e segurança no direito de não intromissão do estado na sua esfera privada. O que aconteceria, caso as sociedades comercias se vissem na obrigação de ter que revelar toda a sua informação interna e portanto privada, só pela simples suspeita levantada, sem qualquer fundamento, por um qualquer hipotético "interessado".

7. Tal tese contrariaria, de todo, a própria natureza das sociedades comerciais anónimas - que é o caso das recorrentes - que são sociedades cujos acionistas vivem, pretender viver e devem permanecer no anonimato, o que se comprova desde logo pelo disposto no artigo 288.°, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (CsC, que prevê que apenas os acionistas que possuam ações correspondentes a, pelo menos, 1 % do capital social podem consultar escrituração da sociedade, na sede da sociedade e desde que aleguem motivo justificado.

8. A interpretação dos conceitos vertidos nas disposições legais afetadas pelo acórdão recorrido revelam assim interesses de particular relevância social, que importa esclarecer e defender, a bem da proteção e segurança jurídicas imprescindíveis ao exercício do comércio.

9. A. questão é, no entanto, controversa, são sendo de fácil resolução, uma vez que os diversos sentidos com que ela tem vindo a ser tratada na jurisprudência recolhem elementos a favor tanto do "levantamento do sigilo", como da legitimidade em recusar a entrega ou exibição de tais elementos de escrituração mercantil aos tribunais (cfr. Acórdãos citados).

10. Pelas mesmas razões, entendem ainda as recorrentes que será necessário apurar quem são os "interessados", abrangidos pela norma contida no artigo 42.° do Código Comercial, não podendo, com. o devido respeito, o Tribunal recorrido referir, sem mais, que basta invocar a titularidade do direito.

11. Afiguram-se assim necessárias operações de exegese destinadas a esclarecer o alcance das normas as contidas nos artigos 417,°, n.º 3, alínea c) do NCPC (anterior 519,°, n.º 3 alínea c) do CPC), 435.° do NCPC (anterior 534.° do CPC) e 42.° e 43.° do Código Comercial-, que são, como se viu, passíveis de diversas interpretações, de tal modo que é posta em causa uma boa aplicação do direito.

12. Acresce que, o acórdão ora recorrido está em contradição com o acórdão-fundamento proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, no processo n.º 7655/2004-6, datado de 27/01/2005, já transitado em julgado (artigo 370.°, n.º 2 do CPC), num caso muito semelhante ao dos presentes autos (cfr. transcrição supra).

13. Em oposição ao acórdão ora recorrido, o mesmo Tribunal da Relação entendeu que (i) uma sociedade anónima, terceira em relação à ação, não pode ser compelida a comunicar ao Tribunal a lista dos seus acionistas que é matéria da sua esfera privada e que (ii) a recusa a obedecer a uma tal solicitação é legítima nos termos do art. 519°, na 3, alínea a) do Cód. Proc. Civil.

14. Nestes termos, entendem as recorrentes que se encontra verificado também o pressuposto referido no nº 1, alínea c) do artigo 672.° do CPC, devendo o presente recurso de revista excecional ser admitido e apreciado por este Venerando Tribunal.

15. Entendem ainda as recorrentes que o Tribunal da Relação de Lisboa procedeu a uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 417.°, n.º 3, alínea c) do NCPC (anterior 519.°, nº 3 alínea c) do CPC), 435.° do NCPC (anterior 534.° do CPC) e 42.° e 43.° do Código Comercial, o que é fundamento do recurso de revista, ao abrigo do disposto no artigo 674.°, nº 1, alínea a) do CPC.

O facto de não se ordenar a exibição da escrituração comercial por inteiro, mas apenas em parte, não é, por si só, fundamento para impor a quebra do sigilo profissional. É, desde logo, necessário, que a exibição judicial (de parte) da escrituração mercantil se mostre adequada à descoberta da verdade.

17. No entanto, o entendimento do tribunal da Iª instância, confirmado pelo Tribunal recorrido é o de exigir que seja exibida escrituração comercial, das sociedades ora recorrentes, relativa ao período de 10 (dez) anos que antecedeu a morte do inventariado, sem sequer fundamentar por que razão determinou a revelação de elementos relativos a um lapso de tempo tão alargado,

18. Por outro lado, é totalmente despropositada e infundada a escolha das sociedades ora recorrentes como detentoras de supostos elementos interessantes para a causa - não se encontra nos autos um único indício de que o inventariado tenha sido detentor de ações naquelas sociedades.

19. Acresce que o Tribunal recorrido, a respeito da qualidade de interessado do menor OO refere apenas que "a questão de saber se o recorrido tem efectivamente a titularidade do direito invocado só poderá ser objecto de apreciação posterior. Para a questão que ora nos ocupa, importa apreciar se o mesmo invoca a titularidade de um direito cuja prova pretende efectuar. E essa titularidade foi invocada "nos termos acima indicados. "

20. Essa interpretação e aplicação do disposto no artigo 42.º do Código Comercial não poderá, de todo, proceder.

21. A entender-se que basta invocar a titularidade da qualidade de interessado, estaríamos perante o cenário absurdo de se poder vir a constatar, após a exibição judicial da escrituração mercantil das sociedades ora recorrentes com quebra do sigilo profissional, que o "interessado" afinal não o era.

22. Sendo que, o direito das sociedades ora recorrentes a manter o sigilo da sua atividade, seria irremediavelmente perdido. Uma vez revelada a escrituração comercial já não haverá segredo comercial algum a resguardar.

23. O regime constante do Código Comercial a respeito da revelação do conteúdo da escrituração comercial é bastante claro: fora dos casos previstos no mencionado artigo 42.°, não é, sequer, admissível a exibição judicial (por inteiro, ou em parte) da escrituração mercantil - deve antes (i) proceder-se ao seu exame no domicílio profissional do comerciante, (ii) na presença deste, (iii) estando o exame limitado à averiguação dos elementos que tenham relação com a questão, sendo ainda (iv) necessário que o comerciante a quem pertença a escrituração mercantil tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exibida (cfr. imposição do artigo 43.° do Código Comercial).

24. Pelo mesmo motivo, não pode colher a justificação meramente hipotética adiantada pelo Ministério Público e acolhida pelo tribunal da 1. a instância de que poderão estar em causa eventuais situações de inoficiosidade - este raciocínio poder-se-ia aplicar, em tese (mas erradamente), a todas as sociedades comerciais. Não compete, naturalmente, às sociedades ora recorrentes apresentar prova, de qualquer negócio de transmissão de ações e respetivos termos, desde logo devido à evidente circunstância de não dispor dos meios para tal - os documentos cuja exibição judicial se exige nada adiantarão a esse respeito.

25. Assim, uma vez que o menor OO não é "interessado", para efeitos de aplicação do disposto no artigo 42.º do Código Comercial, não pode ser exigida às sociedades ora recorrentes a exibição judicial de nenhum documento da sua escrituração mercantil.

26. Quando muito, poder-se-ia aplicar o artigo 43.º do Código Comercial, que determina o exame da escrituração mercantil (e não a sua exibição judicial), contanto que se reunissem os pressupostos de aplicação daquela norma - que, como se procurou demonstrar, não se reunirão.

27. A escrituração mercantil é secreta, por natureza, cedendo esta regra apenas perante os casos taxativamente previstos na lei (artigos 42.º e 43.º do Código Comercial).

28. As sociedades ora recorrentes, sendo sociedades anónimas, não estão obrigadas a desvendar a identidade dos seus acionistas - tal informação está (e deve estar) protegida pelo segredo mercantil. Aliás, sendo, como são na sua maioria, sociedades emitentes de ações ao portador, as sociedades não detêm sequer elementos sobre a identidade dos seus acionistas.

29. Tendo o tribunal recorrido interpretado e aplicado incorretamente as normas constantes dos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial, não existe motivo para se quebrar a regra: a escrituração mercantil das sociedades comerciais é sigilosa.

30. Deve, portanto, concluir-se que a recusa das sociedades ora recorrentes em exibir documentos integrantes da sua escrituração mercantil é totalmente legítima ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 417.°, do CP'C.

31. Tanto mais que, há que aplicar o dever de colaboração para a descoberta da verdade, plasmado na norma legal citada, à luz de critérios de proporcionalidade (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 17/04/2008, proc. n.º 9558/2007-6, supra citado).

32. Sendo que, no presente caso, temos (i) De um lado, um capricho da representante legal do menor OO em querer, a todo o custo, aceder à lista de acionistas das sociedades recorrentes, sem qualquer fundamento ou legitimidade para o fazer; (ii) Do outro lado, temos as sociedades anónimas ora recorrentes - que já vieram aos autos demonstrar que o inventariado não era, à data da morte, acionista de nenhuma dessas sociedades - com todo o direito a guardar sigilo sobre a identificação dos seus acionistas,

33. Posto isto, não se crê como poderá prevalecer o direito do menor que se arroga "interessado" sem sequer o ser.

34. Assim sendo, o tribunal a quo deveria ter concluído pela legitimidade da recusa e, em consequência, deveria ter seguido o procedimento proposto pelo n.° 3 do artigo 135.° do Código de Processo Penal (aplicável por força do n.° 4 do artigo 417.°, do CPC), que impõe a intervenção de tribunal superior, caso o tribunal a quo considerasse que o exame (e não a exibição judicial) da escrituração mercantil das recorrentes seria imprescindível para a descoberta da verdade (apurar se o menor OO detém algum direito sucessível nas sociedades recorrentes) - o que também, repita-se, se coloca sem conceder.

35. Pelo que, s.m.o., entendem as recorrentes que o Tribunal da Relação de Lisboa procedeu a uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 417.°, n.º 3, alínea c) do NCPC (anterior 519.°, 0.° 3 alínea c) do CPC), 435.° do NCPC (anterior 534.° do CPC) e 42.º e 43.° do Código Comercial, o que é fundamento do recurso de revista, ao abrigo do disposto no artigo 674.°, n. º 1, alínea a) do CPC.

36. Termos em que deverá o presente recurso de revista ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a decisão constante do Acórdão da Relação de Lisboa, na parte relativa à manutenção do despacho da 1.a instância que julgou ilegítima a recusa da junção aos autos das listas de presença nas assembleias gerais das recorrentes, de 2000 a 15.01.2010, devendo ser declarada por este Venerando Tribunal a dispensa da junção aos autos dessas listas de presença.

Termos em que, sempre com o douto suprimento dos Venerandos Juizes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a decisão constante do Acórdão da Relação de Lisboa, na parte relativa à manutenção do despacho da 1ª instância que julgou ilegítima a recusa da junção aos autos das listas de presença nas assembleias gerais das recorrentes, de 2000 a 15.01.2010, devendo ser declarada por este Venerando Tribunal a dispensa da junção aos autos dessas listas de presença.

Assim se fazendo a costumada Justiça!”

O Ministério Público apresentou contra-alegações (fls 312 e s), sustentando a manutenção do acórdão recorrido e a improcedência do recurso.

II. Fundamentação

3. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões das alegações do recorrente.

Nelas vêm identificadas várias questões. O relator já teve oportunidade de se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso, que considerou admissível, à luz do art.º671.º, n.º1 do CPC.

As questões que não foram tratadas ainda são as seguintes: i) contradição de acórdãos; ii) recusa por parte das recorrentes na apresentação dos documentos em causa; iii) legitimidade do herdeiro do inventariado para requerer diligências a que se reporta o art.º42.º e 43.º do C.Com.

4. Dizem as recorrentes na sua conclusão 12: “o acórdão ora recorrido está em contradição com o acórdão-fundamento proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, no processo n.º 7655/2004-6, datado de 27/01/2005, já transitado em julgado (artigo 370.°, n.º 2 do CPC), num caso muito semelhante ao dos presentes autos.”

E na 13: “Em oposição ao acórdão ora recorrido, o mesmo Tribunal da Relação entendeu que (i) uma sociedade anónima, terceira em relação à acção, não pode ser compelida a comunicar ao Tribunal a lista dos seus accionistas que é matéria da sua esfera privada e que (ii) a recusa a obedecer a uma tal solicitação é legítima nos termos do art. 519°, na 3, alínea a) do Cód. Proc. Civil.”

As recorrentes juntaram certidão do Acórdão fundamento a fls. 306 e ss, confirmando-se o trânsito em julgado da decisão em 14 de Fevereiro de 2005.

No acórdão fundamento esteve em causa uma providência cautelar de arresto em que foram arrestante a PP – Telecomunicações e Electrónica Lda e arrestada a QQ – SGPS, SA. Tendo sido decretado o arresto das acções nominativas detidas pela arrestada na sociedade RR- SA até certo montante pecuniário, veio a arrestada dizer que não tinha acções da referida RR no seu activo, o que determinou o tribunal a notificar a RR – Telecomunicações SA para informar o tribunal se a arrestada era titular de participações no seu capital – acções nominativas ou ao portador e, no caso de não o ser, informasse a lista dos seus accionistas para que o tribunal pudesse confirmar se alguma das sociedades que se encontrava em relação de domínio ou grupo com a arrestada seria accionista da RR. A RR- SA informou o tribunal que a arrestada não era sua accionista – disse: não é nem nunca foi accionista directa –  e quanto às sociedades em relação de domínio ou grupo com a arrestada informou o tribunal que não sabendo quem elas eram não poderia informar se são accionistas ou não da RR- SA. O tribunal insistiu no pedido de envio da lista dos accionistas, titulares de acções nominativas, ao que a RR respondeu dizendo não poder prestar tal informação por atentar contra os interesses dos seus accionistas, alheios à causa.

O tribunal condenou a RR- SA, por falta de colaboração com o tribunal, em multa, renovando a notificação para prestar a informação, sob cominação de nova multa. A RR- SA recorreu. O recurso foi apreciado pelo Tribunal da Relação de Lisboa que analisou o dever de colaboração dos terceiros com o tribunal – art.º 519.º do CPC – cujo âmbito abrangeria a resposta às perguntas que fossem efectuadas, sujeição a inspecções, facultar o que seja requisitado ou praticar actos que sejam determinados. Aí se indicou que a recusa em colaborar é sancionada com multa, se o recusante não for parte no processo. Foram igualmente indicados os casos em que a recusa seria legítima – casos do n.º3 do art.º519.º –  em que outros valores se sobreporiam ao da descoberta da verdade, nomeadamente quando a obediência ao tribunal importa uma intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

O tribunal veio a considerar que o acesso à lista de todos os accionistas é uma inquestionável intromissão na vida privada da sociedade, pois representaria uma publicitação da identidade à revelia da autorização dos accionistas quanto à sua qualidade de sócios, considerando legítima a recusa na divulgação da lista. A ordem judicial foi assim considerada desproporcionada e inútil, tendo sido revogada.

4.1. Feita uma breve descrição dos contornos da situação analisada no acórdão-fundamento, pode concluir-se que os temas analisados foram:
1. Objecto da recusa de informação – fornecimento de lista de accionistas titulares de acções nominativas, através do acesso ao livro de registo de acções – sociedade com acções nominativas;
2. As normas em discussão foram: dever de cooperação para a descoberta da verdade – art.º519.º do CPC – ponderado à luz dos Art.º42.º e 43.º do C.Com, impondo restrições ao acesso público aos livros e documentos dos comerciantes, com referência às regras que definem o acesso dos accionistas ao livro de registo de acções, por referência ao direito à informação – art.º 288.º CSC – e ao âmbito da informação (proporcionalidade e utilidade).

As recorrentes consideram que, deste acórdão, se conclui que há oposição jurisprudencial pois o Tribunal da Relação terá entendido que (palavras conclusivas das recorrentes):
i) “Uma SA, terceira em relação à acção, não pode ser compelida a comunicar ao Tribunal a lista dos seus accionistas que é matéria da sua esfera privada;
ii) A recusa a obedecer a uma tal solicitação é legítima nos termos do art.º519.º, n.º3 do CPC”(transcrição – fl. 285, §3).

4.2. Quanto à verificação da existência de efectiva contradição de decisões:

Do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ora recorrido, consta o seguinte texto (p. 14, a fls. 265 verso):
“Já no que concerne à junção integral dos livros de registo das acções (embora dentro de um determinado período temporal), a solução deverá ser diversa da acolhida pelo Tribunal recorrido.
Estabelece o art. 288°, n°1, e) do Código das Sociedade Comerciais que, qualquer accionista que possua acções correspondentes a, pelo menos, 1% do capital social pode consultar, desde que alegue motivo, justificado, na sede da sociedade, o documento dc registo de acções.

O documento de registo das acções não é, assim, de acesso livre.
O citado artigo 42° do Código Comercial prevê a exibição judicial de livros de escrituração mercantil em questões de sucessão universal.
A lei não prevê, contudo, a junção aos autos dos livros e apenas poderia ser ordenada a sua exibição (desde que tal tivesse sido requerido e estivessem reunidos e verificados os necessários pressupostos)2.

Procede, assim, parcialmente, o recurso de apelação.”

Como se indicou no ponto anterior, o invocado acórdão fundamento tratou especificamente da junção, a processo judicial do qual não fazia parte a sociedade solicitada a prestar a informação, da lista dos seus accionistas através da informação constante do livro de registo de acções.

E foi aí entendido que o acesso à informação constante desse livro de registo – assumindo-se (sem questionar, como deveria ter acontecido) que o acesso a esse livro permitiria à sociedade com acções nominativas saber a cada momento quem são os titulares de participações no seu capital social – não podiam ser exigido a terceiras entidades (que não sejam partes na acção), nomeadamente à emitente, senão de forma proporcionada e útil face aos fins visados, sem devassa da privacidade e da tutela do sigilo permitido pelas normas do código comercial e societário.

O tribunal restringiu, assim, o acesso à lista de accionistas – não tendo distinguido a lista de accionistas da informação constante do livro de registo de acções, não curando de saber da questão se se pode considerar que o livro de registo de acções contem uma lista de accionistas senão por referência ao momento constitutivo (art.º305.º CSC)[1].

Ao vedar o acesso ao livro de registo de acções o tribunal quis assim resguardar a identidade da titularidade dos detentores de participações no capital da sociedade anónima, que no caso do acórdão fundamento, até tinha acções nominativas.

No acórdao do Tribunal da Relação impugnado a posição que vem assumida sobre a apresentação da lista dos titulares de participações no capital social é exactamente a mesma. Não há contradição. Não se aceitou o acesso livre ao livro de registo de acções, nem o dever de ser apresentado o livro em tribunal.

Veio a admitir-se que, em alternativa, fosse ordenada apenas a exibição do livro de registo de acções, desde que verificados os pressupostos da mesma, nos termos do art.º42.º do C.Com.

Nesta parte da decisão do Tribunal da Relação – que é aliás a parte não impugnada – não há contradição com o acórdão fundamento.

4.3. Porém, porque na decisão do Tribunal da Relação não se trata apenas da lista dos accionistas através da cópia/exibição do livro de registo de acções, mas vem-se a confirmar a decisão da 1ª. instância de serem juntas aos autos a lista de presenças das Assembleias Gerais, desde o ano de 2000 até à data da morte do inventariado (15/01/2010), importa verificar se a decisão é contraditória com o acórdão fundamento.

É evidente pela leitura do acórdão fundamento e da decisão impugnada que a referida contradição directa não existe. No acórdão fundamento estava a tratar-se da cópia do livro de registo de acções e lista de accionistas e no acórdão recorrido está a tratar-se da lista de presenças em determinadas assembleias gerais.

Nessa medida são duas matérias diferentes e duas decisões aparentemente distintas, pelo que não se pode dizer que exista directamente contradição entre elas. Porém, a contradição pode estar implícita, o que iremos analisar, mas não sem antes referir que:
1. Os dois acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação;
2. Não existe nenhum Ac. de UJ com o qual o acórdão recorrido se conforme.

4.4. Para o efeito de saber se, na sua esseência, existe contradição entre os acórdão fundamento e recorrido importa aprofundar um pouco o sentido da lista de presenças nas assembleias gerais e a lista de accionistas/livro de registo de acções.

A lista de presenças nas assembleias gerais é organizada e verificada pelo presidente da mesa da assembleia geral como meio de controlo da identidade dos accionistas que pretendem participar ou fazer-se representar em assembleia geral, para aí exercerem os seus direitos sociais. Uma vez que o Presidente da mesa da assembleia geral dirige os trabalhos da assembleia, coloca os assuntos em discussão, verifica os resultados das votações, proclama os resultados e tem de elaborar uma acta, não poderia exercer as suas atribuições se não lhe fossem facultados instrumentos de controlo da qualidade de sócio e de presença/representação. A lista de presenças é, assim, a designação habitual para o documento de controlo das presenças e representação voluntária dos accionistas nas assembleias gerais das sociedades comerciais, onde habitualmente se indica quem esteve presente e qual a percentagem de capital social detido. A lista de presenças não serve para controlar a qualidade de sócio – não é essa a sua finalidade directa – pois o que se pretende é saber quem esteve presente/representado e qual a percentagem de capital social detido e com que pode votar. Porém, indirectamente, poder-se-á dizer que pela análise da lista de presenças – se devidamente elaborada, com identificação completa do sócio e indicação de que está em nome próprio ou em representação – se obtém informação sobre quem apresenta a qualidade formal de sócio na data da assembleia.

Essa qualidade é formal por resultar da conjugação dos regimes aplicáveis à demonstração da qualidade de sócio[2] – exibição de título (acções ao portador) ou inscrição no livro de registo (acções nominativas). Essa qualidade é formal ainda porque da sua demonstração resulta uma presunção de titularidade que, pelo menos na relação entre detentor do título e verdadeiro titular, pode admitir prova em contrário.

A elaboração das listas visa assim conferir ao ente colectivo um meio de documentar as conclusões que tem por correctas relativamente à demonstração da qualidade de sócio – e respectiva quantificação em termos de capital social – para poder dirigir a assembleia e relacionar-se com os seus membros, sem prejuízo de esta lista também servir outras funções. No essencial parece-nos correcto dizer que a lista de presenças – na medida em que os sócios se façam presentes ou representados – tem também uma função acessória de identificação dos sócios, mas apenas identificará os que comparecerem. Não é um documento de prova da qualidade de sócio – mas revela quem é sócio (ou se presume ser) e, nessa medida, a sua disponibilização a terceiros (que não a sociedade e porventura outros sócios) não deve poder ser feita irrestritamente e sem balizas.

Cremos assim que materialmente os dois acórdãos tratam da mesma questão fundamental de Direito, no domínio da mesma legislação, e definindo soluções diversas, o que poderia justificar, por si só, a admissibilidade do recurso de revista excepcional, caso se entendesse que existe dupla conforme, como obstáculo à revista.

Não foi aquele o entendimento seguido: a nosso ver não há dupla conforme, porque a decisão da 1ª instância não foi integralmente confirmada pelo Tribunal da Relação, que confirmou uma parte da sentença e revogou a decisão no remanescente. A revista é admissível pelo art.º671.º, n.º1 do CPC, não sendo relevante a existência da contradição de acórdãos senão para a análise que se irá efectuar às questões seguintes colocadas no recurso. Será aqui particularmente relevante a ligação existente entre a lista de presenças em assembleias gerais e a lista de accionistas, como meio de obter a identificação da qualidade dos sócios das sociedades comerciais.

5. Recusa por parte das recorrentes na apresentação dos documentos em causa – sentido dos art.ºs 417,°, n.º3, alínea c) do NCPC (anterior 519,°, n.º 3 alínea c) do CPC), 435.° do NCPC (anterior 534.° do CPC), em ligação com os art.º42.º 2 43.º do C.Com

5.1. Ao analisar este ponto, teve o Tribunal da Relação oportunidade de transcrever o teor dos art.º 42.º e 43.º do C.Com, sobre a exibição judicial de escrituração mercantil e exame nos livros e documentos.

A transcrição envolveu a versão dos artigos 42.º e 43.º antes e depois da alteração efectuada ao Código Comercial pelo DL n.° 76-A/2006, de 29 de Março, pondo em evidência que, com a mudança ocorrida no art.º42.º, se eliminou a referência “por inteiro” à exibição judicial dos livros de escrituração comercial, e passou a usar-se a palavra “insolvência” em vez de “quebra”, enquanto no art.º43.º ocorrerem mudanças linguística apenas de estilo.

O Tribunal da Relação considerou que a a supressão da expressão "por inteiro" no art. 42° do Código Comercial poderia ser explicada através do sentido retirado do  preâmbulo do DL 76-A/2006, de 29 de Março onde é mencionado: «o presente decreto-lei elimina a obrigatoriedade de existência dos livros da escrituração mercantil nas empresas e, correspondentemente, a imposição da sua legalização nas conservatórias do registo comercial. Logo, os livros de inventário, balanço, diário, razão e copiador deixam de ser obrigatórios, apenas se mantendo os livros de actas».
E mais não disse sobre a grande diferença de âmbito entre o estabelecido no art.º42.º e no art.º43.º do C.Com.
Por referência ao art.º43.º indicou ainda jurisprudência sobre a sua vigência - Acórdão do STJ n.º 2/98, de 22 de Abril de 1997 ( DR I-A de 08.01.1998), do qual ressalva a ligação existente entre o art.º43.º e o art.º 519.º, n.º 1 do CPC de 1961, na versão de 1967, passando de imediato à análise deste dispositivo, actualmente constante do art. 435° do CPC.

Sobre aquele controverso artigo – depois de várias reformas legais do CPC – indicou como sendo jurisprudência assente, conforme refere, o Acórdão dessa Relação de 17/04/2008, disponível em www.dgsi.pt, relatado pela Exma Desembargadora 2° Adjunta, onde se afirmou: «Embora alguns autores e uma parte da jurisprudência já tenha defendido que, pelas razões expostas, o critério a tomar em consideração, neste particular, é basicamente o do n° 3, alínea c) e do n° 4, do art.° 519° do CPC, não sendo proibido o exame ou inspecção especificada aos livros de documentação comercial e a documentos a ela atinentes, das partes ou de terceiros, ainda que não tenham interesse ou responsabilidade na questão, há que não esquecer que o disposto no art. 519 n° 1, como enunciação de um princípio geral, que é, está também ele sujeito ao princípio da proporcionalidade ... ».

Ao fazer esta análise o Tribunal colocou o acento tónico nos dois pontos que nos parecem fulcrais: i) distinguir o campo de aplicação do art.º42.º e 43.º do C.Com; ii) definir em que termos pode ser imposta a colaboração com o tribunal, especialmente quando resulte numa ordem para que se proceda a exame ou inspecção nos livros da escrituração comercial das sociedades.

Quanto à primeira situação – delimitar o âmbito do art.º42.º e 43.º do C.Com – cremos que um dos elementos essenciais dessa delimitação passa pela leitura conjugada da norma na sua versão antes e depois de 2006. A expressão “por inteiro” que constava na versão anterior e não consta hoje é um elemento chave, pois com essa expressão pretendia-se marcar a diferença entre exigir que uma sociedade exibisse judicialmente livros de escrituração comercial por inteiro, ou na íntegra, face ao que se afirmava no art.º43.º –  em que a exibição seria parcial e em resultado do exame, que como se dizia no §  único, seria um exame que “a haver lugar, far-se-á no escritório deste, em sua presença, e limitar-se-á a averiguar e extrair o tocante aos pontos especificados que tenham em relação com a questão”. Isto é, do exame resultaria a possibilidade de serem extraídas partes dos livros e documentos comerciais.

Assim se compreenderia a diferença entre consulta e exibição na integra ou no todo – regime do art.º42.º; consulta e exibição parcial – regime do art.º43.º

Esta diferença essencial não pode ser tida por alterada pela modificação legal de 2006, uma vez que nada parece apontar nesse sentido. O supressão foi apenas um detalhe linguístico do legislador que, não se tendo apercebido que a referência estava ali colocada para permitir a diferenciação de âmbito face ao art.º43.º, considerou que a mesma havia perdido sentido pois os livros de escrituração mercantil existentes até à data deixaram de existir – mantendo-se apenas o livro de actas.

5.2. Porém, as regras da boa interpretação normativa impõe-nos que consideremos todos os factores atendíveis na fixação do sentido da norma – deste a sua origem até ao seu sentido útil – o que nos leva a concluir que a principal diferença entre o art.º42.º e o art.º43.º do C.Com se mantém iguais.

Assim já era entendido em tempos idos. Em 1914 este era o entendimento de LUIS DA CUNHA GONÇALVES, ilustre comentador do Código Comercial de 1888, que na sua obra de Comentário, pp. 112 a 115 analisa conjuntamente os art.ºs 42.º e 43.º do C.Com, aludindo à destrinça entre exibição integral (art.º42.º) e exibição parcial/exame (art.º43.º); O mesmo vem indicado na obra de F.V. GONÇALVES DA SILVA, editada em 1938 (tese de doutoramento), intitulado A regulamentação legal da escrituração mercantil, Lisboa, Empresa Nacional de publicidade, que pode ser acedida em file:///C:/Users/fatima%20gomes/Downloads/TD-FVGS-1938.pdf , destacando-se o Capítulo V, p. 196-7, sobre a exibição judicial da escrituração, que indica os termos usados na legislação de Espanha, França, Itália e Alemanha – com palavras que melhor permitem perceber a diferença entre exibição e exame. Neste escrito também se dá nota da necessidade de ordenar exibições e exames à escrita que sejam ponderados e equilibrados, em face dos interesses envolvidos (p. 197-8). A exibição judicial total, diz-se aí, só deve ordenar-se quando se justifica a análise de toda a escrituração ou documentação – e não apenas uma parte (p. 200) – e priva o comerciante da respectiva posse, para a entregar ao juiz, que deve supervisionar o uso que deles se faz. Indica-se mesmo jurisprudência do STJ  (acórdão de 25-4-1893) no sentido da sociedade oferente do livro poder assistir à consulta). A exibição vem admitida inclusive em matéria de sucessão universal – fls 203. Sobre o exame ou exibição parcial – p. 207 – diz-se que o acesso à documentação terá por objecto apenas o que for necessário para esclarecer as dúbivas que se suscitam, sendo aplicáveis as regras processuais e legais sobre a nomeação do perito que fará o exame, o qual fica sujeito ao dever de sigilo sobre tudo o que tiver visto e não interessar à causa – p. 209.

Esta diferença está reflectiva na decisão de 1ª instância, a fls. 5 dos autos, onde se indica o Ac. do STJ de 25/11/1997, proferido no proc. 97A826.

Cremos que o Tribunal da Relação também teve um  entendimento semelhante na distinção entre o art.º42.º e o 43.º do C.Com. Aí se disse: “Ora, o artigo 42° do Código Comercial considera que em questões de "sucessão universal" poderá ser ordenada a exibição judicial da escrituração mercantil. No que concerne ao exame parcial da escrituração ( previsto no artigo 43° do mesmo diploma legal) das limitações expostas ficam ressalvados os casos previstos no artigo anterior. A junção das listas de presença das Assembleias Gerais das recorrentes durante o período temporal indicado é equiparável ao exame parcial, que, tal como nos casos de exibição da escrituração, poderá constituir meio de prova desde que respeite a questões de sucessão universal.

5.3. O que o Tribunal não disse foi que o despacho recorrido, que estava a analisar, não havia sido proferido verdadeiramente ao abrigo do art.º43.º do C.Com, mas sim ao abrigo do art.º42.º (ainda que venha justificado como sendo emitido ao seu abrigo, entendemos que só pela decisão se pode aferir ao abrigo de que norma ele é emitido) – ou no máximo, ao abrigo de ambas as normas.

Sendo emitido ao abrigo do art.º42.º do C. Com, a obrigação da requerida seria (legalmente) a de exibição da documentação solicitada – com a possibilidade de os interessados verem quem consta da lista de presenças das assembleias gerais de todas as sociedades recorrentes ao longo de 10 anos; tais documentos teriam de ser exibidos judicialmente, com toda a informação neles constante. E com essa exibição ficar-se-ia a saber quem tinha comparecido nas assembleias gerais das sociedades recorrentes, ao longo de 10 anos, podendo traçar-se uma linha tendente à identificação dos accionistas das sociedades que não o inventariado. Existindo outros sócios, a sua identidade seria desvendada, sem que se identificassem motivos razoáveis para o efeito.

Ao invés, se a solicitação do tribunal tivesse sido efectuada com base no art.º43.º do C.Com, em vez de exibição, estaríamos perante um exame dessa documentação. Exame esse que seria feito nas instalações da sociedades, com representantes dela, que poderiam controlar o uso da documentação e ajudar a seleccionar o que poderia ser relevante para o processo de inventário.

Ora, o Tribunal da Relação ao fazer a equiparação entre lista de presenças e exame parcial podia ter ido mais longe no seu raciocínio, verificando os termos do despacho recorrido – o pedido e o ordenado – tal como veio a realizar quanto ao pedido de acesso ao livro de registo de acções [“O documento de registo das acções não é, assim, de acesso livre. O citado artigo 42° do Código Comercial prevê a exibição judicial de livros de escrituração mercantil em questões de sucessão universal. A lei não prevê, contudo, a junção aos autos dos livros e apenas poderia ser ordenada a sua exibição (desde que tal tivesse sido requerido e estivessem reunidos e verificados os necessários pressupostos)” – extracto do acórdão].

Na verdade, o teor do art.º42.º é o mesmo. Se aí se prevê a exibição (e não a junção), se se julgou inexigível a junção do livro, só se poderia julgar inexigível a junção da lista de presenças em assembleia geral – é que o pedido deferido pela 1ª instância era de junção aos autos quer da lista de presenças das Assembleias Gerais, desde o ano de 2000 até à data da morte do inventariado (15/01/2010), quer do livro de registo de acções referente ao mesmo período.

5.4. A colaboração exigida pelo CPC não obriga as sociedades recorrentes a fornecer informação que não se conforme com as disposições legais a que se reportam os art.º42.º e 43.º do C.Com, sem prejuízo de poderem existir normas especiais que alarguem o âmbito do dever de informação e colaboração.

Na opção entre determinar a colaboração das entidades comerciais com o tribunal, ordenando que se cumpra o estabelecido no art.º42.º ou no art.º43.º, deve o tribunal atentar nos interesses da requerida, ordenando apenas o estritamente necessário à satisfação dos direitos e legitimos interesses do requerente, que mereçam tutela, ainda que apenas potencial – o que significa questionar o porquê da informação solicitada, da sua extensão temporal e quanto ao conteúdo, face a elementos objectivos mínimos que sejam presentes e, perante um juízo de probabilidade e razoabilidade, possam ser deferidos.

A opção pelo exame dos documentos das sociedades recorrentes ao abrigo do regime do art.º43.º do C.Com não ofereceria dúvidas sobre a sua admissibilidade, uma vez que já foi decidido por Ac. do STJ n.º2/98, que o art.º43.º do C.Com não foi revogado, tendo a jurisprudencia posterior tido oportunidade de aprofundar os termos em que tal exame pode ser deferido, nomeadamente na circunstância de a pessoa a quem pertençam não ter interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida – cf. Ac. do STJ de 25/11/97, proc. 97A826 – fls 4 dos autos, com sumário transcrito.

5.5. Uma análise do sigilo comercial em torno dos comerciantes, tomando por referência 1998, pode ser vista no Ac. do STJ n.º2/98, em que estava em causa saber se uma sociedade comercial que não é parte e não se mostra que tenha interesse ou responsabilidade na questão em debate pode ser obrigada a exibir, para exame, em processo civil, os seus livros e documentos.

Aí se disse sobre o segredo ou sigilo:

 “A existência do segredo profissional, em geral, apresenta-se como necessária, se se quiser a manutenção de um mínimo de segurança por parte dos profissionais e daqueles com quem eles entram em relação que permita consolidar a confiança que deve existir no funcionamento do respectivo sector de actividade e na sociedade. Embora haja profissões mais exigentes do que outras na discrição ou reserva que impõem — haja em vista, no campo comercial, os bancos e as seguradoras —, o comércio, em geral, não pode constituir excepção, entendendo-se que os comerciantes e seus clientes devem ver protegidos pelo segredo determinados objectos e actuações. Com este segredo procura-se proteger «a privacidade do comerciante de afastar os seus bens da cobiça alheia e de evitar que a sua actividade seja afectada por informações sobre a sua situação e as perspectivas do negócio» (L. Brito Correia, Direito Comercial, I, p. 309). A matéria relativa ao segredo da escrituração mercantil e documentos dos comerciantes encontra-se prevista nos artigos 41.o , 42.o e 43.o do Código Comercial, donde resulta que o primeiro proíbe o varejo para exame da arrumação da escrita, o segundo limita a casos restritos a exibição judicial por inteiro dos livros e documentos e o terceiro estabelece as condições em que se pode proceder a exame dos livros e documentos dos comerciantes. Em face destes preceitos, Mário de Figueiredo, in Lições de Direito Comercial, 1928, p. 180, sinteticamente, sustentava que a escrituração mercantil era secreta, só podendo ser ordenada a exibição por inteiro ou a apresentação parcial em favor de interessados.”

Hodiernamente a referência ao sigilo comercial de que beneficiam os comerciantes não colhe unanimidade doutrinal. Neste sentido vem questionada por COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Vol. I , 10ª ed., 2016, p. 192-4, referindo o art.º41.º do C.Com (na versão anterior a 2006) como sendo a norma que consagrava o segredo e acentuando os inúmeros exemplos de excepção ao (suposto) sigilo, impostos por lei que determina a revelação de elementos da vida da sociedade comercial. O ilustre Professor apresenta o exemplo dos deveres informativos para com a autoridade tributária, no âmbito da defesa da concorrência, na legislação societária, no registo comercial e ainda no âmbito laboral.

Os exemplos poder-se-iam multiplicar, mas não cremos que, na essencial, por muitos casos que possam ser enumerados, se possa inverter o sentido geral de que a documentação comercial não é de acesso livre – como decorre, em geral, do art.º42.º e 43.º do C.Com e do art.º 435.º do CPC – este esclarecendo que “A exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos rege-se pelo disposto na legislação comercial.”

A recente proibição de emissão de acções ao portador – Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio – é mais um exemplo da intervenção legal no domínio comercial em que se restringe o sigilo – obrigando a que os accionistas titulares de acções ao portador convertam as acções em nominativas, ficando a sociedade emitente em condições de identificar – a todo o tempo – quem são os seus accionistas.

Porém, daqui não se deve retirar a ilação de que essa informação se tornou de acesso público e livre, pois não foi esse o motivo que conduziu o legislador a “eliminar” as acções e outros valores mobiliários ao portador.

5.6. Como se referiu o art.º435.º do NCPC (anterior 534.° do CPC) deixa inequívoco que, em matéria de prova por documentos (CAPÍTULO II, art.ºs 423.º e ss do CPC), há restrições admissíveis à exibição judicial por inteiro dos livros de escrituração mercantil e documentos a ela relativos, impondo-se verificar em que termos a lei comercial obriga a essa exibição.

Por seu turno, o art.º417.°, n.º 3, alínea c) do NCPC (anterior 519.°, n.°3, alínea c) do CPC) inserindo-se nas disposições gerais sobre a instrução do processo (TÍTULO V - Da instrução do processo, CAPÍTULO I - Disposições gerais, iniciando nos art.ºs 410.º do NCPC), diz:

Artigo 417.º (art.º 519.º CPC 1961)
Dever de cooperação para a descoberta da verdade

1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;

c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.

4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

Estas normas estabelecem os termos da colaboração de alguém (que não é parte no processo com o tribunal) dizendo-se que essa colaboração é um dever (n.º1 do art.º417.º), mas um dever que conhece balizas: i) as balizas permitidas pelo n.º3, entre as quais se inclui a invocação de outros deveres conflituantes com o de cooperação, como o de sigilo ou segredo profissional; ii) implicitamente as balizas decorrentes da emissão de uma ordem desproprocionada e injustificada face ao objectivo pretendido e legitimo. Por seu turno, o art.º434.º trata de uma modo específico de colaboração com o tribunal – a de recusa exibição judicial integral de documentos relativos à escrituração mercantil.

Ambas as normas são de cariz processual, mas com projecção substantiva. Estando inseridas no CPC são de aplicação directa ao processo civil e comercial e podem ser aplicadas noutros âmbitos. Mas na sua aplicação pressupõem sempre a conjugação com no seio do ordenamento jurídico como um sistema, articulado e coerente. Essa articulação pressupõe, tratando-se de sociedade comercial, a ligação à disciplina mercantil – vg. Art.º 42.º e 43.º do C.Com – que funcionarão como baliza adicional à utilização do regime geral.

Por tais motivos, não pode a invocação do dever de colaboração importar o dever de actuar fora do âmbito das regras definidas pelos art.ºs 42.º e 43.º (podendo existir outras). A coerência do sistema o impede.

Tendo sido desrespeitado o art.º42.º do C.Com – por se exigir junção de documentos quando apenas se podia ser exigir a sua exibição, ou tendo-se ordenado um exibição total, quando apenas se encontravam reunidos elementos justificativos da exibição parcial, não se pode considerar que foi violado o dever imposto pelo art.º417.º, n.º3, pois é legítima a recusa em cumprir a ordem judicial.

Se o referido dever não foi violado, não se justifica que este tribunal trate a questão de saber se, em caso de violação do art.º417.º, n.º3 se deve recorrer ao disposto no art.º 434.º e ao regime do CPP, por esta questão ter ficado prejudicada.

6. Quanto à questão de saber se o inventariado teria legitimidade para solicitar a exibição ou exame de documentação mercantil.

A questão foi especificamente analisada pelo Tribunal da Relação, que encontrou uma solução de equilibrio – os herdeiros do inventariado procuram saber quais os bens por este deixado, à data da sua morte, e de efectuou actos em vida que possam prejudicar os sucessores. Se não for reconhecida legitimidade  ao filho, no âmbito do inventário por morte do pai, como pode ele assegurar os seus direitos? Têm que lhe ser disponibilizados mecanismos que permitam vir a demonstrar os factos. Por isso o tribunal disse que mais tarde se decidiria se é ou não titular. Agora ele apresenta-se como potencialmente titular, atentos os factos invocados.

Cremos que a solução adoptada está correcta e pode justificar um pedido dos herdeiros, quer nos termos do art.º42.º, quer nos termos do art.º43.ºdo C.Com. A sua disponibilização deve ser fundamentada e apenas deve ser exigida informação adequada aos fins pretendidos, que deverão cumprir requisitos de adequação e proporcionalidade.

No caso dos autos, a indicação de que se junte a lista de presenças em assembleias gerais de várias sociedades por um período de 10 anos, sem que se restringa a informação apenas às assembleias em que AA aparecesse como sócio, sem que se justifique o porquê dos 10 anos, parece ser uma exigência não compreensível à luz do sistema jurídico como um todo.

A tutela do interesse que justifica a informação a prestar no inventário, com a tutela dos direitos das sociedades envolvidas à não divulgação aberta da identidade dos seus sócios sem motivação clara, fundamentada em factos concretos, constitui uma intromissão desproprocional na vida da sociedade.

Não se desconhece que a lei não tutela em absoluto o sigilo dos sócios de uma sociedade – nem as recorrentes parecem ter ido tão longe no sentido de não querer indicar quem esteve presente nas assembleias – razão pela qual se conclui que os interesses visados com a apresentação da lista de presenças nas assembleias gerais podem ser plenamente satisfeitos através de outros mecanismos, menos introsivos na vida das sociedades em causa.

As recorrentes não deixaram de mostrar disponibilidade para que fosse efectuado exame das referidas listas, nas instalações nas sociedades, nos termos do art.º43.º do C.Com, o que nos parece ser uma solução mais adequada para os objectivos pretendidos com a informação solicitada e a tutela dos herdeiros do inventariado.

Pelas razões indicadas, considerando-se que a entrega das listas de presença em assembleias gerais relativas a 10 anos, de várias sociedades, envolve um exercício desproporcionado com o dever de colaboração com os tribunais, quando o resultado se pode atingir através de mecanismo igualmente eficaz e menos introsivo da vida privada das sociedades e dos seus sócios, ter-se-á de revogar a decisão recorrida.

Cremos que outra solução correria o risco de traduzir uma interpretação dos artigos legais em discussão que pudesse ser julgada inconstitucional, eventualmente em moldes semelhantes aos do Ac. do TC, proferido no Processo n.º 964/09, 3ª Secção
em que foi Relator o Conselheiro Vítor Gomes, e com declaração do Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, de 15 de Dezembro de 2010 – disponível em
www.tribunalconstitucional.pt

III. Decisão

Revoga-se o acórdão do Tribunal da Relação da Lisboa na parte em que confirmou a decisão da 1ª instância.

Sem custas.

Lisboa, 8 de Março de 2018


Fátima Gomes


Garcia Calejo




Helder Roque

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[1] Não se tomaram em linha de conta as acções como valores mobiliários, nem as diferentes regras que daí decorrem sobre o modo de acesso à informação sobre a titularidade de participações sociais. É absolutamente essencial distinguir aqui as acções enquanto valores mobiliários titulados ou escriturais e, quanto às primeiras, saber se estão integradas ou não em sistema centralizado de valores mobiliários.
Outro elemento essencial reporta-se às acções enquanto nominativas ou ao portador – pelo menos até à data em que as acções ao portador foram proibidas de serem emitidas e determinada a sua conversão em acções nominativas. É que com as acções ao portador (pelo menos nas tituladas) a sociedade emitente não sabe quem são os seus accionistas, nem tem modo de assegurar que quem se apresente junto dela invocando essa qualidade é accionista. Poderá sabê-lo em momentos específicos, como assembleias gerais; distribuições de dividendos, etc., sempre no pressuposto de que quem se apresente não entregou os títulos a outrem que se faça passar por accionista, tendo sido acordado que a apresentação junto da sociedade seria apenas aparente.
[2] As situações passíveis de serem consideradas são diversas. Vamos apenas admitir, por facilidade de análise, que estamos perante sociedades anónimas, com acções tituladas, nominativas ou ao portador, não integradas em sistema centralizado de valores mobiliários, antes da eliminação das acções ao portador.