Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
873/10.9T2AVR.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
CONHECIMENTO OFICIOSO
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CONSTITUIÇÃO
DECISÃO JUDICIAL
PODERES DO TRIBUNAL
ÓNUS DA PROVA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMERCIAL - CONTRATOS COMAERCIAIS EM ESPECIAL / MANDATO / COMISSÃO / COMPRA E VENDA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA / ÓNUS DE ALEGAÇÃO DAS PARTES / PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / ADMISSIBILIDADE DA REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- Antunes Varela, “Anotação ao acórdão do STJ de 10/11/1983”, in R.L.J. Ano 121.º, 122, nota 3.
- Lebre de Freitas e outros, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. 1.º, p. 344 (ponto 3) e Vol. 2.º, 704, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008.
- Mota Pinto, em Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1999, 406.
Legislação Nacional:
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGOS 236.º, 267.º, 463.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 5.º, N.ºS 1 E 3, 260.º, 607.º, N.º 3, PARTE FINAL, 609.º, 611.º, 615.º, N.º1, AL. C), 662.º, N.º 1,663.º, N.º 2, 674.º, N.º 3, 682.º, N.º 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 20.º, N.º4,
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 11/06/1992, CJ ANO XVII, TOMO 3.º, P. 308.
Sumário :
I. A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves- mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.

II. A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.

III. Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada.

IV. Não tendo o A. logrado provar os factos que consubstanciam a causa de pedir invocada, provando-se antes uma relação jurídica diversa, firmada entre o autor e um dos réus, de que possa resultar também um efeito prático-jurídico distinto do peticionado, não resta senão julgar a ação improcedente.   

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

1. AA (A.) instaurou, em 10/05/2010, junto da então designada Grande Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga - Aveiro, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB, S.R.L. (1.ª R.), CC (2.º R.) e mulher DD (3.ª R.), alegando, em síntese, que:

. O A., no exercício da sua atividade profissional, em 12/06/2007, vendeu à 1.ª R., conforme escrito de fls. 11, as diversas máquinas descritas na fatura de fls. 10, pelo preço total de € 73.150,00, para cujo pagamento foi acordado o prazo de 6 meses, de modo a dar tempo a que aquela R. pudesse, por sua vez, vender esse material na Roménia, tendo-se o 2.º R. e a 3.ª R. constituído fiadores pelo pagamento daquela quantia;  

. Porém, dentro desse prazo, a 1.ª R. entregou ao A. apenas a quantia de € 7.600,00, referente à parte do material que conseguira vender;

. A par disso, por acordo das partes, a R. devolveu ao A. as restantes máquinas, com exceção de duas delas, nos valores de € 18.260,00 e de € 12.200,00, cujo preço se encontra por pagar;

. Assim, os R.R. são solidariamente responsáveis pela quantia em dívida, tendo ficado enriquecidos à custa do empobrecimento do A..  

Concluiu pedindo que a ação fosse julgada procedente e, por via disso, “o R. condenado a pagar ao A. a quantia de € 30.460,00”, acrescida dos juros de mora vencidos desde 12/06/2007, computados em € 6.607,41, bem como dos vincendos até efetivo pagamento.

2. Os R.R. contestaram, sustentando que:

. Assinaram o documento de  fls. 11 em branco, porque o A. lhes disse ser necessário fazê-lo por uma questão de garantia, tendo o 2.º R. assinado como gerente da 1.ª R. e a 3.ª R. como avalista da mesma;

. Porém, não se tratando de título cambiário, tal não os obriga, tanto mais que o preenchimento do documento foi efetuado sem o seu conhecimento nem autorização.

. Quanto ao negócio, foi acordado que o R. venderia as máquinas do A. na Roménia, recebendo deste, por isso, a quantia de € 200,00 por cada máquina vendida;

. Na execução desse acordo, as máquinas foram levadas pelo R. para aquele país num veículo do A. e por conta deste, sendo aí depositadas em local que o mesmo A. arrendou para o efeito;

. O R. arranjou interessado para duas das máquinas, tendo sido o A. quem as vendeu;

. Depois disso, outras duas máquinas foram subtraídas por terceiros do local onde se encontravam, tendo-se o A. deslocado à Roménia de onde trouxe as máquinas que ainda ali se encontravam, não assumindo os R.R. qualquer obrigação por aquela subtração.

Concluíram pela improcedência da ação com a consequente absolvição dos R.R. do pedido.

3. O A. replicou, alegando que preencheu o documento de venda de fls. 11, depois de os RR. com ele concordarem, nessa base o tendo subscrito, não sendo verdade que o A. tivesse arrendado qualquer terreno ou tenha tido algo a ver com os negócios posteriores de venda das máquinas na Roménia.

4. Findos os articulados, foi proferido saneador tabelar com fixação do valor da ação, procedendo-se depois à seleção da matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória. (fls. 53 e segs.).

5. Realizada a audiência final, foi proferido sentença a fls. 107-112, datada de 23/01/2012, a julgar a ação procedente, mas, no recurso interposto pelos R.R., a mesma foi anulada, ordenando-se a ampliação da base instrutória, conforme o acórdão da Relação de Coimbra de fls. 144-151, datado de 20/11/2012.

6. Repetido o julgamento, foi proferida nova sentença, a fls. 279-296, datada de 06/03/2015, a julgar agora a ação improcedente com a consequente absolvição dos R.R. do pedido.

7. Inconformado, o A. recorreu daquela decisão para o Tribunal da Relação do Porto, que julgou a apelação procedente, revogando a sentença recorrida e condenando os R.R. a pagar ao A. o valor das máquinas furtadas, Toyota Bobcat e JCB1CX, a determinar em ulterior incidente de liquidação, acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento, conforme o acórdão de fls. 380-400, de 19/04/2016.   

8. Desta feita, vieram as R.R. pedir revista, formulando as seguintes conclusões: 

1.ª - Na ação, há três R.R., o R. CC e as duas R.R. DD e BBt, S.R.L. pelo que, tendo pedido o A. a condenação do R. e condenando o acórdão os três R.R. é tal acórdão nulo nos termos do previsto no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), in fine, do CPC;

2.ª - Por outro lado, a factualidade provada e os fundamentos do acórdão recorrido não permitem a condenação das referidas R.R. DD e a Sociedade BB, SRL, pelo que também se verifica, por este motivo, a nulidade do acórdão previsto no art.º 615.º, n.º1, alínea c), do CPC (1.a parte);

3.ª - Uma vez que, após a decisão da 1.ª instância não foi junto aos autos qualquer documento que justificasse a alteração da resposta ao art. 12.º da base instrutória e nem a prova constante dos autos, nem os factos tidos como assentes impusessem decisão diversa da dada nessa resposta, a Relação, ao alterar tal resposta, violou o disposto no art.º 662.º, n.º1, do CPC;

4.ª - Conforme às respostas aos artigos 2.º, 9.º, 10.º e 11.º da base instrutória, o negócio que vigorou entre ambos, o R. CC e o A. não pode ser qualificado como um ato de comércio, quer objetivo, quer subjetivo;

5.ª - O contrato de consignação em apreço nos autos não cabe na categoria dos negócios contemplados pelo n.º 3 do art.º 230.º, pelo que, ao se decidir ex-adverso, violado foi neste normativo;

6.ª - Os atos praticados pelo R. CC no cumprimento do acordado condensados nos pontos 9 e 10 dos Factos Provados, não podem ser qualificados como atos de comércio, pelo que o regime do respetivo mandato não pode ser o do mandato comercial definido no n.º 1 do art.º 231.º do Cod. Comercial, como considerou o acórdão em recurso, mas antes pelas regras do mandato civil disciplinado pelos artigos 1.157.º e seguintes do CC;

7.º - O acórdão recorrido, além de ser duplamente nulo, ao condenar os R.R., violou todos os artigos em que se apoiou, "maxime" os artigos 2.o, 230.º, n.º 3, e 231.º todos do C. Comercial e os artigos  1.157.º e 790.º, n.º 1, do CC;

Pedem os Recorrentes que seja revogado o acórdão recorrido e repristinada a decisão proferida pela 1.ª Instância.

9. O A./Recorrido contra-alegou a pugnar pela confirmação do julgado.  

10. Apesar do Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre as invocadas nulidades do acórdão recorrido, nos termos do artigo 617.º, n.º 1, aplicável ex vi do artigo 666.º do CPC, tem-se por dispensável mandar baixar o processo à Relação para tal efeito, ao abrigo do n.º 5, 1.ª parte, do indicado artigo 617.º  

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

 II - Delimitação do objeto do recurso

Tendo a ação sido proposta em 10/05/2010 e as decisões impugnadas proferidas em 06/03/2015 (na 1.ª instância) e em de 19/04/2016 (na Relação), é aplicável o regime recursal do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, nos termos do art.º 5.º, n.º 1, desta Lei.

Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Dentro desses parâmetros, o objeto da presente revista incide sobre as seguintes questões:

i) – As invocadas nulidades do acórdão recorrido com base em excesso de pronúncia (1.ª conclusão dos Recorrentes) e em contradição entre os fundamentos e a decisão (2.ª conclusão);

ii) – A questão da impugnação da alteração dada pela Relação à resposta ao artigo 12.º da base instrutória, face ao disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC (3.ª conclusão);

iii) – A questão da caracterização da relação jurídica controvertida (4.ª, 5.ª e 7.ª conclusões); 

iv) – A questão da responsabilidade dos R.R. pela perda das máquinas do A. que se encontravam sob custódia do R. CC (6.ª e 7.ª  conclusões).

III – Fundamentação   

 1. Factualidade dada como provada pelas Instâncias

Vem dada como provada a seguinte factualidade:

1.1. O autor (A.) dedica-se à compra, venda e aluguer de máquinas agrícolas e industriais - alínea A) dos factos assentes;

1.2. O A. e o R. CC acordaram que este último venderia máquinas do primeiro na Roménia, recebendo € 200,00 pela venda de cada máquina - matéria respeitante ao art.º 11.º da base instrutória;

1.3. O A. deslocou-se à Roménia, tendo na ocasião sido arrendado por € 100,00 mensais à “EE - Coop.”, em Suceava, na Roménia, um terreno para servir de parque às suas viaturas destinadas à venda nesse país - matéria respeitante ao art.º 12.º da base instrutória;

1.4. As máquinas que se destinavam a ser vendidas na Roménia foram transportadas para este país num veículo pesado - matéria respeitante ao art.º 13.º da base instrutória;

1.5. As máquinas eram: Sanderson Telescópica, JCB1CX com balde, Toyota Bobcat com balde, Mini - giratória 220, Empilhador Marca Linde, e Tractor Agrícola Mitsubishi - matéria respeitante ao art.º 14.º da base instrutória;

1.6. O restante era acessórios das máquinas - matéria respeitante ao art.º 15.º da base instrutória;

1.7. Ficando tudo depositado no terreno que, para o efeito, havia sido arrendado pelo A. - matéria respeitante ao art.º 16.º da base instrutória;

1.8. O R. CC vendeu duas viaturas, Mini Giratória 220 e Tractor Mitsubishi - matéria respeitante ao art.º 17.º da base instrutória;

1.9. Conforme o acordado com o A., o R. CC informava-o do preço oferecido da identificação e dos números de fax e do telefone dos compradores - matéria respeitante ao art.º 18.º da base instrutória;

1.10. Tratando, depois, o A. de toda a formalização dos contratos com os interessados na compra das máquinas, fixando o preço em definitivo, passando as faturas e os recibos e recebendo o preço - matéria respeitante ao art.º 19.º da base instrutória;

1.11. Limitando-se o R. CC a receber de cada máquina vendida os € 200,00 acordados - art. 20° da base instrutória);

1.12. Após a venda dessas duas máquinas, foram furtadas as duas máquinas seguintes: Toyota Bobcat e JCB1CX - matéria respeitante ao artigo 21.º da base instrutória;

1.13. Tendo o R. CC apresentado queixa no processo penal pendente na Roménia sob o n.º 000/P/2007 no Serviço de Investigação Criminal de Inspeção de Polícia de Distrito do Distrito de Suceava - matéria respeitante ao art.º 22.º da base instrutória;

1.14. E o R. comunicou este facto prontamente ao A. - matéria respeitante ao art.º 23.º da base instrutória;

1.15. O A. deslocou-se à Roménia, tendo-lhe os R.R. dito que poderia trazer de volta as máquinas - matéria respeitante ao art.º 5.º da base instrutória;

1.16. Não se encontrando na posse do R. as de marca JCB1CX e Toyota Bobcat, que tinham o preço unitário de € 18.260,00 e € 12.200,00, respetivamente - matéria respeitante ao art.º 6.º da base instrutória;

1.17. O A. mandou um camião trazer para Portugal as duas máquinas restantes, a Sanderson Telescópica e o Empilhador Marca Linde, e respetivos acessórios - matéria respeitante ao art.º 24.º da base instrutória;

1.18. Tendo o A. pago o transporte do camião que trouxe as máquinas de volta, à exceção das referidas em 1.16 - matéria respeitante aos artigos 7.º e 8.º da base instrutória;

1.19. O A. gastou em transporte quantia não apurada - matéria respeitante ao art.º 9.º da base instrutória;

1.20. O R. CC assinou apenas como gerente da sociedade R. o documento n.º 2 junto com a petição inicial (fls. 11) - matéria respeitante ao art.º 25.º da base instrutória;

1.21. Esse documento n.° 2 (fls. 11) foi assinado pelos 2.º e 3.º R.R. em branco - matéria respeitante ao art.º 26.º da base instrutória;

1.22. A fatura junta em audiência a fls. 81 foi emitida pelo A. diretamente à firma ..... S.R.L., que tinha comprado uma das referidas máquinas (mini-giratória 220) - matéria respeitante ao art.º 29.º da base instrutória;

1.23. A fatura junta a fl. 91 e traduzida a fl. 90 dos autos representa o valor de € 24.870,00, ou seja, de todo o material que o A. trouxe para Portugal e que foi devolvido - matéria respeitante ao art.º 31.º da base instrutória;

1.24. A nota de “retorno de custódia”, constante desse documento de fls. 90, significa a restituição de bens não vendidos pela 1.ª R. e que estavam sob custódia do R. em consignação - matéria respeitante ao art.º 32.º da base instrutória; (art. 32° da base instrutória.

2. Fatos dados como não provados

Vêm dados como não provados os seguintes factos: 

2.1. O A. vendeu à 1.ª R. o material constante da fatura n......, de 12/06/07, a saber:

- SANDERSON TELESCÓPICA T2 1140-T2T84060A8578;

- JSB1CX COM BALDE SLP1CXSASEO 727998;

- TOYOTA BOBCAT COM BALDE 2SDK8-14594;

- MINI GIRATÓRIA 220, 220-X220-508211096;

- EMPILHADOR MARCA LINDE H40D 332701010240;

- TRACTOR AGRÍCOLA MITSUBISHI COM FREZE D1300-00778;

- MARTELO;

- BALDE PARA SANDERSON;

- PAR DE GARFOS PARA SANDERSON;

- BALDES DE MINI GIRATÓRIA

- matéria respeitante aos artigos 1.º e 2.º da base instrutória;

2.2. Todo o material importou na quantia de € 73.150,00 - matéria respeitante ao art.º 3.º da base instrutória;

2.3. Obrigou-se a R. e os restantes R.R. a pagarem ao A. aquela quantia no prazo de seis meses, período de tempo que a 1.ª ré alegou precisar para poder vender na Roménia o material - matéria respeitante ao art.º 4.º da base instrutória;

2.4. O R. CC limitou-se a conduzir para a Roménia, num pesado do A. e por conta deste, as máquinas que se destinavam a ser vendidas na Roménia, conforme consta do documento n.º 1 junto com a petição (fls. 10) - matéria respeitante à parte restante do art.º 13.º da base instrutória;

2.5. Os R.R. só após a citação para a ação viram e tomaram conhecimento do que se encontra manuscrito no documento n° 2 junto com a petição (fls. 11) - matéria respeitante ao art.º 27.º da base instrutória;

2.6. Esse documento foi preenchido sem a autorização e sem o conhecimento dos R.R. - matéria respeitante ao art.º 28.º da base instrutória;

2.7. A máquina referida em 1.22 foi comprada à 1.ª R. através do R. marido - parte restante do art.º 29.º da base instrutória);

2.8. O A. emitiu essa fatura porque a 1.ª R., através do R. marido lho pediu, para não pagar impostos - matéria respeitante ao art.º 30.º da base instrutória.

3. Do mérito do recurso

3.1. Das questões de nulidades do acórdão recorrido

3.1.1. Quanto à invocada nulidade por excesso de pronúncia

Os Recorrentes arguíram a nulidade do acórdão recorrido na base do disposto na parte final da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, portanto, supostamente com fundamento em excesso de pronúncia, argumentando que a condenação ali proferida contra os três réus excede a formulação do petitório, no qual só foi pedida pelo A. a condenação do R..

Na verdade, dessa formulação consta, literalmente, o pedido de “ser o R. condenado […]”.

Sucede que a petição inicial foi deduzida contra os três R.R., tendo sido claramente ali sustentada a responsabilidade da 1.ª R., como compradora, e dos 2.º e 3.ª R.R., como fiadores daquela, pelo pagamento do preço alegadamente em dívida, com a expressa afirmação, sob o art.º 15.º do sobredito articulado, de que aqueles R.R., eram responsáveis, solidariamente, pelo pagamento da peticionada quantia de € 30.460,00.

Como é sabido, a interpretação do pedido não deve cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão[1].

De resto, foi com o alcance de uma pretensão de condenação dos três R.R. demandados que estes contestaram, concluindo, como concluíram, pela sua absolvição do pedido. Só em sede de recurso é que vieram então pretender prevalecer-se da leitura restrita do petitório no sentido ora invocado.

Mas esta leitura restrita não é de acolher, por se mostrar inequívoco que a pretensão deduzida pelo A., na sua inteireza semântica, se dirige à condenação dos três R.R., nas qualidades jurídicas em que foram demandados.

Nessa medida, sem necessidade de outras considerações, conclui-se que a condenação proferida no acórdão recorrido não excede, em termos  formais, o limite subjetivo passivo traçado na petição inicial.

Termos em que improcede, neste particular, a arguida nulidade daquele acórdão com base no excesso de pronúncia assim invocado.   

3.1.2. Quanto à alegada contradição entre a fundamentação e a decisão   

Arguíram ainda os Recorrentes a nulidade do acórdão recorrido na base do preceituado na 1.ª parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, o mesmo é dizer com base na oposição entre os fundamentos e a decisão, sustentando que os fundamentos assumidos naquele aresto não permitem a condenação dos três R.R..

Segundo o artigo 607.º, n.º 3, parte final, aplicável aos acórdão da Relação por via do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC, o juiz na sentença deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre:

i) - a base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável - a premissa maior;

ii) - a factualidade dada como provada – a premissa menor;

iii) – e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.

Entre tais premissas e conclusão deve existir portanto um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de recíproca exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é viável formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de inconcludência, sobre a qual seja possível formular um juízo de demérito.

Com efeito, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de inconcludência jurídica, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da ação[2].

No caso vertente, é certo que a fundamentação do acórdão recorrido, mormente em sede da análise fáctico-jurídica, cingiu-se ao acordo firmado entre o A. e o 1.º R. e no facto de este ter as máquinas em causa à sua guarda, tal como resulta dos factos provados, sem qualquer menção de envolvência das 1.ª e 3.ª R.R., sendo que, não obstante isso, se decidiu ainda assim condenar os três R.R. a pagar ao A. o valor das máquinas furtadas a liquidar em ulterior incidente.

Todavia, afigura-se que não estamos perante uma manifesta contradição formal entre tais fundamentos e decisão, em termos da sua recíproca exclusão lógica, podendo ocorrer, quando muito, um vício substancial de inconcludência jurídica, traduzida em erro de julgamento, a apreciar já em sede de mérito.  

Termos em que improcede a arguição de nulidade aqui apreciada.

  

3.2. Quanto à impugnação da alteração dada à resposta ao artigo 12.º da base instrutória

Os Recorrentes questionam a alteração introduzida pela Relação à matéria respeitante ao artigo 12.º da base instrutória, sustentando, em síntese, que o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, já que, após a decisão da 1.ª instância, não foi junto aos autos qualquer documento que justifique essa alteração, nem que a prova constante dos autos ou os factos tidos como assentes imponham decisão diversa da dada pela 1.ª instância. Argumentam que os depoimentos de que o Tribunal a quo para tanto se socorreu não permitem presumir, minimamente, no sentido da alteração operada, para além de essa alteração colidir com a parte final do facto constante da resposta dada ao art.º 16.º da base instrutória.

Vejamos.

No artigo 12.º da base instrutória, na decorrência do artigo 11.º, perguntava-se o seguinte:

Para isso, o A. deslocou-se à Roménia onde arrendou por € 100,00 mensais à EE – Coop., em Suceava, na Roménia, um terreno para servir de parque às suas viaturas destinadas à venda nesse país?

O tribunal da 1.ª instância julgou essa matéria como provada, mas a mesma foi impugnada no âmbito da apelação interposta pelo A., tendo sido alterada pela Relação, ao julgar provado apenas que:

O A. deslocou-se à Roménia, tendo na ocasião sido arrendado por € 100,00 mensais à “EE - Coop.”, em Suceava, na Roménia, um terreno para servir de parque às suas viaturas destinadas à venda nesse país.

      E fundamentou tal alteração nos seguintes termos:

«Há, no entanto, um ponto em que se afigura não ter sido devidamente filtrada a prova produzida. Trata-se da matéria do n.º 3 da factualidade supra (quesito 12°da base instrutória), na parte que refere que o autor (…) arrendou por 100,00 € mensais à EE - Coop. em Suceava, na Roménia um terreno para servir de parque às suas viaturas destinadas à venda nesse país. O senhorio do terreno em causa é a testemunha FF, que relata que “O requerente foi com o sr. CC para alugar uma superfície de terreno para colocar umas máquinas que pretendia vender ou arrendar (…); o valor do aluguer foi de 100 euros por mês”. Não apresenta nem faz menção de qualquer contrato escrito de arrendamento que tivesse celebrado com o autor, como seria de esperar, nem esclarece com precisão se o deu de arrendamento ao recorrente ou ao recorrido. Ora, a testemunha GG referiu que sabe que ambas as partes acordaram que o recorrido vendesse as máquinas (…) e que “para este serviço iria receber o valor de 200 euros mais 100 para pagar o aluguer da oficina onde se encontravam estacionadas”. Logo, a renda recebida pela testemunha FF não lhe era paga pelo recorrente, como seria mais lógico se este fosse o próprio arrendatário, mas sim pelo recorrido. A dificuldade de transferir esse valor para a testemunha seria a mesma de o fazer para o recorrido. Assim, a prova produzida não garante minimamente que haja sido o autor que arrendou o terreno em questão.»

Estando a sobredita matéria sob impugnação, o Tribunal da Relação, com base na audição e análise dos depoimentos em referência, formou a sua convicção segundo o critério da livre apreciação da prova, não se divisando, sem mais, que essa apreciação, nos termos transcritos, enferme de manifesta ilogicidade presuntiva, estando, nessa medida, vedado a este tribunal de revista sindicar tal juízo probatório, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC.

Quanto à articulação da resposta ao art.º 12.º da base instrutória, alterada pela Relação, com a resposta ao art.º 16.º, respetivamente correspondentes aos pontos 1.3 e 1.7 da factualidade acima consignada, verifica-se que desta última resposta consta a seguinte afirmação: “ficando tudo depositado no terreno que, para o efeito, havia sido arrendado pelo A.”

Porém, esta parte final traduz-se apenas no modo de referenciar o indicado terreno, em conexão com o que fora dado como provado, em 1.ª instância, na resposta ao art.º 12.º da base instrutória, o que, só por lapso, não terá sido ajustada à posterior alteração introduzida pela Relação nesta resposta.

Neste contexto, prevalece a alteração dada ao art.º 12.º da base instrutória, nos termos constantes do ponto 1.3, tendo-se por substituída a expressão final da resposta ao art.º 16.º (ponto 1.7) “terreno que, para o efeito, havia sido arrendado pelo A.” pela expressão “terreno que, para o efeito, havia sido arrendado.

3.3. Quanto às questões jurídicas de natureza substantiva 

3.3.1. Enquadramento preliminar

Estamos no âmbito de uma ação que, como já ficou acima relatado, tem por objeto uma pretensão de condenação solidária dos R.R. no pagamento ao A. da quantia de € 30.460,00, acrescida de juros de mora vencidos desde 12/06/2007 e vincendos, a título do preço em dívida respeitante a duas máquinas que, alegadamente, o mesmo A. teria vendido à 1.ª R. nos termos do escrito reproduzido a fls. 11 e em que o 2.º R. e a 3.ª R. se teriam constituído fiadores daquela.

Perante tal pretensão, os R.R. negaram que tivesse sido celebrado o referido contrato de compra e venda, sustentando que o escrito de fls. 11 foi por eles assinado em branco pelo 2.º R., como gerente da 1.ª R., e pela 3.ª R., como avalista da mesma, sendo depois preenchido pelo A. sem autorização e conhecimento dos R.R..

E, ainda nessa linha, acrescentaram que, diversamente do alegado na petição inicial, o que ocorreu foi um acordo entre o A. e o R., segundo o qual este venderia as máquinas daquele na Roménia, recebendo a quantia de € 200,00 por cada máquina vendida, tendo essas máquinas sido levadas para aquele país, em veículo do próprio A. e por conta deste, e aí depositadas em local que o mesmo A. arrendou para o efeito. E que, já depois da venda de duas máquinas, outras duas – precisamente aquelas cujo preço vem peticionado nesta ação - foram “roubadas” por terceiros do local onde se encontravam, sem qualquer responsabilidade dos R.R., tendo o 2.º R. apresentado queixa criminal junto da autoridade romena e informado disso prontamente o A..

Ante essa defesa, o A., na réplica, limitou-se, no essencial, a reiterar a versão apresentada na petição inicial.     

No primeiro julgamento, a 1.ª instância deu como provada a versão do A., proferindo sentença a julgar a ação totalmente procedente, condenando os R.R. no pedido.

Porém, na apelação interposta pelos R.R., a Relação de Coimbra anulou aquele julgamento, determinando a ampliação da base instrutória com vista a ser produzida prova sobre os factos correspondentes à versão apresentada na contestação, por considerar que tal factualismo era suscetível de integrar porventura um contrato atípico de venda à consignação, em face do que os R.R. (ou só a 1.ª R.) não seriam responsáveis pelo pagamento das máquinas não vendidas e não devolvidas ao A..

Repetido o julgamento com produção de novos meios de prova, o tribunal da 1.ª instância considerou, no essencial, não provada a versão do A. consistente na alegada celebração do contrato de compra e venda com a 1.ª R., mas sim a versão sustentada na contestação e ainda que o escrito de fls. 11 fora assinado em branco pelo 2.º R., como gerente da 1.ª R., e pela 3.ª R., não se provando também que o mencionado escrito tenha sido preenchido sem autorização e conhecimento dos R.R..

Nessa base, a sentença da 1.ª instância concluiu que, não estando provada a celebração do invocado contrato de compra e venda, não se podia considerar que a sociedade R. nem os restantes R.R., como fiadores, se tivessem obrigado a pagar qualquer preço decorrente do inexistente contrato.

Não obstante isso, na referida sentença, foi equacionada a questão de saber se os demandados seriam obrigados, a outro título, a ressarcir o A. pelos prejuízos por ele sofridos com a perda das duas máquinas em falta.

Nesta perspetiva, foi ali considerado que dos factos provados resultava a celebração de um contrato de venda à consignação entre o A. e o 2.º R., a que eram, subsidiariamente, aplicáveis as regras do mandato civil, mas que se demonstrava também que as máquinas em causa desapareceram por motivo de furto, sem que se pudesse presumir qualquer intervenção daquele R. lesiva do património do A.

Nessa base, concluiu-se que a obrigação de restituição das máquinas se extinguiu por razões objetivas não conexionadas com o 2.º R., que não estava assim vinculado a pagar a quantia peticionada, como também não estavam os demais R.R. por nada terem contratado com o A., face ao que a ação foi julgada improcedente com a consequente absolvição dos R.R. do pedido.      

No entanto, no recurso daquela decisão interposto para a Relação do Porto, foi considerado que o acordo celebrado entre o A. e o 2.º R. se traduzia num contrato de venda à consignação a que eram subsidiariamente aplicáveis as regras do mandato comercial, mormente o disposto no artigo 236.º do Cod. Comercial, nos termos do qual o referido R., tendo as máquinas em causa à sua guarda e não tendo alegado e provado factos bastantes para demonstrar a inevitabilidade do furto, seria responsável pela perda das mesmas em valor a liquidar em incidente ulterior.   

Assim, e embora nada dizendo quanto às demais R.R., a Relação, revogou a sentença recorrida, julgando a ação procedente e condenando todos os R.R. a pagar ao A. aquele valor ilíquido, acrescido de juros de mora desde a citação.

É contra esta condenação que os Recorrentes agora se insurgem, questionando a qualificação daquele contrato, quanto à sua natureza comercial, bem como a responsabilidade imputada aos R.R. com base nele.

3.3.2. Apreciação

Como acima ficou enunciado, o objeto da presente ação, definido pelo pedido e causa de pedir deduzidos pelo A. contra os três R.R. consubstancia-se numa pretensão de condenação solidária destes no pagamento do preço das máquinas em falta que, alegadamente, teriam sido vendidas pelo A. à 1.ª R., nos termos constantes do escrito reproduzido a fls. 11, com a constituição do 2.º R e da 3.ª R. como fiadores da compradora pelo pagamento daquele preço.   

Porém, os R.R., em sede de contestação, negaram a celebração daquele contrato, invocando que o escrito de fls. 11 fora por eles assinado em branco, pelo 2.º R., como gerente da 1.ª R., e pela 3.ª R. como “avalista” da mesma, sustentando ainda que fora outro o contrato celebrado entre o A. e o 2.º R. nos termos já acima expostos.

         Perante esta defesa, o A. nem tão pouco procurou, na réplica, alterar a pretensão inicial, ainda que a título subsidiário, no sentido de demandar o 2.º R., a título de responsabilidade pela perda das máquinas em causa, para a eventualidade de se provar o contrato que os R.R. alegaram ter sido celebrado entre o mesmo A. e o 2.º R.. Manteve, pois, o A. a pretensão inicial nos seus precisos termos.

Provou-se, porém, que o escrito reproduzido a fls. 11 foi assinado em branco pelo 2.º R., apenas como gerente da 1.ª R., e pela 3.ª R. ali designada por avalista (pontos 1.20 e 1.21 da factualidade provada).

E, não obstante não se ter provado que os R.R. não autorizaram nem tiveram conhecimento do preenchimento daquele escrito (resposta negativa ao art.º 28.º da base instrutória correspondente ao ponto 2.6), provou-se ainda, no que aqui releva, o seguinte:

i) - foi celebrado um acordo entre o A. e o R. CC, segundo o qual este último venderia máquinas daquele, na Roménia, recebendo € 200,00 pela venda de cada máquina – ponto 1.2;

ii) - Conforme o acordado com o A., o R. CC informava-o do preço oferecido da identificação e dos números de fax e do telefone dos compradores, tratando, depois, o A. de toda a formalização dos contratos com os interessados na compra das máquinas, fixando o preço em definitivo, passando as faturas e os recibos e recebendo o preço, limitando-se aquele R. a receber de cada máquina vendida os € 200,00 acordados – pontos 1.9 a 1.11;

iii) - O A. deslocou-se à Roménia, tendo na ocasião sido arrendado por € 100,00 mensais à “EE - Coop.”, em Suceava, na Roménia, um terreno para servir de parque às suas viaturas destinadas à venda nesse país – ponto 1.3;

iv) - As máquinas, incluindo as de marca JCB1CX e Toyota Bobcat,  que se destinavam a ser vendidas na Roménia, foram transportadas para este país num veículo pesado, ficando tudo depositado no terreno que, para o efeito, havia sido arrendado (pontos 1.4, 1.5 e 1.7);

v) - Após a venda dessas duas máquinas, foram furtadas as duas máquinas seguintes: Toyota Bobcat e JCB1CX – ponto 1.12;

vi) – O R. CC apresentou então queixa no processo penal pendente na Roménia sob o n.º 000/P/2007 no Serviço de Investigação Criminal de Inspeção de Polícia de Distrito do Distrito de Suceava – ponto 1.13;

vii) - E comunicou este facto prontamente ao A. – ponto 1.14;

viii) - A nota de “retorno de custódia”, constante do documento de fls. 90, significa a restituição de bens não vendidos pela 1.ª R. e que estavam sob custódia do R. em consignação – ponto 1.24.

Deste acervo fáctico resulta, desde logo, que o que assim foi acordado entre o A. e o 2.º R. é substancialemente diverso do que foi objeto de preenchimento pelo A. no escrito de fls. 11.

Com efeito, como foi entendimento das instâncias, o acordo celebrado entre o A. e o 2.º R. é suscetível de ser qualificado como contrato atípico designado por “contrato de consignação” ou “estimatório”, o qual vem sendo definido pela doutrina, no essencial, como o contrato em que uma das partes remete à outra unidades de determinada mercadoria para que esta as venda com direito a participar nos lucros e a obrigação de restituir as unidades não vendidas[3].  

A esta espécie de contrato são aplicáveis, além do nele especificamente estipulado, subsidiariamente, o regime do contrato de mandato com ou sem representação, conforme o caso. E tendo esse contrato por objeto a prática de atos de comércio, como é, por exemplo, a venda de coisas móveis adquiridas pelo consignante com o intuito de revenda (art.º 463.º, n.º 3.º, do Cod. Com.), são aplicáveis as regras do mandato comercial, previstas nos artigos 231.º a 247.º do Cod. Comercial, quando o consignatário atue em nome e no interesse do consignante ou as regras do contrato de comissão, previstas nos artigos 266.º a 277.º do mesmo Código, quando atue no interesse e por conta do consignante, mas em nome próprio.

Em qualquer dos casos, no âmbito do sobredito contrato de venda à consignação, não ocorre a transmissão da propriedade dos bens do consignante para o consignatário, sendo que a responsabilidade deste pela perda dos bens entregues à consignação rege-se pelo regime do contrato de mandato, nomeadamente, quando se trata de prática de ato comercial, pelo disposto no artigo 236.º do Cod. Comercial, aplicável também ao contrato de comissão por força do preceituado no artigo 267.º do mesmo Código.

Seja como for, no caso vertente, o A. não logrou provar o alegado contrato de compra e venda com a 1.ª R. e em que os 2.º e 3.º R.R., nessa versão, teriam intervindo como fiadores daquela relativamente ao pagamento do preço, como decorre claramente dos factos dados como não provados descritos sob os pontos 2.1 a 2.3, o que só pode ter como resultado a improcedência da ação.

E embora se prove a versão contraposta pelos R.R., com a qual ficou completamente descaracterizada a pretensão do A., o certo é que a responsabilidade que pudesse ser porventura imputada ao 2.º R., na qualidade de consignatário, no âmbito do dita venda à consignação, pela perda das máquinas em falta, radicaria em factos constitutivos que extravasam a causa de pedir invocada e mantida pelo A., sendo que a indemnização porventura devida pela perda desses bens é também substancial e juridicamente diversa da obrigação de pagar o preço pedido na presente ação.

E não se trata aqui de uma mera convolação jurídica da pretensão formulada pelo A. que se mostre lícito operar nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC. Trata-se sim de uma pretensão, de resto nem sequer deduzida pelo A., qualitativamente diversa daquela, quer quanto à relação jurídica material controvertida, quer quanto ao próprio efeito pretendido, e portanto fora do perímetro da vinculação temática do tribunal, nos termos decorrentes dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º, 609.º e 611.º do CPC.

Com efeito, a realização da justiça do caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.

Assim, a decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo. Incumbe sim ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido. É-lhe, pois, vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, o mesmo é dizer, não comportada na órbita do efeito prático-jurídico deduzido, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada.

       

Em suma, no caso dos autos, nem as 1.ª e 3.ª R. se encontram obrigadas a pagar o preço peticionado na base do contrato de compra e venda alegado, mas não provado, nem muito menos estão obrigadas a pagar qualquer indemnização pela perda das máquinas em falta no âmbito do acordo celebrado entre o A. e o 2.º R., em relação ao qual não se mostra que aquelas tenham intervindo. Nem também, pelas mesmas razões, o 2.º R., que fora demandado somente na qualidade de fiador da 1.ª R., ou mesmo como gerente desta, está obrigado a pagar o preço peticionado.

E quanto à obrigação de indemnizar o A. pela perda das máquinas em falta, não é lícito que o 2.º R. seja condenado, no âmbito da presente ação, no cumprimento de tal obrigação, uma vez que esta não emerge da causa de pedir invocada pelo A., nem tão pouco aquele 2.º R. foi demandado na qualidade de parte no dito contrato de venda à consignação.

Termos em que se impõe conceder a revista, revogando o acórdão recorrido.   

IV - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, em sua substituição, julga-se a ação improcedente, absolvendo-se os R.R. do pedido.

As custas da ação e do recurso ficam a cargo do A.
        

Lisboa, 19 de Janeiro de 2017


Tomé Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Bettencourt de Faria 

___________________                               
                                           
[1] Neste sentido, vide, por todos, o acórdão da Relação do Porto, de 11/06/1992, CJ Ano XVII, Tomo 3.º, p. 308.
[2] Sobre a distinção entre, por um lado, o vício de contradição lógica entre fundamentação e decisão e, por outro lado, a inconcludência jurídica, veja-se Lebre de Freitas e outros, em Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, p. 344 (ponto 3) e Vol. 2.º, p. 704, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008. Veja-se ainda, a respeito da hipótese similar de contradição entre pedido e causa de pedir, Antunes Varela, em Anotação ao acórdão do STJ de 10/11/1983, in RLJ Ano 121.º, p. 122, nota 3. 
[3] Vide Mota Pinto, em Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1999, p. 406.