Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
733/17.2JAPRT.G1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
PERIGOSIDADE CRIMINAL
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 12/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / DISPOSIÇÕES GERAIS – JULGAMENTO / PRODUÇÃO DE PROVA / SENTENÇA.
DIREITO PENAL – FACTO / PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO / CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA.
Doutrina:
- OLIVEIRA MENDES, Et alii, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição, Almedina, p. 1125.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 124.º, 340.º, N.ºS 1 E 2, 368.º, N.º 2, 369.º, 374.º, N.º 2, 375.º, N.º 1 E 379.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E C).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 20.º E 71.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 30-01-2002, PROCESSO N.º 3063/01, IN SASTJ, SECÇÕES CRIMINAIS, 2002, WWW.STJ.PT.
- DE 11-07-2007, PROCESSO N.º 1416/07, IN SASTJ, SECÇÕES CRIMINAIS, 2007, WWW.STJ.PT;
- DE 27-05-2009, PROCESSO N.º 1511/05.7PBFAR.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I -   Por determinação do Tribunal foi ordenada a realização de perícia psiquiátrica e de perícia psicológica «com vista a apurar se o arguido à data dos factos tinha capacidade para avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação, e em que medida, e da existência de perigosidade da prática de actos da mesma natureza, pretendendo ainda apurar-se da adequação de o arguido ser submetido a tratamento e a intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade».

II -  Não foram ponderados nem valorados pelo Tribunal os elementos constantes dos relatórios daquelas perícias, juntos ao processo em data anterior à prolação da decisão recorrida, sustentando o arguido-recorrente que, sendo a mesma omissa quanto aos elementos de prova recolhidos através de tais perícias, se verifica a nulidade da decisão nos termos dos disposto nos arts. 379.º, n.º 1, als. a) e c), e 374.º, n.º 2, do CPP.

III -    No âmbito do processo penal, constitui missão do Tribunal a procura da verdade material, ordenando oficiosamente a produção de todos os elementos de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cfr. art. 340.º, n.ºs 1 e 2, do CPP) , impondo-se-lhe que aprecie conjunta e conjugadamente toda a prova que lhe é apresentada, seja por constar do processo e adquirida para o mesmo nas fases anteriores ao julgamento ou produzida neste, segundo critérios de normalidade, à luz da experiência comum.

IV -    Impondo-se igualmente que o Tribunal, de modo claro, ainda que sucinto, fundamente a sua convicção, permitindo ao arguido, aos demais intervenientes processuais e à comunidade em geral, uma completa compreensão das razões que motivaram a decisão proferida, das razões pelas quais só aquela decisão e não outra poderia ter sido tomada, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi tomada de forma arbitrária, imposição que decorre da lei, concretamente do preceituado no n.º 2 do art. 374.º do CPP, que determina como requisito da sentença, que esta se encontre devidamente fundamentada, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

V -  Em tal preceito, exige-se, pois, que o julgador elenque as provas a que atendeu, os motivos pelos quais credibilizou umas e desconsiderou outras e demonstre o percurso intelectual prosseguido a partir delas até à decisão proferida.

VI -    Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do nº 2 do art. 374º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei 58/98, de 25-08), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

VII -   Como o STJ já considerou, o «exame crítico» das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

VIII - Consistindo esse «exame crítico» na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

IX -    A fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, aí se incluindo o exame crítico da prova, deve ser completa e abranger todas as provas constituídas ou administradas no processo, nelas se incluindo, obviamente, aquelas que foram determinadas pelo próprio tribunal, relevantes e necessárias para o objecto da prova – existência ou não existência do crime, punibilidade ou não punibilidade do agente e determinação da pena (art. 124.º do CPP).

X -  No caso sub judice, o Tribunal Colectivo não se pronunciou sobre o resultado das perícias efectuadas ao arguido em sede de psiquiatria e de psicologia. Referenciando-se na motivação da decisão em matéria de facto outros elementos probatórios e resultados deles emergentes, em momento algum se procede a qualquer ponderação sobre os elementos apurados nos exames periciais realizados, aliás, por determinação do próprio Tribunal.

XI -   Sendo certo que a determinação pelo Tribunal da realização daquelas perícias tem pressuposto o entendimento de que elas eram relevantes para a decisão da causa já que ela se deveu a três razões e com três finalidades:

a) Apurar se o arguido à data dos factos tinha capacidade para avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação, e em que medida;

b) Existência de perigosidade da prática de actos da mesma natureza;

c) Apurar-se da adequação de o arguido ser submetido a tratamento e intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade.

XII -   Razões e finalidades que relevam para a decisão sobre a culpabilidade (art. 368.º, n.º 2, do CPP e art. 20.º do CP), e também para a pena – determinação da sanção (art. 71.º do CP).

XIII -  O juízo de necessidade pressupõe um juízo de insuficiência ou de dúvida, uma questão, sobre o que se pretende provar e que constitui objecto da prova (artigo 124.º do CPP). E se é uma questão que se coloca ao tribunal, tal questão exige resposta. E se exige resposta, o tribunal deve pronunciar-se sobre ela, sob pena de nulidade [artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP].

XIV - Relevando para a pena (determinação da sanção – artigo 369.º do CPP), deve também o resultado da perícia constar da fundamentação (artigo 375.º, n.º 1 do CPP e artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal) já que a falta de especificação das razões que subjazem à determinação concreta da pena constitui nulidade por omissão de pronúncia, invalidade que [se prevê] na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º».

XV - Reafirmando-se que a determinação pelo Tribunal da realização daquelas perícias tem pressuposto o entendimento de que elas eram relevantes para a decisão da causa, a sua omissão na fundamentação da matéria de facto atesta a falta de exame crítico que redunda em nulidade da decisão.

XVI - A apontada fundamentação insuficiente determina a nulidade da decisão, nos termos dos art. 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do CPP , estando vedado o seu suprimento por este STJ por se tratar de facticidade e valoração da prova, não lhe competindo substituir-se ao julgador na convicção que deva formar sobre a prova produzida.

Decisão Texto Integral:            
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



 I – RELATÓRIO


   1. Por acórdão proferido em 7 de Março de 2019 na Instância central – … Secção Criminal de … – Comarca de …, após julgamento em processo comum e perante Tribunal Colectivo, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido em … .10.1998, natural de …, …, …, residente na …, n.º …, …, …, condenado pela prática de três crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a), 177.º, n.os 1, alínea a) e 7, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um deles.


     Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.


2. Inconformados, recorrem o Ministério Público e o arguido.


2.1. A motivação recursória do Ministério Público é rematada pelas conclusões que se transcrevem:


«CONCLUSÕES


1AA foi condenado nos presentes autos pela prática de “três crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, al. a), 177.º, n.º 1, al. a) e 7, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um dos crimes praticados” (…) e em cúmulo jurídico “na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão”;

2 - Aderindo-se sem rebuços ao julgamento da matéria de facto, o presente recurso não constitui mais que o reafirmar da posição por nós manifestada em sede de alegações finais e naquilo que consideramos ter sido uma conduta de especial censurabilidade e desvalor acentuado espelhado no conjunto de factos dados como provados e pela personalidade ali manifestada, com acentuadas exigências de prevenção especial e geral, tudo isso, diferente do decidido, ingredientes bastantes para afastar a aplicação ao arguido do regime de jovens adultos e a fixação de penas parcelares e única mais elevadas;

3 – Bem presentes que o legislador concedeu uma larga margem de critério para o julgador ao não estabelecer expressamente índices ou factores especificamente definidores da reinserção social do jovem condenado, no subjaz pensamento de que se atingirá melhor, com a pena atenuada, o fim da pena, consagrado no artigo 40º, do Código Penal, da reintegração do agente criminoso, porque jovem, na sociedade, a aplicação deste regime especial passa pela verificação múltipla de factores endógenos (ligados à personalidade) e exógenos (ligados às condições de vida, circunstâncias do crime, etc.) com relação ao jovem agente do ilícito;

4 - Como se afirma, a título de exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2006 (processo nº 06P1771, in www.dgsi.pt) “Com a atenuação especial da pena na delinquência jovem, atendendo às vantagens para a reinserção social do jovem condenado daí advindas, pretende-se evitar que uma reacção penal severa, na fase latente da formação da personalidade, possa comprometer definitivamente a socialização do jovem. Mas deve ter-se igualmente presente a gravidade do crime cometido, patente na medida da pena aplicável, indicada, aliás, pelo legislador como critério a atender também, sem se comprometer acriticamente aquele desiderato. Haverá que apreciar, em cada caso concreto, a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a natureza e modo de execução do crime e os seus motivos determinantes”.

5 - Na decisão ora em crise fundamenta-se a aplicação do regime previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23.09, ponderando-se essencialmente a sua jovem idade e a falta de antecedentes criminais, o certo é que para quem é jovem como o arguido surpreendente seria se o mesmo tivesse já averbada condenação penal;

6 - Os aspectos da sua personalidade, melhor explanados nos factos provados e no relatório pericial junto aos autos, a sua postura em julgamento nos presentes autos, a ausência de qualquer confissão ou arrependimento e a absoluta ausência de respeito pelo próximo revelado nos actos por si praticados, bem como a ausência de quaisquer outras circunstâncias relevantes que militem a seu favor, é de molde a afirmar, diversamente do decidido pelo tribunal a quo, que a atenuação da pena em nada contribuiria para a reintegração do arguido, não sendo este merecedor da aplicação de um tal instituto;

7 – Sopesadas as aludidas circunstâncias, o grau da ilicitude e da culpa referidas ao acto delituoso, a sua personalidade que, em momento algum, revelou ter assumido a prática dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, e não manifestou, consequentemente, qualquer tipo de arrependimento e bem assim as enunciadas actuais condições de vida do arguido, tudo é de molde a justificar plenamente uma decisão de não aplicação in casu do regime penal para jovens e por conseguinte que o mesmo não beneficie da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 4º, previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23.09;

8 - É que qualquer atenuação especial da pena, para além de manifestamente imerecida no caso em apreço, poderia, outrossim, comprometer a necessária e urgente necessidade do arguido interiorizar o respeito por valores fundamentais e elementares da vida em sociedade.

9 - Numa avaliação global dos factos dados como provados, a natureza e modo de execução, a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao crime, bem como condições de vida, tudo ponderado resulta líquida a afirmação que a moldura penal do crime em questão não é excessiva tendo em vista os fins de socialização do jovem condenado;

10 - Na ponderação das mencionadas circunstâncias concretas do caso é possível afirmar que não se está na presença de um conduta isolada ou ocasional próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, mas sim, perante um comportamento próprio de alguém que praticou aquele conjunto de factos, não se abstendo de os realizar contra a sua própria irmã a despeito da resistência/negação oferecida e que impõe o combate, firme e sem condescendência, por meio da utilização de instrumentos de recomposição, pelo que não se mostra justificada a formulação de um juízo de prognose favorável à atenuação especial.

11 – Por outro lado, importa também salvaguardar naturalmente as exigências de prevenção geral ligadas à protecção de bens jurídicos, ponderando-se a importância fundamental que para essa protecção assume a reinserção do agente, das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e de garantia de protecção dos bens jurídicos, assumidas, em sede de prevenção geral;

12 - Como vem sendo repetidamente decidido pelo STJ, a aplicação do regime penal especial para jovens não pode manter-se à margem da consideração das exigências de prevenção geral, assentando em preocupações exclusivas, ou sequer predominantes, de ressocialização do agente jovem, de prevenção especial, sobrepondo-se-lhes, já que não se pode abdicar de considerações de prevenção geral, sob a forma de "exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico" e garantia de protecção dos bens jurídicos de básica, o que conduz a que no caso dos autos se não aplique o regime previsto no referido artigo 4º;

13 – Pelo que assim, afastada a atenuação especial decorrente da aplicação do estatuído no artigo 4.º do D.L. n.º 401/82, de 23/9, perante a moldura abstracta que corresponde a cada um dos crimes e nos factores considerados pelo tribunal para a medida da pena, é de considerar que relativamente ao crime de violação agravada deve ser fixada uma pena situada entre os 5 anos e 6 meses e os 6 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, uma pena única situada entre os 7 anos e 6 meses e os 8 anos e 6 meses de prisão;

14 – Pois que, tendo presente as elevadíssimas razões de prevenção geral, o grau da ilicitude do facto (elevado) e a gravidade das suas consequências, o modo como se comportou, os motivos que estiveram subjacentes à sua actuação, a intensidade do dolo, os factores relativos à sensibilidade à pena e susceptibilidade de por ela ser influenciado, qualidades da personalidade manifestadas no facto e conduta anterior e posterior o facto, não favorecem a responsabilidade criminal do arguido, acentuam de forma considerável as exigências de prevenção especial, as acrescidas as necessidades de ressocialização e sensibilidade à pena criminal que lhe venha a ser aplicada, traduzidas do meio de onde provém, as condições pré-existenciais e existentes a data do cometimento dos factos e a postura que teve em julgamento.

15 - Assim, ao ter aplicado aquele regime e ao ter fixado aquelas penas o douto acórdão violou, para além dos preceitos incriminadores acima mencionados, o disposto nos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, 71.º e 77.º todos do Código Penal e o disposto no artigo 4.º do D.L. n.º 401/82, de 23/9.


Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogar-se o douto acórdão proferido nos autos e substitui-lo por outro que afaste a aplicação do regime estatuído pelo D.L. n.º 401/82 de 23.09 e 73.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e condene o arguido pela prática, em autoria material, três crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, al. a), 177.º, n.º 1, al. a) e 7, do Código Penal, numa pena entre 5 anos e 6 meses e 6 anos e 6 meses de prisão por cada um dos crimes praticados e em cúmulo jurídico numa pena única situada entre os 7 anos e 6 meses e os 8 anos e seis meses de prisão.»


2.2. No seu recurso, formula o arguido as conclusões que igualmente se transcrevem:


«CONCLUSÕES


   1. O arguido recorre da douta sentença proferida nos presentes autos que o condenou pela prática de três crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164º, nº1, al.a), 177º, nº1, al.a) e 7 do Código Penal, na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

   2. Salvo, porém, o devido respeito, considera o arguido, ora recorrente, que a condenação na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão não se coaduna com a medida da culpa, sendo exagerada e desporprocional face à prossecução dos fins da prevenção geral e especial.

  3. Verifica-se que o tribunal não valorou na sentença ora recorrida o Relatório de Perícia Médico-Legal de Psicologia junto aos autos no dia 25.02.2019, a fls. 367 e ss.

 4. Também não se verifica na sentença ora recorrida que o tribunal a quo tenha valorado o teor e conteúdo do Relatório da Perícia Médico-Legal de Psiquiatria junto a fls. 353 e ss dos autos.

   5. Ora, entendemos que o Tribunal a quo podia e deveria ter considerado as conclusões contidas naqueles relatórios na elaboração da sentença, os quais foram juntos aos autos no dia 25.02.2019 e 03.01.2019, respectivamente, logo, em data anterior à prolação da decisão final.

  6. Por conseguinte, com o devido respeito, constam dos autos elementos bastantes que sustam uma decisão mais favorável, nomeadamente, para fundamentar a aplicação de pena de prisão inferior a 5 anos, suspensa na sua execução, atenta a condição humana do arguido, ora recorrente.

 7. Através do requerimento apresentado nos autos no dia 4 de marco de 2019, o arguido veio declarar expressamente que aceitava o acompanhamento psicológico especializado que lhe era proposto no Relatório de Perícia Médico-Legal de Psicologia.

   8. Do Relatório de Perícia Médico-Legal de Psicologia resultam, através das entrevistas realizadas ao recorrente, as seguintes conclusões quanto à Avaliação do Risco e das Necessidades de Intervenção: Da avaliação do risco de violência sexual, conclui-se que AA apresenta um nível global de risco baixo, por apresentar escassez de critérios relevantes nos níveis de risco avaliados (ajustamento psicossocial, ofensas sexuais e planos futuros) (cf.SVR-20). A par dos factores de risco identificados é igualmente de mencionar a existência de alguns factores protectores. A este respeito, salienta-se o facto de AA, após a denúncia, não ter voltado a manter qualquer contacto com a irmã (ofendida) e de continuar a dispor e suporte da progenitora e do companheiro desta, com quem reside.”

   9. Do Relatório de Perícia Médico-Legal de Psicologia extrai-se a seguinte Conclusão: Face ao anteriormente exposto e, atendendo à existência de algumas fragilidades, em especial no que respeita à intimidade e sexualidade e à forma como este se posiciona face aos actos por si praticados (i.e., locus de causalidade externa, responsabilização da irmã), entendemos como fundamental o encaminhamento de AA para acompanhamento psicológico especializado, que vise a promoção de competências sociais e relacionais (em específico no que respeita à intimidade e sexualidade).”

    10. Do Relatório Social para determinação da sanção junto aos autos, constam as seguintes considerações: Em caso de condenação e se a pena concretamente aplicada o permitir, parece-nos que AA reúne condições para uma medida de execução na comunidade que contemple a obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade.”

  11. O arguido, ora recorrente optou por se manter em silêncio, não obstante, ter admitido nas perícias realizadas (avaliação psiquiátrica forense e avaliação psicológica forense) e no relatório social, que teve relações sexuais com a ofendida em três ocasiões, verbalizando arrependimento (cfr. relatório social de fls 332 e ss e relatório da perícia médico-legal de psicologia de fls 367 e ss dos autos).

    12. Com o devido respeito, o Tribunal a quo ao determinar a aplicação de uma pena única de 5 anos e três meses pela prática de três crimes de violação agravada de que vinha acusado, não salvaguardou a reintegração do Recorrente na sociedade, como determinam os artigos 71.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

   13. Desde Março de 2017, que o arguido vive com a sua mãe e o companheiro desta, DD, em … .

   14. Não tendo desde essa altura mantido qualquer contacto com a ofendida.

   15. Pelo que, está completamente afastada a hipótese de voltar a haver novo crime, conforme conclui o tribunal a quo na sentença recorrida.

    16. Além disso, resulta ainda do Relatório de Perícia-Legal de Psiquiatria de fls. 353 e ss que “entende-se não existirem critérios para admitir a perigosidade de que venha a praticar actos da mesma natureza, nem haver necessidade de tratamento clínico psiquiátrico.”

  17. Do Relatório de Perícia-Legal de Psicologia de fls 367 e ss resulta que “Da avaliação de risco de violência sexual, concluiu-se que AA apresenta um nível global de risco baixo”.

   18. Não obstante, a sentença ora recorrida é omissa quanto aos elementos de prova recolhidos através das perícias realizadas ao arguido, parecendo apenas valorar o relatório social de determinação da pena.

   19. Pelo que, salvo melhor opinião, a sentença ora recorrida é nula ao abrigo do disposto no artigo 379º, nº 1, al. a) e c) e artigo 374º, nº 2 ambos do CPP, por falta de pronúncia e de valoração da prova produzida, nomeadamente, do Relatório de Perícia-Legal de Psicologia e do Relatório de Perícia-Legal de Psiquiatria que o tribunal a quo não tomou em consideração para determinar a medida da culpa e da pena a aplicar ao arguido.

 20. Com efeito, a sentença ora recorrida não faz qualquer referência a estes elementos probatórios, inexistindo qualquer exame crítico dos mesmos e de como serviram para formar a convicção do tribunal.

  21. Em especial, no que concerne ao Relatório de Perícia-Legal de Psicologia, o qual, a nosso ver, faz uma descrição completa e credível da condição humana do arguido, no contexto familiar, social e económico, marcado pela violência familiar, promiscuidade e baixa valorização de um ambiente adequado à construção da intimidade e de relações salutares.

  22. Uma conjunção de factores negativos, que a o relatório social concluiu como desinibidores situacionais e circunstanciais que potenciam a promiscuidade, especialmente em jovens que ainda estão a formar o seu carácter e as suas crenças.

  23. Acresce que, com o devido respeito, a sentença ora recorrida fez uma errada apreciação da prova e, nomeadamente, quanto às conclusões do relatório social e do relatório de perícia-legal de psicologia que vão no sentido do arguido reunir condições para uma medida de execução na comunidade que contemple a obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais designadamente na área da intimidade e sexualidade.

  24. A condição humana do arguido, bem espelhada nos relatórios sociais e de avaliação psicológica, demonstram que o arguido é pouco capaz de efectuar uma análise crítica acerca do tipo de comportamentos pelos quais se encontra acusado, tendendo a efectuar atribuições externas dos mesmos e a subvalorizar aspectos éticos/sociais, essenciais para a vida em comunidade.

    25. Não obstante, os relatórios são claros quanto à viabilidade e potencialidade de uma medida de execução na comunidade, atendendo a que o arguido se montra actualmente inserido social e profissionalmente, além de ser jovem e da opção pela execução da pena na comunidade ser mais apta à reintegração nos paradigmas da sociedade e da moral, corrigindo as falhas de carácter e subvalorização de aspectos éticos que foram evidentes nas perícias realizadas.

   26. Porquanto, o arguido, desde marco de 2017 tem adoptado um estilo de vida assente nas regras sociais vigentes e continua a dispor do suporte da progenitora e do companheiro desta, com quem reside.

   27. Além disso, o recorrente afastou-se da ofendida, a fazer crer que comportamentos similares não irão repetir-se (facto provado nº27).

  28. Actualmente o arguido está a trabalhar como … na empresa EE, LDA conforme contrato de trabalho a termo certo junto aos autos no requerimento de 04.03.2019 (facto provado nº28).

   29. O recorrente tem apoio da mãe e do companheiro desta, com quem vive em … (facto provado nº26).

  30. O recorrente é um jovem de 20 anos, não tem antecedentes criminais e está social, profissional e familiarmente inserido, conforme resulta do Relatório de Perícia-Legal de Psicologia e do Relatório Social.

   31. No entanto, não pode deixar de se relevar o contexto familiar, social e económico do recorrente, do seu seio familiar e de todos os factores situacionais e circunstanciais que, com o devido respeito, não foram devidamente valorados pelo tribunal a quo na determinação da sanção.

   32. O recorrente não tem a escolaridade obrigatória e deixou a escola aos 17 anos (cfr. relatório social e relatório de perícia-legal de psicologia).

   33. O arguido e a sua família são altamente carenciados de meios económicos, sociais e humanos, sem apoio de quem quer que seja, até do Estado.

  34. A promiscuidade em que esta família foi devotada, a exposição a situações de violência familiar e a baixa valorização de um ambiente adequado à construção da intimidade e de relações positivas e seguras, enquanto factores desinibidores situacionais e circunstanciais, fez com que esta situação ocorresse.

   35. Sendo que, à data da prática dos factos, o arguido e a assistente, para além de não frequentarem a escola, viviam em condições muito precárias.

   36. O arguido não tem antecedentes criminais e apesar de se ter remetido ao silêncio, aquando a realização da avaliação psicológica forense o arguido verbalizou arrependimento (fls.367 e ss), tendo em conta ainda a circunstância do arguido em julgamento se haver remetido ao silêncio não poder ser valorada em seu desfavor, na medida em que exerce um direito seu (art. 343.º, n.º 1, do CPP), Ac. STJ de 15/02/2007, proc. nº 15/07, 5ª, e Ac. STJ de 10/01/2008.

   37. O arguido não mantém qualquer contacto com a ofendida desde Março de 2017 (facto provado nº27) e não foi identificada problemática aditiva, ou de consumo excessivo do álcool e não foram reportados comportamentos sociais desajustados, passíveis de constituir factor de risco ou de reactividade social (cfr. relatório social fls.367 e ss).

    38. Por conseguinte, a prática dos ilícitos em causa foi motivada pela situação miséria humana em que o arguido e a ofendida estavam inseridos, na destruturação familiar, pautada pela violência doméstica que o progenitor de ambos exercia sobre a mãe de ambos e de maus tratos do progenitor para com o arguido – cf. relatório de perícia legal de psicologia de fls.367 de ss.

   39. São evidentes várias fragilidades em especial no que respeita à valorização e capacidade de promover um ambiente adequado ao desenvolvimento da intimidade e de relações íntimas salutares (ex. a irmã do arguido, FF, partilhava o mesmo quarto com os pais; o arguido já adulto partilhava o mesmo quarto com a irmã FF, contexto aliás em que terão ocorrido os episódios descritos na acusação; familiares com diferentes relacionamentos de intimidade e com filhos dos diferentes relacionamentos).

  40. Basicamente, o recorrente é jovem mas não tem adquiridos os conceitos relativos à moral sexual, tem instrução insuficiente e dificuldades em manter um adequado padrão a nível profissional, apesar de estar actualmente a trabalhar.

   41. De igual modo, conforme consta do relatório social e do relatório de perícia-legal de psicologia, verificam-se no arguido várias fragilidades ao nível do estabelecimento de relacionamentos íntimos, mantendo relações tendencialmente breves e com coabitação precoce.

   42. Existem vários factores que, a nosso ver, nomeadamente a condição humana do arguido e contexto familiar, social e económico em que estava inserido, que diminuem a sua culpa e, consequentemente a medida da pena, verificando-se vários benefícios na ressocialização do arguido caso lhe seja aplicada uma pena inferior a 5 anos, suspensa na sua execução e condicionada ao cumprimento de injunções, onde se incluiu o acompanhamento psicológico especializado, que vise a promoção de competências sociais e relacionais (em específico no que respeita à intimidade e sexualidade).

   43. Por outro lado, o relatório social concluiu que o arguido é pessoa idónea ao cumprimento da pena na comunidade, com todos os benefícios daí advenientes para a sua reintegração, propondo ainda que a obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e da sexualidade.

    44. O arguido não é um caso perdido, mas uma sentença pesada como esta que lhe foi aplicada, o risco de não serem cumpridas as exigências de reintegração social do arguido é elevado, pois o arguido é jovem e socialmente integrado, mas teve um ambiente familiar pautado pela violência doméstica e pela promiscuidade dos relacionamentos, com familiares que tem vários parceiros e filhos dos diferentes relacionamentos, pouco rígido a nível de moral sexual.

     45. O arguido não tem antecedentes criminais e desde a data dos factos tem atuado conforme as regras vigentes e nunca mais voltou a contactar a ofendida.

   46. Com a aplicação de uma pena inferior a 5 anos e suspensa na sua execução, arguido tiver oportunidade de cumprir a pena em comunidade, com o devido acompanhamento psicológico especializado poderá ser-lhe dada uma oportunidade para corrigir o seu carácter e as suas crenças sexuais.

   47. Além de ser uma forma de integrar o arguido nos cânones sociais e morais que regem a nossa sociedade, seria uma foram do próprio Estado reparar as suas próprias falhas no devidamente acompanhamento dos jovens de risco.

   48. Estamos em crer que o contexto familiar, social, económico e moral do arguido conduziu a esta situação, sendo um caso com várias falhas a vários níveis: falhas da comunidade, falhas da família, falhas do Estado e de todos os seus organismos criados para proteger e acompanhar jovens especialmente vulneráveis e com propensão para o risco e delinquência.

    49. Posto isto, não desconsiderando a culpa do arguido, não podemos menosprezar o contexto em que o arguido e a ofendida viviam, com os exemplos familiares e de relacionamentos que tinham, da falta de valorização de um ambiente adequado ao desenvolvimento da intimidade e da privacidade, com abstenção escolar e padrão profissional precário e inconstante.

    50. Posto isto, considerando as exigências de prevenção geral e especial e a medida da culpa, relativas ao caso concreto, entendemos ser razoável, adequada e proporcional a aplicação de uma pena de prisão inferior a cinco anos e suspensa na sua execução, condicionada ao cumprimento de várias injunções, como a não prática de crimes desta ou de outra natureza, e, especialmente, ser alvo de acompanhamento psicológico especializado, que vise a promoção de competências sociais e relacionais, em específico no que respeita à intimidade e sexualidade.

   51. Apesar de se ter remetido ao silêncio, o arguido percebe a ilicitude dos actos e verbalizou arrependimento na avaliação psicológica forense, tendo-se afastado da ofendida desde Março de 2017, fazendo crer que comportamentos similares, com a ofendida, não irão repetir-se.

  52. O recorrente, ao tempo dos factos, tinha 18 anos, sendo assim necessário, como é opção do legislador (art. 53.º, n.º 3 do CP), e vem aconselhado no relatório social e no relatório de perícia-legal de psicologia para melhor promover a inserção, que a suspensão da execução da pena inferior a 5 anos seja acompanhada do regime de prova e da obrigatoriedade de um intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais na área da intimidade e sexualidade.

   53. Em face do exposto, considerando as exigências de prevenção geral e especial do caso concreto, entendemos ser adequada a fixação de uma pena inferior a 5 anos, suspensa na sua execução e condicionada a regime de prova e intervenção psicoterapêutica especializada, conforme proposto no relatório social e no relatório perícia-legal de psicologia.

  54. De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a sentença proferida nos presentes autos violou os

- artigos 40.º, 71.º, n.º 1, nº2, c), d) e e), 72º, nº1, 73º e 74º todos do Código Penal e no art.º 4º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23.09 (REGIME PENAL APLICÁVEL A JOVENS DELINQUENTES).

- é nula por omissão de pronúncia e errada valoração da prova, nos termos dos artigos 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a) e c) ambos do CPP.


Assim, revogando a decisão recorrida que condenou o arguido na pena única em 5 anos e 3 meses de prisão, substituindo-a por outra que repute como adequada e necessária a fixação de pena única inferior a 5 anos, suspensa na sua execução, condicionada ao cumprimento de várias injunções, em especial, a obrigação intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos Relacionamentos interpessoais na área da intimidade e sexualidade, VS. EXAS. farão JUSTIÇA.


3. Nas suas respostas, o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso do arguido e este pela improcedência do recurso daquele.


4. Os recursos foram interpostos perante o Tribunal da Relação de Guimarães. Por decisão sumária de 10 de Maio de 2019, o Ex.mo Desembargador Relator determinou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, por incompetência para o conhecimento dos recursos, em conformidade com o disposto no artigo 432.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, doravante CPP. Decisão correcta já que se trata de recursos interpostos de acórdão proferido pelo tribunal colectivo que aplicou pena superior a 5 anos de prisão, visando ambos os recursos o reexame da matéria de direito.


5. Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer que se reproduz:


        «Nada obsta à apreciação do recurso.


*


1.

Por acórdão tirado em … .03.2019, pelo Juízo Central Criminal de … [J…], Tribunal Judicial da Comarca de …, vem o arguido AA, condenado pela prática em autoria material e em concurso real de três crimes de violação agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 164º, n º 1, alínea a) e 177º, n º s 1, alínea a), e 7, todos do Código Penal, na pena de três anos prisão por cada crime, e em cúmulo jurídico na pena de cinco anos e três meses de prisão.


2.

Inconformados com tal decisão, dela vem interposto recurso:

2.1.

Pelo arguido, que suscita as seguintes questões: A da existência das nulidades da sentença, previstas no artigo 379º, n º 1, alíneas a) e c) do CPP; medida das penas parcelares e única e aplicação do instituto da suspensão da pena.

2.2.

Pelo MP, que entende que fortes razões de ordem preventiva geral, se mostram impeditivas do uso que vem feito pelo tribunal a quo do regime penal especial para jovens (DL n º 401 / 82, de 23 de Setembro), pugnando, também, por um maior rigor punitivo, no quantum fixado quer às penas parcelares quer, à pena única, sendo que as acima aludidas exigências de natureza de natureza preventiva geral sempre seriam impeditivas da reclamada suspensão da execução da pena.

3.

Estamos assim perante dois recursos, de sentido diametralmente oposto. Vejamos:

3.1.

O objecto dos recursos centra-se no reexame de questões de direito. O arguido, questiona a existência da violação no acórdão, como supra se consignou, do art. 379º, n º 1, alíneas a) e c) do CPP. Concretizando, e como se vê das conclusões 3ª e 4ª, o recorrente afirma que o tribunal colectivo não valorou as conclusões do Relatório de Perícia-Médico Legal de Psicologia [juntas aos autos em 20.02.2019 - cf. fls.367 ss] e bem assim as conclusões do Relatório de Perícia-Médico-Legal de Psiquiatria [juntas aos autos em 03.01.2019, cf. fls.353 e ss]. Como se sabe a referência às alíneas a) e c), do inciso processual que vimos de referir, reportam-se a duas realidades diferentes: a primeira (com referência ao art. 374º, n º 2, in fine relativa ao exame crítico da provas que serviram para formar a convicção do tribunal, relevariam de nulidade da sentença por insuficiência do exame crítico das provas; já a citada alínea b), primeira parte, reporta-se como é sabido, à omissão de pronúncia.

Visto o acórdão em apreço, temos que o tribunal a quo cumpriu a sua obrigação de indicar as provas em que assentou a sua decisão, como a simples leitura desta, logo revela. Por outro lado, o tribunal colectivo refere-se entre as provas que «valorou», ao «relatório da Perícia Médico-Legal Psiquiatria de fls. 244 a 247». Todavia, não se descortina, efectivamente, que se tenha procedido ao exame crítico da parte do relatório de Perícia Médico-Legal de Psiquiatria, junto aos autos em 03.01.2019, cf. fls.353 ss. Por outro lado, não vem referido no exame crítico da prova, o relatório de Perícia Médico-Legal de Psicologia, junto aos autos em 25.02.2019, cf. fls. 367s.

Afigura-se-nos, assim, que se configura uma insuficiência do exame crítico das provas, que integra a nulidade da sentença, prevista no art. 379º, n º 1, alínea a), do CPP. De notar, porém, que com a alteração a redacção introduzida pela Lei n º 20 / 2013, de 21 de Fevereiro o tribunal de recurso deverá proceder ao suprimento das nulidades da sentença recorrida. Não obstante, parece evidente, que continuam a subsistir uma maioria de casos, em que só o tribunal recorrido, estará em condições de expurgar do texto decisório a nulidade nele detectada, sob pena de ocorrer a supressão de um grau de jurisdição, constitucionalmente assegurado. Considerando o teor dos referidos relatórios de perícia-médico legal de psicologia, e as duas partes em que se desdobra o relatório de perícia médico-legal de psiquiatria, em que basicamente se repetem as conclusões, já consideradas no exame crítico feito no acórdão, poder-se-á, entender que o tribunal de recurso poderá suprir o vício.

A assim não se entender, devem os autos ser remetidos à 1ª instância, para reformulação do acórdão, quanto ao apontado vício.


4.

Cautelarmente, a ter-se como verificada a nulidade em apreço, falta de exame crítico da prova, e a considerar-se a mesma suprível na apreciação do recurso, sempre se dirá que, também entendemos, que tratando-se de crimes praticados contra menor de 14 anos (violação agravada) crime contra a liberdade sexual, de gravosas repercussões na esfera emocional da vítima, que convoca claras necessidades de prevenção geral, que a sociedade exige ver atendidas. Ao demais, as finalidades das penas não são apenas, «a reintegração do agente na sociedade», avultando nelas «a protecção de bens jurídicos». Vale isto por dizer, que também aquiescemos como o MP na 1ª instância, na sua discordância quanto á aplicação ao arguido do Regime Penal para Jovens. Para além do aduzido, e no plano mais geral, não é possível recensear no comportamento posterior aos crimes, qualquer acto revelador de arrependimento. Pelo contrário, parece ressumar do acórdão uma falta de interiorização da enorme gravidade dos crimes praticados quando não uma perigosa cultura de encarar estes actos como normais. Tal é evidentemente, intolerável. (Note-se que na narrativa dos exames médico-legais, supra referidos, o recorrente imputou até à ofendida FF, sua irmã, o comportamento que o «levou» a praticar os crimes.

4.1.

Temos assim que, nesta base, não beneficiando o arguido do regime do DL n º 401 / 82, de 23 de Setembro, a moldura penal abstracta do tipo legal em causa, vai de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão. Ponderando o tipo de culpa, o grau de ilicitude verificado, as necessidades preventivas gerais e especiais, as condições sociais e económicas do recorrente e os demais itens do art. 71º, n º 2, do CP, afigura-se-nos que o arguido deve ser, na procedência do recurso do MP, condenado na pena de cinco anos de prisão por cada crime. Quanto à pena única, como se sabe, importa aqui ter presente a «avaliação do ilícito global». Como escreve Figueiredo Dias, in " Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime", Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs. 291 §421:

 "Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária do agente, relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma "carreira") criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido, atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta».

In casu haveremos de concluir, também, estarmos perante a segunda hipótese, supra enunciada. Neste conspecto afigura-se-nos que na procedência do recurso do MP, deve agora o arguido ser condenado na pena de cinco anos de prisão, por cada crime de violação agravado, e na pena única de sete anos e seis meses de prisão.

Somos assim de parecer que:

    • Se verifica a nulidade da sentença, prevista no art. 379º, n º1, alínea a), com referência ao art. 374º, n º 2, in fine, ambos do CPP, a suprir, eventualmente, ao abrigo do artº 379º, n º 2, do CPP;
    • Se assim for entendido, afigura-se-nos que o recurso do MP deverá ser julgado procedente, rejeitando-se a aplicação do regime para jovens, por claras exigências de ordem preventiva geral, condenando-se o arguido pela prática de cada um dos crimes de violação agravada, na pena de cinco anos de prisão e na pena única de sete anos e seis meses de prisão.»


6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.


7. Colhidos os visto e realizada a conferência, já que não foi requerido o julgamento do recurso em audiência, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. FACTOS

O Tribunal Colectivo considerou assentes os seguintes factos:


1 - O arguido AA, nascido em … de Outubro de 1998, e a ofendida FF, nascida em … de Dezembro de 2003, são irmãos entre si;

2 - No dia 18 de Dezembro de 2016, o arguido, a ofendida e a mãe de ambos, CC, passaram a residir na Avenida …, n.º …, …, em …, residência pertença de GG, irmã da ofendida;

3 - Mercê de constrangimento de espaço, na referida habitação, o arguido, a ofendida, CC e uma sobrinha desta, partilhavam um quarto, o qual dispunha de duas camas, sendo que numa destas dormia o arguido e a sua mãe e na outra a ofendida e a sobrinha desta;

4 - Em data não concretamente apurada, o arguido AA formulou o propósito de iniciar e manter com a ofendida FF relações sexuais de cópula, sabendo que a mesma tinha, à data, 13 anos de idade;

5 - Na execução desse propósito, em data não concretamente apurada, mas volvidas algumas semanas sobre a data referida no ponto 2), pela manhã, o arguido AA, constatando que ele e a ofendida se encontravam sozinhos na referida habitação e que esta se encontrava a dormir, entrou no aludido quarto e deitou-se na cama daquela ao seu lado;

6 - De imediato, a ofendida acordou e o arguido colocou-se por cima desta, dizendo-lhe que se resistisse lhe partiria as costelas;

7 - Na sequência, a ofendida começou a chorar, sendo que o arguido, indiferente a esta circunstância, despiu-a, tirando-lhe as calças de pijama e as cuecas e, bem assim, as suas calças de pijama e cuecas, após o que, assim despidos e contra a vontade da ofendida, roçou e introduziu o pénis erecto no interior da vagina daquela, friccionando-o, após o que ejaculou;

8 - Em data não concretamente apurada, mas algumas semanas após a data em que ocorreram os acontecimentos descritos nos pontos 5) a 7), o arguido AA, tendo formulado novamente o propósito aludido em 4), e na execução do mesmo, pela manhã, constatando que ele e a ofendida se encontravam sozinhos na referida habitação, abeirou-se da cama daquela, e, no momento em que ela acordou, colocou-se por cima desta, dizendo-lhe que se não o fizesse lhe partiria as costelas;

9 - Na sequência, a ofendida começou a chorar, sendo que o arguido, indiferente a esta circunstância, despiu-a, tirando-lhe as calças de pijama e as cuecas e, bem assim, as suas calças de pijama e cuecas, após o que, assim despidos e contra a vontade da ofendida, roçou e introduziu o pénis erecto no interior da vagina daquela, friccionando-o, após o que ejaculou.

10 - No dia 14 de Março de 2017, pelas 10h30m, o arguido AA, tendo formulado novamente o propósito aludido em 4), e na execução do mesmo, constatando que ele e a ofendida se encontravam sozinhos na referida habitação, abeirou-se da cama daquela, e, no momento em que ela acordou, colocou-se por cima desta, dizendo-lhe que se resistisse lhe partiria as costelas;

11 - Na sequência, a ofendida começou a chorar, sendo que o arguido, indiferente a esta circunstância, despiu-a, tirando-lhe as calças de pijama e as cuecas e, bem assim, as suas calças de pijama e cuecas, após o que, assim despidos e contra a vontade da ofendida, roçou e introduziu o pénis erecto no interior da vagina daquela, friccionando-o, após o que ejaculou;

12 - Em consequência dos factos ora descritos, nas três ocasiões mencionadas, a ofendida sentiu dores, aquando da manutenção da relação de cópula, e o arguido nunca fez uso de preservativo;

13 - A ofendida, até então, nunca havia mantido relações de cópula ou de idêntica natureza com ninguém.

14 - O arguido, que era então portador de doença sexualmente transmissível (….), transmitiu, mercê das condutas descritas por si levadas a cabo, essa enfermidade à ofendida.

15 - Mercê da actuação do arguido, para além das dores que sentiu na região anatómica atingida, a ofendida sofreu pequena inflamação da mucosa e lesões himeniais.

16 - O arguido agiu sempre do modo descrito com o propósito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, contra a vontade da ofendida FF, e colocando-a na impossibilidade de resistir, mediante o uso da força e da ameaça, aproveitando-se da relação de parentesco e de confiança que mantinha com a menor, sabendo que a mesma era sua irmã, tinha treze anos de idade e que os actos que praticavam sobre a mesma eram ofensivos da sua liberdade e autodeterminação sexual e gravemente perturbadores do seu sentimento de vergonha.

17 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

18 - O arguido não tem antecedentes criminais;

19 - Do relatório social junto aos autos consta (transcrição):

“I - Dados relevantes do processo de socialização

AA e a ofendida são os dois descendentes de um casal de baixos recursos socioeconómicos, naturais e residentes na área …. . Ambos os elementos do casal tinham já outros descendentes, fruto de anteriores relações, pelo que o arguido tem mais dois irmãos uterinos (♂31 anos, ♀30 anos) e uma irmã consanguínea (com 35 anos).

O pai é … e a mãe …, tendo assegurado as necessidades materiais básicas dos descendentes com dificuldade. O pai apresentava um consumo problemático de …, com implicações na dinâmica familiar, adoptando um comportamento agressivo/violento para com a companheira, mas também com os descendentes.

O seu percurso escolar/académico caracterizou-se pela baixa vinculação ao sistema de ensino. Em particular após a entrada no segundo ciclo do ensino básico, começou a evidenciar um absentismo elevado, alguns problemas de comportamento e baixo rendimento académico, tendo sido retido várias vezes. Este contexto conduziu à sua inserção em percurso escolar alternativo para conclusão do 6º ano, sem sucesso. Abandonou a escola com 17 anos, apenas com o 4º ano de escolaridade como habilitações literárias, apresentando baixas competências a este nível.

Segundo a mãe, o arguido foi alvo de intervenção por parte da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de …, na sequência das vulnerabilidades apresentadas tanto ao nível escolar, como familiar.

O arguido situa o primeiro relacionamento sexual com 17 anos, no contexto de um relacionamento que durou cerca de quatro meses. Esta namorada integrou o agregado do arguido durante esse período, pernoitando ambos na sala de estar da habitação. Não obstante, AA descreve um envolvimento superficial relativamente a esta relação.

Relata a existência de um relacionamento posterior, com duração aproximada de um ano, segundo refere, sem envolvimento ao nível sexual. Considerou esta relação mais gratificante.

II - Condições sociais e pessoais

Em Dezembro de 2016 a progenitora saiu da casa de família, em …, com os dois filhos mais novos (arguido e ofendida), na sequência do clima de conflitualidade familiar e conjugal. Os três elementos integraram então o agregado da irmã GG, residente em … com o companheiro, o pai deste e a filha de oito anos de idade. Nesta habitação, o arguido partilhava o quarto com a mãe, com a irmã (ofendida) e com a sobrinha, sendo estas as condições habitacionais à data dos factos.

De notar que o espaço habitacional exíguo não permitia salvaguardar as condições de privacidade/intimidade, aspectos simultaneamente pouco valorizados na dinâmica desta família.

O arguido não tinha ainda iniciado a trajectória laboral e encontrava-se sem qualquer ocupação. Na sequência dos factos, AA e a progenitora deslocaram-se para …, passando a residir com o actual companheiro da mãe, relação entretanto estabelecida no contexto das redes sociais. Residem os três em habitação arrendada, inserida em freguesia de características rurais, afastada do centro urbano e sem indicadores de problemas sociais relevantes.

O percurso laboral do arguido é ainda inconsistente e iniciou-se já em … . Teve a primeira experiência profissional como …, entre Junho e Dezembro de 2017 e, após um período de desemprego, iniciou funções numa empresa de … urbana, em maio do ano corrente. Expressa satisfação com esta actividade, referindo uma boa relação com colegas e entidade patronal. Contudo, a entidade patronal refere com preocupação o elevado absentismo que apresenta.

Em … o arguido não mantém convívios sociais significativos, referindo que os seus amigos se encontram em … . Menciona o uso das redes sociais, designadamente para o estabelecimento de relações sociais e também recurso esporádico a sites de conteúdo sexual/pornográfico. No decurso do último ano estabeleceu uma relação, através da rede social facebook, tendo esta namorada vivido no seu agregado cerca de três meses, findo os quais a relação terminou.

AA apresenta pouca visibilidade social, sendo de salientar que apenas reside na localidade há cerca de um ano. Não foi identificada problemática aditiva, ou de consumo excessivo de álcool e não foram reportados comportamentos sociais desajustados, passíveis de constituir factor de risco ou de reactividade social.

III - Impacto da situação jurídico-penal

AA não apresenta antecedentes criminais. Relativamente ao presente processo são relatadas alterações na relação com a irmã (ofendida) após a queixa, não tendo tido mais qualquer contacto com esta. A menor mantém contactos pontuais com a progenitora, tendo permanecido ao cuidado da irmã mais velha. Foram, assim, referidos constrangimentos relacionados com a desagregação familiar.

O arguido continua, no entanto, a dispor do suporte da progenitora, que se mostrou surpreendida com a acusação e mantém expectativas na presunção de inocência relativamente ao crime de que o filho se encontra acusado.

Na sequência das diligências levadas a cabo no contexto do actual processo, o arguido passou a conhecer ser portador de doença sexualmente transmissível. Porém, mantém-se sem médico de família há cerca de um ano e meio, não tendo efectuado posteriores consultas, ou exames clínicos no sentido de averiguar a sua situação de saúde, a eventual necessidade de tratamento e adoçam de estratégias de prevenção do contágio.

Em termos sociais, no actual contexto residencial, a situação jurídica do arguido não é do conhecimento da comunidade, pelo que não se regista reactividade social face à acusação. A situação constante nos autos é desconhecida na comunidade de inserção actual.

Colocado perante factos cometidos por alguém em abstracto, em situação similar à descrita nos autos, mostrou-se pouco capaz de efectuar uma análise crítica acerca deste tipo de comportamentos, tendendo a efectuar atribuições externas dos mesmos. Denota, na generalidade, uma análise pouco reflexiva/crítica sobre a realidade envolvente, caracterizada por uma certa subvalorização de aspectos éticos/sociais fundamentais.

IV - Conclusão

No processo de socialização do arguido releva-se a inserção em grupo familiar social e economicamente vulnerável. De relevar a exposição a situações de violência familiar e a baixa valorização de um ambiente adequado à construção da intimidade e de relações positivas e seguras, enquanto factores que concorrem com desinibidores situacionais e circunstanciais.

Após os factos foram interrompidos os contactos, por qualquer meio entre a menor e o arguido, tendo-se assistido a uma desagregação familiar, com mudanças decorrentes na sua dinâmica.

Apresenta baixas competências académicas e uma trajectória laboral inconsistente, ainda que actualmente se encontre profissionalmente integrado.

Não regista envolvimento particular na actual comunidade de inserção, onde apresenta pouca visibilidade social. Dispõe, contudo, de uma integração sem indicadores de rejeição, ou de reactividade social.

Mostrou-se pouco capaz de efectuar uma análise crítica acerca do tipo de comportamentos pelos quais se encontra acusado, tendendo a efectuar atribuições externas dos mesmos e a subvalorizar aspectos éticos/sociais.

Em caso de condenação e se a pena concretamente aplicada o permitir, parece-nos que AA reúne condições para uma medida de execução na comunidade que contemple a obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade.”;

20 - O arguido é fisicamente saudável, sem evidência de psicopatologia ou disfuncionalidade sexual de nível patológico;

Foi criado no seio de uma família onde todos os adultos têm tido mais do que um parceiro sexual e filhos desses vários relacionamentos, pouco rígido, em termos de moral sexual;

O arguido é capaz de entender e avaliar a ilicitude dos actos praticados e de se determinar de acordo com essa avaliação;

21 - O arguido, a ofendida, e os respectivos progenitores, até Dezembro de 2016, viviam em … ;

22 - Em resultado de um clima de conflitualidade conjugal e familiar, em Dezembro de 2016, o arguido, a ofendida e mãe de ambos saíram da casa onde residiam, em … .

23 - A mãe, porque tinha trabalho em …, seu único meio de sustento, e dos seus filhos, ainda lá permaneceu até ao dia 15 de Janeiro de 2017, altura em que veio também para …, também para casa da sua filha GG.

24 - Esta casa tinha apenas 2 quartos, sendo que lá vivia a GG, o companheiro desta, uma filha de 12 anos, o pai do companheiro da GG, o arguido, a assistente e a sua mãe, em condições precárias.

25 - À data da suposta prática dos factos, o arguido e a assistente, para além de não frequentarem a escola, viviam em condições muito precárias;

26 - Desde Março de 2017, o arguido vive com a sua mãe e o companheiro desta, DD, em … ;

27 - Desde essa altura, não mantém contacto com a ofendida;

28- O arguido está a trabalhar, tendo celebrado contrato de trabalho em 08.02.2019.


*


Com interesse para a decisão da causa, não se provaram outros factos, em contradição com estes ou para além deles, designadamente, que:

- no mês de Fevereiro de 2017, o arguido AA formulou o propósito de iniciar e manter com a ofendida FF relações sexuais de cópula;

- os factos referidos nos pontos 5) a 7) ocorreram em meados do mês de Fevereiro de 2017

- os factos referidos no ponto 8) e 9) ocorreram entre finais de Fevereiro de 2017 e início do mês de Março de 2017;

- os factos referidos nos pontos 10) e 11) ocorreram em data anterior a 14.03.2017

- actualmente o arguido, está desempregado, mas está á procura de trabalho, encontrando-se inscrito no centro de emprego;

- é o companheiro da mãe, quem financeiramente ajuda o arguido e lhe dá todo o apoio que este necessita;


*



2. MOTIVAÇÃO [transcrição]


A convicção do Tribunal assentou no conjunto da prova produzida em audiência, analisada de acordo com as regras da experiência comum e com critérios de normalidade e razoabilidade.


Tendo o arguido optado por se manter em silêncio, o Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas:


- GG, irmã do arguido e da vítima.

Começou por dizer que a ofendida e o arguido estavam a residir consigo – e com o seu companheiro – desde o dia 18.12.2016, já que a sua mãe estava a passar por um período de alguma instabilidade pessoal, relacionada com a separação do companheiro.

Descreveu a habitação, uma casa com dois quartos, afirmando que dormia num dos quartos juntamente com o seu companheiro e, no outro, a sua filha e a ofendida (na mesma cama) e o arguido (noutra cama). Não se recorda se, à data, também residia no mesmo local o pai do seu companheiro, admitindo que se tal sucedesse, dormiria na sala.

Quando iam trabalhar, levava a filha à escola, ficando o arguido e a ofendida sozinhos em casa, uma vez que não conseguiu vaga para eles em qualquer estabelecimento de ensino.

A sua mãe acabou igualmente por ir morar consigo a partir de Janeiro de 2017, tendo ficado a dormir com o arguido.

Não presenciou os factos, de que tomou conhecimento no dia 14.03.2017, cerca do meio-dia, quando a ofendida lhe enviou algumas mensagens através da rede facebook, dizendo que queria que o arguido fosse embora de casa

Perguntou-lhe porquê, tendo a ofendida respondido que o arguido fazia “o que adultos faziam”. Sempre através de mensagens escritas, pediu-lhe para ser mais específica, tendo a ofendida revelado que o arguido se tinha colocado por cima dela, ameaçando “que lhe partia as costelas se não fizesse”.

Foi confrontada com as mensagens juntas a fls. 40 e ss., cujo teor confirmou, afirmando que correspondem às mensagens que trocou com a ofendida no momento em que tomou conhecimento do sucedido.

Referiu que chegou a casa pelas 15h20m, tendo levado a ofendida a hospital. No percurso, falou com ela, tendo a ofendida reiterado o que dissera anteriormente, que o arguido “lhe tinha feito mal”, sem todavia concretizasse os actos por ele praticados. Perguntou-lhe porque não tinha falado sobre o assunto em momento anterior, tendo a ofendida referido receio de que não acreditasse nela

Já no hospital, foi-lhe dito que a ofendida “já tinha sido mexida”, ou seja, já teria tido relações sexuais.

Ao que sabe, a ofendida não teria namorado ou sequer amigos, ainda, em …, nunca se tendo apercebido de qualquer diferença no seu comportamento.

Contou o sucedido à sua mãe, tendo igualmente confrontado o arguido, que negou ter praticado os factos. Ambos saíram de sua casa no dia 15 de Março, não tendo o arguido tido qualquer contacto posterior com a ofendida, a não ser em duas ocasiões, mas não por sua iniciativa.


- CC, mãe do arguido.

Confirmou que o arguido e a ofendida foram residir para casa da anterior testemunha no dia 18.12.2016, confirmando igualmente as circunstâncias que presidiram à mudança de residência.

Referiu que foi residir para o mesmo local no dia 14.12.2016 e que na mesma casa residiam, para além do companheiro da anterior testemunha, a sua filha e também o pai do companheiro, tendo este abandonado a casa cerca de um mês antes de ter sido conhecida a situação que deu origem a este processo.

Afirmou que dormia com o arguido e, no mesmo quarto, a ofendida e a filha da anterior testemunha.

Diz nunca ter suspeitado de que algo de anormal se passava – afirmando, inclusivamente, que arguido e ofendida se davam bem, num relacionamento que descreveu como normal, entre irmãos – confirmando que à data dos factos, nem o arguido nem a ofendida iam à escola, por falta de vaga, posto que tinham ido para … já em Dezembro, permanecendo em casa durante o dia. Nunca se apercebeu que a ofendida tivesse medo do arguido, saindo de casa juntamente com ele, mesmo depois de terem ido para … .

Tomou conhecimento do sucedido no dia em que a ofendida foi levada ao hospital, por intermédio de conversa que teve com a anterior testemunha.

Jamais conversou sobre o assunto com a ofendida, apesar de ter procurado abordar o tema.

Confrontou o arguido com os acontecimentos que lhe foram relatados, tendo ele negado a prática dos factos.

Juntamente com o arguido, abandonou a casa da sua filha logo no dia 15 de Março de 2017, para que a ofendida pudesse regressar e, desde então, apenas contacta com ela por telefone, tendo estado com ela em duas ocasiões.

Referiu que chegou a ser chamada à escola da ofendida, ante a notícia de que faltava às aulas e “andava com rapazes atrás dos pavilhões”.

Jamais se apercebeu de que tivesse iniciado qualquer relacionamento de natureza sexual, seja em …, onde residiam antes, seja em Famalicão.


- DD, companheiro da mãe do arguido desde Junho de 2017.

Foi buscá-los em 15 de Março de 2017, quando foi proferida decisão de afastamento do arguido.

Descreveu-o como uma pessoa trabalhadora, que o acompanha e ajuda nos trabalhos do campo, para além de trabalhar também consigo numa empresa de iluminações.

Confirmou que o arguido nunca mais teve qualquer contacto com a ofendida e que, tendo conversado com ele sobre o sucedido – logo um dia depois de ter sido conhecida a imputação – ele lhe admitiu como verdadeiros os acontecimentos, embora não tivesse entrado em pormenores.


O Tribunal teve igualmente em consideração as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, que confirmou a prática dos factos descritos na acusação, a par de outros elementos a que aludiram as demais testemunhas ouvidas em audiência, a reforçar a credibilidade do seu depoimento.


O Tribunal valorou, ainda os seguintes elementos de prova:

- o relatório de Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal de fls. 147 a 149 e de fls. 229 a 232;

- o exame pericial e suporte fotográfico de fls. 158 a 165;

- o exame pericial de fls. 172 a 174;

- o relatório pericial – Criminalística Biológica – de fls. 233 e 234 e de fls. 251 e 252;

- o relatório da Perícia Médico-Legal Psiquiatria de fls. 244 a 247.

- os elementos clínicos de fls. 13 a 17 e 223;

- o auto de apreensão (fls. 36);

- o auto de visionamento de conta de facebook (fls.40 a 43);

- as certidões de nascimento de fls. 80 e 81, 266 e 267;

- os elementos clínicos de fls. 223;


Tendo sido esta a prova produzida, importa fazer a sua análise crítica.

Os crimes de natureza sexual inserem-se num segmento de criminalidade que, por regra, é cometido em ambiente reservado, o que coloca ao Tribunal acrescidas dificuldades na apreciação da prova submetida a julgamento.

Estamos perante crimes que, habitualmente, contam com a vítima como única testemunha, razão por que, não havendo confissão por parte do arguido, o Tribunal – com a exigência que deve ser colocada em relação a qualquer outro crime – deve procurar elementos indiciários que possa comprovar a versão apresentada pela vítima. Referimo-nos, por exemplo, ao comportamento dos pretensos agressores e vítimas, anteriores e posteriores ao facto ou à existência de sinais ou vestígios que evidenciem a prática dos factos e que, mesmo não sendo determinantes, podem auxiliar o Tribunal nesta tarefa.


No caso concreto, o arguido optou por se manter em silêncio.

A ofendida, em declarações para memória futura, prestou um depoimento que corrobora a matéria descrita na acusação. E, de acordo com o relatório de fls. 244 e ss., apresenta capacidade para testemunhar. Percepciona adequadamente o ambiente que a rodeia, não tem limitações na capacidade de prever as consequências do seu comportamento e o de terceiros. Não revela traços de personalidade sugestivos de futura perturbação da personalidade e não descreveu ou instrumentalização por terceiros.

São elementos aptos, na nossa perspectiva, a dar como demonstrada a matéria da acusação nos termos acima descritos. Mas, se dúvidas houvesse, um outro elemento corrobora a versão sustentada pelo Ministério Público. O comportamento do arguido perante a testemunha DD, admitindo como verdadeiro – depois de conhecido – o comportamento que lhe era imputado.


Já não assim no que se refere aos factos relativos à doença a que alude o ponto 18º da acusação ou, melhor dizendo, ao conhecimento, por parte do arguido, de que era portador dessa doença.

De facto, não existem elementos que nos permitam afirmar esse conhecimento – o que, de resto, a acusação também não afirma – e que, nessa medida, o arguido estivesse na posse de todos os elementos de facto que lhe permitissem conformar a sua actuação.


Quanto aos antecedentes criminais do arguido e à sua condição sócio-económica, baseou-se o tribunal no crc junto ao processo, no relatório social e no documento junto por requerimento de 04.03.2009.

O Tribunal não se pronunciou sobre a totalidade da matéria alegada na contestação, por se referir a aspectos tratados, em pormenor, no relatório social junto a fls. 332 e ss.


  3. Delimitação do objecto dos recursos


   O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações, sendo apenas as questões aí condensadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.


  Das conclusões dos respectivos recursos, é possível concluir que:


     O Ministério Público:

- entende que fortes razões de ordem preventiva geral, se mostram impeditivas do uso que vem feito pelo tribunal a quo do regime penal especial para jovens, previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro:

- Pugnando, também, por um maior rigor punitivo, no quantum fixado quer às penas parcelares quer, à pena única, sendo que as acima aludidas exigências de natureza de natureza preventiva geral sempre seriam impeditivas da reclamada suspensão da execução da pena.


     O arguido, por seu lado, as seguintes questões:

- Existência de nulidades da sentença, previstas no artigo 379.º, n º 1, alíneas a) e c) do CPP;

- Medida das penas parcelares e única e aplicação do instituto da suspensão da pena.


     4. Apreciação


    4.1. Por razões de precedência lógica e porque o conhecimento das enunciadas questões pode ficar prejudicado pela solução que for dada a outra – artigo 608.º do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP – há que apreciar e decidir desde já a questão de nulidade da decisão recorrida suscitada pelo arguido a qual, se se verificar, prejudica a apreciação das demais questões, tal como o conhecimento do recurso interposto pelo Ministério Público.


    4.2. Da nulidade do acórdão


   4.2.1. Alega o arguido que a decisão recorrida «é omissa quanto aos elementos de prova recolhidos através das perícias realizadas ao arguido, parecendo apenas valorar o relatório social de determinação da pena», sendo «nula ao abrigo do disposto no artigo 379º, nº1, al. a) e c) e artigo 374º, nº 2 ambos do CPP, por falta de pronúncia e de valoração da prova produzida, nomeadamente, do Relatório de Perícia-Legal de Psicologia e do Relatório de Perícia-Legal de Psiquiatria que o tribunal a quo não tomou em consideração para determinar a medida da culpa e da pena a aplicar ao arguido».

    Que a mesma decisão «não faz qualquer referência a estes elementos probatórios, inexistindo qualquer exame crítico dos mesmos e de como serviram para formar a convicção do tribunal» (conclusões 18, 19 e 20).


     4.2.2. Para a devida compreensão da questão de nulidade que é suscitada, importa dar nota do respectivo contexto processual de onde ela alegadamente emerge.

  Assim, conforme se documenta na acta de audiência de discussão e julgamento realizada em 27 de Junho de 2018 (fls. 336-337 do 1.º volume), a Defensora do arguido formulou o seguinte requerimento:


    «Ao ser confrontada com o teor do relatório social agora, uma vez que o mesmo ficou disponível hoje, tendo em conta as circunstâncias económicas, sociais, pessoais do arguido e da ofendida, e inclusive tendo o relatório social também mencionado que o arguido se não mostrou capaz de fazer uma análise crítica acerca dos comportamentos pelos quais vem acusado, e ainda quando diz que ele tende a efectuar atribuições externas dos mesmos e a desvalorizar aspectos éticos/sociais, e tendo ainda em conta que o relatório social aponta para que é possível o arguido se ressocializar e que se haveria de ter em conta ainda no que lhe for aplicado uma intervenção psicoterapêutica direccionada ao desenvolvimento das competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente da área da sua intimidade e sexualidade, entendo, com o devido respeito por a opinião de V. Exas ser diferente, que deve o tribunal ordenar que seja feita uma perícia ao arguido de forma a avaliar as suas condições psíquicas e psicológicas, que seria relevante para aferirmos quer dos comportamentos dele à data da prática dos factos, quer actualmente, por essa avaliação ser fundamental para a descoberta da verdade material e para ajudar o tribunal a determinar a concreta medida da pena a aplicar.

   Em face do exposto, a defesa requer a realização de uma perícia, com vista a averiguar da imputabilidade e/ou imputabilidade diminuída e da sua perigosidade para a prática de factos da mesma espécie face ao teor do relatório social.»


    O Ministério Público, na mesma ocasião, referiu nada ter a opor, «acrescentando que se afigure que o relatório deve incidir também sobre a necessidade de o arguido ser submetido a tratamento e a intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade e, eventualmente, apontar no sentido da necessidade da submissão do arguido a perícia de natureza psicológica».


     Sobre tais requerimentos, recaiu o despacho que se transcreve:


   «Atento o teor do relatório social, os motivos invocados e à não oposição do Ministério Público, determina-se a realização de perícia com vista a apurar se o arguido à data dos factos tinha capacidade para avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação, e em que medida, e da existência de perigosidade da prática de actos da mesma natureza, pretendendo ainda apurar-se da adequação de o arguido ser submetido a tratamento e a intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade.

Solicite ao INML a indicação de data disponível para a realização do exame, submetendo para o efeito cópia da acusação e do relatório social.» e, eventualmente, apontar no sentido da necessidade da submissão do arguido a perícia de natureza psicológica».


  Na sequência foi realizada a Perícia Médico-Legal de Psiquiatria ao arguido pelo Gabinete Médico-Legal e Forense … do INML, encontrando-se o respectivo Relatório junto a fls. 354 a 356.

  Foi realizado ainda pela mesma Entidade a Perícia Médico-Legal de Psicologia ao mesmo arguido estando o respectivo Relatório junto a fls. 367 a 372vº.


  4.2.3. Na motivação da decisão quanto à matéria de facto, constatamos que a convicção do Tribunal assentou no depoimento das testemunhas GG (irmã do arguido), CC (mãe do arguido), DD (companheiro da mãe do arguido), tendo ainda tido em consideração as declarações para memória futura prestadas pela ofendida.

   Como ali se consigna, o Tribunal valorou ainda os seguintes elementos de prova:

- o relatório de Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal de fls. 147 a 149 e de fls. 229 a 232;

- o exame pericial e suporte fotográfico de fls. 158 a 165;

- o exame pericial de fls. 172 a 174;

- o relatório pericial – Criminalística Biológica – de fls. 233 e 234 e de fls. 251 e 252;

- o relatório da Perícia Médico-Legal Psiquiatria de fls. 244 a 247 [[1]];

- os elementos clínicos de fls. 13 a 17 e 223;

- o auto de apreensão (fls. 36);

- o auto de visionamento de conta de facebook (fls.40 a 43);

- as certidões de nascimento de fls. 80 e 81, 266 e 267;

- os elementos clínicos de fls. 223;

           

  Como de imediato se constata, não foram ponderados nem valorados pelo Tribunal os elementos constantes dos relatórios das perícias de psiquiatria e de psicologia realizadas sobre o arguido.


     4.2.4. Que consequências se podem retirar desta omissão?


   O arguido/recorrente sustenta que o Tribunal não valorou aqueles relatórios periciais de psicologia e de psiquiatria, juntos ao processo em data anterior à prolação da decisão recorrida, que a mesma é omissa quanto aos elementos de prova recolhidos através de tais perícias, concluindo pela nulidade da decisão nos termos dos disposto nos artigos 379.º, n-.º 1, alíneas a) e c), e 374.º, n.º 2, do CPP.

  O Ministério Público neste Supremo Tribunal expressa igualmente o entendimento de que o acórdão sob recurso enferma de nulidade por «insuficiência do exame crítico das provas», nulidade essa prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, e decorrente da omissão do exame crítico da prova obtida pelas perícias de psicologia e de psiquiatria realizadas ao arguido.


   No âmbito do processo penal, constitui missão do Tribunal a procura da verdade material, ordenando oficiosamente a produção de todos os elementos de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cfr. artigo 340.º, n.os 1 e 2 do CPP)[2], impondo-se-lhe que aprecie conjunta e conjugadamente toda a prova que lhe é apresentada, seja por constar do processo e adquirida para o mesmo nas fases anteriores ao julgamento ou produzida neste, segundo critérios de normalidade, à luz da experiência comum.

    Como se lê no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 47/2005[3], as garantias de defesa e o princípio da legalidade em processo criminal impõem que no julgamento se proceda à apreciação de todos os factos legalmente relevantes para a responsabilidade criminal do arguido, repercutindo-se a violação destes princípios na fundamentação da sentença desvirtuando a sua função essencial

    Impõe-se igualmente que o Tribunal, de modo claro, ainda que sucinto, fundamente a sua convicção, permitindo ao arguido, aos demais intervenientes processuais e à comunidade em geral, uma completa compreensão das razões que motivaram a decisão proferida, das razões pelas quais só aquela decisão e não outra poderia ter sido tomada, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi tomada de forma arbitrária.

  Esta imposição decorre da lei, concretamente do preceituado no n.º 2 do artigo 374.º do CPP, que determina como requisito da sentença, que esta se encontre devidamente fundamentada, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

  Em tal preceito, exige-se, pois, que o julgador elenque as provas a que atendeu, os motivos pelos quais credibilizou umas e desconsiderou outras e demonstre o percurso intelectual prosseguido a partir delas até à decisão proferida.

     Este dever de fundamentação da decisão é também uma garantia para quem pretenda recorrer, possibilitando ao tribunal de recurso, que conhece de facto e de direito, aperceber-se dos pontos que eventualmente tenham sido incorrectamente julgados; se existe prova que sustente a decisão recorrida ou se, ao invés, perante a prova existente, se impõe decisão diversa da que foi proferida, ainda se existe prova que deva ser renovada, tudo como consta do número 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

           

    Como, a este propósito se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 27-05-2009, proferido no processo n.º 1511/05.7PBFAR.S1 – 3.ª Secção[4]:        

  «Por força do artº 205.º, n.º 1 da Constituição da República: As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

   E, o artº 97.º n.º 4 do CPP determina que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

   Por sua vez, estabelece o artº 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal sobre os requisitos da sentença que: Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

   O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

     Antes da vigência da Lei nº 59/98 de 15 de Agosto, entendia-se que o artigo 374º nº 2 do CPP não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador exponha pormenorizadamente o raciocínio lógico que se encontra na base da sua convicção pelo que somente a ausência total da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do artº 374º nº 2 do CPP a acarretar nulidade da decisão nos termos do artº 379º do CPP.

  Actualmente, face à nova redacção do nº 2 do artº 374º do CPP, - aditamento à redacção do preceito: exame crítico das provas - é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas.

  Foi a referida Lei nº 59/98 de 25 de Agosto que aditou a exigência do exame crítico das provas, e que inalterou na revisão de 2007 pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto.

   O exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareça "quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra.

  Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.

  A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controle indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão. Para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do juiz o exame crítico das provas, que é a sua descrição e o juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório, ou seja a crítica por que umas merecem credibilidade e outras não, impondo que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada. Ac. do STJ de 09-05-2007 Proc. n.º 247/07 - 3.ª Secção.»


   A apreciação da prova numa sentença em recurso implica uma percepção, um conhecimento dos motivos da convicção do julgador. Assim o exige o citado artigo 374.º, n.º 2, do CPP.

  Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 19-01-2011, proferido no processo n.º 160/08.2TAFND.C1, convocado no acórdão do mesmo Tribunal, de 29-06-2011, proferido no processo n.º 51/10.3GBPBL.C1, «Para se cumprir a exigência normativa do exame crítico das provas torna-se necessário saber o porquê, a razão de ser da formação da convicção do tribunal», cominando de nula a sentença que não contiver as menções referidas no artigo 374.º, n.º 2 do CPP, conforme artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código.


   Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do nº 2 do artigo 374º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei nº 58/98, de 25 de Agosto), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

   Como se pondera no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2007, proferido no processo n.º 07P024:


   «A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção.

   O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

    Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.

   O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).

  O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).

    No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a que se refere especificamente a exigência da parte final do artigo 374º, nº 2 do CPP, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410º, nº 2 do CPP; o n° 2 do artigo 374° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cfr., nesta perspectiva, o acórdão do Tribunal Constitucional, de 2 de Dezembro de 1998).

   A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.»

           

    Se, como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal, de 30-01-2002, proferido no processo n.º 3063/01- 3ª Secção[5], «a disposição do art. 374.º, n.º 2, do CPP, sobre o exame crítico das provas não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas produzidas e muito menos a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão», certo é que, como também ali se sublinha, «[a] partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção».


     Numa situação em que estava em causa a falta de exame crítico da prova, pode ler-se no acórdão do tribunal da Relação de 09-12-2015 (Proc. n.º 9/14.7T3ILH.P1):


    «Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do nº 2 do artigo 374º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei nº 58/98, de 25 de Agosto), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

   A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção.

     O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

    Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.

   O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

    O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte [[6]].

    No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a que se refere especificamente a exigência da parte final do artigo 374º, nº 2 do CPP, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410º, nº 2 do CPP; o n° 2 do artigo 374° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal recorrido, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório [[7]].

   A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.

    Para cumprimento daquele requisito não se satisfaz a lei com a mera enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento e dos que serviram para fundamentar a sentença [[8]].

            É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá, além do mais, para convencer os interessados e a comunidade em geral da correta aplicação da justiça no caso concreto».


  4.2.5. Perante os elementos jurisprudenciais recenseados, teremos de concluir que a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto aí se incluindo o exame crítico da prova deve ser completa e abranger todas as provas constituídas ou administradas no processo, nelas se incluindo, obviamente, aquelas que foram determinadas pelo próprio tribunal, relevantes e necessárias para o objecto da prova – existência ou não existência do crime, punibilidade ou não punibilidade do agente e determinação da pena (artigo 124.º do CPP).

    Como é dito no já citado acórdão deste Supremo Tribunal de 27-05-2009, «para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do juiz o exame crítico das provas, que é a sua descrição e o juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório, ou seja, a crítica porque umas merecem credibilidade e outras não, impondo que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada».


   Ora, no caso sub judice, o Tribunal Colectivo não se pronunciou sobre o resultado das perícias efectuadas ao arguido em sede de psiquiatria e de psicologia. Na motivação da decisão em matéria de facto referenciam-se outros elementos probatórios e resultados deles emergentes mas em momento algum se procede a qualquer ponderação sobre os elementos apurados nos exames periciais realizados, aliás, como já foi dito, por determinação do próprio Tribunal.

   Na verdade, a determinação pelo Tribunal da realização daquelas perícias tem pressuposto o entendimento de que elas eram relevantes para a decisão da causa.     Importa aqui recordar que o Tribunal ordenou a realização de perícia por três razões e com três finalidades:

    a- Apurar se o arguido à data dos factos tinha capacidade para avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação, e em que medida;

   b- Existência de perigosidade da prática de actos da mesma natureza;

   c- Apurar-se da adequação de o arguido ser submetido a tratamento e intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade.

     A primeira releva para a decisão sobre a culpabilidade (artigo 368.º, n.º 2, do CPP e artigo 20.º do Código Penal).

A segunda, que pode estar ligada à primeira, em caso de inimputabilidade, releva também para a pena (artigo 71.º do Código Penal), tal como a terceira.

     O juízo de necessidade pressupõe um juízo de insuficiência ou de dúvida, uma questão, sobre o que se pretende provar e que constitui objecto da prova (artigo 124.º do CPP). E se é uma questão que se coloca ao tribunal, tal questão exige resposta. E se exige resposta, o tribunal deve pronunciar-se sobre ela, sob pena de nulidade [artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP].

Relevando para a pena (determinação da sanção – artigo 369.º do CPP), deve também o resultado da perícia constar da fundamentação (artigo 375.º, n.º 1 do CPP e artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal). Como considera OLIVEIRA MENDES, em anotação ao artigo 375.º do CPP, «[a] falta de especificação das razões que subjazem à determinação concreta da pena constitui […] nulidade por omissão de pronúncia, invalidade que [se prevê] na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º»[9].


    Reafirmando-se que a determinação pelo Tribunal da realização daquelas perícias tem pressuposto o entendimento de que elas eram relevantes para a decisão da causa, a sua omissão na fundamentação da matéria de facto atesta a falta de exame crítico que redunda em nulidade da decisão.


    Não se compreende que o Tribunal Colectivo, sobre o qual impende o dever de, autonomamente, esclarecer e instruir o facto sujeito a julgamento, investigando, independentemente dos contributos da acusação e da defesa, tudo quanto possa conduzir à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (princípio da investigação - cfr. artigo 340.º do CPP - não tenha examinado na audiência e diligenciado na ponderação dos elementos recolhidos nas perícias realizadas e documentados nos respectivos relatórios.        Perícias que, reafirma-se, foram realizadas por determinação do próprio Tribunal, na sequência de pedidos feitos, nesse sentido, pela defesa e pelo Ministério Público.


  Concordando-se com o alegado pelo recorrente, entendemos também que o acórdão recorrido é omisso quanto aos elementos de prova recolhidos através das perícias realizadas ao arguido, parecendo apenas valorar o relatório social de determinação da pena. Nenhuma referência é feita na fundamentação da matéria de facto e em sede de exame crítico das provas aos elementos apurados nos exames periciais. Nada se diz quanto à sua relevância ou irrelevância para a decisão.

  Ou, como também considera o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu proficiente parecer, configura-se aqui «uma insuficiência do exame crítico das provas, que integra a nulidade da sentença, prevista no art. 379º, n º 1, alínea a), do CPP».


  Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 11-07-2007 (Proc. n.º 1416/07 - 3.ª Secção)[10], «as decisões judiciais são fundamentadas (arts. 374.º, n.º 2, e 97.º, n.º 4, do CPP e 202.º da CRP). O juiz aprecia a prova produzida – que se mede pelo seu peso e não pelo número –, dando conta na motivação dos resultados adquiridos e dos critérios adoptados para justificar a decisão perante os sujeitos processuais e até perante os tribunais superiores, apresentando as razões por que algumas das provas merecem aceitação e outras não, funcionando a motivação como instrumento indispensável para o controle da administração da justiça».


   A apontada fundamentação insuficiente determina a nulidade da sentença, nos termos dos artigo 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2, do CPP[11], estando vedado o seu suprimento por este Supremo Tribunal por se tratar de facticidade e valoração da prova, não lhe competindo substituir-se ao julgador na convicção que deva formar sobre a prova produzida.


   Perante a constatada nulidade do acórdão recorrido, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo arguido e, bem assim, pelo Ministério Público no recurso interposto.


  III – DECISÃO


  Em face do exposto, concedendo provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, acordam os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em anular o acórdão que deverá ser reformulado de modo a suprir o apontado vício, decidindo-se em conformidade, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo arguido e pelo Ministério Público.


  Sem custas (artigo 513.º, n.º 1, do CPP).


SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 18 de Dezembro de 2019

(Texto processado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)


Manuel Augusto de Matos (Relator)

Lopes da Mota

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[1]     Esta Perícia foi realizada na pessoa da ofendida FF.
[2]   Acompanhou-se neste segmento expositivo PAULO DE SOUSA MENDES, Lições de Processo Penal, 2015, Almedina, p. 218.
[3]    Texto disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[4]  Disponível em www.dgsi.pt, como os demais acórdãos que se citarem sem outra menção.
[5]    Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais, 2002.
[6]   Cfr. Acs. do STJ de 17.03.2004, Proc. nº 4026/03; de 07.02.2002, Proc. nº 3998/00 e de 12.04.2000, Proc. nº 141/00.
[7]     Cfr., nesta perspectiva o Ac. do Tribunal Constitucional de 02 de Dezembro de 1998.
[8]     Como já se pronunciaram os Acs. do Tribunal Constitucional nºs 680/98 e 636/99: “é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal”. Na fundamentação do primeiro daqueles acórdãos, pode ainda ler-se “Não sendo naturalmente uniformes as exigências constitucionais de fundamentação relativamente a todo o tipo de decisões judiciais, como já se referiu, algumas destas hão-de ser objecto de um dever de fundamentar de especial intensidade. Entre elas, facilmente se convirá estarem as decisões finais em matéria penal, mormente as condenatórias, na primeira linha. (…)”];
[9]    Et alii, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição, Almedina, p. 1125.
[10]    Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, 2007.
[11] Assim, OLIVEIRA MENDES, ob. cit., p. 1121.