Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
291/18.0T8AGH.L1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
INCOMPETÊNCIA
JUÍZO CÍVEL
VALOR DA CAUSA
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
Data do Acordão: 07/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO.
Doutrina:
- António Vieira Cura, Organização Judiciária Portuguesa, 2018, Editora Gestlegal, p. 301;
- Bruno Bom Ferreira, Insolvências: Central ou local – Eis a questão …, Revista Julgar on line, outubro de 2015, in http://julgar.pt/insolvencias-central-ou-local-eis-a-questao/;
- Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC [Jurisprudência 79], in https://blogippc.blogspot.com/2015/02/jurisprudencia-79.html;
- Salazar Casanova, Notas breve sobre a Lei de Organização do Sistema Judiciário, Lei 62/2013, de 26 de agosto, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, nº 2/3, 2013, p. 468;
- Salvador da Costa e Luís Lameiras, Lei da Organização do Sistema Judiciário Anotada e Comentada, 2017, 3.ª ed., Almedina, p. 188.
Legislação Nacional:
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGOS 117.º, N.ºS 1 E 2, 128.º, N.º 1, ALÍNEA A) E 130.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º, N.º 3.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (CIRE): - ARTIGOS 17.º-A A 17.º-J.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 26-03-2015, RELATORA CATARINA ARÊLO MANSO;
- DE 30-06-2015, RELATOR ORLANDO NASCIMENTO;
- DE 22-06-2017, RELATORA ONDINA CARMO ALVES, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. Não existindo Juízo de Comércio na comarca dos Açores, a competência para conhecer de um Processo Especial de Revitalização [que, nos termos do art.128º, n.1, al.a) da LOSJ, cabe aos Juízos de Comércio] pertence às instâncias locais, ex vi dos artigos 117º, n.1 e n.2 e art.130º da LOSJ, dado tratar-se de um processo de natureza especial.

II. Se, em termos gerais, a competência do Juízo Central é delimitada tendo por base a natureza da ação e o seu valor, como estabelece o art.117º, n.1 da LOSJ, não existe nenhuma razão para se concluir que quando tal norma é expressamente aplicada, por remissão do n.2 do art.117º, às ações que caberiam no âmbito do art.128º tais critérios cumulativos deixem de ter aplicação.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. “AA – ..., Ldª”, com sede no ..., ..., ... (Açores) propôs, em 23.03.2018, no Juízo Central Cível e Criminal de … (do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores), processo especial de revitalização, indicando como valor da ação € 811.725,42.

2. O referido tribunal declarou a sua incompetência material e indeferiu a petição, por ter entendido que, não existindo Juízo de Comércio nos Açores, os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização não correm nos Juízos Centrais. E entendeu ser competente para conhecer do caso concreto, nos termos do art.130º, n.1, al. a) da LOSJ, o Juízo de Competência Genérica de São Roque do Pico.

3. Inconformada com tal decisão, a autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.

4. A segunda instância entendeu que:  «(…) uma vez que estamos perante uma ação especial, é competente para a sua tramitação o juízo local ou genérico do município onde a requerida tem sede, não o sendo o juízo central cível e criminal de Angra do Heroísmo, como bem decidiu o tribunal recorrido. Consequentemente, aquele juízo é materialmente incompetente para a tramitação dos presentes autos, verificando-se, assim, a existência de uma exceção dilatória, a qual é de conhecimento oficioso (cfr. arts. 577º, al. a) e 578º, ambos do CPC), que acarreta a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar, nos termos do art. 99º, n. 1 do CPC.

E concluiu: «serem os juízos centrais cíveis incompetentes para o presente processo especial de revitalização, como bem decidiu o tribunal recorrido, sendo correta a forma como o tribunal apreciou tal questão, improcedendo, assim, a apelação».

    5. A autora/recorrente, não se conformando com aquela decisão, dela interpôs recurso de revista excecional, em cujas alegações formulou as conclusões que se transcrevem:

1 - A Recorrente apresenta recurso de revista excepcional, estribada na alínea c) do n.1 do art. 672° do CPC.

2 - Foi decidido no Acórdão recorrido que "nos tribunais de comarca onde não existe juízo de comércio, a competência para o processo especial de revitalização pertence aos juízos locais cíveis ou, na existência destes, aos juízos de competência genérica".

3 - O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Março de 2015 no Proc. n.702/14.4T8PDL.L1-8, eleito como Acórdão fundamento, já devidamente transitado em julgado, no âmbito do mesmo quadro normativo, decidiu a mesma questão de direito em termos diametralmente opostos.

4 - Foi decidido no Acórdão fundamento que "nas comarcas onde não existam secções especializadas, pertence às secções cíveis da instância central a competência para as acções nas quais seriam competentes as secções de comércio".

5 - O Tribunal da Relação de Lisboa em situações manifestamente idênticas e que visam exactamente a mesma realidade, neste caso a organização judiciária e respectiva competência material na Região Autónoma dos Açores para tramitação das acções cuja competência competiria aos tribunais de comércio, decidiu de forma diversa e completamente oposta.

6 - Estamos perante uma contradição manifesta entre o Acórdão ora em crise e exarado pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa e o Acórdão fundamento oriundo do mesmo Tribunal e já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, não havendo sobre o assunto qualquer acórdão uniformizador de jurisprudência.


7 - Encontra-se, desta forma, inteiramente preenchido o requisito enunciado na alínea c) do n. 2 do art. 672° do CPC, tornando, desta via, admissível a revista excepcional.

8 - Foi decidido no Acórdão recorrido que, na falta de juízos de comércio, os processos de insolvência ou os processos especiais de revitalização não correm nos Juízos Centrais das comarcas;

9 - Não se concorda com tal entendimento do Acórdão recorrido que contradiz o teor do Acórdão Fundamento;

10 - Entendeu o Acórdão recorrido que apenas compete às Secções da Instância Central Cível o conhecimento das acções cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00 e que a matéria em causa nos presentes autos não se encontra estatuída na previsão do n. 1 do art. 117º LOSJ, por se tratar de forma de processo especial;

11 - No entanto, a RLOSJ, introduzida pelo DL 49/2014, de 27 de Março, criou o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (art. 64°), não tendo criado, nenhuma secção de comércio (nem nas Instancia Central, nem Local);

12 - F. Salazar Casanova in Notas Breves Sobre a Lei da Organização do Sistema Judiciário, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, Vol. II/III (Abril/Setembro -2013), pág. 468 entende que "se não for criada no tribunal de instância central uma secção de comércio, a lei prescreve (art. 117º, 2) que para as causas que deviam correr na secção de comércio, se existisse, é extensivo o disposto no art. 117º, 1 que visa a competência da instância cível central. A secção cível estende a sua competência em razão da matéria para todas as causas que se deveriam tramitar na secção de comércio se esta existisse";

13 - É claro o problema de interpretação da lei e nos termos do art. 9º do Código Civil é de presumir, na fixação do sentido e alcance da lei, "que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.";

14 - Entende-se que da conjugação das normas do n.1 e n.2 do artigo 117°, da LOSJ, decorre que nas comarcas onde não haja secção de comércio, a competência da secção cível da instância central, para a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00 é extensiva às acções que caibam às secções de comércio;

15- O referido n.2 do art. 117°, ao tornar extensivo o disposto "no número anterior" "às acções que caibam" às secções de comércio, não distingue entre acções cíveis com processo comum e acções cíveis com processo especial como, indubitavelmente, é o processo de insolvência e o processo de revitalização;

16 - "Nenhuma razão se vislumbrando - para além do optado critério do valor da causa - para "ratear" - nas comarcas onde não exista secção de comércio (como é o caso da Região Autónoma dos Açores) - os processos que caberiam na competência daquela, caso existisse - e que tanto serão processos comuns como processos especiais - pela instância central e pela instância local, em função da forma de processo;

17 - No Acórdão Fundamento foi entendido que "Nos termos da al. d) do n. 2 do art. 117° da LOSJ e no n.2, desse mesmo normativo, outra não poderá ser a conclusão de que foi intenção do legislador, atenta a interpretação literal da conjugação das duas normas em apreço, atribuir competência às secções cíveis da instância central para as acções que sendo das secções de comércio, nas comarcas onde não existam tais secções especializadas";

18 - A presente questão já foi alvo de vasta jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa que atribuiu a competência material às instâncias centrais, nomeadamente, Acórdão de 26-03-2015 no Proc. n.702/14.4T8PDL.L1-8 em que foi relatora a Desembargadora Catarina Arêlo Manso (indicado como Acórdão Fundamento), Acórdão de 30-06-2015 no Proc. n.431/15.1T8PDL.L1-7 em que foi relator o Desembargador Orlando Nascimento, Acórdão de 07/04/2016 no Proc. n.35/16.1T8PDL.L1-2 em que foi relator o  Sr. Desembargador Ezaguy Martins, Acórdão de 12/04/2016 no Proc. n.507/15.5T8RGR.L1-7 em que foi relatora a Sra. Desembargadora Dina Monteiro, Acórdão de 02/06/2016 no Proc. n.2210/15.7T8PDL.L1-2 em que foi relator o Sr. Desembargador Ezaguy Martins, etc;

19 - Portanto, a posição sustentada pela ora recorrida não é de forma alguma isolada encontrando respaldo tanto em doutrina como em jurisprudência variada do Tribunal da Relação de Lisboa, que já por diversas vezes se versou sobre a questão da competência material para o julgamento de acções especiais de insolvência e de revitalização na Região Autónoma dos Açores.

20 - No Acórdão recorrido houve uma declaração de voto de vencido da Sra. Desembargadora Maria Amélia Ribeiro, que sustenta na íntegra os argumentos da Recorrente entendendo que "nas comarcas em que não se encontrem instaladas as secções especializadas de comércio, a preparação e julgamento das acções que versem essa matéria - no caso, as do artigo 128° da LOSJ - são da competência das secções cíveis da instância central, por imperativo do disposto no n. 2 do art. 117o, da LOSJ e tendo presente o n. 1, alínea d) desse mesmo preceito";

21 - Atento o exposto, deverá a douta decisão proferida e ora sindicada ser substituída, devendo este Supremo Tribunal revogar o Acórdão recorrido e subsequentemente a decisão da 1ª instância, proferindo decisão que determine que nas comarcas em que não se encontrem instaladas as secções especializadas de comércio, a preparação e julgamento das acções que versem essa matéria - no caso, as do artigo 128.° da LOSJ - são da competência das secções cíveis da instancia central, por imperativo do disposto no n. 2 do artigo 117.°, da LOSJ e tendo presente o n.1, alínea d) desse mesmo preceito, e concomitantemente o Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo é o competente para o julgamento dos presentes autos de processo especial de revitalização.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão proferido, julgando-se nos termos pugnados neste recurso, determinando-se que nas comarcas onde não existam secções especializadas, pertence às secções cíveis da instância central a competência para as acções nas quais seriam competentes as secções de comércio, assim se fazendo a habitual Justiça. Pereat Mundus Fiat Justitiae.»

6. Dado que a recorrente alegou a existência de revista excecional, foram os autos enviados à Formação a que alude o art.672º, n. 3 do CPC, a qual decidiu remeter os autos para distribuição como revista normal, porquanto o acórdão recorrido apresenta um voto de vencido de um dos desembargadores adjuntos. 

7. Distribuído o recurso como revista normal, seguindo a determinação do art.101º, n.1 do CPC, foi colhido o parecer do Ministério Publico, o qual considerou competente a “Secção de competência genérica de Angra do Heroísmo, Comarca dos Açores”. 

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E DECISÃO

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso:

            Embora o acórdão recorrido tenha confirmado a decisão da primeira instância, entendendo que a competência para conhecer da presente ação não cabe ao Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo, existe, porém, voto de vencido de um dos desembargadores adjuntos, no sentido de que a decisão devia ser revogada, sendo a competência atribuída àquele Juízo Central. Assim, nos termos do art.671º, n.3  do CPC, a existência de voto de vencido permite a interposição de recurso de revista nos termos comuns (por não se formar a denominada dupla conforme).

2. O objeto do recurso:

A questão a decidir é a de saber se a competência para o presente processo especial de revitalização pertence, ou não, ao juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo.

3. Factualidade relevante:

A factualidade relevante é a que já consta do relatório supra exposto.

4. O direito aplicável:

4.1. A ação proposta pela autora/recorrente é um Processo Especial de Revitalização (PER), matéria disciplinada pelos artigos 17º-A a 17º-J do Código da Insolvência e Recuperação de Empresa (CIRE), cuja apreciação cabe na competência especializada dos juízos de comércio, como estabelece o art. 128º, n.1, alínea a) da Lei n.62/2013 (LOSJ)[1].

Todavia, a comarca dos Açores não dispõe de juízo de competência especializada em Comércio, como se constata pelo disposto no art.66º do Decreto-Lei n.49/2014 (alterado, mais recentemente, pelo Decreto-Lei n.38/2019), e pelo Anexo a tal diploma.

Coloca-se, assim, a questão de saber se a competência para conhecer do pedido da autora cabe ao juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo (que se considerou incompetente) ou a outro juízo (local cível ou de competência genérica).  

A decisão recorrida, confirmando o decidido pela primeira instância, entendeu: «serem os juízos centrais cíveis incompetentes para o presente processo especial de revitalização, como bem decidiu o tribunal recorrido, sendo correta a forma como o tribunal apreciou tal questão, improcedendo, assim, a apelação»

4.2. Estabelece o art.117º da LOSJ – Lei n.62/2013 (no que à decisão da presente causa interessa):

1 - Compete aos juízos centrais cíveis:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;

b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;

 c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;

 d) Exercer as demais competências conferidas por lei.

2 - Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.

O alcance do disposto no n.2 do art.117º, quando está em causa a competência para conhecer de ações de insolvência ou de procedimentos especiais de revitalização, tem sido alvo de jurisprudência e doutrina de sentidos divergentes.

4.3. A Relação de Lisboa, à qual cabe a competência para conhecer dos recursos respeitantes à comarca dos Açores, tem sustentado entendimentos em três sentidos diversos.

Encontra-se jurisprudência desta Relação que sustenta um critério que poderemos designar como “dualista” no que respeita à competência para conhecer dos processos de insolvência e procedimentos especiais de revitalização, na medida em que, dependendo do respetivo valor (mais ou menos de 50.000,00€), estes processos serão repartidos entre os juízos centrais e os juízos locais.

Neste sentido aponta-se, a título exemplificativo, o acórdão do TRL, de 30.06.2015 (relator Orlando Nascimento)[2]: «(…) o desiderato prosseguido pelo legislador com o n. 2, do art.117.º, da lei n. 62/2013, não foi dizer o mesmo que já diria sem ele, mas dizer algo diferente, devendo o mesmo ser interpretado no sentido de que a secção cível da instância central, na ausência de criação da secção de comércio, tem competência para todas as ações do art.128º, sejam ações comuns ou processos especiais, quando o seu valor seja superior a € 50.000,00.»

Sustentando que a competência para conhecer de todos os processos que caberiam ao juízo de comércio (se existisse) cabe ao juízo central, veja-se, a título exemplificativo, o acórdão do TRL, de 26.03.2015 (relatora Catarina Arêlo Manso)[3] assim sumariado: «Nos termos da al. d) do n. 1 do art. 117º da LOSJ e do n.2, desse mesmo normativo, nas comarcas onde não existam secções especializadas, pertence às secções cíveis da instância central a competência para as ações nas quais seriam competentes as secções de comércio

Defendendo que os processos de natureza especial (como os de insolvência e revitalização) não cabem no âmbito de competência dos juízos centrais, mas sim na competência da instância local, pode ver-se, por exemplo, o acórdão do TRL, de 22.06.2017 (relatora Ondina Carmo Alves): «No âmbito da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n. 62/2013, de 26/08 (LOSJ), regulamentada pelo Decreto-Lei n.49/2014, de 27/03 (RLOSL) nas comarcas onde não foram criadas Secções de Comércio, como é o caso da Comarca dos Açores, é da competência da Instância Local, e não da Instância Central, a tramitação dos processos de insolvência, independentemente do valor da causa, por força do disposto no artigo 117º, n.s 1 e 2 da LOSJ e atenta a competência residual da Instância Local[4]»

4.4. As divergências que se identificam na jurisprudência são também sustentadas, a nível teórico, em diversas publicações.

No sentido de que cabem na competência dos juízos centrais as ações de valor superior a 50.000,00€, independentemente de terem natureza comum ou especial, veja-se Bruno Bom Ferreira, “Insolvências: Central ou local – Eis a questão …”[5].

Defendendo a competência dos juízos centrais para o conhecimento de todas as ações que caberiam no âmbito do art.128º, veja-se Salazar Casanova, “Notas breve sobre a Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013, de 26 de agosto)”, onde afirma: “(…) se não for criado no tribunal de instância central uma secção de comércio, a lei prescreve (art.117º, n.2) que para as causas que deviam correr nas secções de comércio, se existisse, é extensivo o disposto no art.117º, n.1 que visa a competência da instância cível central. A secção cível estende a sua competência em razão da matéria para todas as causas que se deviam tramitar na secção de comércio se esta existisse [6].

- No sentido de que os processos de natureza especial (como os de insolvência e equiparados) não cabem no âmbito de competência dos juízos centrais, veja-se, Miguel Teixeira de Sousa, que afirma: “A Instância Central será a competente para as acções indicadas nas alíneas b) a i) e n.s 2 e 3 do art. 128.º [da LOSJ], desde que se trate de ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000.

Não oferece dúvidas, face ao estabelecido nos arts. 546º, 548º e 549º, n. 1, do CPC e no CIRE, que o processo de insolvência é um processo especial.

Consequentemente, sendo um processo especial, a competência para a sua tramitação e conhecimento, nas comarcas em que não haja secção de comércio, não cabe à Instância Central, seja qual for o valor da causa, mas à Instância Local, por força da competência residual atribuída no art. 130º, n.º 1, al. a) [da LOSJ] (“compete às secções de competência genérica preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada”) [7].

Também neste sentido se pronunciam Salvador da Costa/Luís Lameiras: Lei da Organização do Sistema Judiciário Anotada e Comentada (2017) “(…) como o processo de insolvência é de natureza especial, a competência para dele conhecer, na falta de juízo central de comércio, não se inscreve nos juízos centrais cíveis[8].

No mesmo sentido, veja-se ainda António Vieira Cura, Organização Judiciária Portuguesa (2018), onde afirma “(…) aos juízos centrais cíveis caberá a preparação e julgamento das ações declarativas de processo comum previstas no n.1 do art.128º (…) mas não as de processo especial – como os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização (…)”[9].

4.5. Consideradas todas as soluções doutrinalmente e jurisprudencialmente já defendidas, há que tomar partido por aquela que, com fidelidade ao pensamento legislativo (art.9º do CC), permita, numa interpretação sistemática e teleológica, acolher as particularidades próprias do procedimento especial de revitalização.

A primeira das teses expostas, que defende a divisão da competência para conhecer dos processos de insolvência e equiparados em função do valor, não se afigura ser a mais adequada a cumprir aquele desiderato. Vejamos:

Nos processos de insolvência o critério de determinação do valor da ação é o que se estabelece no art.15º do CIRE:  “Para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do ativo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real.

Este critério especial permite uma potencial mutabilidade do valor da ação em termos mais frequentes do que aqueles que decorrerão da aplicação de critérios comuns. Em termos práticos, tal significa que as ações disciplinadas pelo CIRE apresentam uma significativa probabilidade de terem de passar de um juízo local cível ou instância de competência genérica para o Juízo Central, com as inerentes delongas, que não serão desejáveis em processos que têm natureza urgente (como estabelece o art.9º do CIRE)[10].

Embora se compreenda que, teoricamente, esta tese pode ter como desiderato uma repartição mais equilibrada do volume de serviço entre juizos locais e juízos centrais, na realidade tal equilíbrio dificilmente se verificaria, dado que a grande maioria das ações de insolvência bem como os PER têm valor superior a 50.000,00€ (dado o critério do cálculo do valor estabelecido no art.15º do CIRE).

Na prática, a adoção deste “critério dualista” conduziria a uma solução muito próxima daquela que se alcança caso se defenda a tese segundo a qual a competência para conhecer de tal tipo de ações pertence sempre ao juízo central. 

Quanto à segunda tese, que defende a competência do juízo central para conhecer de todos os processos de insolvência e equiparados, também não se afigura ser a mais defensável face ao elemento literal do art.117º[11].

Assim, ao remeter para a esfera de competência dos juízos centrais ações que caberiam no âmbito do art.128º da LOSJ, o art.117º, n.2 não remete “em bloco” todas as ações que potencialmente caberiam no âmbito de competência de um tribunal de comércio. Tal remissão é condicionada pelos critérios aplicativos previstos no n.1 do art.117º.

Se, em termos gerais, a competência do juízo central é delimitada tendo por base a natureza da ação e o seu valor (art.117º, n.1 da LOSJ), não existe nenhuma razão para se concluir que quando a norma é expressamente aplicada, por remissão do n.2 do art.117º, às ações previstas no art.128º tais critérios cumulativos deixem de ter aplicação.

Deste modo, dado que aos juízos centrais não cabem ações especiais, e nem todas as ações de natureza comum, mas apenas as de valor superior a 50.000,00€, também não cabem na competência desses tribunais as ações previstas no art.128º que tenham natureza especial (como os processos de insolvência e de revitalização), nem ações comerciais de natureza comum de valor inferior àquele referido limite.

           4.6. Pelos argumentos acabados de expor, concluímos que a competência para conhecer do presente processo especial de revitalização não cabe ao juízo central, mas sim ao juízo de competência local, dada a natureza especial desta ação e atento o critério de competência residual consagrado no art.130 da LOSJ[12].


*

           DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida, a qual, corroborando a decisão da primeira instância, declarou incompetente para conhecer da presente ação o Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo e competente o Juízo de Competência Genérica de São Roque do Pico.

Sem custas [nos termos do art.4º, n.1, al.u) do Regulamento das Custas Processuais]

Lisboa, 4 de julho de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

___________________________

[1] Dispõe o art.128º da LOSJ:

1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a)
Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 - A competência a que se refere o n.1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

[2]http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4cc40f9a5291c1a180257e8b004defdb?OpenDocument
[3]http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/7a35f5645ef07e6580257e46004f0631?OpenDocument
[4]http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ad4f0844c7d041a18025815b0032a35f?OpenDocument
[5] Revista Julgar on line (outubro de 2015): http://julgar.pt/insolvencias-central-ou-local-eis-a-questao/
[6] Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, nº 2/3 (2013), pág. 468.
[7] In Blog do IPPC [Jurisprudência 79]: https://blogippc.blogspot.com/2015/02/jurisprudencia-79.html
[8] (3ª ed.), 2017, Almedina, pág.188.
[9] Editora Gestlegal, 2018, pág.301.
[10] Como afirma Miguel Teixeira de Sousa, op. cit.: «(…) a tese da competência da instância central ou local consoante o valor poderia conduzir ao absurdo da eventual alteração da competência poder ocorrer em qualquer fase do processo, já que, nos termos do art. 15.º do CIRE o valor da causa é determinado pelo activo do devedor indicado na petição, mas a ser corrigido logo que se verifique ser diferente do valor real
[11] Todavia, o argumento defendido no voto de vencida da adjunta na decisão recorrida - Desembargadora Maria Amélia Ribeiro – no sentido de a competência pertencer sempre ao juízo central por ser uma vantagem ter magistrados mais experientes, com uma preparação técnica mais aprofundada, a decidirem processos particularmente complexos como é o processo de revitalização, não deixa de ser um argumento de relevo. Todavia, parece-nos que o legislador terá sacrificado a importância dessa vantagem ao não criar o juízo de comércio e ao não proceder a uma remissão absolutamente expressa e clara de todo o âmbito de competência do art.128º para o 117º, como supra referido.
[12] No que respeita à competência do tribunal em função do território, determina o art.7º do CIRE que é competente para o processo de insolvência o tribunal da sede ou do domicílio do devedor. Estabelece o art.17º-A, n.3 do CIRE que se aplicam ao Processo Especial de Revitalização as regras da insolvência que não sejam incompatíveis com a sua natureza.