Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A4022
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
SUPRIMENTO DA NULIDADE
Nº do Documento: SJ200612140040226
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : Tendo nas conclusões das alegações da apelação sido levantada a questão da existência de factos dados por provados contraditórios entre si e não tendo o acórdão da Relação conhecido dessa questão, há que na revista, ao apreciar a questão levantada nas respectivas conclusões de que a Relação omitiu o conhecimento daquela questão, ser declarada a respectiva nulidade, nos termos do art. 668º, nº 1 al. d), primeira parte, do Cód. de Proc. Civil e ordenar a baixa do processo para que, nos termos do nº 2 do art. 731º do mesmo diploma legal, ser reformado o acórdão. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"AA" propôs, no 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Cascais, a presente acção com processo especial de divórcio litigioso, contra BB, pedindo o decretamento do divórcio com o fundamento na separação do casal por mais de três anos consecutivos.
Para tanto alegou, além do casamento com a ré, factos com o que pretende provar estar separado de facto da ré desde princípios de 1999, havendo, pelo menos, por parte do mesmo o propósito de não restabelecer a vida em comum.
Citada a ré, contestou esta alegando ter proposto acção que está pendente de divórcio litigioso contra o autor e impugnando os factos alegados por este no tocante à ruptura da vida em comum durante três anos.
Termina pedindo a improcedência do pedido.
Na audiência preliminar, foi ordenada a apensação à presente acção da acção de divórcio litigioso que a aqui ré propôs contra o aqui autor no qual pede o decretamento do mesmo por violação por parte deste dos deveres conjugais e a condenação do mesmo a pagar uma indemnização.
Saneado o processo e organizada a matéria assente e a base instrutória, realizou-se a audiência de discussão e julgamento com decisão da matéria de facto.
Seguiu-se a prolação da sentença que julgou os pedidos de divórcio procedentes e por isso decretou o mesmo, com culpa exclusiva do autor marido, e, ainda, a condenação deste a pagar à ré mulher a indemnização de vinte mil euros.
Desta apelou o autor marido tendo a Relação julgado improcedente este recurso.
Ainda inconformado o mesmo autor marido veio interpor a presente revista em cujas alegações formulou extensas e pouco concisas conclusões que, por isso, não serão aqui transcritas.
Por seu lado, a recorrida contra-alegou defendendo a improcedência da revista.
Corridos os vistos legais, há que apreciar e decidir.
Como é sabido - arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões do aqui recorrente, se vê que para conhecer neste recurso, aquele levanta as seguintes questões:
a) O acórdão recorrido é nulo por ter omitido o conhecimento da questão levantada nas conclusões 2ª a 4ª da alegação da apelação, no sentido de que alguns dos factos provados são contraditórios ?
b) E porque omitiu o conhecimento da questão levantada na conclusão 10ª da alegação de apelação no sentido de que o facto nº 6 da base instrutória dado por não provado devia ser julgado provado ?
c) O facto dado por provado no sentido de que a recusa da R. em dar o consentimento às vendas projectadas pelo A., constituiu o meio que esta arranjou para acautelar o património do casal, sendo subjectivo, é insusceptível de valoração jurídica e não pode constituir base à aplicação da lei, pelo que integrando a contradição referida na al. a), deve aquela ser sanada, com valorização do outro facto com ele em contradição ?
d) Os factos imputados ao recorrente integradores da censura a este pela ruptura do casamento não podem levar à conclusão de que foi o exclusivo culpado no divórcio por serem factos praticados muito depois do início da ruptura da vida em comum, ruptura essa para a qual foi determinante a conduta da ré ?
e) Por isso, deve, quando muito, serem os cônjuges igualmente culpados no divórcio ?
f) E consequentemente deve ser o autor absolvido da condenação no pagamento da indemnização ?
g) Ou quando muito, deve esta ser reduzida a € 2.500,00 ?

Antes de mais há que tomar em conta os factos que as instâncias deram por provados e que são os seguintes:
1. A. e R. casaram civilmente em 24-03-1983 sem convenção antenupcial.
2. O A. intentou contra a R. uma acção judicial de suprimento de consentimento, a fim de obter por esta via a possibilidade de proceder às ditas vendas juntamente com os restantes co-proprietários.
3. Em meados de 1998, sem prévio conhecimento e sem qualquer acordo do A., a R. levantou dinheiro de certificados de aforro que tinham sido adquiridos pelo A., cerca de metade em nome da R.
4. A R. resgatou os ditos certificados e ocultou o dinheiro que recebeu no montante de mais de nove mil contos.
5. Em meados de 1998 o A. pretendeu vender quotas em alguns prédios que tinha recebido por herança e doação, quotas essas que eram de pequeno valor e relativas a prédios em que eram interessados diversas outras pessoas que também pretendiam que os mesmos prédios fossem vendidos.
6. Para serem efectuadas tais vendas era necessário o consentimento da R. visto vigorar no casamento o regime de comunhão de adquiridos, mas a R., sem qualquer motivo razoável, negou-se a prestar tal consentimento.
7. Desde princípios de 1999, pelo menos, A. e R. deixaram de dormir no mesmo quarto e de tomar as refeições em comum, e passaram a fazer vida completamente separados, embora habitando na mesma casa.
8. Também desde princípios de 1999, pelo menos, o A. decidiu não mais tornar a fazer vida em comum com a R.
9. Os levantamentos referidos pelo A. foram o meio que a R. arranjou para acautelar o património do casal.
10. Pela mesma razão, a R. procedeu às recusas invocadas pelo A. no ponto 6.
11. Em Setembro de 2001, o A. mandou mudar todas as fechaduras da casa de morada de família num momento em que a R. foi ao aniversário de um neto.
12. Quando esta regressou a casa ao fim do dia, com espanto, verificou que não conseguia entrar, pois as chaves não davam para abrir as novas fechaduras.
13. Nesse dia, a R. teve de ir dormir a casa de sua filha.
14. A partir dessa altura, a R. evitou sair de casa, confinando-se ao quarto onde dormia, pois tinha receio que, se saísse, o marido não a deixasse entrar de novo.
15. A R. só saía de casa quando o A. não estava em casa.
16. Em 23 de Dezembro de 2001,a R. saiu de casa para comprar algumas prendas de Natal e quando chegou deparou-se com as portas de casa todas trancadas com correntes e cadeados no portão de entrada.
17. A R. participou a ocorrência à polícia de S. Domingos de Rana, a qual a seu mando chamou os bombeiros, os quais cortaram as correntes e cadeados, para ela conseguir entrar pela porta da garagem que por acaso estava alerta.
18. Quando a R. entrou, deparou com o A. que a tudo assistia.
19. A R. voltou a refugiar-se no seu quarto.
20. Face ao supra descrito, em Janeiro de 2002 a R. sentiu-se mal, teve de ser transportada para o Hospital de Cascais.
21. O A. só deixou entrar os maqueiros de ambulância.
22. A R. depois de assistida no Hospital de Cascais e medicada, foi-lhe recomendado repouso, indo para o efeito para casa de sua filha em Cascais.
23. Em Fevereiro de 2002 a R. dirigiu-se à casa de morada de família não tendo o A. permitido a sua entrada.
24. A R. foi viver para casa da filha.
25. Actualmente vive numa casa arrendada.
26. A R. é uma pessoa educada.
27. O comportamento do A. desgostou a R., quer enquanto marido, quer enquanto o amigo, com quem pensou passar os anos que lhe restam de vida.
28. O sofrimento da ré decorrente do divórcio é grande.
29. O A. enquanto magistrado aposentado aufere entre a sua pensão e outras benesses, a quantia mensal de aproximadamente 5.000 euros ( cinco mil euros ).
30. A R. aufere uma pensão de reforma de 648,33 euros.

Vejamos agora cada uma das concretas questões que foram acima elencadas como objecto deste recurso.
a) Nesta primeira questão pretende o recorrente que o acórdão recorrido é nulo por ter omitido o conhecimento da questão que levantara nas conclusões das suas alegações de apelação no tocante à contradição existente nos factos dados por provados e que são os acima mencionados sob os números 6., por um lado, e 9. e 10., por outro.
Alega o recorrente que levantara aquela questão nas conclusões 2ª a 4ª das alegações da apelação.
Analisando aquelas conclusões - cfr. fls. 314 e 315 dos autos -, vê-se que aquela contradição foi ali levantada.
Por seu lado, percorrendo o douto acórdão recorrido em lado algum foi tomado conhecimento desta questão.
Naquele acórdão, na parte decisória, começou-se por rejeitar a também alegada ausência de fundamentação bastante da decisão da matéria de facto - cfr. fls. 372, vº e 373 -, passando-se, em seguida, para o conhecimento da questão da aplicação do direito no tocante quer à ali impugnada declaração de culpa no divórcio quer no tocante à alegada indevida indemnização atribuída e ao seu alegadamente exagerado montante.
Desta forma, tendo o douto acórdão omitido a apreciação daquela questão consistente na contradição existente entre os referidos factos dados por provados e acima referidos, haveria, à primeira vista, que mandar baixar o processo para a Relação conhecer da questão omitida.
Porém, tal como o recorrente também aflorou, não será necessário no caso proceder a tal.
Com efeito, o nº 3 do art. 729º, na redacção dada pela reforma de 1995-1996, estipula que o processo só volta ao tribunal recorrido quando Supremo entender que (...) ocorrem contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito.
Ora a citada contradição é, em nosso entender, inócua para a decisão jurídica do pleito.
Assim, a alegada contradição consiste no seguinte:
Da resposta dada aos quesitos 4º e 5º da base instrutória - resposta "provado" - resulta que em meados de 1998 o A. pretendeu vender quotas em alguns prédios que tinha recebido por herança e doação, quotas essas que eram de pequeno valor e relativas a prédios em que eram interessados diversas outras pessoas que também pretendiam que os mesmos prédios fossem vendidos. Para serem efectuadas tais vendas era necessário o consentimento da R. visto vigorar no casamento o regime de comunhão de adquiridos, mas a R., sem qualquer motivo razoável, negou-se a prestar tal consentimento.
Alega o apelante que este facto - na parte impressão reforçada - está em contradição com a resposta dada ao quesito 11º com referência ao quesito 10º da base instrutória.
Destas últimas respostas resulta apurado que as recusas de consentimento invocadas pelo A. às referidas vendas, "foram o meio que a R arranjou, para acautelar o património do casal".
A afirmação acima referida e constante da resposta dada aos quesitos 4º e 5º de que a recusa em dar o consentimento ocorreu "sem qualquer motivo razoável" tem de ser dado por não escrita por tratando-se de mera conclusão a tirar de outros factos não alegados ou provados, cair na previsão do disposto no art. 646º, nº 4, o que se determina.
Por outro lado, a referência constante da resposta dada ao quesito 11º, com referência ao quesito 10º, é inócua para a decisão do pleito, pois trata-se de uma disposição pessoal da ré que não encontra apoio nos demais factos apurados pelo que não tem qualquer relevância para o fim em que poderia influir da decisão do pleito - na parte referente à atribuição da culpa na dissolução do casamento.
É que resultando daquela resposta que a recusa da ré em dar o seu consentimento à alienação de bens do autor constituiu o meio que a ré arranjou para acautelar o património do casal, esta circunstância não é de molde, sem mais, a fazer concluir que o mesmo património estivesse em perigo, mas tal poderia resultar de uma preocupação exagerada ou infundada que não tinha qualquer fundamento, ou, pelo menos, nada resulta que suporte aquele estado subjectivo de receio.
Assim, improcede, desta forma este fundamento do recurso.

b) Nesta segunda questão pretende o recorrente que seja anulado o douto acórdão por não ter tomado conhecimento da questão da alteração da decisão do quesito 6º da base instrutória.
Tal pretensão consta das alegações da apelação tendo aí sido referido que o mesmo quesito fora dado por não provado na 1ª instância, mas deveria ser julgado provado, com base no depoimento da testemunha CC cujo conteúdo identifica com referência à gravação do mesmo - cfr. fls. 280 das alegações de apelação - , tendo tal questão sido levantada nas conclusões 10ª e 11ª das mesmas alegações - cfr. fls. 316.
Porém, o douto acórdão recorrido, tal como já acima afloramos, não se pronunciou sobre tal pretensão pois após a decisão de rejeição da arguida falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, passa para a apreciação da matéria de direito, sem fazer qualquer referência a esta pretensão do recorrente.
Ora o art. 668º, nº 1 al. d) prescreve que é nula a sentença que não conheça de questão de que cumpra conhecer.
Por outro lado, o art. 660º, nº 2 estipula que na sentença o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, salvo aquelas cuja decisão fique prejudicado com a decisão dada a outras.
E sendo o objecto dos recursos dado pelo teor das conclusões dos recorrentes, tal como acima dissemos, tinha o Tribunal da Relação, ao conhecer da apelação, de apreciar a mencionada pretensão de alterar a decisão dada ao quesito 6º da base instrutória, alteração essa que foi fundamentada, tal como se exige no art. 690º-A.
Desta forma, declara-se nulo o douto acórdão recorrido e nos termos do art. 730º, nº 2, terá de ser a Relação a reformar aquele.

Com a procedência deste fundamento do recurso, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões levantadas nesta revista.

Pelo exposto, concede-se a revista peticionada e, por isso, se declara nulo o douto acórdão, nos termos referidos e, por isso, se determina a reforma do mesmo, nos termos do art. 731º, nº 2 , pelo mesmo colectivo, se possível.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 14 de Dezembro de 2006
João Camilo ( Relator )
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos.