Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21/17.4JAFUN.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: NUNO GOMES DA SILVA
Descritores: REPETIÇÃO DA MOTIVAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
FRIEZA DE ÂNIMO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO CONFIRMANDO A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / PODERES DE COGNIÇÃO.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO QUALIFICADO.
Doutrina:
- Augusto Silva Dias, Direito Penal, Parte Especial, Crimes contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª edição, 2007, AAFDL, p. 24, 25 e 27 ; Direito Penal, Parte Geral, 2.ª edição, p. 51 e 81;
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do facto, p. 291.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALÍNEAS E) E F) E 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 132.º, N.º 2, ALÍNEA J).
REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E MUNIÇÕES (RJAM), APROVADO PELA LEI N.º 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO: - ARTIGO 86.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-04-2007, PROCESSO N.º 516/07, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-10-2008, PROCESSO N.º 4725/07, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-07-2014, PROCESSO N.º 95/10.9GGODM.S1;
- DE 25-02-2015, PROCESSO N.º 74/12.1JACBR.C1.S1;
- DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 405/13.7JABRG.G1.S1;
- DE 18-03-2015, PROCESSO N.º 351/13.4JAFAR.E1.S1;
- DE 09-04-2015, PROCESSO N.º 331/12.7ALRA.S1;
- DE 23-04-2015, PROCESSO N.º 86/14.0YFLSB;
- DE 29-04-2015, PROCESSO N.º 791/12.6 GAAAL.L2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-05-2015, PROCESSO N.º 405/13.7PHLRS.S1;
- DE 17-06-2015, PROCESSO N.º 28/11.5TACVD.E1,S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A motivação apresentada no recurso para este STJ é quase ipsis verbis uma repetição integral da usada para o recurso para a relação e as conclusões são exactamente as mesmas. Significa isto que o recorrente, no recurso agora interposto não manifesta específica discordância quanto à forma como esse conjunto de questões foi analisado pelo tribunal da relação nem tão pouco rebate ou sequer discute os argumentos utilizados.
II - O recorrente ignora a especificidade da competência do STJ em matéria de recursos ordinários. Não é admissível recurso para o STJ se nele se pretende impugnar a decisão recorrida sobre um putativo erro de julgamento da matéria de facto (art. 434.º, do CPP). Está, por isso, afastada da apreciação do presente recurso toda a matéria que diz respeito à invocação dos pontos que o recorrente considera incorrectamente julgados. Pelo que a análise do recurso se cinge à questão de precisar se houve ou não homicídio qualificado pela al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP e à medida das penas parcelares e da pena única.
III - No tocante ao crime de detenção de arma proibida há dupla conforme pois houve no acórdão do tribunal da relação manutenção da matéria de facto, integral coincidência da qualificação jurídica e confirmação da pena imposta de 2 anos e 2 meses de prisão. Razão pela qual não é admissível recurso nesta parte (art. 400.º, n.º 1, als. e) e f), do CPP).
IV - É entendimento pacífico deste STJ que a qualificativa prevista na al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP consubstancia-se em agir “de forma calculada, planeada quanto ao local e ao momento, com imperturbada calma, revelando-se indiferença e desprezo pela vida, firmeza, tenacidade, sangue frio, um lento, reflexivo e cauteloso processo na execução e preparação do crime de forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humana.”.
V - No caso, verifica-se a indicada qualificativa uma vez que o arguido preparou as condições adequadas ai encontro com a vítima, à qual se dirigiu munido de arma de fogo, disparando 3 tiros à cabeça da vítima, a 3/4 metros, disparando outros 3 tiros à queima-roupa à cara da vítima depois de proferir a expressão “Ainda estás vivo?”.
VI - Na avaliação do caso concreto e na ponderação global das circunstâncias nele presentes, o modo de execução do crime não deixa de exprimir uma atitude determinada e contumaz do recorrente, um propósito e persistência da intenção de matar. Tendo a moldura penal abstracta um limite mínimo de 16 anos, por força da agravação de um terço prevista no art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23-02, e o limite máximo de 25 anos o que se constata é que a pena concreta foi fixada muito acima desse limite mínimo o que se crê adequado e equilibrado, pois a sua redução, além de não ser justificada ao nível da prevenção especial, criaria a aberrante ideia de impunidade. Pelo que a pena única aplicada pelas instâncias de 20 anos de prisão se afigura como adequada.

Decisão Texto Integral:

1. – Na 1ª instância, Comarca da ..., o arguido AA foi julgado e condenado nos termos seguintes:

- por um crime de homicídio qualificado dos artigos 131° e 132°, nºs 1 e 2, alínea j) do Código Penal, agravado pelo disposto no artigo 86°, n° 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 19 anos de prisão.

- por um crime de detenção ilegal de arma, do artigo 86°, n° 1, als. c) e d) do dito Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 20 anos de prisão.

Interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que lhe negou provimento.

Interpõe novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça formulando na motivação as seguintes conclusões (transcrição):

A) Mal andou o Tribunal a quo ao ter condenado o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, sendo que antes deveria ter sido condenado pela prática de um crime de homicídio simples.

B) Mal andou o Tribunal a quo ao não considerar o arrependimento, a colaboração para a descoberta da verdade material, a provocação injusta/ofensa imerecida ocorrida dia 11 de Janeiro de 2017 e aos factos que mitigam a culpa do arguido trazidos a julgamento pelas testemunhas da defesa.

C) Não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos pontos 2 e 14 dos factos provados; dos pontos 34 a 36; e 77 uma vez que deveriam ter sido julgados não provados.

D) Deveriam ter sido dados como provados os factos constantes nos pontos de O) a W) e de CC) a FF) e HH) em vez de não provados.

E) Ponderados todos estes factores, pugnamos pela aplicação ao arguido de uma pena nunca superior a 11 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio simples; uma pena nunca superior a 1 ano de prisão pela prática de um crime de detenção ilegal de arma e, em cúmulo jurídico, uma pena única nunca superior a 12 anos de prisão pela prática destes dois crimes.

A magistrada do ministério Público respondeu ao recurso defendendo que:

- Deve ser rejeitado pois a motivação apresentada é somente uma repetição daquela que esteve na origem do recurso interposto para a Relação acrescendo que nem sequer foram indicadas as normas jurídicas violadas;

- Nada há a censurar na escolha e medida da pena.

Neste Supremo tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer expressou-se também no sentido de o recurso ser rejeitado por manifesta improcedência por se pretender trazer a discussão a matéria de facto já definida e por nem sequer poder ser questionada a pena parcelar correspondente ao crime de detenção ilegal de arma perante a circunstância de, nessa parte não ser admissível recurso, de acordo com o art. 400º, nº 1, al. d) CPP (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem).

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 sem que houvesse resposta.

                                           *

2. – O resultado do julgamento quanto aos factos provados foi o seguinte (transcrição):
1. No dia 11 de Janeiro de 2017, o arguido, AA, dirigiu-se ao ..., freguesia do ..., concelho do Funchal, munido de ama arma de fogo FN Browning, nº ..., carregada com munições de calibre 6,35mm, com intenção previamente reflectida de matar BB com recurso a arma de fogo.
2. Do antecedente já tinham ocorrido conflitos laborais entre o arguido e a vítima, que era o Presidente da Associação de ..., pois há cerca de cinco anos tivera AA um acidente que considerava ser em serviço, facto que BB não aceitava.
3. Ao chegar ao ..., pelas 17h38, em frente ao número de polícia 184, junto à Associação de ..., o arguido abordou BB e, a cerca de três ou quatro metros de distância, disparou na sua direcção.
4. Fê-lo sem que nada o fizesse prever.
5. Disparou três tiros sobre o BB, com intenção de o matar.
6. Não obstante a gravidade dos ferimentos, a verdade é que, na ocasião, o BB, caído no chão e apoiado pelos colegas de trabalho, também ..., ..., ... e CC, ainda respirava, com dificuldade e conseguia falar.
7. No local, um ou mais colegas de trabalho gritaram por auxílio e para que alguém chamasse a ambulância, pois o BB ainda estava vivo e a falar.
8. Alguns minutos volvidos sobre os primeiros disparos, o arguido, após entrar e sair do bar “...”, apercebeu-se de que o BB ainda estava vivo e aproximou-se dele com a firme intenção de acabar o que tinha iniciado – “atirar para o matar”.
9. O BB, prostrado no chão e a esvair-se em sangue ainda disse ao arguido, vendo-o aproximar-se: “AA, havia necessidade disto?”, ao que este ripostou: “Ainda estás vivo?”, tendo, acto contínuo, disparado outros três tiros, contra os seus rosto e maxilar.
10. Ainda antes de o BB se dirigir ao arguido, também o colega de trabalho CC lhe disse: “AA, é preciso fazer isto?”, tendo ouvido como resposta: “Vê se estás para aí calado que também há para ti”, enquanto lhe apontava a arma de fogo supra mencionada.
11. É quando é atingido por um dos três novos tiros que BB começa a jorrar muito sangue e que a prótese que possuía na boca, se quebra, consequência desses três últimos disparos.
12. O arguido disparou os últimos três tiros à queima-roupa na cara do visado, que já se encontrava prostrado no chão, a esvair-se em sangue, indefeso e com a percepção de que ia morrer.
13. Veio, assim, a atingi-lo com 6 (seis) projécteis disparados em direcção à sua cabeça e ao seu corpo, de calibre 6,35mm, igual ao das munições admitidas pela arma supra identificada e que lhe foi apreendida.
14. Após, o arguido saiu do local do crime tendo levado consigo aquela arma mas, logo em seguida, foi interceptado e detido pela PSP, no ..., no cruzamento da ... com o Caminho de Ferro do ...
15. Ao ver os Agentes da PSP, o arguido levantou os braços no ar e disse: “Já fiz o que tinha a fazer. Tenho a arma no bolso”.
16. O arguido foi encontrado no referido local, na posse da arma de fogo que lhe foi apreendida, melhor identificada a fls. 7 a 9, e que usara contra a pessoa de BB tendo-a disparado, momentos antes, nas circunstâncias acima descritas.
17. Foi solicitada a presença dos Bombeiros Voluntários ... que fizeram deslocar uma ambulância ao local, tendo a vítima de imediato sido transportada para o seu interior e aí sido assistida por uma equipa da EMIR e onde acabou por falecer.
18. O corpo da vítima, ainda no local, dentro da ambulância dos Bombeiros Voluntários da ..., apresentava as seguintes lesões visíveis: na região da face da vítima na região mentoniana foram detectados três orifícios de entrada de projécteis de pequeno calibre, nos vestígios hemáticos no local foram encontrados pedaços da calote craniana e também parte da prótese dentária da vítima, lesões que lhe determinaram a morte ainda no local dos factos, que foi confirmada as 18h03m pela Autoridade de Saúde que aí se deslocou.
19. De acordo com o Relatório de Autópsia, o quadro lesional sugere que os trajectos dos projécteis foram os seguintes, mas não necessariamente produzidos por esta ordem:
· Trajecto 1: orifício de entrada na região submentoniana, ligeiramente à direita da linha média; trajecto ascendente e ligeiramente para a esquerda; orifício de saída na linha média da face mucosa do lábio inferior, com fractura da prótese dentária;
· Trajecto 2: orifício de entrada na linha média da região submentoniana; após imediata colisão com a mandíbula, projéctil desviou-se para a esquerda, vindo a ser encontrado no tecido celular subcutâneo da região submandibular;
· Trajecto 3: orifício de entrada na região submandibular esquerda; trajecto para trás e para a direita praticamente horizontal; projéctil encontrado junto ao processo espinhoso de C4;
· Trajecto 4: orifício de entrada na linha média da face anterior do pescoço, na transição para a região submentoniana; trajecto da direita para a esquerda, ligeiramente ascendente e para trás; orifício de saída na região occipital, à esquerda da linha média;
· Trajecto 5: orifício de entrada na face lateral direita do pescoço; trajecto da direita para a esquerda, ligeiramente ascendente e para trás; projéctil encontrado na linha média da face posterior do pescoço;
· Trajecto 6: orifício de entrada na região frontal, à direita da linha média; projéctil encontrado junto à abóbada craniana, à superfície do lobo frontal.
20. Assim, em consequência da conduta do arguido, o ofendido, BB, sofreu lesões, localizadas predominantemente na cabeça e pescoço, nomeadamente:
· «Ossos da Cabeça – Abóbada: Orifício ovalado na escama do frontal, à direita da linha média e em relação com o orifício de entrada descrito no Hábito Externo, com infiltração sanguínea dos bordos, medindo 0,6cm de eixo antero-posterior por 1,5cm de eixo transversal a nível da tábua externa, donde se destacava esquírola óssea, e 1,8cm de eixo antero-posterior por 2,0cm de eixo transversal a nível da tábua interna – orifício de entrada de projéctil;
· Meninges: Laceração da dura mater e aracnóide na zona correspondente ao orifício descrito na abóbada, com discreta hemorragia subaracnoideia, a qual estava também presente a nível da base do lobo frontal direito.
· Encéfalo: Presença de projéctil à superfície da extremidade anterior do gyrus frontal inferior direito, com pequena laceração do parênquima circundante e focos de contusão corticais; hemisférios cerebrais com ausência de apagamento dos sulcos e achatamento das circunvoluções cerebrais; tronco cerebral e cerebelo sem alterações macroscópicas evidentes; círculo arterial de configuração normal; ausência de sinais de aterosclerose. Ao corte, sistema ventricular sem alterações macroscópicas; córtex de espessura regular e uniforme, com alguns focos de contusão corticais a nível da base do lobo frontal direito; substância branca sem áreas quísticas, de amolecimento ou hemorragia; substância cinzenta profunda (núcleos da base) de morfologia, consistência e coloração habituais; sem hipocampus, sem alterações macroscópicas; tronco cerebral e cerebelo sem alterações macroscópicas evidentes.
· Partes moles da Face: Trajecto em túnel em correspondência com o orifício n°1, ligeiramente ascendente da direita para a esquerda e anterior ao corpo da mandíbula, rodeado de infiltração sanguínea, terminando na laceração descrita a nível da face mucosa do lábio interior, solução de continuidade orificial em correspondência com o orifício n° 2, na inserção dos dois músculos platisma na protuberância mentoniana, rodeada de infiltração sanguínea.
· Ossos da Face: Esquírola óssea destacando-se da protuberância mentoniana, em relação com o orifício n°2, e rodeada de infiltração sanguínea; presença de dois vestígios de revestimento de projéctil a este nível.
· Pescoço: Tecido celular subcutâneo: Presença de projéctil deformado no tecido celular subcutâneo da zona correspondente à região submandibular esquerda, distando 4,5cm da linha média, rodeado de infiltração sanguínea; trajecto em túnel em correspondência com o orifício n°5, ligeiramente ascendente da direita para a esquerda e para trás, intramuscular, e rodeado de infiltração sanguínea, terminando na linha média da face posterior pescoço, onde se encontrava alojado um projéctil.
· Vasos e nervos: Laceração completa da artéria carótida interna e parcial da artéria carótida externa à esquerda, junto à bifurcação da artéria carótida comum, com intensa infiltração sanguínea dos musculosos circundantes.
· Osso Hióide: Fractura esquirolosa do grande corno esquerdo do osso hióide, rodeada de infiltração sanguínea.
· Estruturas Cartilagíneas: Laceração da membrana tirohioideia esquerda, com infiltração sanguínea dos bordos.
· Laringe e Traqueia: Vestígios de sangue à superfície das mucosas.
· Coluna Vertebral e Medula: Orifício no corpo vertebral de C4, ligeiramente à direita da linha média, com infiltração sanguínea dos bordos; laceração da dura mater e subaracnoide com secção completa da medula espinhal a este nível, e focos de contusão medulares; orifício na face posterior do canal vertebral, com infiltração sanguínea dos bordos; presença de projéctil nos músculos para-vertebrais a nível do processo espinhoso de C4».
21. A morte de BB foi devida às lesões traumáticas cervicais descritas (laceração das artérias carótidas interna e externa esquerdas) que, do ponto de vista médico-legal, reflectem uma etiologia homicida, conforme refere o Relatório de Autópsia.
22. No acto da detenção foi apreendida ao arguido, que voluntariamente a entregou, a arma de fogo apreendida e examinada nos autos, arma de calibre 6,35mm, marca FN Browning, calibre 6,35 mm, de origem belga, identificada como arma da classe B1 enquadrada na al. a), do n.º 4 do art.º 3.º do RJAM, com o respectivo carregador introduzido e sem munições, tendo sido também por ele entregues e aprendidas 20 munições, de calibre 6,35 Browning, que possuía em casa, conforme auto de apreensão de fls. 9 a 10.
23. No local do crime foram recolhidos 4 invólucros percutidos e um projéctil recuperado de calibre iguais ao calibre da arma apreendida ao arguido.
24. Foi ainda recolhido um invólucro percutido, junto ao Restaurante «...», no Caminho ..., também do calibre supra mencionado.
25. Cerca de cinco dias depois, veio a ser encontrado um sexto invólucro, conforme relatório de recolha de fls. 266 a 268, que foi enviado ao LPC e se verificou ter sido disparado da mesma arma, conforme relatório de balística de fls. 411 a 416, por comparação com os cinco invólucros e o projéctil recolhidos no local e enviados anteriormente e cujo relatório de balística consta de fls. 386 a 394.
26. O arguido não é titular de licença de porte e uso da arma em causa nos autos.
27. Ao agir da forma descrita, bem sabia o arguido que os seis disparos que intencionalmente desferiu a BB, a curta distância, que o atingiram em zonas vitais da cabeça, pescoço e coluna vertebral eram adequados a causar, como causaram, lesões traumáticas que determinaram a sua morte, resultado que pretendia e conseguiu e que representou como consequência necessária das agressões que lhe infligiu.
28. Agiu o arguido ciente de que, ao usar uma arma de fogo, cujas características letais bem conhecia, disparando-a em direcção à cabeça, pescoço e coluna vertebral de BB, lhe infligia lesões susceptíveis de lhe tirar a vida, assim conseguindo alcançar o resultado que almejava, isto é, a sua morte.
29. O arguido sabia que a detenção de armas de fogo da classe B1, bem como das munições, nas circunstâncias supra descritas, apenas é permitida a titulares das licenças para uso e porte de arma das classes B, B1, licença de detenção no domicílio, licença especial ou a quem nos termos da respectiva Lei Orgânica ou Estatuto Profissional, possa ser atribuída ou dispensada a licença para uso e porte de arma, e que o não cumprimento destes requisitos o fazia incorrer em responsabilidade criminal.
30. Agiu sempre o arguido determinado por vontade livre e consciente, bem sabendo que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.

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31. O falecido BB era casado com a assistente e teve com ela duas filhas.
32. BB tinha 54 anos de idade e trabalhava como ... desde os seus 14 anos.
33. À data da morte e desde o ano de 2009, BB exercia funções de Presidente da Associação de ... tendo sido, nos vinte anos anteriores, Chefe dos ....
34. BB era uma pessoa respeitada na freguesia do ... e na Ilha da ..., tendo a seu cargo a chefia de cerca de 150 homens.
35. BB, enquanto chefe dos ...s, ajudou a criar uma melhor imagem, de maior seriedade e profissionalismo à profissão de ....
36. Era tido como uma pessoa válida, trabalhadora e com autoridade.
37. Depois da sua morte, foi homenageado por duas vezes.
38. BB era o sustento da sua família, auferindo, mensalmente, entre os € 800,00 a € 1.000,00.
39. A assistente, DD, encontra-se desempregada há alguns anos, estando neste momento a realizar um programa ocupacional para desempregados, em que aufere, a título de compensação, a quantia de € 370.00 mensais.
40. A demandante EE é menor de idade e estuda no 9.º ano da escola ..., sendo que, à data dos factos, era aluna da Escola da ....
41. A demandante GG, de 25 anos de idade, é técnica de Para-Farmácia, auferindo, mensalmente, o salário mínimo nacional, adaptado à região, e, à data dos factos, preparava-se para iniciar uma vida a dois com o namorado.
42. Os rendimentos do falecido BB revertiam a favor das necessidades do seu agregado familiar, sendo ele quem pagava as despesas médicas, medicamentosas e escolares da EE e quem pagava as contas correntes como água, luz, telefone, combustível e alimentação.
43. Do projecto de vida do falecido com DD fez parte mudarem a sua residência para o concelho de ... o que, neste momento, implica uma capacidade económica que as demandantes não possuem, nomeadamente, quantos aos custos com combustível, já que era aquele quem, todos os dias, trazia e levava a EE para as aulas, aproveitando a viagem que já fazia de e para o trabalho.
44. BB apercebeu-se de que ia perder a vida e sentiu dores físicas, acompanhadas da aflição de se engasgar com o próprio sangue.
45. À data dos factos, era uma pessoa bem constituída, saudável, dinâmica, com gosto de viver, adorava as filhas e tinha com elas uma óptima relação, de companheirismo e amizade.
46. Era um bom pai e companheiro, pugnando sempre para que fossem bem sucedidas, escolar e profissionalmente.
47. O BB tinha um óptimo relacionamento conjugal, tendo sempre tratado bem a assistente, FF, com quem formava um casal exemplar e equilibrado, em que ambos dedicavam um ao outro muito afecto, amor, carinho e paixão.
48. O falecido BB e as demandantes constituíam uma família feliz, que passeava junta, ia a convívios e convidava amigos para a sua casa, passando férias juntos.
49. Até à sua morte, foi um marido e um pai presente.
50. A morte de BB provocou uma onda de enorme consternação na comunidade em que se mostrava inserido e provocou e vai continuar a provocar por toda a vida das demandantes, uma tristeza inultrapassável, consternação, pesar, ódio, raiva, insegurança, medo, e vazio.
51. A demandante EE teve que mudar de escola pouco tempo após o sucedido pois, com apenas 14 anos, tornou-se uma “atracção na escola”, quer para crianças, quer para graúdos que vinham ver a filha do chefe dos ...s.
52. Passou a ter acompanhamento psicológico para tentar atenuar e controlar a raiva e tristeza que sentia e ainda sente.
53. As demandantes têm dificuldades em dormir, choram com frequência, têm oscilações emocionais difíceis de ultrapassar.
54. A demandante FF, que era uma pessoa sociável e feliz, alegre e tornou-se uma sombra dessa mulher.
55. A demandante GG foi alvo de atenções na farmácia onde trabalhava de pessoas que iam lá ver “a filha do que morreu”.
56. A morte de BB foi noticiada por todos os meios de comunicação social e comentada nas redes sociais, com conjecturas sobre os motivos que poderiam estar na sua base, o que tornou mais difícil o processo de luto.
57. As demandantes tiveram que ler e ouvir “teorias sobre os motivos do arguido para matar BB”, inclusive a teoria de que recusara considerar como acidente de trabalho uma lesão do arguido, quando, na realidade, este viu o seguro ser accionado, foi operado, recebeu tratamento e foi-lhe atribuída uma incapacidade e respectiva pensão (de acordo com a incapacidade e com os descontos efectuados), num acidente ocorrido por volta de Janeiro de 2008.
58. Em virtude dos factos praticados pelo arguido, as demandantes estão privadas de um meio fundamental de que dispunham para a sua subsistência, não dispondo de capacidade financeira suficiente para as suas despesas ordinárias.

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59. O arguido trabalhou toda a vida com vista à sua estabilidade financeira e à auto-suficiência familiar.
60. O arguido não é tido como uma pessoa conflituosa ou ameaçadora pela vizinhança.
61. Desde tenra idade, o arguido sempre desenvolveu uma actividade profissional, primeiro na qualidade de emigrante no ... como agricultor (com dezoito anos) e, logo que regressou à RAM, como ... na atracção turística dos carrinhos de cesto do ....
62. Desempenhou essa actividade por 27 anos, até que uma hérnia na coluna, há cerca de oito anos atrás, o impediu, por impossibilidade física, de continuar a exercer aquela profissão.
63. O arguido sempre foi reputado como uma pessoa honesta e trabalhadora, socialmente integrada na comunidade e familiarmente estável, sendo respeitado por aqueles que com ele privam.
64. A mulher e a filha do arguido são o seu grande suporte emocional.
65. O agregado familiar do arguido consiste na sua própria pessoa e na da sua mulher, que se encontra desempregada há vários anos sem usufruir qualquer remuneração ou subsídio de desemprego.
66.  O arguido desde 2011 até 2015 auferiu, a título de rendimentos, apenas de uma pensão anual de 4.717,02€ (quatro mil setecentos e dezassete euros e dois cêntimos), paga pela seguradora ... por conta de uma indemnização vitalícia obtida no âmbito de um processo emergente de acidente de trabalho, resultante da multiplicação por 14 da pensão mensal de 336,93€.
67. Em 2016 atento o deferimento de uma pensão de invalidez ao arguido, que é liquidada mensalmente pelo Instituto de Segurança Social da ..., IP-RAM no valor de 205,71€, o rendimento anual do seu agregado familiar passou a ser 7.597,14€, que são o resultado do somatório dos sobreditos 4.717,02 com a multiplicação por 14 meses da pensão de invalidez de 205,71€.
68. Apesar de viver com restrições do ponto de vista económico, o arguido encontra-se socialmente integrado.
69.  O arguido sofre de depressão, clinicamente diagnosticada há vários anos, doença que o tem levado a ser acompanhado no Centro de Saúde da área da sua residência – o Centro de Saúde do ..., e que o levou, em Setembro de 2016, a procurar ajuda especializada junto do médico psiquiatra II.
70. À data dessa consulta, o médico observou no paciente os seguintes sintomas: tristeza, insónia, desmotivação e abuso de álcool.
71. A maioria dos anos em que exerceu a profissão de ..., fê-lo sob as ordens e direcção de BB que, como já se referiu, primeiramente, ocupava a posição de chefe dos ...s e, depois, a função de Presidente da Associação de ..., cargos que exerceu desde, sensivelmente, 1990 e 2009, respectivamente.
72. O arguido, enquanto desempenhava a profissão de ..., passou a suspeitar que BB “roubava a associação turística” e a desconfiar que manipulava a contagem das viagens feitas por todos os ..., de modo a poder desviar dinheiro em proveito próprio, o que o levou a alertar, por diversas vezes, os seus colegas contra BB em sede de reuniões com todos eles.
73. Ainda quando ..., o arguido participou de um castigo (suspensão) que lhe havia sido aplicado por BB à Inspecção Regional do Trabalho e, após a intervenção desse Organismo, retomou as suas funções.
74. Apesar de já não ser ..., o arguido manteve uma relação de amizade com vários colegas que ainda exerciam a profissão o que o motivava a ir, por diversas vezes, junto do posto dos ... tomar café com eles.
75.  O arguido, já depois de deixar de exercer a profissão de ... do Monte, foi aumentando dentro de si uma grande sensação de injustiça na medida em que, tendo trabalhado toda a vida via-se, então, sem poder trabalhar e sustentar-se condignamente ao passo que BB, acreditava ele, continuava a roubar, crença que continuava a transmitir aos seus ex-colegas e amigos.
76. No dia 11 de Janeiro de 2017, o arguido foi até ao centro da freguesia do ... e aí tomou café com o seu amigo HH, ... de profissão.


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77. O arguido não se revelou arrependido dos seus actos.

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78. De acordo com a perícia psiquiátrica médico-legal a que foi submetido, o arguido além de manifestar ansiedade e depressão, revela um fundo de personalidade que revela imaturidade, egocentrismo, inversão e desconfiança, mas não padece de doença mental.
79. Do ponto de vista psiquiátrico-forense e para os factos que cometeu não se detectaram razões de natureza psiquiátrica que permitissem excluir ou diminuir a sua imputabilidade.
80. De acordo com a avaliação psicológica a que foi submetido em ordem a complementar aquela perícia:
- No que toca a dimensões sintomáticas verificou-se no arguido a elevação significativa das escalas ideação paranóide, depressão, obsessão-Compulsão, somatização e agressividade. Esse perfil psicossomático remete para a existência de desconfiança, afecto desadequado, hipersensibilidade às exigências e críticas, ruminação de pensamento, inferioridade e desadequação pessoal, que estão associados à inibição e isolamento nas relações interpessoais;

- Na avaliação do seu funcionamento emocional, destacam-se sentimentos negativos em relação a si mesmo, acentuada perturbação emocional e superdramatização e/ou reacção aguda a crise emocional;

- Ao nível do perfil clínico, destaca-se a elevação nas escalas Esquizofrenia, Depressão, Desvio Psicótico, Psicastenia e Paranóia, o que indica estarmos perante um indivíduo frio, distante, reservado, imprevisível, imaturo, egocêntrico, retraído e tímido. Pode ser descrito como alienado, tenso, irritável, pouco sociável e suspeitoso, apresentando dificuldade ao nível do controlo dos impulsos. Este perfil é aina compatível com um sujeito com pouco envolvimento social e emocionalmente alienado, com desconfiança face aos outros e com medo de implicação social e insegurança e desconforto nas relações e situações sociais.

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81. O arguido, AA cresceu num meio sociofamiliar humilde, caracterizado pelo alcoolismo do pai, o analfabetismo dos progenitores e por um agregado numeroso cuja subsistência dependia, exclusivamente, da actividade agrícola. Sem grande estimulação educativa, a sua socialização foi muito marcada por valores como o trabalho precoce e o apoio à economia familiar, auxiliando nas tarefas agrícolas em detrimento dos estudos. Nestas circunstâncias, consolidou muito poucas competências escolares, apresentando um percurso marcado pelo subaproveitamento, com o abandono do sistema de ensino após conclusão do 3º ano de escolaridade.
82. Sem qualificações académicas, o arguido trabalhou na agricultura, no sector da restauração e esteve emigrado poucos anos no ..., mas a sua carreira profissional foi marcada, sobretudo, pelo exercício da actividade de ... do .... Manteve-se ligado a esta actividade laboral até 2010, passando, posteriormente, a uma situação de invalidez, por problemas na coluna.
83. O arguido manteve algumas fases de consumo abusivo e nocivo de bebidas alcoólicas, que lhe provocavam um efeito de desinibição e de activação emocional em cenários de conflito.
84. No período anterior à sua prisão, AA residia com a esposa, com quem casou há 31 anos, na parte superior da casa da sogra. Apesar de alguns factores de tensão do relacionamento conjugal, concretamente, os consumos nocivos de bebidas alcoólicas que eram desaprovados e criticados por aquela, o casal mantinha-se unido e apoiava-se mutuamente. Este registo tem-se estendido à fase de reclusão, mantendo-se uma dinâmica de proximidade e de apoio entre o casal. Dessa união nasceu uma filha, que se encontra emigrada no ....
85. Anteriormente à situação de reclusão, o arguido não desenvolvia actividade laboral, uma vez que se encontrava em situação de reforma por invalidez, pela qual recebia uma mensalidade vitalícia paga por uma Companhia Seguradora, que se situará no montante de 336€ mensais, e uma pensão social de 205€, também mensais. Estes rendimentos têm vindo a ser recebidos e geridos pela sua esposa, com os quais não só vem subsistindo, uma vez que não desenvolve actividade profissional, como também apoia o arguido.
86. Antes de ser preso preventivamente, AA organizava o seu dia com a frequência do ginásio, dedicava-se à prática da columbofilia e participava em jogos de bilhar em bares da sua zona de residência. Nalguns destes períodos, mantinha consumos de bebidas alcoólicas, sendo que, sob o efeito destas, se apresentava mais susceptível ao descontrolo, à agressividade, à raiva e a pensamentos negativos ruminantes. Apesar de ter consciência do efeito que as bebidas alcoólicas lhe provocavam, assumia recorrer ao seu uso como forma de lidar com os seus problemas pessoais, que definia como um humor deprimido, ansiedade, alterações no sono.
87. Apresentava sinais de instabilidade psicológica, que terão motivado o seu seguimento médico durante anos. Alguns meses antes da reclusão, estava medicado com antipsicótico, antidepressivo e ansiolítico, além de manter a toma de medicação para indução do sono face a dificuldades a este nível. Ainda assim, nem sempre cumpriria integralmente as indicações médicas, em virtude da manutenção dos consumos. Apresentava ainda outros problemas de saúde, particularmente da área neurológica, que o obrigaram a ser submetido a uma cirurgia, há cerca de dois anos, para a extracção de um tumor benigno na região cerebral.
88. No plano pessoal, o arguido apresentava-se como um indivíduo com frágil autocontrolo, com dificuldades em gerir provocações e, nessas ocasiões, deixava-se mover pela impulsividade e por sentimentos de raiva. A agressão era encarada como uma expressão de defesa e de autoprotecção perante sentimentos que avaliava serem de provocação, perseguição e humilhação. Era com esta perspectiva que encarava a sua relação com a vítima, com quem trabalhou vários anos, sentindo-se perturbado por um clima de conflito que se manteve quer durante o período em que trabalhavam juntos, quer já depois de ter deixado de trabalhar.
89. AA mostra-se centrado numa narrativa de vitimização, tendo dificuldades em equacionar vítimas directas, conseguindo apenas identificar as indirectas, nomeadamente a sua esposa. Apesar de reconhecer a importância do valor da vida, mantém-se autocentrado naquilo que considerou ser o seu sofrimento e perturbação durante anos decorrente da relação de conflito que manteve com a vítima.
90. Em situação de prisão preventiva, frequenta o ginásio e o sistema de ensino para concluir o 4º ano de escolaridade. O seu comportamento tem sido estável, não havendo registo de sanções disciplinares.

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91. O arguido não tem antecedentes criminais.

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           3. – É entendimento unânime e antigo nos tribunais superiores que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação a elas se devendo ater o tribunal de recurso sem relevar outras considerações ou argumentos que ali não sejam sintetizados.

Nas conclusões, delimitam-se, sob a forma de resumo, as questões que o tribunal de recurso deve apreciar para avaliar as razões do pedido, permitindo que se conheça de modo expedito do âmbito desse recurso e dos seus fundamentos.

Como já foi afirmado, o tribunal de recurso, em regra, deve subordinar estritamente a sua actividade sindicante ao “guião” que é enunciado nas conclusões, removendo-se através delas as dúvidas que possam existir sobre os motivos da impugnação, impondo-se ao recorrente essa forma de cooperação que a lei lhe aponta como devida.

Estas breves considerações visam salientar que analisadas as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação, ou seja, o sobredito “guião”, é segura a constatação de que lá são colocadas exactamente as mesmas questões que foram postas no recurso apreciado pelo Tribunal da Relação, inclusive com reprodução do texto respectivo.

O recorrente detectou no acórdão proferido na 1ª instância um conjunto de questões, essencialmente de facto mas também de direito, que mereceram a sua discordância quanto ao modo como foram apreciadas e, a seu respeito, interpelou o tribunal de 2ª instância.

Este apreciou esse conjunto de questões que respeitavam às seguintes matérias (transcrição tal como referidas na motivação).

(i) «Da qualificação jurídica do crime de homicídio».

Referiu que não há especial censurabilidade pois houve factos que não foram considerados como a provocação da vítima, no próprio dia, cedo, «cuspindo-lhe em direcção à sua cara» e a existência de provocações anteriores. Indica a propósito prova dessas circunstâncias factuais.

(ii) «Da desconsideração da colaboração do arguido na descoberta da verdade material».

Também aqui aludiu a factos que deveriam ter sido dados como provados designadamente ter-se entregue às autoridades, não se ter desfeito da arma utilizada e ter entregue as munições que detinha em casa, invocando também prova testemunhal que deveria ter sido atendida.

(iii) «Da desconsideração do arrependimento e do pedido de desculpas».

Indicou igualmente prova que, em seu entender tal evidenciaria.

(iv) «Da desconsideração do depoimento de todas as testemunhas de defesa».

Considerou que foram inadequadamente descredibilizados os testemunhos que refere sobre vários factos designadamente: mau relacionamento com a vítima por divergências no contexto laboral; atitude discriminatória por parte da vítima em relação a si; episódios de violência física exercida pela vítima sobre subordinados; discriminação das próprias testemunhas por parte da vítima por  serem amigos seus; ofensas que a vítima lhe dirigiu;

(v) «Da impugnação sobre a decisão proferida sobre matéria de facto: dos factos que foram julgados provados e dos que foram julgados não provados sem o deverem ter sido»

Elencou os factos que não deviam ter sido dados como provados: 2, 14, 34 a 36 e 77. E os que foram dados como não provados e deveriam ser provados: O) a W) e de CC) a FF) e HH).

Finalmente.

(vi) Da determinação da medida da pena».

Manifestou, neste ponto, a sua discordância quer da medida das penas parcelares quer da pena única, como diz «em face de tudo o supra exposto» e invocou a atenuante do art. 72º, nº 2, al. b) do C. Penal, a que, de resto, não faz referência nas conclusões.

Ora, a motivação apresentada no recurso para este Supremo Tribunal é quase ipsis verbis uma repetição integral daquela e as conclusões são exactamente as mesmas.

Significa isto que o recorrente, no recurso agora interposto não manifesta específica discordância quanto à forma como esse conjunto de questões foi analisado pelo Tribunal da Relação nem tão pouco rebate ou sequer discute os argumentos utilizados. Adopta um comportamento processual que consiste, na prática, em ignorar todo o labor analítico levado a cabo no acórdão da 2ª instância e em (re)colocar aquele conjunto de questões ao Supremo Tribunal exactamente da mesma forma, como se disse, com reprodução quase integral do texto, fora aspectos de pormenor,  sem focar minimamente a sua atenção no acórdão recorrido – que é o acórdão do Tribunal da Relação – e no modo como, ali, foram apreciadas as suas razões de divergência antes reiterando essa divergência relativamente ao deliberado na 1ª instância.

Perante esta conduta processual não será caso de rejeitar o recurso como já foi defendido por determinada linha jurisprudencial segundo a qual haveria manifesta improcedência, e logo rejeição, se o recorrente nada acrescentasse ao que já havia alegado quando se dirigiu à Relação, alegação essa a que já fora dada cabal resposta tudo se passando então como se não houvesse motivação[1]. Mas o certo é que o sucesso do pedido do recorrente fica seriamente comprometido.

Porquê?

Porque esse procedimento do recorrente ignora a especificidade da competência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de recursos ordinários.

Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça, em conformidade como o art. 432º, nº 1, al, b), «de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º» mas o recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, de acordo com o art. 434º.

Por conseguinte, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça se nele se pretende impugnar a decisão recorrida sobre um putativo erro de julgamento da matéria de facto.

Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º, nº 1, al. c)) dirige o recurso directamente ao STJ e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.º, nº 1, al. b)). Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» das instâncias «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa»[2].

Está, por isso, afastada da apreciação do presente recurso toda a matéria que diz respeito à invocação dos pontos que o recorrente considera incorrectamente julgados nos termos acima descritos.

A matéria de facto foi fixada em definitivo pela 2ª instância restando ao Supremo Tribunal a revista da decisão ali proferida no tocante à matéria de direito.

Verifica-se, pois, pelo elenco feito supra que a análise do recurso se cinge, afinal, à questão de precisar se houve ou não homicídio qualificado pela alínea j) do nº 2 do art. 132º do C. Penal e à medida das penas parcelares e da pena única.

Mesmo assim sem que a esse respeito se avancem argumentos específicos pois as alterações pretendidas decorreriam, como alega o recorrente, do «supra exposto» que não pode ser considerado.

Ainda aqui surge uma outra limitação:

Está pedida a alteração da pena parcelar imposta pelo crime de detenção de arma proibida punido com 2 anos e 2 meses de prisão.

          Vejamos.  

Estatui o art. 400º, na al. f) do seu nº 1, que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

A norma em causa, estabelece, assim, dois pressupostos de irrecorribilidade: o acórdão da Relação confirmar a decisão de 1ª instância e a pena aplicada na Relação não ser superior a 8 anos de prisão.

Inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça[3] fixaram já entendimento unânime, aliás decorrente da lei, de que não é admissível recurso de acórdãos proferidos pelas relações que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

De acordo com a disposição mencionada, nos casos de julgamento por vários crimes em concurso em que, em 1ª instância, por algum ou alguns ou só em cúmulo jurídico, haja sido imposta pena superior a 8 anos e por outros a pena aplicada não seja superior a essa medida, sendo a condenação confirmada pela Relação, o recurso da decisão desta para o STJ só é admissível no que se refere aos crimes pelos quais foi aplicada pena superior a 8 anos de prisão e à operação de determinação da pena única. Isto é, havendo uma decisão do Tribunal da Relação que mantém integralmente a decisão da 1ª instância que aplicou penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão  – a chamada dupla conforme  –   o recurso para o STJ só é admissível quanto à medida da pena única caso esta exceda 8 anos de prisão.

Ora, no tocante ao mencionado crime de detenção de arma proibida há dupla conforme pois houve no acórdão do Tribunal da Relação manutenção da matéria de facto, integral coincidência da qualificação jurídica e confirmação da pena imposta. Razão pela qual não é admissível recurso nessa parte.

Mas à inadmissibilidade de recurso nessa parte chega-se ainda por aplicação da alínea e) do nº 1 do citado art. 400º, norma essa que estipula não ser admissível recurso de acórdãos proferidos já em recurso pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos[4].

É pois, patente que o recurso interposto no tocante ao crime mencionado e à respectiva pena também não é admissível.

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4. – Sobejam, então, em definitivo, para apreciação as seguintes questões:

- Precisar se o homicídio deve ser qualificado tal como foi o entendimento da decisão recorrida mercê da especial censurabilidade da conduta do recorrente, manifestada pela qualificativa prevista na alínea j) do nº 2 do art. 132º C. Penal (doravante, as disposições citadas sem menção de origem pertencem a este diploma).

- Avaliar a medida da pena respeitante ao crime de homicídio e ponderar se há lugar à atenuação prevista no art. 72º, nº 2, al. c) e ainda a medida da pena única.

4.1 – As instâncias pronunciaram-se sobre a imputação do crime de homicídio do art. 131º considerando-o como aquele que contem o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida evidenciando a sua importância por visar a protecção do bem jurídico essencial que é a vida.

E debruçaram-se sobre as situações que justificam a qualificação com recurso à denominada técnica dos exemplos padrão contendo estes elementos constitutivos do tipo de culpa.

Discorreram também, com detalhe e acerto, sobre as situações que justificam a qualificação por haver especial censurabilidade ou perversidade com recurso à denominada técnica dos exemplos padrão contendo estes elementos constitutivos do tipo de culpa. Com um grau especial que há-de decorrer da verificação desses exemplos-padrão, os que, entre outros pois não são taxativos, estão descritos nas diversas alíneas do citado nº 2 do art. 132º e que deverão ser indicadores de situações que em abstracto poderão ser susceptíveis de indiciar que a acção do agente atinge esse específico grau de culpa revelador da sobredita especial censurabilidade ou perversidade mas que não têm uma implicação de obrigatoriedade ou automatismo. Também a noção de “especial censurabilidade ou perversidade” foi abordada.

De acordo com o ensinamento da generalidade da doutrina reiteradamente seguido por este Supremo Tribunal, a partir do tipo de homicídio do art. 131º, o art. 132º, nº 1 prevê e pune um homicídio qualificado que há-de ser produzido em circunstância de especial censurabilidade ou perversidade do agente. Que há-de, portanto, configurar-se como um “qualificado” tipo de culpa especialmente acentuado que se concretiza e modela nas circunstâncias enunciadas no nº 2 do citado art. 132º, os renomados exemplos-padrão. São estes que dão estrutura, delimitando-os também, àqueles conceitos abertos de especial censurabilidade ou perversidade, embora de modo não automático.

Como já foi também ensinado[5] a cláusula geral de agravação prevista no nº 1 do art. 132º, para ter-se como verificada, implica uma conexão hermenêutica entre ambos os aspectos: os exemplos típicos elencados no nº 2 explicitam o sentido dessa cláusula agravante e esta, por seu turno, funciona como correctivo normativo da objectividade daqueles traduzido na fórmula expressiva  «não só, nem sempre». Sendo o sentido e o alcance da técnica dos exemplos-padrão flexibilizar a aplicação da lei penal a ideia essencial é a de que são de considerar como homicídios qualificados somente casos particularmente chocantes.

Casos particularmente chocantes na actuação do agente, no modo como comete o homicídio, que reflictam um desvalor especialmente grave e uma motivação especialmente censurável. Em que o acto de destruição da vida humana para lá do modo particularmente ardiloso, ou cruel ou de inflicção de sofrimento como é levado a cabo revele também uma atitude dedicada e envolvida do agente. Casos em que, afinal, a formulação de um especial juízo de culpa encontre suporte numa «correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo do ilícito»[6].

O caso presente é um desses e a frieza da ânimo com que actuou o arguido, circunstância prevista na alínea j) do sobredito nº 2 do art. 132º é, crê-se, inquestionável entendida esta segundo o entendimento é pacífico deste Supremo Tribunal «como o agir de forma calculada, planeada quanto ao local e ao momento, com imperturbada clama, revelando-se indiferença e desprezo pela vida, firmeza tenacidade, sangue frio, um lento, reflexivo e cauteloso processo na execução e preparação do crime de forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humana»[7].

Não é razoável outra conclusão que não seja a de que o recorrente, usando de reflexão a esse respeito, naturalmente, preparou as condições adequadas ao encontro com a vítima à qual se dirigiu munido de arma de fogo. A 3/4 metros, sem que nada o fizesse prever, por conseguinte de surpresa e de modo traiçoeiro, disparou 3 tiros visando já a cabeça da vítima como se extrai da localização das lesões (cfr pontos 19 e 20 dos factos provados). Poucos minutos depois, ao sair de um bar, com a vítima prostrada e indefesa e perante pessoas que a tentavam auxiliar o recorrente depois de proferir a expressão «Ainda estás vivo?» disparou os últimos 3 tiros à queima-roupa, o mesmo é dizer a curta distância, dirigindo-os à cara da vítima. Toda esta conduta, em particular a que se segue à saída do bar e culmina com o disparo dos derradeiros 3 tiros demonstra uma crueldade e uma desumanidade inusitadas e evidencia uma persistência manifesta da intenção de matar assumida com tenacidade e sangue frio no prosseguimento e na concretização desse objectivo.

Tudo a revelar, em suma, uma acção calculada com inteiro desprezo pela vida da vítima e uma atitude dedicada e envolvida como expressão de singular frieza de ânimo e por essa via de especial censurabilidade e perversidade.

Improcede, pois, nesta parte o recurso do arguido.

4.2 – Manifesta o recorrente a sua discordância em relação à medida da pena considerando que esta se deveria fixar em não mais de nove anos de prisão.

Fá-lo, porém, partindo de pressupostos que se viu já não poderem ser contemplados pois implicavam consagração nos factos provados de aspectos factuais que constantes embora da contestação as instâncias não acolheram.

Incluindo o pedido de consideração da atenuante especial da pena prevista no art. 72º, nº 2, al. b). De acordo com esta disposição o tribunal atenua especialmente a pena quando houver circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente designadamente ter sido esta determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida. Nenhum suporte factual tem esta pretensão do recorrente pois nada aponta para uma diminuição sensível da culpa ou da necessidade da pena o que seria contraditório, com a qualificação do homicídio nos termos em que foi feita. Bem pelo contrário.

Como é sabido, a finalidade útil da pena assume-se numa função basicamente preventiva que se desdobra orientada para a comunidade – prevenção geral – e para o indivíduo – prevenção especial.

A prevenção geral não se reconduz somente ao efeito dissuasor que o anúncio da aplicação de uma pena exercerá sobre o potencial infractor no que se designa como prevenção geral negativa. Contém em si e principalmente uma mensagem de reafirmação e de consolidação da validade da lei penal como meio de «manter e reforçar a “confiança” da comunidade na validade e na vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantibilidade da ordem jurídica»[8], na faceta de prevenção geral positiva sendo então, decerto, nas normas que, no sistema, tutelam bens que assumem expressão e valor superlativo, como a vida, que essa expectativa da comunidade na validade de tais normas, na restauração da paz jurídica, encontra o seu pleno sentido e a sua máxima expressão.

Já a vertente da prevenção especial reconduz-se ao objectivo de evitar a recidiva mediante a ressocialização ou reinserção social sem embargo de se lhe adicionar também, numa deriva mais securitária, o objectivo de intimidação individual e de inocuização.

E se é a prevenção geral positiva que fornece uma “moldura de prevenção” não pode escamotear-se haver “dentro” dessa moldura de prevenção um efeito de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação que embora não constitua «por si mesma uma finalidade autónoma da pena pode surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou em muitos casos desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos»[9].

É ainda dentro da dita “moldura de prevenção” que «devem actuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção especial sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena[10]».

É este, no essencial, o programa político-criminal que está vertido no art. 40º, nº 1 do C. Penal onde se determina que a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade conferindo a essa pena a natureza preventiva geral e especial.

Intervindo também a culpa como pressuposto necessário e limitativo da aplicação da pena, da punição pela prática de um crime, não é contudo pressuposto suficiente para tal ficando ainda subordinada à condição de se mostrar necessária do ponto de vista preventivo (geral e especial).

No caso em apreciação foi lesado um bem jurídico fundamental, a vida humana, logo por aí se revelando também um grau de ilicitude especialmente elevado, e certamente que a tutela eficaz desse bem torna prementes as necessidades de prevenção geral.

Não resta dúvida sobre a extrema gravidade da conduta do arguido em que o conteúdo da ilicitude e o conteúdo da culpa são elevados a ponto de se ter concluído que o homicídio é qualificado. Sobre isto nada mais haverá a sublinhar sob pena de violação do princípio da dupla valoração.

Mas na avaliação do caso concreto e na ponderação global das circunstâncias nele presentes o modo de execução do crime não deixa de exprimir uma atitude determinada e contumaz do recorrente, um propósito e persistência da intenção de matar a que não é possível contrapor factores atenuativos de carácter geral.

Tendo a moldura penal abstracta um limite mínimo de 16 anos, por força da agravação de um terço prevista no art. 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, de resto não posta em causa pelo recorrente, e o limite máximo de 25 anos o que se constata é que a pena concreta foi fixada não muito acima desse limite mínimo o que se crê adequado e equilibrado pois a sua redução, além de não ser justificada ao nível da prevenção especial mormente por qualquer circunstância com destaque ao nível da sua condição social ou outra que pudesse ser tida como factor atenuativo criaria relativamente a factos semelhantes uma aberrante ideia de impunidade. A ponderação vincada dos sobreditos efeitos da prevenção geral negativa ou de intimidação é imperativa na da dissuasão de comportamentos com este nível de violência e com estas desastrosas consequências.

Improcede também nesta parte o recurso do arguido.

4.3 - O nº 1 do art. 77º estabelece que o critério específico a usar na fixação da medida da pena única é o da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

Assim, tendo como bússola o programa político-criminal essencial contido no sobredito artigo 40º, nº 1 e no art. 71º, nº 1 o caminho a seguir é o da “fixação” de uma imagem global do facto, como reiteradamente tem vincado a jurisprudência, que dê a medida da sua dimensão no plano da ilicitude e da culpa, mas também do seu pano de fundo, digamos, a personalidade do agente.

Tendo ainda como parâmetro imprescindível, também nesta vertente da fixação da pena única, o respeito pela proporcionalidade (em sentido amplo), ou seja, a pena terá de ser aferida e ponderada em função da sua idoneidade, necessidade e proporcionalidade (em sentido estrito) para proteger os bens jurídico-penais lesionados  levando aqui em linha de conta a importância desses bens a exigir essa protecção.

Tomando em consideração todos os factos praticados analisar-se-á a «gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique»[11]. E incluir-se-á nessa análise a avaliação da personalidade do agente para tanto se ponderando se desse conjunto de factos se pode retirar a conclusão de que ele tem alguma tendência para o crime ou se tudo decorre das circunstâncias concretas que hajam potenciado uma situação de pluriocasionalidade com vista a conferir à pena única um sentido agravante ou, pelo contrário, atenuante.

Não é escamoteável, como já foi salientado, que na previsão e punição do crime de homicídio está em causa a protecção do bem jurídico fundamental, a vida, e decerto se não negará que aí se exponenciam as exigências de prevenção geral positiva como natural resposta às já mencionadas expectativas comunitárias, aqui a respeito da protecção do bem jurídico mais valioso. É essa, digamos, a situação extrema a reclamar a intervenção firme do sistema de administração da justiça.

Essa intervenção com efeito dissuasor não pode deixar de estender-se à utilização ilegal de armas de fogo cujo efeito criminógeno não é redundante pôr em destaque.

Não olvidando os traços de alguma debilidade psicológica que os factos descritos designadamente nos pontos 80, 87 e 88 expressam e que estes em conjugação com as circunstâncias concretas não apontam para que se possa ter como presente alguma tendência para o crime entende-se adequada a pena única imposta, que em termos de proporcionalidade se encontra em linha com a jurisprudência deste Supremo Tribunal.

Improcede igualmente este segmento do recurso.

                                           *

5. – Em face do que se decide negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.

Pagará o recorrente 5 UC de taxa de justiça.

Feito e revisto pelo 1º signatário.

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[1] Cfr v.g Acórdãos de 12.04.2007, proc 516/07 e de 2008.10.02, proc 4725/07 desta 5ª Secção. Sobre a divisão jurisprudencial a respeito deste tema cfr Acórdão STJ de 2015.04.29, proc 791/12.6 GAAAL.L2.S1. Considerando a possibilidade de rejeição como uma perspectiva excessivamente redutora e restritiva, de ordem meramente formal, por mais recente o Acórdão de 2015.06.17, proc 28/11.5TACVD.E1,S1. Todos os arestos indicados estão disponíveis em www.dgsi.pt
[2] Cfr, v.g. Acórdãos do STJ de 2015.04.09, proc 331/12.7ALRA.S1 e de 2015.05.14, proc 405/13.7PHLRS.S1.
[3] Cfr por mais recente o Acórdão de 2015.02.25, proc 74/12.1JACBR.C1.S1 e a recensão jurisprudencial que dele consta.
[4] Note-se que a situação presente não é a de um acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de que tenha havido recurso directo para o STJ visando exclusivamente matéria de direito (art. 432º, nº 1, al. c) CPP) caso em que certa corrente jurisprudencial (cfr v.g. Acórdão STJ de 2014.07.09, proc 95/10.9GGODM.S1) considera que o STJ cobra competência para conhecer de todas as penas inferiores a 5 anos de cuja medida haja sido interposto recurso e em que a pena conjunta seja superior a  5 anos.
[5] Cfr Augusto Silva Dias, Direito Penal, Parte Especial, Crimes contra a Vida e a Integridade Física, 2ª ed., 2007, AAFDL, pags. 24-25
[6] Cfr Figueiredo Dias, ob cit, pag 27)
[7] Cfr v.g. Acórdãos de 2015.03.12, proc 405/13.7JABRG.G1.S1; de 2015.03.18 proc. n.º 351/13.4JAFAR.E1.S1; de 2015.04.23 Proc. n.º 86/14.0YFLSB
[8] Cfr Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed. pag. 51. 
[9] Cfr Figueiredo Dias, ob cit. pag 81.
[10] Aut, ob e loc cit.
[11] Cfr  sempre e justificadamente  citado Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências …”  pag. 291