Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO GOMES DA SILVA | ||
Descritores: | REPETIÇÃO DA MOTIVAÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MATÉRIA DE DIREITO HOMICÍDIO QUALIFICADO FRIEZA DE ÂNIMO MEDIDA CONCRETA DA PENA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO DUPLA CONFORME | ||
Data do Acordão: | 05/30/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO CONFIRMANDO A DECISÃO RECORRIDA | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / PODERES DE COGNIÇÃO. DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO QUALIFICADO. | ||
Doutrina: | - Augusto Silva Dias, Direito Penal, Parte Especial, Crimes contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª edição, 2007, AAFDL, p. 24, 25 e 27 ; Direito Penal, Parte Geral, 2.ª edição, p. 51 e 81; - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do facto, p. 291. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALÍNEAS E) E F) E 434.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 132.º, N.º 2, ALÍNEA J). REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E MUNIÇÕES (RJAM), APROVADO PELA LEI N.º 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO: - ARTIGO 86.º, N.º 3. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 12-04-2007, PROCESSO N.º 516/07, IN WWW.DGSI.PT; - DE 02-10-2008, PROCESSO N.º 4725/07, IN WWW.DGSI.PT; - DE 09-07-2014, PROCESSO N.º 95/10.9GGODM.S1; - DE 25-02-2015, PROCESSO N.º 74/12.1JACBR.C1.S1; - DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 405/13.7JABRG.G1.S1; - DE 18-03-2015, PROCESSO N.º 351/13.4JAFAR.E1.S1; - DE 09-04-2015, PROCESSO N.º 331/12.7ALRA.S1; - DE 23-04-2015, PROCESSO N.º 86/14.0YFLSB; - DE 29-04-2015, PROCESSO N.º 791/12.6 GAAAL.L2.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 14-05-2015, PROCESSO N.º 405/13.7PHLRS.S1; - DE 17-06-2015, PROCESSO N.º 28/11.5TACVD.E1,S1, IN WWW.DGSI.PT. | ||
Sumário : | I - A motivação apresentada no recurso para este STJ é quase ipsis verbis uma repetição integral da usada para o recurso para a relação e as conclusões são exactamente as mesmas. Significa isto que o recorrente, no recurso agora interposto não manifesta específica discordância quanto à forma como esse conjunto de questões foi analisado pelo tribunal da relação nem tão pouco rebate ou sequer discute os argumentos utilizados. II - O recorrente ignora a especificidade da competência do STJ em matéria de recursos ordinários. Não é admissível recurso para o STJ se nele se pretende impugnar a decisão recorrida sobre um putativo erro de julgamento da matéria de facto (art. 434.º, do CPP). Está, por isso, afastada da apreciação do presente recurso toda a matéria que diz respeito à invocação dos pontos que o recorrente considera incorrectamente julgados. Pelo que a análise do recurso se cinge à questão de precisar se houve ou não homicídio qualificado pela al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP e à medida das penas parcelares e da pena única. III - No tocante ao crime de detenção de arma proibida há dupla conforme pois houve no acórdão do tribunal da relação manutenção da matéria de facto, integral coincidência da qualificação jurídica e confirmação da pena imposta de 2 anos e 2 meses de prisão. Razão pela qual não é admissível recurso nesta parte (art. 400.º, n.º 1, als. e) e f), do CPP). IV - É entendimento pacífico deste STJ que a qualificativa prevista na al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP consubstancia-se em agir “de forma calculada, planeada quanto ao local e ao momento, com imperturbada calma, revelando-se indiferença e desprezo pela vida, firmeza, tenacidade, sangue frio, um lento, reflexivo e cauteloso processo na execução e preparação do crime de forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humana.”. V - No caso, verifica-se a indicada qualificativa uma vez que o arguido preparou as condições adequadas ai encontro com a vítima, à qual se dirigiu munido de arma de fogo, disparando 3 tiros à cabeça da vítima, a 3/4 metros, disparando outros 3 tiros à queima-roupa à cara da vítima depois de proferir a expressão “Ainda estás vivo?”. VI - Na avaliação do caso concreto e na ponderação global das circunstâncias nele presentes, o modo de execução do crime não deixa de exprimir uma atitude determinada e contumaz do recorrente, um propósito e persistência da intenção de matar. Tendo a moldura penal abstracta um limite mínimo de 16 anos, por força da agravação de um terço prevista no art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23-02, e o limite máximo de 25 anos o que se constata é que a pena concreta foi fixada muito acima desse limite mínimo o que se crê adequado e equilibrado, pois a sua redução, além de não ser justificada ao nível da prevenção especial, criaria a aberrante ideia de impunidade. Pelo que a pena única aplicada pelas instâncias de 20 anos de prisão se afigura como adequada. | ||
Decisão Texto Integral: |
1. – Na 1ª instância, Comarca da ..., o arguido AA foi julgado e condenado nos termos seguintes: - por um crime de homicídio qualificado dos artigos 131° e 132°, nºs 1 e 2, alínea j) do Código Penal, agravado pelo disposto no artigo 86°, n° 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 19 anos de prisão. - por um crime de detenção ilegal de arma, do artigo 86°, n° 1, als. c) e d) do dito Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 20 anos de prisão. Interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que lhe negou provimento.
Interpõe novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça formulando na motivação as seguintes conclusões (transcrição): A) Mal andou o Tribunal a quo ao ter condenado o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, sendo que antes deveria ter sido condenado pela prática de um crime de homicídio simples. B) Mal andou o Tribunal a quo ao não considerar o arrependimento, a colaboração para a descoberta da verdade material, a provocação injusta/ofensa imerecida ocorrida dia 11 de Janeiro de 2017 e aos factos que mitigam a culpa do arguido trazidos a julgamento pelas testemunhas da defesa. C) Não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos pontos 2 e 14 dos factos provados; dos pontos 34 a 36; e 77 uma vez que deveriam ter sido julgados não provados. D) Deveriam ter sido dados como provados os factos constantes nos pontos de O) a W) e de CC) a FF) e HH) em vez de não provados. E) Ponderados todos estes factores, pugnamos pela aplicação ao arguido de uma pena nunca superior a 11 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio simples; uma pena nunca superior a 1 ano de prisão pela prática de um crime de detenção ilegal de arma e, em cúmulo jurídico, uma pena única nunca superior a 12 anos de prisão pela prática destes dois crimes.
A magistrada do ministério Público respondeu ao recurso defendendo que: - Deve ser rejeitado pois a motivação apresentada é somente uma repetição daquela que esteve na origem do recurso interposto para a Relação acrescendo que nem sequer foram indicadas as normas jurídicas violadas; - Nada há a censurar na escolha e medida da pena.
Neste Supremo tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer expressou-se também no sentido de o recurso ser rejeitado por manifesta improcedência por se pretender trazer a discussão a matéria de facto já definida e por nem sequer poder ser questionada a pena parcelar correspondente ao crime de detenção ilegal de arma perante a circunstância de, nessa parte não ser admissível recurso, de acordo com o art. 400º, nº 1, al. d) CPP (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem).
Foi cumprido o art. 417º, nº 2 sem que houvesse resposta.
* 2. – O resultado do julgamento quanto aos factos provados foi o seguinte (transcrição): * * * * 79. Do ponto de vista psiquiátrico-forense e para os factos que cometeu não se detectaram razões de natureza psiquiátrica que permitissem excluir ou diminuir a sua imputabilidade. 80. De acordo com a avaliação psicológica a que foi submetido em ordem a complementar aquela perícia: - No que toca a dimensões sintomáticas verificou-se no arguido a elevação significativa das escalas ideação paranóide, depressão, obsessão-Compulsão, somatização e agressividade. Esse perfil psicossomático remete para a existência de desconfiança, afecto desadequado, hipersensibilidade às exigências e críticas, ruminação de pensamento, inferioridade e desadequação pessoal, que estão associados à inibição e isolamento nas relações interpessoais; - Na avaliação do seu funcionamento emocional, destacam-se sentimentos negativos em relação a si mesmo, acentuada perturbação emocional e superdramatização e/ou reacção aguda a crise emocional; - Ao nível do perfil clínico, destaca-se a elevação nas escalas Esquizofrenia, Depressão, Desvio Psicótico, Psicastenia e Paranóia, o que indica estarmos perante um indivíduo frio, distante, reservado, imprevisível, imaturo, egocêntrico, retraído e tímido. Pode ser descrito como alienado, tenso, irritável, pouco sociável e suspeitoso, apresentando dificuldade ao nível do controlo dos impulsos. Este perfil é aina compatível com um sujeito com pouco envolvimento social e emocionalmente alienado, com desconfiança face aos outros e com medo de implicação social e insegurança e desconforto nas relações e situações sociais. * *
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3. – É entendimento unânime e antigo nos tribunais superiores que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação a elas se devendo ater o tribunal de recurso sem relevar outras considerações ou argumentos que ali não sejam sintetizados. Nas conclusões, delimitam-se, sob a forma de resumo, as questões que o tribunal de recurso deve apreciar para avaliar as razões do pedido, permitindo que se conheça de modo expedito do âmbito desse recurso e dos seus fundamentos. Como já foi afirmado, o tribunal de recurso, em regra, deve subordinar estritamente a sua actividade sindicante ao “guião” que é enunciado nas conclusões, removendo-se através delas as dúvidas que possam existir sobre os motivos da impugnação, impondo-se ao recorrente essa forma de cooperação que a lei lhe aponta como devida. Estas breves considerações visam salientar que analisadas as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação, ou seja, o sobredito “guião”, é segura a constatação de que lá são colocadas exactamente as mesmas questões que foram postas no recurso apreciado pelo Tribunal da Relação, inclusive com reprodução do texto respectivo. O recorrente detectou no acórdão proferido na 1ª instância um conjunto de questões, essencialmente de facto mas também de direito, que mereceram a sua discordância quanto ao modo como foram apreciadas e, a seu respeito, interpelou o tribunal de 2ª instância. Este apreciou esse conjunto de questões que respeitavam às seguintes matérias (transcrição tal como referidas na motivação). (i) «Da qualificação jurídica do crime de homicídio». Referiu que não há especial censurabilidade pois houve factos que não foram considerados como a provocação da vítima, no próprio dia, cedo, «cuspindo-lhe em direcção à sua cara» e a existência de provocações anteriores. Indica a propósito prova dessas circunstâncias factuais. (ii) «Da desconsideração da colaboração do arguido na descoberta da verdade material». Também aqui aludiu a factos que deveriam ter sido dados como provados designadamente ter-se entregue às autoridades, não se ter desfeito da arma utilizada e ter entregue as munições que detinha em casa, invocando também prova testemunhal que deveria ter sido atendida. (iii) «Da desconsideração do arrependimento e do pedido de desculpas». Indicou igualmente prova que, em seu entender tal evidenciaria. (iv) «Da desconsideração do depoimento de todas as testemunhas de defesa». Considerou que foram inadequadamente descredibilizados os testemunhos que refere sobre vários factos designadamente: mau relacionamento com a vítima por divergências no contexto laboral; atitude discriminatória por parte da vítima em relação a si; episódios de violência física exercida pela vítima sobre subordinados; discriminação das próprias testemunhas por parte da vítima por serem amigos seus; ofensas que a vítima lhe dirigiu; (v) «Da impugnação sobre a decisão proferida sobre matéria de facto: dos factos que foram julgados provados e dos que foram julgados não provados sem o deverem ter sido» Elencou os factos que não deviam ter sido dados como provados: 2, 14, 34 a 36 e 77. E os que foram dados como não provados e deveriam ser provados: O) a W) e de CC) a FF) e HH). Finalmente. (vi) Da determinação da medida da pena». Manifestou, neste ponto, a sua discordância quer da medida das penas parcelares quer da pena única, como diz «em face de tudo o supra exposto» e invocou a atenuante do art. 72º, nº 2, al. b) do C. Penal, a que, de resto, não faz referência nas conclusões. Ora, a motivação apresentada no recurso para este Supremo Tribunal é quase ipsis verbis uma repetição integral daquela e as conclusões são exactamente as mesmas. Significa isto que o recorrente, no recurso agora interposto não manifesta específica discordância quanto à forma como esse conjunto de questões foi analisado pelo Tribunal da Relação nem tão pouco rebate ou sequer discute os argumentos utilizados. Adopta um comportamento processual que consiste, na prática, em ignorar todo o labor analítico levado a cabo no acórdão da 2ª instância e em (re)colocar aquele conjunto de questões ao Supremo Tribunal exactamente da mesma forma, como se disse, com reprodução quase integral do texto, fora aspectos de pormenor, sem focar minimamente a sua atenção no acórdão recorrido – que é o acórdão do Tribunal da Relação – e no modo como, ali, foram apreciadas as suas razões de divergência antes reiterando essa divergência relativamente ao deliberado na 1ª instância. Perante esta conduta processual não será caso de rejeitar o recurso como já foi defendido por determinada linha jurisprudencial segundo a qual haveria manifesta improcedência, e logo rejeição, se o recorrente nada acrescentasse ao que já havia alegado quando se dirigiu à Relação, alegação essa a que já fora dada cabal resposta tudo se passando então como se não houvesse motivação[1]. Mas o certo é que o sucesso do pedido do recorrente fica seriamente comprometido. Porquê? Porque esse procedimento do recorrente ignora a especificidade da competência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de recursos ordinários. Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça, em conformidade como o art. 432º, nº 1, al, b), «de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º» mas o recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, de acordo com o art. 434º. Por conseguinte, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça se nele se pretende impugnar a decisão recorrida sobre um putativo erro de julgamento da matéria de facto. Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º, nº 1, al. c)) dirige o recurso directamente ao STJ e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.º, nº 1, al. b)). Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» das instâncias «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa»[2]. Está, por isso, afastada da apreciação do presente recurso toda a matéria que diz respeito à invocação dos pontos que o recorrente considera incorrectamente julgados nos termos acima descritos. A matéria de facto foi fixada em definitivo pela 2ª instância restando ao Supremo Tribunal a revista da decisão ali proferida no tocante à matéria de direito. Verifica-se, pois, pelo elenco feito supra que a análise do recurso se cinge, afinal, à questão de precisar se houve ou não homicídio qualificado pela alínea j) do nº 2 do art. 132º do C. Penal e à medida das penas parcelares e da pena única. Mesmo assim sem que a esse respeito se avancem argumentos específicos pois as alterações pretendidas decorreriam, como alega o recorrente, do «supra exposto» que não pode ser considerado. Ainda aqui surge uma outra limitação: Está pedida a alteração da pena parcelar imposta pelo crime de detenção de arma proibida punido com 2 anos e 2 meses de prisão. Vejamos. Estatui o art. 400º, na al. f) do seu nº 1, que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. A norma em causa, estabelece, assim, dois pressupostos de irrecorribilidade: o acórdão da Relação confirmar a decisão de 1ª instância e a pena aplicada na Relação não ser superior a 8 anos de prisão. Inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça[3] fixaram já entendimento unânime, aliás decorrente da lei, de que não é admissível recurso de acórdãos proferidos pelas relações que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. De acordo com a disposição mencionada, nos casos de julgamento por vários crimes em concurso em que, em 1ª instância, por algum ou alguns ou só em cúmulo jurídico, haja sido imposta pena superior a 8 anos e por outros a pena aplicada não seja superior a essa medida, sendo a condenação confirmada pela Relação, o recurso da decisão desta para o STJ só é admissível no que se refere aos crimes pelos quais foi aplicada pena superior a 8 anos de prisão e à operação de determinação da pena única. Isto é, havendo uma decisão do Tribunal da Relação que mantém integralmente a decisão da 1ª instância que aplicou penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão – a chamada dupla conforme – o recurso para o STJ só é admissível quanto à medida da pena única caso esta exceda 8 anos de prisão. Ora, no tocante ao mencionado crime de detenção de arma proibida há dupla conforme pois houve no acórdão do Tribunal da Relação manutenção da matéria de facto, integral coincidência da qualificação jurídica e confirmação da pena imposta. Razão pela qual não é admissível recurso nessa parte. Mas à inadmissibilidade de recurso nessa parte chega-se ainda por aplicação da alínea e) do nº 1 do citado art. 400º, norma essa que estipula não ser admissível recurso de acórdãos proferidos já em recurso pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos[4]. É pois, patente que o recurso interposto no tocante ao crime mencionado e à respectiva pena também não é admissível. * 4. – Sobejam, então, em definitivo, para apreciação as seguintes questões: - Precisar se o homicídio deve ser qualificado tal como foi o entendimento da decisão recorrida mercê da especial censurabilidade da conduta do recorrente, manifestada pela qualificativa prevista na alínea j) do nº 2 do art. 132º C. Penal (doravante, as disposições citadas sem menção de origem pertencem a este diploma). - Avaliar a medida da pena respeitante ao crime de homicídio e ponderar se há lugar à atenuação prevista no art. 72º, nº 2, al. c) e ainda a medida da pena única. 4.1 – As instâncias pronunciaram-se sobre a imputação do crime de homicídio do art. 131º considerando-o como aquele que contem o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida evidenciando a sua importância por visar a protecção do bem jurídico essencial que é a vida. E debruçaram-se sobre as situações que justificam a qualificação com recurso à denominada técnica dos exemplos padrão contendo estes elementos constitutivos do tipo de culpa. Discorreram também, com detalhe e acerto, sobre as situações que justificam a qualificação por haver especial censurabilidade ou perversidade com recurso à denominada técnica dos exemplos padrão contendo estes elementos constitutivos do tipo de culpa. Com um grau especial que há-de decorrer da verificação desses exemplos-padrão, os que, entre outros pois não são taxativos, estão descritos nas diversas alíneas do citado nº 2 do art. 132º e que deverão ser indicadores de situações que em abstracto poderão ser susceptíveis de indiciar que a acção do agente atinge esse específico grau de culpa revelador da sobredita especial censurabilidade ou perversidade mas que não têm uma implicação de obrigatoriedade ou automatismo. Também a noção de “especial censurabilidade ou perversidade” foi abordada. De acordo com o ensinamento da generalidade da doutrina reiteradamente seguido por este Supremo Tribunal, a partir do tipo de homicídio do art. 131º, o art. 132º, nº 1 prevê e pune um homicídio qualificado que há-de ser produzido em circunstância de especial censurabilidade ou perversidade do agente. Que há-de, portanto, configurar-se como um “qualificado” tipo de culpa especialmente acentuado que se concretiza e modela nas circunstâncias enunciadas no nº 2 do citado art. 132º, os renomados exemplos-padrão. São estes que dão estrutura, delimitando-os também, àqueles conceitos abertos de especial censurabilidade ou perversidade, embora de modo não automático. Como já foi também ensinado[5] a cláusula geral de agravação prevista no nº 1 do art. 132º, para ter-se como verificada, implica uma conexão hermenêutica entre ambos os aspectos: os exemplos típicos elencados no nº 2 explicitam o sentido dessa cláusula agravante e esta, por seu turno, funciona como correctivo normativo da objectividade daqueles traduzido na fórmula expressiva «não só, nem sempre». Sendo o sentido e o alcance da técnica dos exemplos-padrão flexibilizar a aplicação da lei penal a ideia essencial é a de que são de considerar como homicídios qualificados somente casos particularmente chocantes. Casos particularmente chocantes na actuação do agente, no modo como comete o homicídio, que reflictam um desvalor especialmente grave e uma motivação especialmente censurável. Em que o acto de destruição da vida humana para lá do modo particularmente ardiloso, ou cruel ou de inflicção de sofrimento como é levado a cabo revele também uma atitude dedicada e envolvida do agente. Casos em que, afinal, a formulação de um especial juízo de culpa encontre suporte numa «correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo do ilícito»[6]. O caso presente é um desses e a frieza da ânimo com que actuou o arguido, circunstância prevista na alínea j) do sobredito nº 2 do art. 132º é, crê-se, inquestionável entendida esta segundo o entendimento é pacífico deste Supremo Tribunal «como o agir de forma calculada, planeada quanto ao local e ao momento, com imperturbada clama, revelando-se indiferença e desprezo pela vida, firmeza tenacidade, sangue frio, um lento, reflexivo e cauteloso processo na execução e preparação do crime de forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humana»[7]. Não é razoável outra conclusão que não seja a de que o recorrente, usando de reflexão a esse respeito, naturalmente, preparou as condições adequadas ao encontro com a vítima à qual se dirigiu munido de arma de fogo. A 3/4 metros, sem que nada o fizesse prever, por conseguinte de surpresa e de modo traiçoeiro, disparou 3 tiros visando já a cabeça da vítima como se extrai da localização das lesões (cfr pontos 19 e 20 dos factos provados). Poucos minutos depois, ao sair de um bar, com a vítima prostrada e indefesa e perante pessoas que a tentavam auxiliar o recorrente depois de proferir a expressão «Ainda estás vivo?» disparou os últimos 3 tiros à queima-roupa, o mesmo é dizer a curta distância, dirigindo-os à cara da vítima. Toda esta conduta, em particular a que se segue à saída do bar e culmina com o disparo dos derradeiros 3 tiros demonstra uma crueldade e uma desumanidade inusitadas e evidencia uma persistência manifesta da intenção de matar assumida com tenacidade e sangue frio no prosseguimento e na concretização desse objectivo. Tudo a revelar, em suma, uma acção calculada com inteiro desprezo pela vida da vítima e uma atitude dedicada e envolvida como expressão de singular frieza de ânimo e por essa via de especial censurabilidade e perversidade. Improcede, pois, nesta parte o recurso do arguido. 4.2 – Manifesta o recorrente a sua discordância em relação à medida da pena considerando que esta se deveria fixar em não mais de nove anos de prisão. Fá-lo, porém, partindo de pressupostos que se viu já não poderem ser contemplados pois implicavam consagração nos factos provados de aspectos factuais que constantes embora da contestação as instâncias não acolheram. Incluindo o pedido de consideração da atenuante especial da pena prevista no art. 72º, nº 2, al. b). De acordo com esta disposição o tribunal atenua especialmente a pena quando houver circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente designadamente ter sido esta determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida. Nenhum suporte factual tem esta pretensão do recorrente pois nada aponta para uma diminuição sensível da culpa ou da necessidade da pena o que seria contraditório, com a qualificação do homicídio nos termos em que foi feita. Bem pelo contrário. Como é sabido, a finalidade útil da pena assume-se numa função basicamente preventiva que se desdobra orientada para a comunidade – prevenção geral – e para o indivíduo – prevenção especial. A prevenção geral não se reconduz somente ao efeito dissuasor que o anúncio da aplicação de uma pena exercerá sobre o potencial infractor no que se designa como prevenção geral negativa. Contém em si e principalmente uma mensagem de reafirmação e de consolidação da validade da lei penal como meio de «manter e reforçar a “confiança” da comunidade na validade e na vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantibilidade da ordem jurídica»[8], na faceta de prevenção geral positiva sendo então, decerto, nas normas que, no sistema, tutelam bens que assumem expressão e valor superlativo, como a vida, que essa expectativa da comunidade na validade de tais normas, na restauração da paz jurídica, encontra o seu pleno sentido e a sua máxima expressão. Já a vertente da prevenção especial reconduz-se ao objectivo de evitar a recidiva mediante a ressocialização ou reinserção social sem embargo de se lhe adicionar também, numa deriva mais securitária, o objectivo de intimidação individual e de inocuização. E se é a prevenção geral positiva que fornece uma “moldura de prevenção” não pode escamotear-se haver “dentro” dessa moldura de prevenção um efeito de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação que embora não constitua «por si mesma uma finalidade autónoma da pena pode surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou em muitos casos desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos»[9]. É ainda dentro da dita “moldura de prevenção” que «devem actuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção especial sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena[10]». É este, no essencial, o programa político-criminal que está vertido no art. 40º, nº 1 do C. Penal onde se determina que a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade conferindo a essa pena a natureza preventiva geral e especial. Intervindo também a culpa como pressuposto necessário e limitativo da aplicação da pena, da punição pela prática de um crime, não é contudo pressuposto suficiente para tal ficando ainda subordinada à condição de se mostrar necessária do ponto de vista preventivo (geral e especial). No caso em apreciação foi lesado um bem jurídico fundamental, a vida humana, logo por aí se revelando também um grau de ilicitude especialmente elevado, e certamente que a tutela eficaz desse bem torna prementes as necessidades de prevenção geral. Não resta dúvida sobre a extrema gravidade da conduta do arguido em que o conteúdo da ilicitude e o conteúdo da culpa são elevados a ponto de se ter concluído que o homicídio é qualificado. Sobre isto nada mais haverá a sublinhar sob pena de violação do princípio da dupla valoração. Mas na avaliação do caso concreto e na ponderação global das circunstâncias nele presentes o modo de execução do crime não deixa de exprimir uma atitude determinada e contumaz do recorrente, um propósito e persistência da intenção de matar a que não é possível contrapor factores atenuativos de carácter geral. Tendo a moldura penal abstracta um limite mínimo de 16 anos, por força da agravação de um terço prevista no art. 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, de resto não posta em causa pelo recorrente, e o limite máximo de 25 anos o que se constata é que a pena concreta foi fixada não muito acima desse limite mínimo o que se crê adequado e equilibrado pois a sua redução, além de não ser justificada ao nível da prevenção especial mormente por qualquer circunstância com destaque ao nível da sua condição social ou outra que pudesse ser tida como factor atenuativo criaria relativamente a factos semelhantes uma aberrante ideia de impunidade. A ponderação vincada dos sobreditos efeitos da prevenção geral negativa ou de intimidação é imperativa na da dissuasão de comportamentos com este nível de violência e com estas desastrosas consequências. Improcede também nesta parte o recurso do arguido. 4.3 - O nº 1 do art. 77º estabelece que o critério específico a usar na fixação da medida da pena única é o da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. Assim, tendo como bússola o programa político-criminal essencial contido no sobredito artigo 40º, nº 1 e no art. 71º, nº 1 o caminho a seguir é o da “fixação” de uma imagem global do facto, como reiteradamente tem vincado a jurisprudência, que dê a medida da sua dimensão no plano da ilicitude e da culpa, mas também do seu pano de fundo, digamos, a personalidade do agente. Tendo ainda como parâmetro imprescindível, também nesta vertente da fixação da pena única, o respeito pela proporcionalidade (em sentido amplo), ou seja, a pena terá de ser aferida e ponderada em função da sua idoneidade, necessidade e proporcionalidade (em sentido estrito) para proteger os bens jurídico-penais lesionados levando aqui em linha de conta a importância desses bens a exigir essa protecção. Tomando em consideração todos os factos praticados analisar-se-á a «gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique»[11]. E incluir-se-á nessa análise a avaliação da personalidade do agente para tanto se ponderando se desse conjunto de factos se pode retirar a conclusão de que ele tem alguma tendência para o crime ou se tudo decorre das circunstâncias concretas que hajam potenciado uma situação de pluriocasionalidade com vista a conferir à pena única um sentido agravante ou, pelo contrário, atenuante. Não é escamoteável, como já foi salientado, que na previsão e punição do crime de homicídio está em causa a protecção do bem jurídico fundamental, a vida, e decerto se não negará que aí se exponenciam as exigências de prevenção geral positiva como natural resposta às já mencionadas expectativas comunitárias, aqui a respeito da protecção do bem jurídico mais valioso. É essa, digamos, a situação extrema a reclamar a intervenção firme do sistema de administração da justiça. Essa intervenção com efeito dissuasor não pode deixar de estender-se à utilização ilegal de armas de fogo cujo efeito criminógeno não é redundante pôr em destaque. Não olvidando os traços de alguma debilidade psicológica que os factos descritos designadamente nos pontos 80, 87 e 88 expressam e que estes em conjugação com as circunstâncias concretas não apontam para que se possa ter como presente alguma tendência para o crime entende-se adequada a pena única imposta, que em termos de proporcionalidade se encontra em linha com a jurisprudência deste Supremo Tribunal. Improcede igualmente este segmento do recurso.
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5. – Em face do que se decide negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida. Pagará o recorrente 5 UC de taxa de justiça. Feito e revisto pelo 1º signatário.
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