Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
283/18.0T8CLD.C1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
Data do Acordão: 05/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA
Sumário :

Não se podem ter como verificados os requisitos da relevância jurídica ou da relevância social, justificativos da amissibilidade da revista excepcional, quando o que resulta da alegação de recurso é a discordância quanto ao seu preenchimento, tendo em conta o resultado da prova definitivamente fixada.

Decisão Texto Integral:

Processo n.o 283/18.0T8CLD.C1.S1


Revista Excepcional


1. AA instaurou uma acção emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo especial, contra Seguradora Unidas, S.A., actualmente Generali Seguros, S.A., e Motalog, S.A., pedindo a sua condenação no pagamento de:


«a) uma pensão anual e vitalícia que vier a ser fixada após a realização do exame médico de junta médica;


b) uma indemnização a título de danos não patrimoniais numa quantia não inferior a € 250.000,00 (...);


c) (uma) pensão anual e vitalícia que vier a ser fixada após realização do exame médico, agravada nos termos do disposto na al. b) do n.o 4 do art.o 18.o da Lei 100/97 de 13/09.


d) (um) subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, a quantificar e a liquidar após ser fixada a incapacidade;


e) uma quantia a título de readaptação e/ou aquisição de um veículo automóvel adaptado às suas necessidades;


f) (um) subsídio por readaptação de habitação, a fixar em sede de liquidação;»


E pediu ainda a condenação das rés a:


«g) providenciar pela manutenção vitalícia, substituições, arranjos, acompanhamento médico e todos os inerentes custos da prótese aplicada ou que venha a ser aplicada ao A.;


h) ) (pagar) juros de mora referentes aos valores pecuniários supra referidos desde a citação até integral pagamento.»


Como fundamento, e em breve síntese, alegou ter sido vítima de um acidente de trabalho causado por violação das regras de segurança no trabalho, por parte da empregadora Motalog, S.A., e a transferência para a seguradora da responsabilidade civil por acidentes de trabalho.


As rés contestaram.


No despacho saneador foi julgada improcedente a ilegitimidade suscitada pela Ré Motalog, S.A.; e a Ré Generali Seguros S.A. foi absolvida do pedido de condenação no pagamento da quantia de € 250.000,00 por danos não patrimoniais.


A sentença veio a julgar a acção parcialmente procedente, nestes termos:


«1. Fixo ao A., AA, a incapacidade permanente parcial de 75% (50% x 1,5), com incapacidade absoluta para o trabalho habitual (IPP com IPATH), desde 23/7/2019.


2. Condeno a R. “Generali Seguros, S.A. " a pagar ao A.:


a) a quantia de € 19.113,29 (dezanove mil, cento e treze Euros e vinte e nove cêntimos), a título de indemnização relativa aos períodos de incapacidade temporárias, encontrando-se por liquidar a quantia de € 151,31 (cento e cinquenta e um Euros e trinta e um cêntimos), sem prejuízo do direito de regresso sobre a R. "Motalog";


b) a pensão anual e vitalícia no valor de € 6.976,89 (seis mil, novecentos e setenta e seis Euros e oitenta e nove cêntimos), desde 23/7/2019, sem prejuízo do direito de regresso sobre a R. "Motalog", a ser paga na proporção de 1/14 até ao 3.odia de cada mês, sendo os subsídios de férias e de Natal, na mesma proporção, pagos em Junho e Novembro; O montante actualizado desta pensão a cargo da R., desde 1/1/2020, é de € 7.025,73 (sete mil, vinte e cinco Euros e sessenta e três cêntimos).


c) o subsídio por elevada incapacidade permanente no valor de € 5.144,32 (cinco mil, cento e quarenta e quatro Euros e trinta e dois cêntimos);


d) a quantia de € 32,00 (trinta e dois Euros), a título de deslocações;


e) a quantia de € 1.000,00 (mil Euros), a título de reembolso pela aquisição de um veículo automóvel;


f) a quantia de € 72,40 (setenta e dois Euros e quarenta cêntimos), a título de reembolso das despesas com consulta e tratamentos;


g) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento;


h) condeno a R. a fornecer ao A. um acessório para colocar no fogão que segure os tachos e as frigideiras e um acessório para a bancada da cozinha que permita segurar alimentos e objectos


i) absolvo a R. do mais peticionado pelo A.


3. Condeno a R. "Motalog S.A.” a pagar ao A.:


a) a quantia de € 11.450,01 (onze mil, quatrocentos e cinquenta Euros e um cêntimos), a título de indemnização relativa aos períodos de incapacidade temporárias;


b) a pensão anual e vitalícia no valor de € 4.601,41 (quatro mil, seiscentos e um Euros e quarenta e um cêntimos), desde 23/7/2019, a ser paga na proporção de 1/14 até ao 3.o dia de cada mês, sendo os subsídios de férias e de Natal, na mesma proporção, pagos em Junho e Novembro; O montante actualizado desta pensão a cargo da R., desde 1/1/2020, é de € 4.633,62 (quatro mil, seiscentos e trinta e três Euros e sessenta e dois cêntimos);


c) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento;


d) a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil Euros), acrescida de juros de mora à taxa anual de 4% desde a prolação da presente sentença e até integral pagamento;


e) absolvo a R. do demais peticionado pelo A


Interposto recurso principal pela empregadora e recurso subordinado pelo Autor, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento a ambos e confirmou a sentença recorrida.


A Ré Motalog interpôs recurso de revista excepcional com fundamento nas alíneas a) e b) do artigo 672o, no1 do Código de Processo Civil.


2. Na sequência de despacho proferido pelo relator no Supremo Tribunal de Justiça, que determinou a convolação “para recurso de revista normal (...) a apreciação das questões (i) da invocada nulidade do Acórdão da relação e (ii) da alegada violação ou errada interpretação e aplicação da lei processual” e a posterior avaliação da “remessa dos auto à Formação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 672.o, n.o 3, do Código de Processo Civil”, quanto à questão do alegado “erro de julgamento por aplicação incorrecta da lei substantiva” por existência de dupla conformidade de decisão das instâncias, veio a ser proferido o acórdão de fls. 899, que negou provimento à revista.


Pelo despacho de fls. 932, foi decidido remeter os autos à Formação prevista no n.o 3 do artigo 672.o do Código de Processo Civil, “junto desta Secção Social”.


Declarado o impedimento do relator nesta Formação, foi determinada a sua substituição pela presente relatora.


3. Das conclusões das alegações de recurso que respeitam ao “erro de julgamento por aplicação incorrecta da lei substantiva” relevam em especial as seguintes, das quais se retira a questão que constitui o objecto da revista excepcional:


«(...) XXV. A partir do trecho do aresto ora impugnado que melhor se encontra transcrito nas pp. 14 e 15 das presentes alegações, este tribunal da Relação comete um conjunto de erros de julgamento, de índole eminentemente jurídica, que influíram decisivamente na sua decisão final. Vejamos:


XXVI. Em primeiro lugar, a partir do normativo colacionado pelo tribunal a quo [art. 16.o n.o 1 do Decreto-Lei n.o 50/2005], o Tribunal da Relação de Coimbra, no seu aresto, entendeu que esta regra de segurança foi inequivocamente violada pela R., porque dos pontos de facto provado 4., 10. e 12. resulta, entre outras coisas, que a máquina que colheu o braço do A. não possuía qualquer mecanismo de proteção que impedisse o contacto com a mão do operador,


XXVII. mas parece ter-se esquecido da segunda parte daquele art. 16.o n.o 1, segundo a qual, caso o equipamento não disponha de protetores que impeçam esse contacto, tem alternativamente (só assim se poderá interpretar o conjuntivo “ou”) de dispor de “dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas”.


XXVIII. Da sentença da 1.a instância apenas resulta demonstrado que “A linha de lavagem onde ocorreu o evento não possuía qualquer mecanismo de protecção que impedisse o contato com a mão do operador” (ponto 12. dos factos provados),


XXIX. mas é completamente omissa quanto à existência/inexistência de um dispositivo que interrompesse o movimento da linha de lavagem antes do acesso às zonas perigosas.


XXX. E a inexistência daquele mecanismo de proteção não permite presumir a inexistência deste dispositivo de interrupção.


XXXI. Na verdade, a partir da prova coligida pela R. é possível até retirar que um tal dispositivo existia, mas o A. não fazia – e, na data do sinistro, não fez – uso dele por razões de conveniência, rapidez e facilitismo.


XXXII. E repare-se que esse dispositivo não tinha sequer de ser automático.


XXXIII. Caso a Relação tivesse dado cumprimento à lei processual, designadamente ao disposto no art. 662.o do CPC, certamente se teria apercebido de toda esta realidade.


XXXIV. Por todas estas razões, afigura-se-nos absolutamente errado considerar que o equipamento sub judice não cumprisse com as exigências legais do art. 16.o n.o 1 do DL 50/2005, normativo este que a Relação acabou por interpretar e aplicar erradamente.


XXXV. Em segundo lugar, o douto tribunal a quo considerou que “o citado art. 16o/1 refere protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas, que não em mecanismos que dificultem ou tornem improvável o acesso; por outro lado, a lei também não estabelece qualquer especificação em matéria de acesso, de modo a poder sustentar- que só os acessos acidentais devem estar impedidos, o mesmo não devendo acontecer com os acessos voluntários”.


XXXVI. Esta sua interpretação extensiva daquilo que diz a lei entra em direta colisão com o entendimento que aquele mesmo Tribunal da Relação de Coimbra havia vertido no seu Acórdão de 24-05-2007 acerca do art. 18.o n.o 1 do DL n.o 82/99 (norma igual ao atual art. 16.o n.o 1 do DL 50/2005).


XXXVII. E o entendimento deste acórdão mais antigo está em plena consonância com o alegado pela R. nas suas alegações de recurso de Apelação e com o que resulta da prova produzida nos autos: não seria possível vedar completamente a tela transportadora sob pena de se impossibilitar a operação de alinhamento/afinação.


XXXVIII. Assim, o simples facto de não estar totalmente vedada a tela transportadora não é suficiente para se concluir que a regra de segurança sub judice foi violada, desde logo porque ela a isso não obriga sequer.


XXXIX. Deste modo, fez o douto tribunal a quo mais uma errada interpretação e aplicação da lei substantiva, mais especificamente do art. 16.o n.o 1 do DL 50/2005.


XL. Em terceiro lugar, considerar, como o fez o douto tribunal da Relação, que o mecanismo deve “impedir toda e qualquer espécie de acesso às zonas perigosas, seja acidental, seja intencional/voluntário” é um completo desvirtuamento do regime da responsabilidade agravada previsto no art. 18.o da NLAT, transformando-o numa subespécie de responsabilidade objetiva (independente de culpa),


XLI. quando é consabido (e unânime na jurisprudência) que aqui se consagra antes uma forma de responsabilidade subjetiva que pressupõe a verificação de todos os requisitos gerais da responsabilização civil (a saber, o facto voluntário e ilícito, a culpa do agente, a produção de danos e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos sofridos).


XLII. Além disso, este inconcebível entendimento do tribunal a quo, a ser admitido, implicará a total desconsideração e derrogação do disposto quanto à culpa do sinistrado no art. 14.o n.o 1, alíneas a) e b), da NLAT.


XLIII. Ora, a responsabilidade agravada do art. 18.o n.o 1 da NLAT pode ter por base dois fundamentos: (1) o comportamento culposo da entidade empregadora ou seu representante; ou (2) a falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho por parte da entidade empregadora.


XLIV. E “a jurisprudência do STJ tem entendido que a ideia de culpa continua subjacente a toda a previsão do referido dispositivo, pois a responsabilidade pelas prestações agravadas nela previstas, em qualquer dos casos, é sempre uma responsabilidade subjectiva da entidade empregadora.” (vide a p. 19 das presentes alegações, onde constam as devidas referências).


XLV. Só se poderá compreender que a Relação tenha tido a necessidade de desvirtuar todo este regime porque da matéria de facto provada não ressalta um único facto que permita denotar a culpa da entidade empregadora, tendo então aquele douto tribunal a necessidade de a presumir.


XLVI. Portanto, também aqui andou mal o douto tribunal a quo, desta vez fazendo uma errada interpretação e aplicação do art. 18.o n.o 1 da NLAT, o que sem dúvida influiu no seu juízo de responsabilização da R. pelo infortúnio em causa, principalmente na determinação da culpa e do nexo de causalidade (como veremos melhor adiante).


XLVII. Em quarto lugar, a Relação considera que as considerações feitas pela R. no seu recurso de Apelação “de nada relevam para os efeitos em análise”.


XLVIII. Sucede, porém, que a factualidade que a R. pretendeu que fosse tida em consideração (e que eventualmente fosse integrada no leque de factos provados/não provados, caso se entendesse necessário) revela-se absolutamente determinante para a decisão de condenação/absolvição, em particular para demonstrar, entre outras coisas: a não verificação dos pressupostos da responsabilidade agravada da R.; a omissão culposa, por parte do A., das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora e previstas na lei; a imprevisibilidade (objetivamente considerada) da eclosão do acidente nas concretas circunstâncias em que o mesmo ocorreu e com as consequências dele decorrentes; e a existência de circunstâncias alheias ao perigo típico, desconhecidas pela R. e para ela imprevisíveis, mas determinantes para a produção do resultado.


XLIX. De facto, daquela factualidade retira-se que é inegável que nunca seria exigível que a entidade empregadora – naquele específico local onde, durante anos, a tarefa da afinação/alinhamento da tela transportadora foi feita diariamente por diversos trabalhadores, sem que tenha ocorrido qualquer sinistro naquela ou nas restantes linhas de lavagem da R. e sem que o plano de lavra ou as avaliações de riscos tenham identificado um qualquer perigo com aquela linha – tivesse previsto a ocorrência do acidente e consequentemente colocado barreiras num equipamento que ali existe desde 1997 e que vinha sem essas barreiras, com excepção de duas barras de ferro em X que se encontram a delimitar o equipamento junto ao local onde existe o parafuso e a porca que é necessário apertar ou desapertar para a tal afinação da tela, barras essas que, impedindo a passagem de um corpo humano para lá desse limite, não impedem, obviamente, o acesso à referida porca e permitem, assim, que o operador se aproxime e introduza a chave inglesa naquele local, não sendo possível vedar por completo o acesso àquele local sob pena de se inviabilizar a operação desafinação/alinhamento.


L. Tudo isto com a agravante de que o A. – em contravenção com as regras legais de segurança sobre as quais recebeu formação profissional e com as ordens e instruções que recebeu da sua entidade empregadora – optou espontânea e culposamente por efetuar a tarefa do alinhamento/afinação da tela transportadora com o equipamento em funcionamento.


LI. A Relação considera irrelevante todo o acabado de alegar porque simplesmente já o havia desconsiderado a priori, tendo feito a avaliação do nexo de causalidade (nas pp. 21 e 22 do seu acórdão) exclusivamente com base no elenco da matéria de facto da sentença.


LII. Não se aceita como lícita esta postura do douto Tribunal da Relação de Coimbra, que escolhe seletiva e discriminadamente a factualidade com que quer fundamentar a sua decisão, afastando as demais circunstâncias concretas que inegavelmente resultam da prova produzida nos autos (ainda que não estejam contidas na matéria de facto assente).


LIII. E o seu argumento de que determinada matéria “não tem suporte na factualidade provada” para a desconsiderar é completamente descabida.


LIV. É que, se um facto considerado essencial resulta claramente da prova e não consta da matéria assente na sentença, incumbe à Relação fazê-la constar ali (como já vimos supra);


LV. se não se trata de factualidade essencial, então, desde que resulte da prova produzida, deve o tribunal a quo tê-la em consideração na avaliação dos pressupostos da responsabilidade agravada da R., na aquilatação da violação culposa de regras de segurança por parte do A., no juízo da imprevisibilidade do perigo típico que a norma alegadamente violada pretende acautelar e na identificação de circunstâncias contemporâneas que não integram o modelo do tipo mas que influíram na produção do sinistro e suas consequências.


LVI. O que esta posição da Relação acaba por originar é a responsabilização da R. sem se verificar qualquer tipo de culpa (o que, como vimos já supra, não corresponde à responsabilidade subjetiva consagrada pela lei),


LVII. onde a empresa, derradeiramente, se vê punida por ter confiado, de boa-fé, que o A., seu trabalhador, cumpriria diligentemente com os seus deveres laborais, em especial com os consignados nas alíneas d), e) e j) do n.o 1 do art. 128.o do Código do Trabalho,


LVIII. e onde acaba por ser encorajada a fiscalizar permanentemente o trabalho dos seus trabalhadores, a fim de verificar que estão a obedecer às regras de segurança impostas pela lei ou pela própria entidade empregadora, regras estas que eles bem conhecem e não podem desconhecer.


LIX. Não nos parece ser este o espírito da lei.


LX. “Na verdade, estando o trabalhador obrigado a cumprir as prescrições de segurança estabelecidas nas disposições legais (art. 15. o, n.o 1, al. a), do DL n.o 441/91) e tendo ele ao seu dispor os meios de protecção adequados, não faz sentido que o seu uso efectivo fique dependente de instruções concretas do empregador nesse sentido. Fazer recair sobre o empregador a obrigação de permanentemente fiscalizar a actividade dos trabalhadores no sentido de assegurar o cumprimento por partes destes das regras de segurança é ir longe de mais. Tal exigência, para além de descabida, seria impraticável. O trabalhador, de motu propriu, tem de cumprir não só as regras de segurança prescritas na lei, mas também as instruções que nesse sentido lhe foram dadas pela entidade empregadora.” (Ac. do STJ de 22-06-2005, proc. n.o 05S780, in www.dgsi.pt).


LXI. Assim, a Relação perpetrou uma interpretação e aplicação errada da lei substantiva, particularmente do art. 14.o n.o 1, alíneas a) e b), e do art. 18.o n.o 1 da NLAT, e, como já havíamos visto supra, violou a lei de processo, em especial o art. 662.o n.o 1 e 2 do CPC.


LXII. Pelo exposto, impõe-se a revogação do acórdão do douto Tribunal da Relação de Coimbra e a aplicação correta do direito para restabelecer a integridade da ordem jurídica.


LXIII. Por fim, no que respeita às razões pelas quais a apreciação das questões suscitadas é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e pelas quais os interesses em causa são de particular relevância social nos termos do art. 672.o n.o 1, alíneas a) e b), cumpre remeter para o que foi dito nas pp. 24 a 30 das presentes alegações, o que se dá por integralmente reproduzido nas presentes conclusões para os devidos efeitos legais.”.


4. O desenvolvimento das razões pelas quais a recorrente considera que as questões que justificariam a admissão da revista excepcional – das quais apenas se mantém a que respeita ao alegado erro de julgamento por violação de lei substantiva – consta, como a própria recorrente afirma, das págs. 24 a 30 das alegações de recurso.


Lidas atentamente as referidas páginas 24 a 30, verificamos que a recorrente liga o referido erro à nulidade do acórdão recorrido e à invocada violação de lei de processo, vícios cuja ocorrência foi afastada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 899. “Os restantes fundamentos do presente recurso de Revista”, escreve a recorrente a fls. 28 das alegações, “incidem essencialmente sobre os erros de julgamento, de natureza eminentemente jurídica, perpetrados pelo tribunal a quo na leitura, interpretação e aplicação das normas legais substantivas (...), erros estes que não podem ser analisados indissociavelmente do supramencionado comportamento omissivo da Relação nos presentes autos.”


Todas as alegações de recurso, aliás, assentam na ideia de que o julgamento de direito resultou de omissão de pronúncia do acórdão recorrido e de não uso ou mau uso, pela Relação, dos poderes de controlo da matéria de facto previstos no artigo 662.o do Código de Processo Civil. Recorde-se a conclusão XLVIII e segs., em particular as conclusões XLVIII a LII, atrás transcritas.


Todavia, a recorrente alega ainda erros de direito relativos à interpretação e aplicação, à luz da matéria de facto provada, do disposto nos artigos 16.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 50/2015, de 25 de Fevereiro (em síntese, quanto a saber se o equipamento em causa nos autos cumpria ou não as exigências definidas neste preceito), 14.o, n.o 1, a e b) e 18.o, n.o 1, da Lei n.o 98/2009, de 4 de Setembro (culpa do sinistrado e responsabilidade agravada do empregador).


5. Recorre-se à síntese efectuada no acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Fevereiro de 2023, www.dgsi.pt, proc.n.o 474/21.6/8TMTS.P2.S2 para recordar qual tem sido o entendimento do que sejam questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” (al. a) do n.o 1 do artigo 672.o do Código de Processo Civil):


«10. Nos termos e para os efeitos do art. 672.o, n.o 1, a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:


– “Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.o 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.a Secção).


– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.o 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.o 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.o 5837/19.4T8GMR.G1.S2).


– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.o 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).


– “Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.o 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).


– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).


– “Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).


Não se pode ter como verificado este requisito de admissibilidade de revista excepcional no caso concreto. Embora esteja em causa um acidente indiscutivelmente grave e a recorrente alegue errada interpretação de preceitos centrais para a caracterização/descaracterização de acidentes de trabalho ou da responsabilidade agravada do empregador, na realidade, o que resulta da sua alegação de recurso é a discordância quanto ao preenchimento dos requisitos exigidos pelos preceitos legais já indicados, tendo em conta o resultado da prova que vem fixada.


6. Como em breve resumo se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2022, www.dgsi.pt, proc.o n.o 423/20.9TBBRR.L2.S2, para determinar se estão em causa “interesses de particular relevância social” (al. b)do n.o 1 do citado artigo 672.o do Código de Processo Civil), “deverá apelar-se à generalizada repercussão e ao invulgar impacto que a controvérsia acarreta para o tecido social, pondo em causa a eficácia do direito e minando a sua credibilidade, de modo a motivar a atenção de relevantes camadas de população e a extravasar, de forma inequívoca, os meros interesses particulares das partes ou o inerente objeto do processo”.


Também aqui se verifica, bem vistas as coisas, que o que a alegação da recorrente mais uma vez revela é a discordância no que respeita à verificação dos requisitos exigidos pelos preceitos legais referidos, tomando em consideração o resultado da prova.


Não pode assim dizer-se que estejam em causa interesses que, inequivocamente, “extravasem os interesses particulares das partes”, como se tem entendido na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que tratou de concretizar o conceito indeterminado da “particular relevância social” – cfr., a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Março de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.o 1400/13.ITTPRT.P1.S1 («Os interesses de particular relevância social respeitam a aspectos fulcrais da vivência comunitária, susceptíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos colectivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação»), de 15 de Dezembro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.o 4714/20.T8FNC-A.L1.S1 («O requisito da al. b) do n.o 1 do artigo 672.o do Código de Processo Civil tem ínsita a aplicação de preceito ou instituto a que os factos sejam subsumidos e que possa interferir com a tranquilidade, a segurança ou a paz social, em termos de haver a possibilidade de descredibilizar as instituições ou a aplicação do direito»), ou de 17 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n. 28602/15.3T8LSB.L2.S2 («A recorrente no que concerne ao fundamento da relevância social sustenta que a eventual procedência da presente ação terá um impacto muito negativo, não só para os trabalhadores e colaboradores da Ré como para toda a comunidade por si apoiada, podendo mesmo levar à sua extinção e ao encerramento dos estabelecimentos de ensino administrados pela Ré. (...) As razões indicadas pela recorrente no que se refere aos alegados interesses de particular relevância social não se sobrepõem ao caso concreto, pois o que invoca é o impacto negativo da condenação no seu património»).


7. Nestes termos, não se admite o recurso de revista excepcional.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 24 de Maio de 2023


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)


Mário Belo Morgado


Júlio Gomes