Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A014
Nº Convencional: JSTJ00037124
Relator: AFONSO DE MELO
Descritores: CASAMENTO
SEPARAÇÃO DE FACTO
REGIME DE COMUNHÃO GERAL DE BENS
IMUTABILIDADE
RENÚNCIA
Nº do Documento: SJ199905250000141
Data do Acordão: 05/25/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 201/98
Data: 03/12/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT / DIR FAM.
Legislação Nacional: CNOT60 ARTIGO 89 A.
CCIV66 ARTIGO 294 ARTIGO 714 N1.
Sumário : I- Nada obsta, em princípio, à validade da renúncia genérica, por cônjuges separados de facto e operada por simples documento particular, relativamente a bens futuros, como seja a renúncia à contitularidade automática resultante do regime da comunhão geral, pois que a mesma não entenderia com direitos reais em concreto sempre sujeitos às formalidades do artigo 89 alínea a) do Código do Notariado.
II- Só que tal renúncia sempre será nula - artigo 294 do CCIV - por implicar a alteração do regime de bens do casamento em violação da norma imperativa do n. 1 do artigo 714 do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
A e B celebraram em 23 de Novembro de 1983, no Condado de Santa Clara, E.U.A., o acordo documentado a fls. 8 e seg. no qual consta, além do mais - 12 - "Acordamos em que todos os bens adquiridos por qualquer de nós depois da data da nossa última separação como acima vem indicado (24 de Outubro de 1983), foram aplicados em exclusivo benefício do adquirente, e cada um de nós renúncia e prescinde de todos os direitos sobre todos os bens subsequentemente adquiridos pelo outro".
Em 16 de Julho de 1987, por escritura pública, a A comprou pelo preço de 4000000 escudos, a fracção autónoma letra Z, que constitui o 5. andar do prédio em regime de propriedade horizontal designado por lote 46, em...
Por sentença de 22 de Maio de 1993, transitada em julgado em 7 de Junho de 1993, foi decretado o divórcio, por mútuo consentimento, entre A e B.
Este requereu inventário para a partilha dos bens, pendente no Tribunal Judicial de Oeiras.
Em 9 de Janeiro de 1996, A demandou judicialmente no Tribunal de Círculo de Oeiras, B, pedindo que:
a) Se declare que a referida fracção autónoma foi adquirida pela Autora posteriormente ao decretamento do divórcio das partes proferido pelo Tribunal de Santa Clara do Estado da Califórnia e ao decretamento do divórcio pelo Tribunal Português.
b) Se declare ter sido o referido acordo escrito no âmbito do processo de divórcio requerido no Tribunal de Santa Clara da Califórnia, pelo qual o Réu renunciou válida e antecipadamente aos direitos que porventura lhe ficassem a pertencer em aquisições de bens, móveis e imóveis, que a Autora viesse a efectuar a partir da última separação de facto em 24 de Outubro de 1983.
c) Se declare que, mercê da referida renúncia, a Autora fique dispensada de pagar quaisquer tornas ao Réu no âmbito do processo de inventário do 2. Juízo Cível da Comarca de Oeiras, se nele a Autora vier a licitar no referido andar, que constitui a verba n. 2 daquele inventário.
O Réu contestou.
No despacho saneador o Mmo. Juiz julgou a acção improcedente, absolvendo o Réu dos pedidos, com o fundamento de que o acordo violou o princípio da imutabilidade da convenção antenupcial, contra o disposto no artigo 1715 do CCIV.
A Relação:
a) Anulou a sentença, invocando o n. 3 do artigo 712 do CPC, por não indicar os factos em que assentou a decisão.
b) Considerou que a acção teria sempre de ser julgada no despacho saneador (artigo 510, n. 1, alínea b), do CPC) e, aplicando o artigo 715 do mesmo Código, conheceu do objecto do recurso julgando-o improcedente com fundamento de que não é formalmente válido o acordo estabelecido entre a Autora e o Réu.
Nesta revista a Autora pede a revogação do acórdão recorrido e da sentença da 1. instância, pois:
a) O acórdão violou os artigos 1714 e 1715, do CCIV, e o artigo 712, n. 4, do CPC.
b) A "mens legislatoris" do artigo 1714 do CCIV só pode ser a tutela dos direitos e interesses de terceiros que negoceiem com os cônjuges e não os direitos e interesses destes, que não estão feridos de "capitis diminutio" para negociar antecipadamente as suas relações patrimoniais no futuro post-divórcio.
c) O acordo que celebraram é válido em relação a bens futuros desde que estes sejam determináveis, o que acontece "in casu".
d) O acordo patrimonial de 23 de Janeiro de 1983, porque se refere a bens futuros, constitui um contrato-promessa de partilha "dos direitos a partes indivisas do direito à meação sobre tais bens que, adquiridos após a separação de facto, continuaram a ser bens comuns".
e) O acordo consubstancia renúncia dos cônjuges a bens futuros e é válido quanto à forma, por ter sido, celebrado no âmbito de um processo
jurisdicional, nos Estados Unidos, excluindo assim a aplicação do artigo 89, alínea a), do Código do Notariado.
f) A base factual existente nos autos é suficiente para a prolação de uma decisão de mérito.
O Réu sustentou a improcedência do recurso pois, ou deve ser mantido o acórdão ou, se revogado, deve ser proferida decisão considerando o acordo inválido nos termos decididos na 1. instância.
1) No saneador-sentença o Mmo. Juiz não discriminou os factos que considerou provados, como determina o n. 2 do artigo 659 do CPC, dando causa à nulidade prevista na alínea b), do n. 1 do artigo 668 do mesmo Código.
Totalmente alheio à nulidade de que a Relação conheceu é o n. 3 do artigo 712 do CPC.
A arguição pelo recorrente da violação do n. 4 deste artigo, que corresponde ao n. 2 anterior, não é feliz pois a decisão foi proferida na 1. instância findos os articulados e a recorrente sustenta que a base factual existente nos autos permite decidir de mérito.
2) O pedido formulado pela Autora foi o declaração de validade da renúncia antecipada pelo Réu aos direitos que lhe viessem a pertencer nas aquisições efectuadas pela mulher, a partir da separação de facto entre ambos iniciada em 24 de Outubro de 1983.
Considerou a Relação:
Autora e Réu divorciaram-se amigavelmente no Tribunal de Santa Clara, Califórnia, E.U.A.
Não consta dos autos certidão comprovativa da revisão da sentença americana.
No âmbito do respectivo processo de divórcio, a Autora e o Réu subscreveram em 23 de Novembro de 1983 o acordo documentado a fls. 8 e seg.
Este acordo não configura uma promessa de partilha dos bens comuns dos cônjuges.
Visando eventuais aquisições patrimoniais feitas por cada um dos cônjuges, contém uma renúncia a direitos reais nula por não revestir a forma de escritura pública - artigo 89, alínea a) do Código do Notariado.
Consta do acordo:
Autora e Réu, casados desde 25 de Janeiro de 1958, separaram-se em 24 de Outubro de 1983.
Devido a desentendimentos surgidos, acordaram em permanecer e viver separados.
Foi intentada pela Autora a acção de dissolução do casamento no Tribunal do Condado de Santa Clara.
O objectivo do acordo é o de estabelecer uma completa regulamentação dos direitos e obrigações mútuos.
A comunhão e quase-comunhão patrimonial, incluindo direitos reais
e obrigacionais, foi equitativamente dividida antes e como antecipação do acordo.
Assim, a esposa transferiu para o marido, como direito próprio deste, todos os direitos de que era titular sobre o imóvel sito em San José, Califórnia, recebendo em contrapartida 8500 dólares americanos.
O marido assumiu a responsabilidade pelos pagamentos dos ónus hipotecários que incidem sobre o imóvel.
Todos os bens adquiridos por qualquer dos cônjuges depois da separação ocorrida em 24 de Outubro de 1983 foram aplicados em exclusivo benefício do adquirente, e cada um dos cônjuges renuncia e prescinde de todos os direitos sobre todos os bens subsequentemente adquiridos pelo outro.
O acordo será submetido ao tribunal para efeitos de incorporação e integração no processo de dissolução do casamento, tornando-se efectivo em 23 de Novembro de 1983.
O contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal, celebrado pelos cônjuges tendo em vista o seu divórcio ou separação judicial, deixa intocado o estatuto que define o regime de bens do casamento, pois envolve apenas a promessa de imputar os bens comuns concretos na meação de cada um dos cônjuges. (1)
"In casu", o acordo incidiu sobre o regime de bens do casamento, regulando o estatuto dos bens adquiridos por cada um dos cônjuges durante a sua separação, considerada irremediável, e procedendo à divisão de bens comuns.
Não se trata assim de mero contrato-promessa de partilha.
A Relação, ao julgar nula por falta de forma legal a renúncia contida no acordo, terá eventualmente entendido que era aplicável a 2. parte do n. 1 do artigo 36 do CCIV.
Acontece que, ao contrário do que parece pressupor, não houve uma renúncia concreta a direitos reais, especificadamente à propriedade da fracção autónoma comprada pela Autora.
O que houve, sim, foi uma renúncia genérica a direitos futuros (2) - renúncia do Réu à contitularidade automática, por força do regime matrimonial de comunhão de bens, de todos os móveis ou imóveis que a Autora viesse a adquirir até ao divórcio de ambos.
Não se punha assim a questão da necessidade de escritura pública nos termos do artigo 89, alínea a) do Código do Notariado.
É porém uma renúncia nula - artigo 294 do CCIV -, porque contra o disposto no artigo 714, n. 1, do mesmo Código (norma imperativa), altera o regime de bens do casamento, atribuindo em propriedade exclusiva à Autora bens que devem ser comuns.
Ao contrário do que a recorrente diz, a imutabilidade das convenções antenupciais ponderou não apenas os interesses de terceiros como ainda os riscos de ascendência de um cônjuge sobre o outro.
Neste termos e com este fundamento, negam a revista.
Custas pelo recorrente.

(1) Assim, Guilherme de Oliveira, R.L.J., 129 p. 281.
(2) Sobre esta renúncia, cfr. F.M.B. Pereira Coelho, A Renúncia Abdicativa no Direito Civil, p. 142 e seg.

Lisboa, 25 de Maio de 1999.
Afonso de Melo,
Fernandes Magalhães,
Pinto Monteiro.