Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
143378/15.0YIPRT.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
LUGAR DO CUMPRIMENTO
TRIBUNAL COMPETENTE
CONVENÇÃO DE BRUXELAS
REGULAMENTO (CE) 44/2001
REGULAMENTO 1215/2012
DIREITO COMUNITÁRIO
UNIÃO EUROPEIA
RECURSO DE REVISTA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – TRIBUNAL / GARANTIAS DA COMPETÊNCIA / INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO EUROPEU - DECISÕES DOS ESTADOS MEMBROS EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 96.º, ALÍNEA A), 99.º, N.º 1, 638.º, N.º 1, 673.º E 677.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO DE BRUXELAS DE 27 DE SETEMBRO DE 1968: - ARTIGO 18.º.
CONVENÇÃO DE LUGANO DE 30 DE OUTUBRO DE 2007.
REGULAMENTO (CE) N.º 1215/2012, DE 12-12-2012: - ARTIGOS 7.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 26.º.
REGULAMENTO (CE) N.º 44/2001, DE 16-01-2001: - ARTIGOS 5.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 24.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 10-05-2007, PROCESSO N.º 07B072, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-10-2009, PROCESSO N.º 1067/07.6TBBNB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-09-2016, PROCESSO N.º 2561/14.8T8BG.1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-09-2017, PROCESSO N.º 53/14.4T8CBR-D.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
Jurisprudência Internacional:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):

- DE 14-07-1983, PROCESSO C-201/82, GERLING KONZERN SPEZIALE KREDITVERSICHERUNGS-AV E OUTROS CONTRA AMMINISTRAZIONE DEL TESORO DELLO STATO;
- DE 03-05-2007, PROCESSO C-386/05, COLOR DRACK GMBH CONTRA LEXX INTERNATIONAL VERTRIEBS GMBH;
- DE 23-04-2009, PROCESSO C-533/07, FALCO PRIVATSTIFTUNG, THOMAS RABITSCH CONTRA GISELA WELLER-LINDHORST;
- DE 25-02-2010, PROCESSO C-381/08, CAR TRIM GMBH CONTRA JEYSAFETY SYSTEMS SRL;
- DE 11-03-2010, PROCESSO 19/09, WOOD FLOOR SOLUTIONS ANDREAS DOMBERG GMBH CONTRA SILVA TRADE, SA;
- DE 05-12-2013, VAPENIK, C‑508/12, EU:C:2013:790,
- DE 16-06-2016, PROCESSO C‑511/14, PEBROS SERVIZI SRL CONTRA ASTON MARTIN LAGONDA LTD..
Sumário :
I - O prazo de interposição de recurso do acórdão da Relação que, julgando totalmente o recurso de apelação, aprecia a questão da competência internacional dos tribunais portugueses é de 30 dias (art. 638.º, n.º 1, do CPC), não sendo aplicável o art. 673.º do CPC pois este apenas se aplica a recursos de revista interpostos de “acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação”, isto é, a recursos interpostos de decisões interlocutórias proferidas pela Relação no âmbito da apreciação do recurso de apelação¸ caso em que o prazo para a interposição de recurso é de 15 dias (art. 677.º do CPC).

II - Já desde a Convenção de Bruxelas de 1968 que a jurisprudência europeia tem entendido que o art. 18.º da Convenção, ao qual correspondem os arts. 24.º do Regulamento n.º 44/2001 e 26.º do Regulamento n.º 1215/2012, “tem de ser entendido no sentido de que permite ao réu não contestar apenas a jurisdição mas também, em alternativa, apresentar defesa relativa à substância da causa, sem perder o direito de suscitar a excepção de incompetência”.

III - O fundamento desta interpretação é o de que há leis nacionais que atribuem consequências desfavoráveis à omissão de outra defesa, quando o réu invoca apenas a incompetência internacional no tribunal em que foi demandado e essa defesa improcede; com outra interpretação, lesar-se-ia o direito de defesa, forçando o réu – que, apesar das preocupações de segurança jurídica do Regulamento, não pode antecipar o sentido da decisão do tribunal – ou a optar por defender-se de fundo, perdendo o direito de invocar a incompetência, ou a escolher suscitar a incompetência, com os riscos inerentes.

IV - O Regulamento n.º 1215/2012, tal como o Regulamento n.º 44/2001, adoptou um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço) e relevantes para fundamentar uma conexão do contrato com um lugar que, por um lado, seja suficientemente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado (cfr. considerando 16 do Regulamento n.º 1215/2012) e, por outro lado e por isso mesmo, suficientemente segura para permitir determinar com certeza qual é o Estado cujos tribunais são competentes para julgar qualquer pretensão resultante do mesmo contrato.

V - A interpretação autónoma da al. b) do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento n.º 1215/2012, tal como se entendia à luz de idêntico preceito constante do art. 5.º, n.º 1, al. b), do Regulamento n.º 44/2001, com a finalidade de identificar a obrigação característica dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, deve fazer-se “à luz da génese, dos objectivos e da sistemática do regulamento”.

VI - Ambos os Regulamentos se afastaram do regime definido pela Convenção de Bruxelas de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, ao tomar como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na acção, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual”.

VII - O TJUE já foi confrontado por mais de uma vez com a necessidade de encontrar critérios de qualificação, nomeadamente para situações nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens, como sucede no caso dos autos.

VIII - Estando em causa nos autos contratos que têm como objecto a venda de bens a produzir ou fabricar pelo vendedor, segundo modelos ou protótipos, definidos pela ré, que os encomendou à autora para vender a terceiros, a entregar em Espanha, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente acção pois, quer o domicílio (sede) da ré, quer o local de cumprimento relevante – lugar da entrega dos bens – se situam em Espanha, (n.º 1 do art. 4.º, no n.º 1 do art. 5.º e na al. b), segundo travessão, do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento n.º 1215/2012).

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 



1. AA apresentou no Balcão Nacional de Injunções um requerimento no qual pediu que BB, S. L. lhe pagasse a quantia de € 24.135,92 (incluindo capital e juros de mora vencidos), com juros vincendos, correspondente ao saldo apurado na conta-corrente que manteve com a requerida, à qual forneceu, “por [sua] incumbência”, “diversos artigos do seu (…) comércio” de “artigos de vestuário, acessórios de moda, têxteis e de matérias primas para a indústria têxtil”.

A requerida deduziu oposição e reconvenção. Em primeiro lugar, suscitou a incompetência dos tribunais portugueses para conhecer da acção, uma vez que tinha a sua sede em Espanha. Reconheceu que “manteve” com a requerente “colaboração que consistiu no fabrico de artigos de vestuário no âmbito de encomendas previamente negociadas e acordadas”, no exercício da sua actividade de angariação de clientes e de colocação do “fabrico dos produtos que vende em várias empresas”, mas que a requerente não cumpriu devidamente, causando-lhe prejuízos. Invocou ilegitimidade da requerente, por ter cedido o crédito a terceiros, e deduziu ainda um pedido reconvencional, opondo a compensação com um crédito indemnizatório de € 5.5000,00 (melhor substanciado a fls. 45, v., em resposta ao despacho de fls. 44).

Pelo despacho de fls. 32 foi determinado que se passasse a seguir a forma de processo comum.

Em resposta às excepções suscitadas na oposição, e apenas no que respeita à questão da competência, a autora sustentou a competência dos tribunais portugueses, “segundo o princípio da coincidência”.

A acção terminou com a absolvição da ré da instância, por incompetência internacional dos tribunais portugueses.

Para assim decidir, o tribunal entendeu que, tendo em conta a data dos fornecimentos, era aplicável à determinação da competência internacional o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000; e que, no caso, “quer pela regra geral de competência prevista no art.2º, quer pela regra de competência especial prevista no artigo 5º, nº 1, b), deveria a R. ser demandada perante os tribunais espanhóis”, pois a sede da ré era em Espanha e foi também em Espanha que “os bens foram ou [deviam] ser entregues”.

Mas esta decisão foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de … de fls. 87. Apreciando apenas a questão da competência internacional, a Relação julgou competentes os tribunais portugueses, por estar em causa um contrato de empreitada e não de compra e venda, e, portanto, dever a acção ser instaurada no tribunal do Estado onde “os serviços foram ou [deveriam] ser prestados”, de acordo com o disposto na 2ª parte da al. b) do artigo 7º do Regulamento (UE) do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, considerado aplicável ao caso por se tratar de acção proposta após 10 de Janeiro de 2015 (nº 1 do artigo 66º do Regulamento).

Para concluir tratar-se de um contrato de empreitada e, portanto, de um contrato de prestação de serviços, a Relação socorreu-se dos dados constantes do processo (“os dados disponíveis não são especialmente abundantes”), nestes termos:

«A A. instaurou este pleito, alegando, como vimos, que no exercício da sua actividade social, forneceu à Ré, por incumbência desta, diversos artigos, cujo preço correspondente ainda não lhe foi pago. E, nessa medida, pede tal pagamento.

A Ré, no entanto, em sede de contestação, ajuda-nos a interpretar o sentido daquele fornecimento. Assim, diz que é uma empresa que agencia clientes em Espanha e no estrangeiro (Amarras, Makarthy e Pull), e, nesse âmbito, atribui o fabrico dos produtos que vende a esses clientes, a várias empresas, entre as quais a A.

Foi nesse contexto que a A. colaborou consigo no fabrico de artigos de vestuário, no âmbito de encomendas previamente negociadas e acordadas entre ambas, embora a mesma não tenha cumprido pontualmente todas as obrigações a que se vinculou (artigos 4.º e 6.º da contestação).

Ora, a A., na resposta, vem a confirmar, justamente, este tipo de relacionamento contratual (artigo 10.º da resposta).

Assim, não obstante as dificuldades já assinaladas quanto à diferenciação dos tipos contratuais em apreço [compra e venda e empreitada], cremos, perante os dados já disponíveis, que se pode concluir, para já, que entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada e não de compra e venda. E isto, sobretudo, porque, à luz desses dados, os produtos fabricados pela A. não foram produzidos por iniciativa dela, mas, foram-lhe encomendados pela Ré para satisfazer protótipos alheios, que se presumem ser do agrado dos clientes da mesma, também conhecidos, no contrato de agência, como principais.

Daí que se conclua que a A. estava adstrita a esse resultado e, como tal, se tenha vinculado a um contrato de empreitada.

Ora, para apreciação dos litígios emergentes deste tipo de contratos, são competentes, como vimos, os tribunais do Estado onde se situa o local em que o serviço foi prestado; ou seja, neste caso, o local do fabrico, que, todas as partes o aceitam, foi Portugal».

2. A ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou formulou as seguintes conclusões:


«I. No douto acórdão recorrido pode ler-se, e de forma bem entendível que " Tudo se resume, pois, a saber, em primeiro lugar, que tipo de contrato foi celebrado entre as partes: se um contrato de compra e venda ou um contrato de prestação de serviços."

II. Auxiliando-se na descrição de facto efectuada pelas partes o tribunal a quo conclui que a recorrida estaria adstrita a um determinado resultado e, em consequência, concluiu que o contrato celebrado entre as partes corresponde a um contrato de prestação de serviços.

III. Sucede porém, salvo melhor opinião, que mal andou o tribunal a quo ao considerar que "Ora, para apreciação dos litígios emergentes deste tipo de contratos, são competentes, como vimos, os tribunais do Estado onde se situa o local em que o serviço foi prestado; ou seja, neste caso, o local de fabrico, que, todas as partes o aceitam, foi Portugal"

IV. O artigo 7.°, n.°1, alínea b) do Regulamento n.°1215/2012 refere que, para efeitos do mencionado regulamento, salvo disposição em contrário, o lugar do cumprimento da obrigação será, no caso das prestações de serviço, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.

V. Conquanto, e a par do que sucedeu já em sede de contestação, também nas alegações de recurso para o douto Tribunal da Relação de …, a ora recorrente alegou que as peças fabricadas pela recorrida deveriam ser por esta entregues no prazo acordado quer na sede da recorrente, quer na sede dos seus clientes, ou seja, sempre em território espanhol.

VI. Com efeito, mal andou o tribunal a quo, quando considerou que o estado membro onde o serviço foi prestado foi em Portugal, referindo-se única e exclusivamente ao fabrico das peças de vestuário.

VII. Salvo melhor entendimento, o contrato, a ser de prestação de serviços, apenas se encontra definitivamente cumprido com a entrega das peças de vestuário, pela recorrida, na sede da ora recorrente ou na sede dos clientes desta, ou seja, em Espanha.

VIII. Pelo que, a entrega das peças confeccionadas era, a par do fabrico, também uma incumbência contratual que recaía sobre a aqui recorrida.

IX. Ora, se é certo que as peças eram fabricadas em Portugal,

X. Também é certo que o contrato apenas se encontraria definitivamente cumprido com a entrega das mesmas em Espanha.

XI. Com efeito, veja-se que todas as facturas emitidas pelas aqui recorridas, e que traduzem os serviços prestados, juntas aos autos em fls…., mencionam sempre como local de destino das mercadorias sede da ré ou a sede dos clientes da ré, mas sempre em território espanhol!

(…) XVI. Com efeito, atento o facto de o contrato em causa apenas se encontrar definitivamente cumprido com a entrega das peças de vestuário pela recorrida em território espanhol, dever, obviamente, determinar a competência dos tribunais espanhóis para julgar a presente acção.»


A autora contra-alegou, sustentando a intempestividade do recurso, cujo prazo de interposição era de 15 e não de 30 dias, por se tratar de recurso interposto de decisão interlocutória, não final: “ a decisão do Tribunal da Relação de … não é uma decisão que põe termo ao processo, mas uma decisão interlocutória e, por isso, o prazo do recurso de revista das decisões interlocutórias é de 15 dias – artigo 673º do CPC, aplicável ex vi do artigo 677º e 638º do CPC".

A não se entender assim, diz ainda a autora, o recurso deve improceder, quer por se tratar de um contrato de empreitada – e, portanto, de prestação de serviços –, devendo as peças encomendadas ser fabricadas em Portugal, quer porque a competência dos tribunais portugueses sempre resultaria do disposto no artigo 26º do Regulamento (UE) nº 1215/2012.

3. Como a única questão a tratar deste recurso é a da competência internacional dos tribunais portugueses, os factos disponíveis constam do relatório.

Cumpre todavia começar por apreciar a questão prévia da intempestividade do recurso, suscitada pela recorrida; e dizer, antes de mais, que, não obstante o valor da causa, o recurso é admissível nos termos do disposto na al. a) do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil, pois tem como fundamento a “violação das regras de competência internacional”.

O recurso foi tempestivamente interposto. O artigo 673º do Código de Processo Civil apenas se aplica a recursos de revista interpostos de “acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação”, isto é, a recursos interpostos de decisões interlocutórias proferidas pela Relação no âmbito da apreciação do recurso de apelação, o que não é o caso: o acórdão recorrido julgou totalmente o recurso de apelação interposto. Vale, portanto, a regra geral dos 30 dias (nº 1 do artigo 638º do Código de Processo Civil).

4. O presente recurso respeita a um litígio ao qual, pela matéria (artigo 1º), pela conexão com o espaço da União Europeia (a ré é domiciliada num Estado membro, Espanha, cfr. artigos 4º e 63º) e pela data do início da acção (19 de Outubro de 2015, data da entrega do requerimento de injunção, nº 1 do artigo 66º) é aplicável o Regulamento (UE) nº 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012.

Não existindo qualquer controvérsia quanto a tratar-se de matéria contratual, tomar-se-á como assente que lhe é aplicável o nº 1 do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2012, ou seja, que, tendo a ré domicílio num Estado membro, a acção tanto poderia ter sido proposta nesse Estado (Espanha), como no “tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, definida pelas als. a), b) e c) do nº 1 do citado artigo 7º.

É neste ponto que se situa a controvérsia: saber se, para determinar qual é o “lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, releva o local da entrega dos bens (Espanha) ou do respectivo fabrico (Portugal).

Ora o Regulamento nº 1215/2002, tal como o Regulamento nº 44/2001, adoptou um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço) e relevantes para fundamentar uma conexão do contrato com um lugar que, por um lado, seja suficientemente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado (cfr. considerando 16 do Regulamento nº 1215/2002) e, por outro lado e por isso mesmo, suficientemente segura para permitir determinar com certeza qual é o Estado cujos tribunais são competentes para julgar qualquer pretensão resultante do mesmo contrato (cfr. acórdãos do Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 2007, proc. C-386/05, caso Color Drack GmbH contra Lexx International Vertriebs GmbH, pontos18-26, de 25 de Fevereiro de 2010, proc. C-381/08, caso Car Trim GmbH contra JeySafety Systems Srl, pontos 30-32, ou de 11 de Março de 2010, proc. 19/09, caso Wood Floor Solutions Andreas Domberg GmbH contra Silva Trade, SA, pontos 22-23, todos eles respeitantes ao nº 1 do artigo 5º do Regulamento nº 44/2001, mas inteiramente transponíveis para a interpretação do nº 1 do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2002).

A interpretação autónoma da al. b) do nº 1 do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2002, tal como se entendia à luz de idêntico preceito constante do artigo 5º, nº 1, b), do Regulamento nº 44/2001, com a finalidade de identificar a obrigação característica dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, deve então fazer-se “à luz da génese, dos objectivos e da sistemática do regulamento” (acórdão Falco Privatstiftung e jurisprudência nele citada, ponto 20).

Na verdade, como todos sabemos e foi mais uma vez recordado, por exemplo, no acórdão de 16 de Junho de 2016 do Tribunal de justiça da União Europeia, processo, C‑511/14, Pebros Servizi srl contra Aston Martin Lagonda Ltd,“decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (acórdão de 5 de Dezembro de 2013, Vapenik, C‑508/12, EU:C:2013:790, n.º 23 e jurisprudência referida)” –  cfr. o que se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 2017, www.dgsi.pt, proc. nº 53/14.4T8CBR-D.C1.S1.

Ambos os regulamentos se afastaram, assim, do regime definido pela Convenção de Bruxelas de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, ao tomar como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na acção, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual” (ponto 54 do acórdão do TJ de 23 de Abril de 2009, proc. C-533/07, caso Falco Privatstiftung, Thomas Rabitsch contra Gisela Weller-Lindhorst).

5. Sucede, todavia, que, para justificar a competência dos tribunais portugueses, a recorrida invocou também o disposto no artigo 26º do Regulamento (UE) nº 1215/2012, observando que a intervenção da ré na acção não teve “como único objectivo arguir a incompetência” respectiva, pois contestou o pedido e deduziu reconvenção, e não se trata de nenhum caso em que exista outro Estado com competência exclusiva para julgar o litígio (artigo 24º do Regulamento (UE) 1215/2012).

Assim sendo, e pese embora a incorrecção metodológica apontada pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Maio de 2007 (www.dgsi.pt, proc. nº 07B072), no sentido de que será mais correcto averiguar da eventual existência de uma prorrogação convencional tácita de competência dos tribunais portugueses – é este o fundamento da competência fundada no artigo 26º (cfr. a decisão sumária deste Supremo Tribunal de 28/10/2009, www.dgsi.pt., proc. nº 1067/07.6TBBNB.L1.S1) – só depois de ter verificado que não lhes cabia essa competência segundo o Regulamento, começar-se-á por analisar este argumento, por razões de ordem prática.

Para tratar esta questão, não tem qualquer relevância a circunstância de a presente acção ter começado como um requerimento de injunção, apresentado no Balcão Nacional de Injunções. Como se disse já, o processo passou a correr no tribunal como uma acção de processo comum, na sequência da oposição apresentada e do despacho de fls. 32.

Significa isto, nomeadamente, que lhe são aplicáveis as regras da concentração da defesa na contestação, sob pena de preclusão (artigo 573º do Código de Processo Civil), e da formulação de eventual pedido reconvencional apenas na contestação (artigo 583º do mesmo Código), bem como o ónus de impugnação, pelo menos, dos factos essenciais alegados pela autora (artigo 574º).

Na verdade, à luz da lei portuguesa, se a ré se tivesse limitado a invocar a incompetência internacional dos tribunais portugueses na oposição que apresentou, e que passou a valer como contestação da acção comum, veria precludida a possibilidade de invocar outros meios de defesa que não fossem supervenientes ou de conhecimento oficioso, ou que a lei admita passado esse momento (nº 2 do artigo 573º); ficaria impedida de opor a compensação de créditos (cfr. al. c) do nº 2 do artigo 266º do Código de Processo Civil) e haver-se-iam como admitidos por acordo os factos essenciais alegados no requerimento de injunção, que passou a valer como petição inicial.

No entanto, já desde a Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 – a que, como todos sabemos, sucedeu o Regulamento (CE) nº 44/2001 e, depois, o Regulamento (UE) nº 1215/2002 –, que a jurisprudência europeia tem entendido que o artigo 18º da Convenção (“Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições da presente Convenção, é competente o tribunal de um Estado Contratante perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 16º”), ao qual correspondem os artigos 24º do Regulamento nº 44/2201 e 26º do Regulamento nº 1215/2002, “tem de ser entendido no sentido de que permite ao réu não contestar apenas a jurisdição mas também, em alternativa, apresentar defesa relativa à substância da causa, sem perder o direito de suscitar a excepção de incompetência” (tradução de parte da decisão de 14 de Julho de 1983 do Tribunal de Justiça, Caso 201/82, Gerling Konzern Speziale Kreditversicherungs-AV e outros contra Amministrazione del tesoro dello Stato, e jurisprudência ali citada), in InfoCuria – Case Law of The Court os Justice, disponível em curia.europa.eu. Não sendo diferente o regime constante dos Regulamentos nº 44/2001 e 1215/2002, mantém actualidade a jurisprudência firmada a propósito da Convenção (cfr., expressamente, o acórdão Falco Privatstiftung, ponto 52).

O fundamento desta interpretação é o de que há leis nacionais que atribuem consequências desfavoráveis à omissão de outra defesa, quando o réu invoca apenas a incompetência internacional no tribunal em que foi demandado e essa defesa improcede; com outra interpretação, lesar-se-ia o direito de defesa, forçando o réu, que, apesar das preocupações de segurança jurídica do Regulamento, não pode antecipar o sentido da decisão do tribunal, ou a optar por defender-se de fundo, perdendo o direito de invocar a incompetência, ou a escolher suscitar a incompetência, com os riscos inerentes.

Ora, da interpretação da oposição apresentada nesta acção resulta que a primeira defesa é a invocação da incompetência internacional dos tribunais portugueses; que a restante apenas deve ser apreciada no caso de não proceder a excepção de incompetência, como aliás entendeu a 1ª instância; e que a própria reconvenção, ao ter por objectivo opor a compensação de créditos, dado o efeito extintivo da compensação, deve ser considerada, apenas para este efeito, como se de defesa stricto sensu se tratasse.

6. Cumpre então determinar se os contratos em causa nesta acção devem ser qualificados como compra e venda ou como prestação de serviços, à luz do Regulamento nº 1215/2002 e não do direito interno, passo necessário para se determinar se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes, posto que a ré tem o seu domicílio (sede) em Espanha.

Considerando os elementos fornecidos pelas partes sem divergência, verificamos que estamos perante contratos que têm como objecto a venda de bens a produzir ou fabricar pelo vendedor, segundo modelos ou, como se exprime a Relação, protótipos, definidos pela ré, que os encomendou à autora para vender a terceiros, a entregar em Espanha. A ré explicou na oposição que “manteve, na verdade, com” a autora uma “colaboração que consistiu no fabrico de artigos de vestuário no âmbito de encomendas previamente negociadas e acordadas”, sendo uma “empresa que agencia clientes em Espanha e no estrangeiro e coloca o fabrico dos produtos que vende em várias empresas, entre as quais, em tempos”, a autora. A autora alegara no requerimento de injunção que forneceu artigos à requerida, por sua incumbência, artigos esses que se conseguem identificar nas facturas juntas por determinação do tribunal, e esclareceu, na resposta à oposição, artigo 24º, que, “no que concerne à encomenda Pull”, que “não está em discussão nestes autos”, foi “mera executante a feitio, estando a ré incumbida de lhe entregar as malhas e os tecidos necessários para a produção das peças de vestuário”; mas não quanto às encomendas em causa neste processo (cfr. em especial, os artigos 24º e 29º da resposta).

O Tribunal de Justiça da União Europeia já foi confrontado por mais de uma vez com a necessidade de encontrar critérios de qualificação, nomeadamente para situações nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens, como sucede no caso dos autos (cfr., a título de exemplo, os citados acórdãos Car Trim e Falcom Privatstiftung e, quanto à interpretação do primeiro, o acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Setembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. nº 2561/14.8T8BG.1,S1, no qual se tratava da interpretação da disposição correspondente da Convenção de Lugano de 2007, relativa à competência judiciária e ao reconhecimento de decisões estrangeiras).

No já citado acórdão Car Trim, no qual estava em causa um contrato mediante o qual “a Key Safety, estabelecida em Itália, fornece sistemas de airbags a fabricantes italianos e automóveis e comprou, à Car Trim, componentes que entram no fabrico desses sistemas, de acordo com cinco contratos de fornecimento” – entendeu-se que, “para determinar a obrigação característica desses contratos como critério de conexão ao tribunal competente” (ponto 32), “O artigo 5º, nº 1, do Regulamento nº 44/2001 (…) deve ser interpretado no sentido de que os contratos cujo objecto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por ele fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e pela conformidade do bem com o contrato, devem se qualificados de «venda de bens», na acepção do artigo 5º,  nº 1, alínea a), primeiro travessão, do regulamento”.

Considerou-se, portanto, que “para determinar a obrigação característica de um contrato cujo objecto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, quando o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, o facto de o bem a entregar ter de ser fabricado ou produzido previamente não altera a qualificação do contrato em causa como contrato de compra e venda. Além disso, outros elementos como, por um lado, o não fornecimento de materiais pelo comprador, e, por outro, a responsabilidade do fornecedor pela qualidade e pela conformidade do bem constituem indícios a favor de uma qualificação desse contrato como «contrato de venda de bens», não sendo, todavia, elementos essenciais para o efeito (cfr. acórdão Falco Privatstiftung, quanto à prestação de serviços).

Esta jurisprudência mantém plena actualidade para o Regulamento nº 1215/2002 e, aplicada ao caso, impõe a qualificação dos contratos em discussão como contratos de compra e venda.


7. Conclui-se, assim, que, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 4º, no nº1 do artigo 5º e na al. b), segundo travessão, do nº 1 do artigo 7º do Regulamento (UE) nº 1215/2002, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente acção pois, quer o domicílio (sede) da ré, quer o local de cumprimento relevante – lugar da entrega dos bens – se situam em Espanha.

A ré deve portanto ser absolvida da instância, por incompetência absoluta dos tribunais portugueses (al. a) do artigo 96º e nº 1 do artigo 99º do Código de Processo Civil).

 

8. Nestes termos, concede-se provimento à revista e absolve-se a ré da instância.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 14 de Dezembro de 2017


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Távora Victor