Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
824/17.0T8MFR.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO DE JULGAMENTO
PODERES DA RELAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OBSCURIDADE
AMBIGUIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto do recurso de revista por escapar aos poderes de sindicância do STJ (cf. artigo 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), a não ser nas hipóteses previstas no n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, situações que  não foram invocadas e não estão em causa no caso.

II. Sendo a prova livremente apreciadas pelo julgador, o pretenso erro de julgamento cometido pela Relação escapa aos poderes cognitivos do STJ no domínio da matéria de facto.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



           

I. Relatório

1. AA e BB intentaram a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra:

a) CC; e

b) “Jotavio - Transportes, Lda.”,

formulando os seguintes pedidos:

a) Ser declarado que o A. marido é o único dono e legítimo proprietário do prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar e freguesia ..., concelho ..., confronta a Norte e Nascente com caminho, a Sul com a Ré, e a Poente com DD, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...36 da dita freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art. ...57 da secção ... da União de freguesias ... e ... com a área de 1063 m2; e, em consequência,

b) Serem os RR. condenados a reconhecerem ao A. marido o seu direito de propriedade sobre o descrito prédio, e absterem-se de quaisquer atos lesivos ou condicionantes do mesmo;

c) Ser a Ré sociedade condenada a devolver ao A. marido a parte de terreno situada a Norte do prédio do R. CC e a Sul do prédio do A. marido, que ocupou ilegitimamente num total de 160 m2, livre de quaisquer obras e limpa, com todos os encargos da restituição a seu cargo; e

d) Serem os RR. condenados a desimpedirem imediatamente a passagem do prédio do A. marido, a Nascente, para a via pública, com a largura de 4 m, abstendo-se de quaisquer atos que a impeçam ou obstruam;

Subsidiariamente, caso se considere que a Ré sociedade ocupa legitimamente os identificados 160 m2, deve ser reconhecido, por usucapião, o direito de passagem a pé e de carro do prédio do A., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...36 da dita freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art. ...57 da secção .. da União de freguesias ... e ..., sobre o prédio do R., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...15 da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob os arts. ...35 e ...13 da União de freguesias ... e ..., com uma largura de 4 m, desde o limite a Sul/Nascente do prédio do A. até à estrada, e condenados os RR. no seu reconhecimento e na abstenção de comportamentos que a obstruam, limitem ou dificultem.

De qualquer forma,

Devem os RR. serem condenados a pagar ao A. marido, a título de compensação porcada dia de atraso na entrega do terreno limpo e desimpedido, e/ou na limpeza e desobstrução da passagem a Sul/Nascente do prédio deste para a via pública, valor não inferior a € 50,00/dia, a contar do primeiro dia após o trânsito em julgado da sentença.

Alegam, em síntese, que:

- o Autor marido é dono do prédio rústico que identificam;

- o Réu é dono do prédio urbano, confinante, igualmente identificado;

- no verão de 2017, o Autor verificou que os Réus erigiram construção que, em parte, abrange o prédio do Autor;

- para além de, com essa construção, ocupar a saída do Autor para o caminho a nascente;

- sem que exista outra passagem para a via pública;

- sem qualquer legitimidade para tanto;

- sendo certo que o Autor ou pessoas com a sua autorização sempre utilizaram aquela entrada há mais de 40 anos.

2. Os Réus vieram (com a intervenção espontânea da mulher do Réu, CC, EE) contestar.

Alegam, em síntese, que:

- não estão a construir a sua habitação numa parte do prédio dos Autores, mas, na sua propriedade, dado que esta tem a área total de 1 000 m2;

- encontrando-se a informação matricial em conformidade com a registal;

- conforme levantamento topográfico, antes da construção que agora está a ser feita, existia uma moradia, uma garagem e uma arrecadação, na extrema da sua propriedade, sendo, o remanescente, área descoberta;

- além do que o prédio de que o Réu é proprietário foi adquirido por doação estando na posse do 1º Réu há 17 anos e, antes, na posse dos seus avós;

- a abertura a que os Autores se referem só era utilizada para entrar a pé e de motocultivador, dado que não tinha mais de 1, 5 m;

- sendo, contudo, certo que se trata de um prédio encravado;

- quando essa abertura teve largura maior, foi porque o ora Autor pediu expressamente ao Réu, que o autorizou, a partir o muro que aí se encontrava, para poder passar e sob condição de o reconstruir; o que o Autor nunca fez, para agora vir propor esta ação;

- a confrontação do prédio do Réu, a Norte, também, com serventia, é meramente indiciária, porque não existe qualquer serventia.

Os Réus deduzem, ainda, pedido reconvencional   (já em sede de aperfeiçoamento do pedido reconvencional) pedindo:

A - Serem os AA. Reconvindos obrigados reconhecer que o 1.º Réu/ Reconvinte é proprietário do prédio urbano sito no ..., Rua ... com a área total de 1000 m2 conforme se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...15 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigos ...35 e ...13 da freguesia ... tendo de área coberta 205 m2 e descoberta 795 m2 ora reduzida a 476,50 m2, composto de um pavimento para habitação com 75 m2 e logradouro com 795 m2 ora reduzida a 476,50 m2 e de uma casa de um piso destinado a garagem e arrecadação com 130 m2, onde estão incluídos os reivindicados 160 m2, conforme consta dos títulos, beneficiando da presunção legal estabelecido no art. 7.º do Código do Registo Predial;

B - Devem os AA. Reconvindos reconhecer que o 1.º R. Reconvinte é proprietário do prédio urbano supra descrito desde 28/12/2000 e de forma ininterrupta, pelo que para além da resultante do título, o mesmo também o adquiriu por usucapião, tal como já o eram os seus ante possuidores, os seus avós paternos FF e mulher GG há mais de 60 anos com as configurações e áreas referidas, que o adquiriram por usucapião conforme consta do Registo Predial;

C - Devem o AA. Reconvindos reconhecer que o prédio urbano que está a ser construído pelos RR./ Reconvintes, enquanto proprietários e a 2ª R. enquanto sociedade construtora, está devidamente licenciado e a ser construído no interior do prédio urbano propriedade do R., no qual estão incluídos os 160 m2, abstendo-se o mesmo de praticar todos e quaisquer atos que impeçam ou limitem tal construção;

D - Finalmente deve ser considerado procedente, por provado, o pedido reconvencional no respeitante ao prédio dos AA. Reconvindos considerar-se encravado de forma natural e atento o disposto no art. 1551.º do Código Civil, e em virtude de tal, pretendem os RR. Reconvintes subtrair-se ao encargo de ceder passagem, adquirindo o prédio pelo seu justo valor, conforme decorre do disposto no art. 1551.º do C.C..

Fundam as suas pretensões, em suma:

- no facto de o 1.º Réu ser proprietário de prédio com a área de 1 000 m2;

- termos em que a construção em causa se cinge à área do seu prédio;

- prédio que, se não tivesse sido adquirido, com essa área, por essa via, sempre teria sido adquirido por usucapião, com inclusão da posse dos antecessores/doadores;

-e, por outro lado, alegando que o prédio dos Autores se trata de um prédio encravado, mas, que os Reconvintes pretendem subtrair-se ao encargo de ceder passagem, adquirindo tal prédio encravado.

3. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:

a) Declara-se que o Autor marido é o único proprietário do prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar e freguesia ..., concelho ..., confronta a Norte e Nascente com caminho, a Sul com a Ré, e a Poente com DD, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...36 da dita freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art. ...57 da secção ... da União de freguesias ... e ... com a área de 1063 m2; e, em consequência,

b) Condenam-se os Réus a reconhecerem ao Autor marido o seu direito de propriedade sobre o descrito prédio, e absterem-se de quaisquer atos lesivos ou condicionantes do mesmo;

c)  Condenando-se a Ré sociedade a devolver ao Autor marido a parte de terreno situada a Norte do prédio do Réu CC e a Sul do prédio do Autor marido, num total de 130 m2, livre de quaisquer obras e limpa, com todos os encargos da restituição a seu cargo; e

d) Condenam-se os Réus a desimpedirem a passagem do prédio do Autor marido, a Nascente, para a via pública, com a largura de 4 metros, abstendo-se de quaisquer atos que a impeçam ou obstruam;

absolvendo-se os Réus do demais concretamente peticionado contra estes.

Mais se decide julgar improcedentes os pedidos reconvencionais.”.

4. Inconformados com esta decisão, os Réus e a interveniente interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação ....

5. O Tribunal da Relação ... veio a julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, decidiu:

1 - revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou a R. sociedade a devolver ao A. AA a faixa de terreno de 130 m2;

2 - reconhece-se a constituição, por usucapião, da servidão de passagem sobre o prédio identificado no ponto 2 da matéria de facto provada, a favor do prédio identificado no ponto 1 da matéria de facto provada, passagem essa a pé e de carro, com 2 metros de largura, desde a abertura mencionada no ponto 8 da matéria de facto provada até ao caminho a nascente;

3 - altera-se a condenação dos RR. a desimpedirem a passagem e a absterem-se de quaisquer atos que a impeçam ou obstruam de forma que a passagem a considerar seja a definida no ponto supra;

4 - revoga-se a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente o pedido reconvencional de reconhecimento do direito de propriedade e, em sua substituição, condenam-se os AA. a reconhecer que a faixa de terreno identificada no ponto 29 da matéria de facto provada pertence ao R. CC; e

5 - mantem-se no mais a sentença recorrida.”.

6. Inconformado com tal decisão, vieram os Autores interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

A. Ao longo do Douto Acórdão, surgem contradições entre os fundamentos e a decisão, que importam a nulidade dessa decisão, nos termos do disposto no art. 615º nº.1 als. c) e d) ex vi art. 666º, ambos do CPC.

B. Em primeiro lugar, o Douto Acórdão conclui que os RR. “não especificaram os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados”.

C. O que implicaria “a rejeição do recurso na parte referente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.”

D. Acrescenta mesmo: “Contudo, nem no requerimento de interposição de recurso, nem nas alegações, nem nas conclusões recursivas, os recorrentes declararam expressamente que impugnavam a decisão sobre a matéria de facto” (negrito nosso).

E. Face a esta conclusão, e atento o seu próprio fundamento, não lhe restava alternativa senão rejeitar o recurso por extemporâneo.

F. Os RR. foram notificados da Douta Sentença da 1ª instância em 16 de Agosto de 2021.

G. Como não impugnaram a matéria de facto, tinham o prazo de 30 dias para recorrer, prazo esse que terminou em 30 de Setembro de 2021, uma quinta-feira.

H. Ora, o recurso apresentado pelos RR. deu entrada via Citius em 4 de Outubro de 2021, uma segunda-feira, às 15:05:51 h.

I. Neste sentido, v., entre outros, in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/11/onus_-impugnacao_materia_facto-.pdf, “Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ”.

J. Trata-se de um prazo peremptório, pelo que é de conhecimento oficioso, e o Venerando Tribunal da Relação deveria do mesmo ter conhecido, e não o fez, padece o Acórdão de nulidade nos termos do disposto no art. 615º nº.1 al. d) do CPC ex vi art. 666º nº.1 do mesmo Diploma Legal.

K. Se entendermos que se pronunciou e aceitou o recurso, o Acórdão padece de nulidade uma vez que existe oposição entre os fundamentos e essa decisão, nos termos do disposto no disposto no art. 615º nº.1 al. c) ex vi art. 666º, já citados.

L. Deve, em conformidade, revogar-se o Acórdão recorrido, e manter-se a decisão proferida em 1ª Instância, uma vez que não tendo os RR. recorrido da matéria de facto, o seu recurso não deveria ter sido aceite porque extemporâneo.

M. Por outro lado, e caso se considere que o recurso foi tempestivo, deparamo-nos com mais uma contradição, que nos conduz igualmente à nulidade do Acórdão:

N. Apesar de ter dito que não deve ser o Tribunal a substituir-se às partes, atento o princípio do dispositivo, veio o Douto Acórdão fazê-lo, substituindo-se aos RR., então Recorrentes, e, tomando mão do disposto no art. 662º nº. 2 al. c) do CPC, para apreciar a prova, e alterar oficiosamente a matéria de facto.

O. Ao contrário do que dispõe o art. 663º nº. 6 do CPC, o Douto Acórdão não se limitou a remeter para os termos da decisão da 1ª instância.

P. Salvo o devido respeito, o disposto na al. c) do nº. 2 do art. 662º do CPC apenas é aplicável quando os Recorrentes impugnam a matéria de facto.

Q. Não tendo existido impugnação da matéria de facto pelos RR., não deve a Relação alterar a matéria de facto, sob pena de esvaziar de sentido o princípio dispositivo, e o disposto nos arts. 640º e 663º nº.6 do CPC.

R. Salvo o devido respeito, também neste ponto está o Douto Acórdão ferido de nulidade, uma vez que não tirou as consequências do seu juízo sobre a não impugnação da matéria de facto pelos RR. então Recorrentes.

S. Em consequência, deve ser mantida a decisão proferida em 1ª instância.

T. No entanto, e caso assim se não considere, o que por mera hipótese se coloca, ainda há uma contradição entre os fundamentos e a decisão, quanto à largura da servidão de passagem, o que importa a nulidade do Acórdão nessa parte.

U. O Acórdão recorrido reconheceu a constituição por usucapião de servidão de passagem sobre o prédio identificado no ponto 2 da matéria de facto provada, a favor do prédio identificado no ponto 1 da matéria de facto provada, “passagem essa a pé e de carro, com 2 metros de largura” (negrito nosso).

V. Esta conclusão quanto à largura da passagem está claramente em contradição com o fundamento, e a prova em que se baseia.

W. O Douto Acórdão refere que do anexo 8 junto com os esclarecimentos prestados pelo perito HH a 9 de Julho de 2020, consta a anotação manuscrita “2 metros entrada da serventia”.

X. Contudo, a largura da “entrada da serventia” não constava como quesito, e o Senhor Perito, quando visitou os prédios, em Dezembro de 2019, já os RR. tinham a obra avançada e tinham reduzido ainda mais a entrada para o prédio do A.

Y. À data da entrada da presente acção em 22.12.2017, como se vê na fotografia junta em 22.12.2017 com a p.i. como doc. 11 (ref. ...78), essa entrada, apesar de já estar a decorrer a obra, é bem maior que a verificada nas fotografias juntas como docs. 1 e 2 como requerimento de 30.05.2019, com a ref. ...69.

Z. O Senhor Perito nunca viu os prédios originalmente, antes da obra, pois quando se deslocou ao local, já a obra estava concluída, um muro divisório construído, uma pequena abertura feita, uma vez que os RR. nunca pararam a construção apesar da entrada da acção.

AA. Quando, nos esclarecimentos que prestou na Audiência final, disse ter visto murete separador e entrada para o artigo rústico, só pode estar a referir-se ao murete já construído pelos RR. depois da entrada da presente acção.

BB. Porque diz que viu, e não pode ter visto a situação anterior,a que constava antes da obra, porque não foi lá antes.

CC. A fotografia junta como doc.11 com a Contestação, em 17.02.2018, com a ref. ...37, e que é referida no Douto Acórdão, também não reflecte a realidade que o Senhor Perito viu em Dezembro de 2019, nem o murete é o mesmo.

DD. Por outro lado, o Douto Acórdão refere que a visualização das fotografias juntas como docs. 5 e 6 com o requerimento que deu entrada em 23.03.2018 (fls. 92 v. e 93 v.) (ref. ...09).

EE. Ora, na fotografia junta como doc.5 vê-se claramente a situação antes da obra erigida pelos RR., em que há uma faixa ampla, que vai da Rua ... até à rede, com muito mais de 2 m de largura!

FF. Quer a1ª instância, quer a Relação, não colocam em causa a prova testemunhal, e as testemunhas referem que em diversas ocasiões entraram, à vontade, no prédio do A. por aquela passagem, com tractores, camião, máquina giratória, todos com mais de 2 m de largura. E que hoje não o conseguiriam fazer por causa da obra realizada pelos RR.

GG. Se o Douto Acórdão decide pelo reconhecimento da propriedade da faixa de terreno a favor do R., por usucapião, e da servidão de passagem a pé e de carro a favor do prédio do A., face a toda a prova produzida em que se fundamenta, terá forçosamente de concluir que a largura da servidão de passagem, desde, inclusive, a abertura existente no muro dos RR., e que dá acesso de entrada ao prédio do A., até à Rua ..., tem de ser de, pelo menos, 4 m, e não apenas 2 m.

HH. Os veículos têm mais de 2 m de largura, mesmo os ligeiros, mas sobretudo as alfaias agrícolas, e os tractores agrícolas.

II. Como se vê das fotografias juntas como docs. 1 e 2 com o requerimento de 30.05.2019, com a ref. ...69, e que foi a situação vista pelo perito, os RR. reduziram não apenas a entrada para o prédio do A., mas toda a faixa que vai da Rua ... até essa entrada.

JJ.  Deriva da experiência comum que um veículo, mesmo ligeiro, e apenas com 2 m de largura, não poderá passar pela faixa de terreno que constitui o leito da servidão de passagem, nem entrar no prédio pela abertura que lhe acede.

KK. E, mesmo que esse veículo tenha largura inferior a 2 m, a verdade é que, com uma passagem e entrada de 2 m de largura, não terá espaço para fazer a perpendicular, ou seja, manobrar e entrar no prédio do A.

LL. Uma vez que o Douto Acórdão reconheceu a constituição de servidão de passagem a pé e de carro, a favor do prédio do A. sobre o prédio dos RR., por usucapião, para que esta decisão tenha utilidade, deve reconhecer que a servidão tem largura não inferior a 4 m, desde a entrada para o prédio do A. inclusive, até à Rua ..., uma vez que era essa largura que tinha a entrada antes da realização da obra pelos RR., e que permite entrar e sair com os veículos que deu como provado terem circulado na e pela mesma

MM. Assim, em conformidade com os fundamentos referidos pelo Douto Acórdão, o ponto 8 dos factos provados, deve ter a seguinte redacção:

“8. O Autor marido sempre utilizou, para entrar e sair do seu prédio, a abertura com a largura de 4 metros existente junto ao limite norte da faixa de terreno em questão nestes autos e a serventia de acesso ao caminho existente a nascente, assim como todas as pessoas que ao longo do tempo tiveram que entrar e sair do prédio do Autor marido, pelo menos, desde há 30 anos; até porque não existe outra entrada que permita o acesso de tratores ou outros veículos.”

NN. E, em consequência, o ponto 2 da decisão deve reconhecer “a constituição, por usucapião, da servidão de passagem sobre o prédio identificado no ponto 2 da matéria de facto provada, a favor do prédio identificado no ponto 1 da matéria de facto provada, passagem essa a pé e de carro, com 4 metros de largura, desde a abertura mencionada no ponto 8 da matéria de facto provada inclusive até ao caminho a nascente;”

E concluem “o presente Recurso de Revista ser admitido e, consequentemente, ser revogado o Douto Acórdão recorrido, mantendo-se a Decisão de Primeira Instância; ou, se assim se não considerar, deve declarar-se nulo o Douto Acórdão quanto à largura da servidão de passagem, que deve ser de 4 m em toda a sua extensão (desde a entrada inclusive, até ao caminho público)”.

7. Os Réus contra-alegaram, pugnando pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

A) O Recurso apresentado pelos RR. sobre a decisão de 1º Instância foi tempestivo.

B) Tanto porque apresentaram impugnação sobre matéria de facto e isso logo expressaram no seu requerimento, como efetivamente alegaram matéria de impugnação de factos e nesse caso o seu prazo de Recurso é de 40 dias.

C) Como porque mesmo face ao prazo de 30 dias do Recurso, os RR. teriam apresentado no 2º dia útil após os 30 dias (normais de recurso), o que lavaria à sua admissibilidade face ao disposto no artigo 139º CPC.

D) Os RR. não concordam com o douto Acórdão aqui recorrido quando refere que os mesmos não alegaram impugnação de matéria de facto, mas,

E) Em qualquer dos casos a decisão foi proferida com fundamento na alínea c) do nº 2 do artigo 662º do CPC,

F) Isto é a decisão foi proferida com base no conhecimento oficioso que o Tribunal “a quo” tem da sentença de 1ª Instância,

G) E essas decisões dos Tribunais da Relação não admitem Recurso para o STJ, conforme previsto no nº 4 do artigo 662º do CPC.

H) Devendo ser proferida decisão sumária de rejeição do Recurso interposto pelos AA., conforme artigo 656º do CPC.

I) Embora nem sequer seja admissível a revisão de matéria de facto no Recurso de Revista para o STJ, a verdade é que os AA., aqui recorrentes apenas tentam ilidir quem julga omitindo factos dos testemunhos que realçam.

E concluem “deve o Recurso de Revista ser rejeitado face à sua inadmissibilidade ou caso assim não se entenda deve o mesmo ser improcedente mantendo-se a decisão do Acórdão recorrido”.

8. Cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos A.A. / ora Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- Da nulidade do Acórdão recorrido por contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615.º, n.º 1, alíneas. c) e d) do Código de Processo Civil);

- Da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil);

- Do erro de julgamento do acórdão recorrido quanto à alteração feita ao ponto 8. dos factos dados como provados relativamente à largura da passagem existente sobre o prédio em causa nos autos.

III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. O prédio rústico denominado “...”, sito no lugar e freguesia ..., concelho ..., a confrontar a Norte e Nascente com caminho, a Sul, com II e a Poente com DD, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 736/19..., da freguesia ..., mostra-se aí inscrito em nome de AA, conforme Ap. ...5 de 1984/07/26, por ter sido adquirido por doação de JJ; mostrando-se, tal prédio, inscrito na respetiva matriz sob o art. ...57 da secção ... da União de freguesias ... e ....

1.2. O prédio urbano, sito na Rua ..., lugar de ..., a confrontar, a Norte, com AA e serventia; a Sul, com caminho; a Nascente, com caminho; e a Poente, com DD; descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 515/19..., da freguesia ..., mostra-se aí inscrito em nome de CC, conforme Ap. ...1 de 2000/12/28, por ter sido adquirido por doação de FF e GG; mostrando- -se, tal prédio, inscrito na respetiva matriz sob os arts. ...35 e ...13 da União de freguesias ... e ....

1.3. A ora Ré sociedade constava do alvará de construção exposto no local no início da obra, sendo ela a dona da obra, e em nome de quem o projeto de construção está licenciado junto da Câmara Municipal ....

1.4. O ora Réu CC é titular de metade das quotas da sociedade Ré.

1.5. No verão de 2017, a R. sociedade encontrava-se a construir obra no sobredito prédio do Réu. – facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.6. A R. sociedade encontra-se a ocupar, com a construção que está a realizar, a fração de terreno em questão nos presentes autos, sem o conhecimento ou autorização do A. marido. - facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.7. (eliminado pelo Tribunal da Relação)

1.8. O Autor marido sempre utilizou, para entrar e sair do seu prédio, a abertura com a largura de 2 metros existente junto ao limite norte da faixa de terreno em questão nestes autos e a serventia de acesso ao caminho existente a nascente, assim como todas as pessoas que ao longo do tempo tiveram que entrar e sair do prédio do Autor marido, pelo menos, desde há 30 anos; até porque não existe outra entrada que permita o acesso de tratores ou outros veículos. - facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.9. E isso sempre sucedeu a vista de toda a gente, de boa fé, de forma pacífica, pública, sem oposição de ninguém. - facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.10. Há poucos anos, o Autor marido fez entrar no seu prédio um camião para colocar um contentor, utilizando a serventia. - facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.11. A Ré sociedade, ao ocupar a serventia, impede a entrada e saída dos Autores do prédio. - facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.12. Fruto da execução da obra, pela Ré, esta teve vedação em rede e tijolos e areia na faixa de terreno em causa, sempre sem o consentimento e contra a vontade dos Autores.

1.13. Quando o Autor marido necessitou de reforçar a parede a Poente do seu terreno, teve de entrar um camião de grandes dimensões com blocos de pedra, assim como, a necessária máquina giratória, tendo sido utilizada a serventia. - facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.14. Atualmente, o sobredito prédio do Réu, confronta a Norte, com o ora Autor (“e serventia”).

1.15. O sobredito prédio do Réu mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 515/19..., da freguesia ..., com a área total de 1 000 m2; sendo, 205 m2, de área coberta e 795 m2, de área descoberta; e com a seguinte composição: A) Casa de um pavimento para habitação com 75 m2 e logradouro com 795 m2; e B) Casa de um piso destinada a garagem e arrecadação com 130 m2.

1.16. O sobredito artigo matricial urbano, nº ...35, teve origem no artigo urbano, nº ...66, sendo o ano de inscrição na matriz, 1977.

1.17. O sobredito artigo matricial urbano, nº ...13, teve origem no artigo urbano, nº ...77, sendo o ano de inscrição na matriz, 1998.

1.18. Antes da construção que está agora a ser feita pela Ré, existia uma moradia com 75 m2, uma garagem com 77 m2 e arrecadação com 53 m2 sendo o remanescente de área descoberta

1.19. As pessoas que doaram este prédio ao R. CC, antes da doação, desde, pelo menos, 1970, utilizavam o prédio em que estas três construções se mostravam erigidas, ocupando o mesmo, limpando, cuidando, à vista de toda a gente, sem qualquer interrupção temporal, sem oposição de ninguém e sem violência, certos de que atuavam como proprietários do dito prédio inscrito na matriz sob o art. ...66º; e o ora Réu aí permanecia com seus avós, os doadores. - facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.20. No ano de 2010, FF pagou o Imposto Municipal sobre Imóveis, referente ao art. ...66; e no ano de 2017, o ora Réu pagou o Imposto Municipal sobre Imóveis, referente aos arts. ...35 e ...13.

1.21. O pai do Réu teve, pelo menos, durante cerca de 2 anos, cavalos na arrecadação tendo esta sido utilizada como estrebaria.

1.22. As pessoas que doaram este prédio ao ora Réu, ali construíram a sua habitação, bem como, a garagem e a arrecadação, cuidando dessas edificações.

1.23. Os ora Autores residem na cidade ....

1.24. O prédio dos Autores apresenta valor patrimonial não inferior a 68 875,00 euros, mas, que poderá ascender a 83 350,00 euros.

1.25. A obra que se mostra a ser executada pela Ré sociedade (dona da obra) consiste na construção de casa de habitação.

1.26. No dia 24 de agosto de 1994, em sede de escritura de “Justificação” outorgada no Cartório Notarial ..., os aí outorgantes FF e mulher, GG disseram que eram donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, de um prédio urbano situado no lugar e freguesia ..., concelho ..., composto de casa para habitação de um locatário, com a superfície coberta de 75 m2 e logradouro com a área de 925 m2, a confrontar do norte, com AA e serventia, do sul e nascente com caminho e do poente com DD, inscrito na respetiva matriz, em nome do justificante marido sob o art. ...66, pendente de alteração desde hoje, não descrito na Conservatória do Registo Predial ....

1.27. O art. matricial ...66º da freguesia ..., concelho ... (que deu origem ao sobredito art. ...35º) referia-se a prédio com a área total de 870 m2, sendo, 75 m2, de área coberta e os restantes 795 m2 de área descoberta.

1.28. Para chegar aos 1.000 m2, foi criado um artigo urbano novo, o extinto art. ...77, actual art. ...13 da freguesia ..., que tem o total de 130 m2, coberta, que se destina a garagem e arrecadação, prédio este que se mostra inscrito na matriz em 1998; artigo este que não tem qualquer proveniência.

1.29. A faixa de terreno em questão nos presentes autos tem cerca de 130 m2, no lado poente da qual se situava a arrecadação de 53 m2, com porta e janela viradas a nascente, sendo a área restante a serventia de acesso ao caminho existente a nascente. – facto alterado pelo Tribunal da Relação

1.30. Sobre o sobredito imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 736/19..., da freguesia ..., mostra-se constituída hipoteca voluntária a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, pelo montante máximo de 26 000 000$00, conforme Ap. ... de 1999/02/15..»

2. Foram dados como não provados os seguintes factos:

2.1. O ora Réu tem ocupado o seu prédio objeto dos autos, na área de 1 000 m2; e mais concretamente, na área de, pelo menos, 130 m2 aqui em apreço, limpando e cuidando, à vista dos vizinhos, inclusive dos Autores, sem qualquer interrupção temporal, sem intromissão de quem quer que fosse; e na convicção de que não está a lesar o direito de quem quer que fosse.

2.2. O prédio identificado no ponto 2 tem a área de 1.000 m2. – facto alterado pelo Tribunal da Relação

2.3. O prédio dos Réus tinha como extrema a norte um muro feito a tijolo e cimento de 18 m de comprimento por 1,5 m de altura que foi construído pelo avô paterno do R. e por isso delimitava a propriedade do Réu e do Autor.

2.4. Esse muro, que existia para delimitar as propriedades, foi demolido pelo Autor, há cerca de 4 anos (à data da contestação) com o consentimento do pai do Réu, Sr. KK, a fim de o mesmo poder entrar com um camião com pedras e ali também colocar um contentor.

2.5. Tal demolição de muro, foi feita sob condição de o Autor, logo que fizesse a descarga das pedras e do contentor, reconstruir de imediato o muro.

2.6. No entanto, nunca o fez, apesar de diversas vezes instado pelo Réu, e pelo seu pai, para o fazer.

2.7. O ora Réu, desde 2000, sempre utilizou todas as casas, pintando-as e fazendo manutenção e renovação dos seus telhados, comendo e bebendo no seu interior, guardando ferramentas e outros bens na garagem e arrecadação, sempre entrando e saindo da sua propriedade e de todas as suas casas, recebendo ali a sua família e amigos, à vista de todos os vizinhos, sem qualquer interrupção temporal, sem intromissão de quem quer que fosse, sem qualquer violência; e convicto de que não estava a lesar o direito de quem quer que fosse.

2.8. (eliminado pelo Tribunal da Relação).

2.9. Os ora Réus estão a construir exclusivamente na propriedade do Réu.

2.10. A passagem existente era de “pé posto” e nunca teve largura superior a 1,5 m.

2.11. O prédio do Autor mostra-se encravado desde sempre (sem acesso à via pública) de forma natural, ou seja, dadas as suas características e configuração.

2.12. Por isso, os Autores sempre entraram por uma entrada do prédio sita a sul; e, não, pela entrada objeto dos autos.

3. Apreciação do recurso

3.1. - Da nulidade do Acórdão recorrido por contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do Código de Processo Civil)

As nulidades do acórdão invocadas pelos recorrentes, pese embora se estribem em fundamentos diferentes, encontram-se interligadas entre si, porquanto se reconduzem à mesma problemática, relativa esta ao facto de o Acórdão recorrido ter considerado que os Apelantes não especificaram os pontos de facto considerados incorretamente julgados e não ter sido o recurso rejeitado por extemporaneidade, por não poderem aqueles beneficiar da extensão do prazo de 10 dias prevista no n.º 7 do artigo 638.º do Código de Processo Civil.

A propósito da primeira nulidade invocada – oposição entre os fundamentos e a decisão - os Recorrentes apresentam as seguintes conclusões recursórias:

“A. Ao longo do Douto Acórdão, surgem contradições entre os fundamentos e a decisão, que importam a nulidade dessa decisão, nos termos do disposto no art. 615º nº.1 als. c) e d) ex vi art. 666º, ambos do CPC.

B.  Em primeiro lugar, o Douto Acórdão conclui que os RR. “não especificaram os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados”.

C.   O que implicaria “a rejeição do recurso na parte referente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.”

D.  Acrescenta mesmo: “Contudo, nem no requerimento de interposição de recurso, nem nas alegações, nem nas conclusões recursivas, os recorrentes declararam expressamente que impugnavam a decisão sobre a matéria de facto” (negrito nosso).

E.   Face a esta conclusão, e atento o seu próprio fundamento, não lhe restava alternativa senão rejeitar o recurso por extemporâneo.

F.   Os RR. foram notificados da Douta Sentença da 1ª instância em 16 de Agosto de 2021.

G.  Como não impugnaram a matéria de facto, tinham o prazo de 30 dias para recorrer, prazo esse que terminou em 30 de Setembro de 2021, uma quinta-feira.

H. Ora, o recurso apresentado pelos RR. deu entrada via Citius em 4 de Outubro de 2021, uma segunda-feira, às 15:05:51 h.

I.  Neste sentido, v., entre  outros,  in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/11/onus_-impugnacao_materia_facto-.pdf, “Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ”.

Face ao assim transcrito, os Recorrentes começam por alegar que o Acórdão recorrido entrou em contradição quando, considerando que os apelantes “não especificaram os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados” e  “nem no requerimento de interposição de recurso declararam expressamente que impugnavam a decisão sobre a matéria de facto”, não rejeitou o recurso por extemporâneo por não ser, então, aplicável o prazo adicional de 10 dias previsto no n.º 7 do artigo 638.º do Código de Processo Civil.

Em sede de contra-alegações, os Recorridos concluem pela improcedência da invocada nulidade, por considerarem, que os mesmos efetivamente impugnaram matéria de facto no seu recurso de apelação.

Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil que “é nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”

Como vem sendo entendimento do Supremo Tribunal de Justiça “A nulidade do acórdão por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão, prevista na al. c), do n.º 1, do art. 615.º, do CPC, segundo a qual a sentença é nula quando os fundamentos estejam em manifesta oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença.”

-Acórdão do STJ, de 8/10/2020 (processo n.º361/14.4T8VLG.P1.S1) -.

Como escreve Amâncio Ferreira, a contradição entre os fundamentos e a decisão verifica-se quando “a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente”.

(In Manual de Recursos em Processo Civil, 9.ª edição, pg. 56.)

O vício em apreço não se confunde com o assim denominado erro de julgamento, vício esse apenas sindicável em sede de recurso jurisdicional.

Por seu turno, a obscuridade verifica-se quando algum passo do acórdão
é ininteligível e a ambiguidade existe quando alguma passagem dele se presta a interpretações diferentes e porventura opostas.

Vejamos.

Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação ... de 17/03/2022 proferido nos autos (e que se pronunciou concretamente sobre as nulidades suscitadas pelos ora Recorrentes), da fundamentação do Acórdão nada consta quanto à data da notificação da sentença recorrida aos ilustres mandatários das partes, nem a data da interposição do recurso. Por outro lado, na fundamentação do Acórdão recorrido também nada consta no sentido de não ser aproveitado aos apelantes a extensão do prazo previsto no n.º 7 do artigo 638.º do Código de Processo Civil.

Por outro lado, não é invocada pelos Recorrentes propriamente uma oposição entre os fundamentos e a “decisão final” do Acórdão recorrido – esta correspondente à parte dispositiva -, mas sim entre o entendimento que conduziu à rejeição da impugnação da matéria de facto e a decisão (anteriormente proferida) de admissão do recurso interposto (da qual não houve reação por parte dos ora Recorrentes).

Como se escreve no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/03/2021, “III. A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente. IV. Verifica-se tal nulidade quando existe contradição entre os fundamentos e a decisão e não contradição entre os factos provados e a decisão, ou contradições da matéria de facto, que a existirem, configuram eventualmente erro de julgamento” (sublinhado nosso).

Estando, em causa, como está, uma decisão intercalar sobre a impugnação da matéria de facto, não se está, pois, perante uma verdadeira oposição entre a fundamentação e a decisão final, esta correspondente à parte dispositiva do acórdão, que seja suscetível de integrar a previsão do artigo 615.º. n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.

Sem prejuízo do que se deixa exposto, sempre se dirá, a título lateral, que “a apreciação do modo como foram preenchidos os ónus de alegação” previstos no artigo 638.º do Código de Processo Civil, podendo obstaculizar o conhecimento da impugnação da matéria de facto, “não colocam em crise a tempestividade do recurso de apelação que, naquelas condições, tenha sido apresentado dentro do prazo alargado”.

- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, 2.ª edição, vol. I, p. 793 –

 Idêntico entendimento é sufragado pelo Acórdão do STJ de 28/04/2016 (Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1) onde se escreve, no respetivo sumário, que “a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640º, nº 1, do CPC.” (no mesmo sentido, vejam-se, ainda, os Acórdãos do STJ de 22/10/2015- Processo n.º 2394/11.3TBVCT.G1.S1 - e de 21/10/2020 - Processo n.º 1779/18.9T8BRG.G1.S1).

Pelo exposto, tem de improceder a arguição de nulidade do Acórdão recorrido, nesta parte, com fundamento na previsão da primeira parte do artigo 615.º, n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil.


Mais à frente nas suas conclusões de recurso, os Recorrentes voltam a invocar a nulidade do Acórdão recorrido alegando que há uma contradição entre os fundamentos e a decisão quanto “à largura da servidão de passagem”.

Para tanto, alegam que:

“U. O Acórdão recorrido reconheceu a constituição por usucapião de servidão de passagem sobre o prédio identificado no ponto 2 da matéria de facto provada, a favor do prédio identificado no ponto 1 da matéria de facto provada, “passagem essa a pé e de carro, com 2 metros de largura” (negrito nosso).

V. Esta conclusão quanto à largura da passagem está claramente em contradição com o fundamento, e a prova em que se baseia.

W. O Douto Acórdão refere que do anexo 8 junto com os esclarecimentos prestados pelo perito HH a 9 de Julho de 2020, consta a anotação manuscrita “2 metros entrada da serventia”.

X. Contudo, a largura da “entrada da serventia” não constava como quesito, e o Senhor Perito, quando visitou os prédios, em Dezembro de 2019, já os RR. tinham a obra avançada e tinham reduzido ainda mais a entrada para o prédio do A.

Y. À data da entrada da presente acção em 22.12.2017, como se vê na fotografia junta em 22.12.2017 com a p.i. como doc.11 (ref. ...78), essa entrada, apesar de já estar a decorrer a obra, é bem maior que a verificada nas fotografias juntas como docs. 1 e 2 com o requerimento de 30.05.2019, com a ref. ...69.

Z. O Senhor Perito nunca viu os prédios originalmente, antes da obra, pois quando se deslocou ao local, já a obra estava concluída, um muro divisório construído, uma pequena abertura feita, uma vez que os RR. nunca pararam a construção apesar da entrada da acção.

AA. Quando, nos esclarecimentos que prestou na Audiência final, disse ter visto murete separador e entrada para o artigo rústico, só pode estar a referir-se ao murete já construído pelos RR. depois da entrada da presente acção.

BB. Porque diz que viu, e não pode ter visto a situação anterior, a que constava antes da obra, porque não foi lá antes.

CC. A fotografia junta como doc.11 com a Contestação, em 17.02.2018, com a ref. ...37, e que é referida no Douto Acórdão, também não reflecte a realidade que o Senhor Perito viu em Dezembro de 2019, nem o murete é o mesmo.

DD. Por outro lado, o Douto Acórdão refere que a visualização das fotografias juntas como docs. 5 e 6 com o requerimento que deu entrada em 23.03.2018 (fls. 92 v. e 93 v.) (ref. ...09).

EE. Ora, na fotografia junta como doc.5 vê-se claramente a situação antes da obra erigida pelos RR., em que há uma faixa ampla, que vai da Rua ... até à rede, com muito mais de 2 m de largura!

FF. Quer a 1ª instância, quer a Relação, não colocam em causa a prova testemunhal, e as testemunhas referem que em diversas ocasiões entraram, à vontade, no prédio do A. por aquela passagem, com tractores, camião, máquina giratória, todos com mais de 2 m de largura. E que hoje não o conseguiriam fazer por causa da obra realizada pelos RR.

GG. Se o Douto Acórdão decide pelo reconhecimento da propriedade da faixa de terreno a favor do R., por usucapião, e da servidão de passagem a pé e de carro a favor do prédio do A., face a toda a prova produzida em que se fundamenta, terá forçosamente de concluir que a largura da servidão de passagem, desde, inclusive, a abertura existente no muro dos RR., e que dá acesso de entrada ao prédio do A., até à Rua ..., tem de ser de, pelo menos, 4 m, e não apenas 2 m.

HH. Os veículos têm mais de 2 m de largura, mesmo os ligeiros, mas sobretudo as alfaias agrícolas, e os tractores agrícolas.

II. Como se vê das fotografias juntas como docs. 1 e 2 com o requerimento de 30.05.2019, com a ref. ...69, e que foi a situação vista pelo perito, os RR. reduziram não apenas a entrada para o prédio do A., mas toda a faixa que vai da Rua ... até essa entrada.

JJ. Deriva da experiência comum que um veículo, mesmo ligeiro, e apenas com 2 m de largura, não poderá passar pela faixa de terreno que constitui o leito da servidão de passagem, nem entrar no prédio pela abertura que lhe acede.

KK. E, mesmo que esse veículo tenha largura inferior a 2 m, a verdade é que, com uma passagem e entrada de 2 m de largura, não terá espaço para fazer a perpendicular, ou seja, manobrar e entrar no prédio do A.

LL. Uma vez que o Douto Acórdão reconheceu a constituição de servidão de passagem a pé e de carro, a favor do prédio do A. sobre o prédio dos RR., por usucapião, para que esta decisão tenha utilidade, deve reconhecer que a servidão tem largura não inferior a 4 m, desde a entrada para o prédio do A. inclusive, até à Rua ..., uma vez que era essa largura que tinha a entrada antes da realização da obra pelos RR., e que permite entrar e sair com os veículos que deu como provado terem circulado na e pela mesma.”.

Ora, à semelhança do que se deixou escrito supra, importa começar por salientar que a decisão posta em causa, neste segmento recursório, não corresponde à decisão final – correspondente à parte dispositiva do Acórdão recorrido -, mas sim à decisão de alteração da redação de um concreto ponto de facto.

Estando, em causa, como está, uma decisão intercalar sobre a matéria de facto, não se está, pois, perante uma verdadeira oposição entre a fundamentação e a decisão final, que seja suscetível de integrar a previsão do artigo 615.º. n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.

Em segundo lugar, não se alcança que a decisão final proferida padeça da invocada nulidade, quer por oposição entre os fundamentos e a decisão, quer por obscuridade, inexistindo qualquer vício no raciocínio lógico do julgador tal como expendido ao longo de toda a fundamentação.

De resto, a fundamentação do acórdão é perfeitamente apreensível, no sentido em que se alcança com segurança a forma como se quis resolver o litígio e é, além disso, compatível com o teor da decisão final.

É certo que, como invocam os Recorrentes, o Tribunal recorrido terá alterado o ponto 8. da matéria de facto sem atender aos meios de prova existentes nos autos e que apontam, no seu entendimento, para outra conclusão relativamente à largura da passagem sobre o prédio em causa nos autos.

Sucede que o alegado pelos Recorrentes nesta parte, podendo consubstanciar uma eventual errada valoração dos apontados meios de prova, o que poderia eventualmente constituir um verdadeiro erro de julgamento, não se confunde com a nulidade invocada e prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.

Pelo exposto, tem de improceder a arguição de nulidade do Acórdão recorrido também nesta parte.


Ainda sob o conspecto da nulidade fundada na al. c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, tanto quanto é possível apreender dos pontos M. a S. das conclusões recursórias apresentadas pelos Recorrentes, é invocada a errada aplicação, por parte do Tribunal recorrido, da faculdade prevista no artigo 662.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Civil. Defendem, a esse propósito, os Recorrentes que tal preceito legal apenas é aplicável quando os Recorrentes impugnam a matéria de facto, situação que o Acórdão não reconheceu ter ocorrido.

Concluem os Recorrentes que “não tendo existido impugnação da matéria de facto pelos RR., não deve a Relação alterar a matéria de facto, sob pena de esvaziar de sentido o princípio dispositivo, e o disposto nos arts. 640.º e 663.º, nº 6 do CPC.”.

Não assiste, porém, qualquer razão aos Recorrentes nesta parte.

Com efeito, dispõe o artigo 662.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Civil que “a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto.”.

Do citado preceito legal resulta que a Relação, no âmbito da reapreciação da decisão recorrida, deve agir oficiosamente “quanto a segmentos da decisão que (sendo imprescindíveis para a decisão) se revelem deficientes, obscuros ou contraditórios (STJ 12-5-16, 2325/12)”, devendo suprir tais vícios, “desde que constem do processo (ou da gravação) os elementos em que o tribunal se fundou (no sentido da constitucionalidade, o Ac. do Trib. Const. n.º 346/2009: STJ 7-11-19, 2929/17).” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in ob. cit., p. 826.). Foi, de resto, o que sucedeu no caso concreto.

Não se verifica, assim, a nulidade do Acórdão recorrido também, nesta parte, com fundamento na previsão do artigo 615.º, n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil.

3.2.  Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil)

Invocam ainda os Recorrentes a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, asseverando que a mesma, devendo tê-lo feito, não conheceu da extemporaneidade do recurso instaurado pelos Recorrentes, que ocorreu por força da rejeição da impugnação da matéria de facto.

É, pelo menos isso, que se apreende do texto da alínea J) das conclusões de recurso, onde se escreve: “Trata-se de um prazo peremptório, pelo que é de conhecimento oficioso, e o Venerando Tribunal da Relação deveria do mesmo ter conhecido, e não o fez, padece o Acórdão de nulidade nos termos do disposto no art. 615º nº. 1 al. d) do CPC ex vi art. 666º nº. 1 do mesmo Diploma Legal.”.

A nulidade por omissão de pronúncia reconduz-se a um vício formal, em sentido lato, traduzido em “error in procedendo” ou erro de atividade que afeta a validade da decisão. Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Como é, de modo reiterado, afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, “a nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2, do artigo 608.º, do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2020, processo número 12131/18.6T8LSB.L1.S1).

A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa, sendo que “tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual” (Acórdão do STJ de 15/12/2011, processo número 17/09.0TELSB.L1.S1).

Efetivamente, a nulidade sob escrutínio só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, sendo que, no caso do Acórdão recorrido, o objeto da decisão aí a proferir era o que se encontrava vertido nas conclusões do recurso de apelação dos réus.

Assim, concluindo-se que o Tribunal recorrido não deixou de se pronunciar sobre qualquer questão submetida à sua apreciação (incluída nas conclusões recursórias da apelação apresentada pelos réus), a presente nulidade tem de ser julgada igualmente improcedente.

3.3. Do erro de julgamento do acórdão recorrido quanto à alteração feita ao ponto 8. dos factos dados como provados relativamente à largura da passagem existente sobre o prédio em causa nos autos

Nas conclusões recursórias (sob os concretos pontos U. a NN.), os Recorrentes invocam também a existência de um erro de julgamento quanto à alteração do ponto 8. da matéria de facto provada, alegando, a este propósito, que o Tribunal recorrido, quanto ao facto relativo à largura da passagem, decidiu em clara contradição com a prova produzida a esse propósito.

No segmento do Acórdão visado pelos Recorrentes, para o que ora releva, consta o seguinte teor:

A visualização das fotografias juntas como doc. 5 e doc. 6 com o requerimento entrado às 18H26 do dia 23 de março de 2018 (fls. 92 verso e 93 verso) é importante para a boa compreensão dos referidos depoimentos. Nessas fotografias, é visível a arrecadação, a serventia e a abertura tapada com rede existente junto ao limite norte da faixa de terreno em questão nestes autos. Quando as testemunhas aludem à entrada do prédio do A. AA, estão a referir-se à abertura; quando aludem ao caminho, estão a referir-se à serventia; e quando aludem à estrada, estão a referir-se ao caminho a nascente, denominado Rua ....

A testemunha LL declarou que havia um muro que fazia a divisão dos dois prédios que vinha da esquina da adega até à entrada; que a entrada tinha 2 metros; que o muro foi partido quando foi ao prédio do A. a máquina giratória; e que não sabe quem era o dono do caminho que desemboca na Rua ....

A testemunha MM declarou que a máquina giratória esteve no prédio do A. AA há 10/ 12 anos; que a máquina tem a largura de 3 metros; que o espaço era suficiente para a máquina entrar; e que achava que o terreno que vinha até à estrada era zona pública.

Conforme atrás referido, do anexo 8 junto com os esclarecimentos prestados pelo perito HH a 9 de julho de 2020 consta a seguinte anotação manuscrita: “2 metros entrada da serventia”.

Nos esclarecimentos prestados na audiência final, o perito disse ter visto murete separador e entrada para o artigo rústico, pelo que a medição feita teve certamente presente os sinais visíveis no local.

Na fotografia junta com a contestação como doc. 11, é visível o murete e a abertura.

É a convicção deste tribunal quanto à largura da abertura que deve ser tida em consideração na nova redação do ponto 8 da matéria de facto provada.”.

Do exposto, resulta claro da fundamentação do Acórdão recorrido que a alteração do ponto 8. da matéria de facto resultou da valoração de prova testemunhal, conjugada com o documento correspondente ao anexo 8, junto com os esclarecimentos prestados pelo perito HH a 9 de julho de 2020, do qual consta a anotação manuscrita: “2 metros entrada da serventia”, apresentando-se como necessária em face da nova redação dos pontos 19., 22. e 29. do elenco da matéria de facto provada.

Nenhum dos elementos de prova atendidos e referidos no Acórdão recorrido no que respeita a tal factualidade corresponde a qualquer meio de prova vinculado, pelo que estão sujeitos à livre apreciação do tribunal.

Ora, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto do recurso de revista por escapar aos poderes de sindicância do STJ (cf. artigo 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), a não ser nas hipóteses previstas no n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, situações que  não foram invocadas e não estão em causa no caso.

In casu, sendo a referida prova livremente apreciadas pelo julgador, o pretenso erro de julgamento cometido pela Relação escapa aos poderes cognitivos do STJ no domínio da matéria de facto.

Como se refere no Acórdão do STJ de 14-01-2020 (Revista n.º 154/17.7T8VRL.G1.S2), “Não se verificando ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, nem havendo lei que, no caso, fixe a força de determinado meio de prova, não há lugar a recurso de revista incidindo sobre a matéria de facto.”.

Assim, tendo presente os poderes legais conferidos ao STJ, não pode este Tribunal modificar ou sancionar a decisão fáctica fixada pela Relação quando esteja em causa, como está, a valoração de meios de prova sem valor tabelado, sujeitos à livre apreciação do tribunal.

Atente-se no n.º 4 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, que estatui que as decisões da Relação proferidas ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 são irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, estando em causa, como se constata, a valoração de prova não vinculada e não tendo sido suscitada pelos Recorrentes a violação de lei processual no que respeita aos pressupostos de aplicação do citado artigo 662.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, não é a referida decisão suscetível de sindicância por parte deste Tribunal.


Deste modo, o recurso tem de improceder

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em confirmar o Acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 24 de maio de 2022


Pedro de Lima Gonçalves (relator)   

Maria João Vaz Tomé

António Magalhães