Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
043402
Nº Convencional: JSTJ00022312
Relator: AMADO GOMES
Descritores: RECURSO PENAL
OBJECTO
MOTIVAÇÃO
CONCLUSÕES
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
ERRO NOTÓRIO
FRAUDE NA OBTENÇÃO DE SUBSÍDIO
BURLA AGRAVADA
CONVOLAÇÃO
Nº do Documento: SJ199403090434023
Data do Acordão: 03/09/1994
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N435 ANO1994 PAG613
Tribunal Recurso: T J CAMINHA
Processo no Tribunal Recurso: 81/91
Data: 06/22/1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/SOCIEDADE / CRIM C/PATRIMÓNIO /
DIR PENAL ECON. DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 22 ARTIGO 23 ARTIGO 26 ARTIGO 48 ARTIGO 72 ARTIGO 73 ARTIGO 74 ARTIGO 78 ARTIGO 314 C.
CPP87 ARTIGO 358 ARTIGO 359 ARTIGO 410 N2 B C ARTIGO 412 N1 ARTIGO 423 ARTIGO 426 ARTIGO 435 ARTIGO 436.
DL 28/84 DE 1984/01/20 ARTIGO 36 N1 A N2 N5 N8 ARTIGO 37 N1 N3.
Sumário : I - O objecto dos recursos fixa-se, nas conclusões da motivação.
II - Quando a lei fala em "erro notório na apreciação da prova" (alínea c) do n. 1 do artigo 410 do Código Processo Penal), refere-se ao erro grosseiro, detectável por qualquer homem médio.
Esse nada tem a ver com aquele que porventura haja inquinado a convicção do julgador.
III - A factualidade típica do crime do artigo 36 n. 1 do Decreto-Lei n. 28/84 de 20 de Janeiro respeita ao momento que antecede a concessão do subsídio.
Se ela se reporta já à pretensão de receber o saldo ou seja o montante ainda não recebido do subsídio, o artifício cairá no âmbito dos artigos 313 ou 314 do Código Penal.
IV - Nada obsta a que o tribunal convole daquela para esta infracção.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Perante o Tribunal Colectivo da Comarca de Caminha, responderam:
1- A, casado, carpinteiro, nascido a 18 de Maio de 1947; e
2- B, casado, economista, nascido a 25 de Novembro de 1956.
Vinham pronunciados pela prática, em co-autoria, dos seguintes crimes consumados, em concurso real:
- um crime de fraude na obtenção de subsídios, previsto e punido pelos artigos 36 n. 1 alínea a), n. 2, n. 5 alínea a) e n. 8, do Decreto-Lei n. 28/84, de 20 de Janeiro e artigo 26 do Código Penal;
- um crime de desvio do subsídio, previsto e punido pelos artigos 37, ns. 1 e 3 do citado Decreto-Lei e artigo 26 do Código Penal.
Por acórdão de 22 de Junho de 1992, foi decidido:
a) - Absolver o arguido B do crime de desvio do subsídio.
b) - Condenar o arguido A:
1 - pela co-autoria material de um crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 36 n. 1 alínea a), n. 2 e n. 5 alínea a) e n. 8, com referência ao artigo 21, ambos do Decreto-Lei n. 28/84, de 20 de Janeiro, e artigos 22, 23 e 74 do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
2 - como autor material de um crime de desvio de subsídio, previsto e punido pelo artigo 37 ns. 1 e 3 do referido Decreto-Lei, na pena de 1 ano de prisão e 40 dias de multa a 500 escudos por dia ou, em alternativa desta, em 26 dias de prisão;
3 - em cúmulo jurídico na pena única de 3 anos de prisão e em 40 dias de multa a 500 escudos por dia ou, em alternativa desta, em 26 dias de prisão.
c) - Condenar o arguido B, pela co-autoria do aludido crime tentado de fraude na obtenção de subsídio, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
d) - Declarar perdoado a cada um dos arguidos um ano de pena de prisão aplicada e metade da multa ao arguido A - Lei n. 23/91.
e) - Ordenar a publicação da sentença.

Esta decisão assenta na seguinte matéria de facto:
No âmbito do apoio concedido pelo Fundo Social Europeu (F.S.E.) às empresas portuguesas no campo da formação profissional, o arguido A, através da sua empresa "A", com sede em Aldeia Nova, da freguesia de Venade, da Comarca de Caminha, candidatou-se à concessão de um subsídio daquele organismo comunitário, com vista à realização, no ano de 1987 - 1 de Maio a 31 de Dezembro - de uma acção de formação profissional para com pessoas, com idades inferiores a 25 anos e superiores a 18 anos, sem qualquer formação profissional, nas áreas de carpintaria mecânica, com as seguintes disciplinas: manejo de máquinas, corte de madeira em obra e construção em obra.
O custo total da acção, previsto no dossier de candidatura foi de 80665793 escudos, com a seguinte distribuição:
- F.S.E.- 39929568 escudos.
- I.G.F.S.S - 32665646 escudos.
- Contribuições privadas - 8066579 escudos.
Por decisão da Comissão das Comunidades Europeias, de 30 de Abril de 1987, o montante autorizado foi reduzido para 37511681 escudos do F.S.E., e 30511681 escudos, a atribuir pelo I.G.F.S.S, e para formação de 97 jovens.
Segundo o dossier da candidatura, elaborado pelo arguido B, e apresentado no Departamento para os Assuntos do Fundo Social Europeu (DAFSE), para além dos elementos referidos, estimava-se que a duração por pessoa daquela acção de formação seria de 33 semanas de formação, com 30 horas por semana, isto é 990 horas, das quais 396 seriam teóricas e 594 práticas, com início em 1 de Maio de 1987 até 31 de Dezembro de 1987, e com perspectivas de colocação do pessoal formando de 100 por cento.
O pedido de subsídio veio a ser aprovado nas competentes instâncias nacionais e comunitárias, nos quantitativos acima referidos, tendo o arguido A recebido a quantia de 15255840 escudos equivalente a 50 por cento do montante total a ser subsidiado pelo I.G.F.S.S.
A empresa do arguido A é de reduzida dimensão não excedendo a sede e instalações fabris 150 metros quadrados de área coberta.
Não tinha no ano de 1987 qualquer empregado ao seu serviço.
Para instalar os 97 formandos, o arguido A utilizou também a oficina pertencente a C Gonçalves, sito em Gondar, Caminha, com uma área coberta de cerca de 120 metros quadrados e, descoberta, cerca de 100 metros quadrados.
Em 28 de Maio de 1987, pelo arguido A e o referido C foi celebrado o contrato de folha 232, no qual este declara arrendar àquele a referida oficina, incluindo máquinas e ferramentas, pelo prazo de oito meses e mediante a renda mensal de 650000 escudos.
A despesa com arrendamento de instalações não estava contabilizada no pedido da concessão do subsídio.
Com a utilização das duas oficinas, os formandos foram divididos em quatro grupos ou turmas, instalando-se dois grupos em cada uma das oficinas.
Não sendo, ainda assim, suficientes as instalações, a formação foi, desde o início, reduzida para 25 horas por semana, de segunda a sexta-feira: dois grupos, um em Gondomar e outro em Venade, das 8 às 13 horas e os outros dois grupos, um em cada uma das oficinas, das 14 às 19 horas.
Os formandos não tiveram qualquer formação de componente teórica: os monitores não deram qualquer aula teórica, não procederam à recolha de material bibliográfico, nem elaboraram qualquer manual que servisse de apoio, quer as aulas teóricas, quer as aulas práticas.
Os formandos não foram também instruídos no manejo de máquinas de carpintaria, sendo até proibidos de as utilizar, nem tiveram formação nas restantes disciplinas: os monitores executavam trabalhos para o A ou para o C, consoante a oficina onde se encontravam e os formandos limitavam-se a assistir à execução desses trabalhos; os mais interessados auxiliavam, por vezes, os monitores, nesses trabalhos.
Os formandos foram utilizados em obras e serviços externos do arguido A, nomeadamente para a esposa do arguido B, a Senhora Ana Paula, ou a dar serventia aos monitores em obras a cargo daquele arguido.
Foram ainda utilizados em trabalhos que nada tinham a ver com a formação, como limpar esterco de vacarias, vindimar e outros trabalhos agrícolas e dar serventia a pedreiros
Cerca de metade dos formandos tinha idades inferiores a 18 anos ou superiores a 25 anos.
Foi declarado no "dossier do pedido de pagamento de saldo" que iniciaram a acção 97 formando e que a terminaram a 92.
Foram emitidos recibos do pagamento de subsídios, em Maio de 1987, para 95 formandos; em Junho, para 96 formandos; em Julho, para 93; em Agosto para 91 e, de Setembro a Dezembro, para 89 formandos.
Os formandos receberam a título de subsídio a remuneração mensal de 20000 escudos, se não houvesse descontos devido a faltas, durante os quatro primeiros meses, isto é, até Agosto de 1987
A generalidade dos formandos assinou, todavia, logo de início, a totalidade dos recibos, todos em branco.
A partir de Setembro de 1987, altura em que o arguido A deixou de pagar os subsídios, a maioria dos formandos deixou de frequentar a acção de formação, havendo alturas em que só compareciam dois ou três formandos.
Apesar disso, com vista a justificar a utilização da verba já recebida e obter as restantes quantias orçamentadas, o arguido B elaborou o pedido de pagamento de saldo, pretendendo fazer crer que a acção de formação profissional referida tinha decorrido de forma normal e de acordo com o programa do curso indicado e o pedido do pagamento de saldo.
Declarou-se ainda nesse pedido, ter sido pago aos formandos, relativamente aos meses de Setembro a Dezembro de 1987, a quantia de 6674000 escudos.
Nessa quantia foi englobado, a titulo de subsídio de férias, e de Natal dos formandos, o montante de 2438000 escudos que o arguido A nunca referiu aos formandos que lhes era destinada e que nunca pretendeu pagar.
Foi também contabilizada a quantia de 5186760 escudos como aquisição de matérias primas, que não foram utilizadas para instrução dos formandos; a madeira utilizada por estes atingiu o valor, no máximo, de algumas dezenas de contos.
Com vista a justificar as despesas apresentadas no pedido do pagamento de saldo, segundo instruções e indicação do arguido B, os recibos de remuneração dos monitores por estes assinados no início do curso contendo apenas exarada a importância de 25000 escudos - foram posteriormente preenchidos e alterada aquela importância por alguém que não se apurou, para 125000 escudos.
Ambos arguidos sabiam que tal remuneração de 125000 escudos por mês não correspondia à verdade, já que cada monitor recebeu nos primeiros quatro meses do curso a quantia de 65000 escudos, pretendendo com este artifício justificar verbas não depreendidas na acção de formação, com as quais A se locupletaria.
O arguido A não pagou ao C, qualquer montante de 650000 escudos, referente à renda declarada no contrato celebrado em 28 de Maio de 1987, acima referido.
O arguido A pagou ao C, no ano de 1988, as quantias de 416000 escudos, 100000 escudos, 104000 escudos; e 900000 escudos, relativas a contribuição predial e IVA em que este foi colectado.
O arguido pagou o custo da edificação de uma casa de banho na oficina do C, no montante de cerca de 500000 escudos.
Os arguidos agiram de comum acordo e segundo instruções do arguido B, no que respeita à formação dos pedidos de concessão de subsídios, sabendo também que a quantia recebida do I.G.F.S.S. foi em parte desviada do fim a que se destinava pelo arguido A, e, nessa parte, utilizadas em proveito próprio deste arguido ou de terceiros, sabendo igualmente que este arguido estava obrigado a entregar totalmente a importância recebida na realização da acção de formação nos precisos termos que se havia proposto levar a cabo.
Os arguidos sabiam também que os elementos apresentados ao D.A.F.S.E. no pedido de pagamento do saldo eram inverídicos e inexactos, relativamente aos custos da acção de formação e à forma como esta havia decorrido.
Os arguidos agiram concertada e conjuntamente, no que respeita aos pedidos de pagamento de subsídios.
Actuaram ainda deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
Os arguidos são pessoas com bom comportamento anterior e posterior aos factos.
O arguido A é de remediada condição económica e social; o arguido B tem boa situação económica, sendo de média condição social.

Desta decisão interpuseram recurso os dois arguidos.
Na motivação que apresentaram conjuntamente concluíram, em síntese:
a) - Há contradição insanável na fundamentação quanto a ambos os crimes.
(Na motivação foi alegado erro notório na apreciação da prova quanto ao crime de fraude na obtenção de subsídio (cf. ponto 6) mas tal vício não consta das conclusões).
b) - O arguido A deve ser absolvido de ambos os crimes.
c) - O arguido B deve ser absolvido do crime de fraude na obtenção de subsídio.
d) - Ao não suspender as penas aplicadas foi violado o disposto nos artigos 48 e 49 do Código Penal.
Respondeu o Ministério Público, pronunciando-se pela improcedência dos recursos.
Os recorrentes renunciaram às alegações orais e vieram alegar por escrito individualmente. O Ministério Público apresentou as suas alegações escritas.
O arguido B juntou com as suas alegações um douto parecer subscrito pelos ilustres Professores Doutores Figueiredo Dias (Catedrático) e Costa Andrade, no qual se concluiu pela absolvição do arguido; este, nas alegações, admite que a sua actuação integre cumplicidade.
O arguido A alongou-se na apreciação de factos não constantes da decisão e concluiu, em resumo:
1- O processo deve ser anulado por deficiente averiguação, devendo o processo prosseguir "para conveniente instrução" por forma a ser incriminado C.
2- Deve reconhecer-se que o arguido B foi autor de ambos os crimes e deve ser punido com penas mais graves que as suas.
3- Quanto ao pedido cível deve decidir-se que o Tribunal é competente e que o arguido B é solidariamente responsável.
O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto fez desenvolvida analise dos fundamentos dos recursos e concluiu pela improcedência de ambos.
O arguido A formulou o pedido de apoio judiciário quando juntou as alegações escritas, o qual veio a ser indeferido por decisão de folha 560.

Foram colhidos os vistos legais e, cumprido o formalismo legal, passa-se a decidir.

I- Os fundamentos de um recurso penal são enunciados especificadamente na motivação artigo 412 n. 1 do Código Processo Penal, como todos os artigos que venham a ser citados sem menção de diploma.
O objecto do recurso resulta das conclusões da motivação.
Relativamente ao recurso do arguido A, atentas as conclusões de folhas 462 e 463, o objecto do seu recurso é constituído pelas seguintes questões:
1- Contradição insanável da fundamentação.
2- Absolvição do arguido quanto a ambos os crimes por que foi condenado.
3- A não suspensão da pena em que foi condenado viola o disposto nos artigos 48 e 49 do Código Penal.
Porém este arguido, ao formular conclusões nas suas extensas alegações escritas, suscita novas questões:
a) - As conclusões 1 e 2 (folhas 538 e 539) integram a arguição da nulidade sanável de insuficiência de inquérito, prevista no artigo 120 n. 2 alínea d).
b) - Nas conclusões 3 e 4 pede a agravação da posição do arguido B quer quanto à incriminação quer quanto à pena.
c) - Nas conclusões 5 a 7 defende que, ele recorrente, deve sofrer uma pena mais leve que a do arguido B.
d) - Na conclusão 8 pede a revogação da decisão na parte em que julgou o tribunal incompetente relativamente ao pedido cível, decidindo-se que o tribunal é competente e que o arguido B é solidariamente responsável pela devolução da quantia de 15255840 escudos, com juros legais desde 30 de Junho de 1987.
O objecto do seu recurso foi totalmente alterado.
Como já atrás se disse, o objecto do recurso fixa-se nas conclusões da motivação. É o que resulta da lei, como salienta Maia Gonçalves em anotação do artigo 423, "as questões que são objecto de recurso estão perfeitamente demarcadas pela motivação...". E, em anotação ao artigo 435, a propósito das alegações escritas, o mesmo autor salienta que o relator, no despacho em que fixa prazo para as alegações, deve dizer que se lhe afigura merecerem exame especial as questões postas pelo recorrente na motivação...
Em face do exposto não pode conhecer-se das questões postas nas conclusões das alegações escritas por ser contrário à lei e até ao senso jurídico, porque os outros intervenientes não podem ser surpreendidos por questões sobre as quais já não se podem pronunciar.
Por isso, a citação do Antigo Testamento com que o recorrente abre as suas alegações, aplica-se também a ele próprio.
Decidida esta questão prévia passa-se a conhecer dos recursos.

II- Na motivação de folhas 456 e seguintes os recorrentes alegaram que o acórdão enferma de dois vícios:
- erro notório na apreciação da prova quanto ao pedido de pagamento de saldo;
- contradição insanável de fundamentação quanto ao crime de desvio de subsídio.
Porém, nas conclusões, invocaram apenas a contradição insanável da fundamentação.
Analisar-se-ão os dois vícios pois, ainda que não tivessem sido alegados, o Tribunal deve deles conhecer se verificar a sua existência.
Sem necessidade de grandes considerações dir-se-á, desde já, que improcede totalmente esta alegação.
Os recorrentes não tiveram em conta que os vícios apontados no artigo 410 n. 2 e suas alíneas só podem constituir fundamento do recurso se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como expressamente está consignado no n. 2 do artigo 410.
Os vícios alegados, que se integram nas alíneas b) e c) do referido n. 2, não resultam do texto da decisão mas sim da construção feita com base em factos que não constam da decisão.
A lei tem em vista erros grosseiros na matéria de facto decidida pelo Tribunal Colectivo que são detectáveis por qualquer homem médio.
Este tipo de vícios nada tem a ver com os que possam ter inquinado a formação da convicção do Tribunal Colectivo em resultado da prova produzida em julgamento. A apreciação dessa prova está excluída dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, mesmo que tenha sido documentada na acta.
Em face do texto da decisão recorrida entende este Tribunal que não se verifica qualquer dos vícios a que aludem as alíneas do n. 2 do artigo 410.

III - Crime de fraude na obtenção de subsídio.
Este crime está previsto no artigo 36, n. 1 alínea a), n. 2, n. 5 alínea a) e n. 8 do Decreto-Lei n. 28/84, de 20 de Janeiro, que preceitua o seguinte:
Artigo 36
n. 1 - Quem obtiver subsídio ou subvenção:
a) - Fornecendo às autoridades ou entidades competentes informações inexactas ou incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos importantes para a concessão de subsídio ou subvenção;
b) - .....;
c) - .....;
será punido com prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias.
n. 2 - Nos casos particularmente graves, a pena será a de prisão de 2 a 8 anos.
O n. 5 e suas alíneas estabelece quais são os casos particularmente graves e, o n. 8 quais são os factos importantes para a concessão de subsídio ou subvenção.
A factualidade típica descrita neste preceito incriminador respeita ao momento que antecede a concessão do subsídio e traduz-se em artifícios fraudulentos nos pressupostos da concessão do mesmo.
Uma vez concedido o benefício, como no caso em apreço as manobras fraudulentas posteriores destinadas a receber o saldo, ou seja, o montante que ainda não tinha sido entregue ao beneficiário, já não podem ser consideradas com fraude na obtenção de subsídio.
Ao arguido A foi concedido um subsídio cujos montantes autorizados foram de 37292055 escudos pelo F.S.E. e de 30511681 escudos pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (I.G.F.S.S), tendo recebido apenas 15255840 escudos equivalente a 50 por cento do montante a ser subsidiado pelo I.G.F.S.S.
Dada por terminada a acção de formação que havia determinado a concessão do subsídio, o arguido A propôs-se receber o resto. Para tanto organizou o chamado "dossier do pedido de pagamento de saldo", nele fazendo crer que a acção de formação tinha decorrido de acordo com o programa do curso oportunamente apresentado e, assim pretendia justificar a utilização da verba já recebida e a entrega das quantias ainda não recebidas.
Nesse pedido fez constar elementos inverídicos e inexactos, seguindo instruções e indicações do arguido B.
Ambos os arguidos conheciam os vícios desses elementos e sabiam que se destinavam a que o arguido A recebesse quantias em dinheiro a que não tinha direito por não terem sido gastos na acção de formação, e sabiam que tal conduta era proibida por lei.
Tais quantias não chegaram, porém, a ser recebidas por razões estranhas à vontade dos arguidos, apesar de terem praticado todos os actos que conduziriam ao recebimento das quantias pretendidas
Este aspecto da conduta dos arguidos não integra o crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma tentada, pelas razões já atrás explicadas. Na verdade, não se tratava já de obter um subsídio mas sim de conseguir a entrega de parte das verbas já concedidas.
Tal conduta contém, no entanto, todos os elementos que integram, em co-autoria, a prática de um crime tentado de burla agravada, previsto e punido pelos artigos 314 c), 22, 23, 26, 73 e 74 do Código Penal:
- intenção do arguido A de obter para si e, do arguido B, de obter para o A, um aumento ilegítimo do património deste, através do engano sobre os elementos que astuciosamente alegaram para determinarem as entidades competentes a entregar ao A quantias a que não tinha direito, causando prejuízo àquelas.
Esta diferente incriminação pode ser aplicada por este tribunal porque se limita a fazer uma valoração jurídico-penal de factos alegados pela acusação e provados na decisão do Tribunal Colectivo, o que não viola o disposto nos artigos 358 e 359 do Código de Processo Penal.
Consequentemente convola-se a acusação deduzida por um crime tentado previsto e punido pelo artigo 36 n. 1 alínea a), n. 2 n. 5 alínea a) e n. 8 alínea a) do Decreto-Lei 28/84, para a co-autoria de um crime tentado previsto e punido pelos artigos 314 alínea c), 22, 23, 26, 73 e 74, do Código Penal, pelo qual os arguidos têm de ser condenados.
Há que decidir, portanto, quanto à escolha e medida das penas a aplicar e se devem ou não ser suspensas na sua execução.
O tribunal deve dar preferência às penas não privativas da liberdade que se mostrem suficientes para promover a recuperação social do delinquente e satisfazer as exigências de reprovação e de prevenção do crime.
Para que o tribunal possa concluir que uma pena não detentiva contribui para a recuperação social do delinquente, necessário se torna que o arguido tenha dado uma imagem da sua personalidade que permita ao julgador confiar no seu comportamento futuro, designadamente se voltar a ser colocado perante situações idênticas.
Neste âmbito, o factor mais decisivo e esclarecedor é o arguido apresentar-se lealmente perante o tribunal reconhecendo o mal praticado e repudiando-o, através de demonstração de factos que permitam ao tribunal formar um juízo favorável sobre a sua conduta futura. Os arguidos confessaram.
A matéria de facto provada apenas nos diz que os arguidos são delinquentes primários e que têm bom comportamento anterior e posterior aos factos. É pouco.
Numa época em que este tipo de crime é uma das chagas que lesam a comunidade, a pena não detentiva põe em causa a validade da norma incriminadora e fere o sentimento de justiça dos cidadãos.
Por tudo se entende que devem ser aplicadas penas privativas da liberdade. A pena é, antes de mais, uma retribuição justa do mal praticado; deve contribuir para a recuperação social do delinquente por forma a não o prejudicar senão naquilo que é necessário e deve satisfazer as exigências da prevenção geral.
A determinação da sua medida assenta nos princípios contidos no artigo 72 do Código Penal: culpa/prevenção, e deve atender a todo o circunstancialismo ali referido: a ilicitude foi elevada; o dolo directo foi intenso; o modo de execução através de falsidades, é muito censurável; o arguido B, atentos o seu nível cultural e a sua profissão tinha obrigação especial de não cometer este crime. O grau de culpa de ambos é muito elevado.
Nestas circunstâncias, considera-se justa e adequada a pena de 30 meses de prisão para cada arguido.
Finalmente, a pretensão da suspensão das penas mostra-se inviável porque falta a base essencial da aplicação do artigo 48 do Código Penal, que é o juízo de prognose favorável acerca do comportamento futuro dos arguidos. Como já atrás se disse, em face dos elementos dos autos, não é possível esse juízo.
A suspensão seria ilegal.

IV - Crime de desvio de subsídio - artigo 37 ns. 1 e 3 do citado Decreto-Lei n. 28/84.
Só o arguido A foi por ele condenado.
Dispõe aquele artigo:
n. 1 - "Quem utilizar prestações obtidas a título de subvenção ou subsídio, para fins diferentes daquele a que legalmente se destinava, será punido com prisão até 2 anos ou multa, não inferior a 100 dias"
n. 3 - A pena será a de prisão de 6 meses a 6 anos e multa até 200 dias quando os valores ou danos causados forem consideravelmente elevados.

Está provado que o arguido A recebeu 15255840 escudos, equivalente a 50 por cento do montante total a ser subsidiado pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
Desta quantia não gastou na acção de formação mais de 11558599 escudos.
Deu destino diverso daquele a que se destinava, à quantia de 1520000 escudos que pagou ao Viana, relativa a contribuição predial e I.V.A em que este foi colectado, e à quantia de 2200000 escudos que gastou em seu proveito, o que fez livre, deliberada e conscientemente, sabendo que violava a lei.
Estes factos integram o crime previsto e punido pelo artigo 37, ns. 1 e 3 citado, tal como foi decidido.
No seu recurso o arguido A impugna o decidido nesta parte alegando que o Tribunal Colectivo não considerou verbas que deveria ter considerado, enumerando-as. Acrescenta que isso se deve à forma como foi valorada a prova produzida em julgamento e que há, assim, contradição insanável da fundamentação.
A este respeito há que salientar uma vez mais, que o Supremo Tribunal da Justiça não aprecia a prova produzida em julgamento. Nem podia fazê-lo porque a desconhece.
Os seus poderes de cognição apenas lhe permitem detectar vícios na decisão de facto e não na forma como o Tribunal Colectivo valorou a pena.
O apontado vício só teria relevo para os fins previstos nos artigos 410, n. 2, 426 e 436, se resultasse da decisão recorrida e, neste caso não resulta. É o próprio recorrente quem afirma que o vício resulta da forma como foi valorada a prova produzida em julgamento.
Quanto à medida da pena aplicada por este crime - 1 ano de prisão e 40 dias de multa a 500 escudos diários, com 26 dias de prisão em alternativa, o recorrente não a impugna, nem este tribunal tem qualquer censura a fazer.
Apenas alega que as atenuantes provadas, a sua personalidade e as condições da sua vida justificam a suspensão da sua execução.
Mas como este arguido está condenado por dois crimes a questão da suspensão da execução da pena só pode colocar-se relativamente à pena única a aplicar em cúmulo jurídico.
Ora, atentas as penas parcelares aplicadas e todos os elementos que vêm considerados, este Tribunal não vê razões para alterar o "quantum" aplicado na 1. instância, em cúmulo jurídico.
Assim, nos termos do artigo 78 do Código Penal, condena-se o arguido A na pena única de 3 anos de prisão e em 40 dias de multa a 500 escudos diários ou, em alternativa desta, em 26 dias de prisão.
A suspensão da sua execução não é possível porque, como já atrás foi dito, não é possível formar um juízo favorável acerca do futuro comportamento do arguido, nem se pode entender que a suspensão satisfaz as exigências de prevenção e de reprovação.
Não se verificam os pressupostos da aplicação do artigo 48 do Código Penal.

V - Decisão
Em face de tudo o exposto acorda-se:
1 - Em negar provimento aos recursos dos arguidos, alterando-se, porém o acórdão recorrido pela seguinte forma:
a) - Absolvem-se ambos arguidos do crime tentado previsto e punido pelo artigo 36, n. 1, alínea a), n. 2, n. 5, alínea a) e n. 8, com referência ao artigo 21, ambos do Decreto-Lei n. 28/84, de 20 de Janeiro;
b) - Convola-se a acusação deduzida por tal crime, para um crime tentado, em co-autoria material, de burla agravada, previsto e punido pelo artigo 314, alínea c) do Código Penal, pelo qual se condena cada um dos arguidos na pena de trinta meses de prisão.
c) - O arguido A vai condenado em cúmulo jurídico, na pena única de três anos de prisão e em quarenta dias de multa ou, em alternativa, em vinte e seis dias de prisão.
2 - Em confirmar, no mais, o acórdão recorrido.
3 - Em condenar cada recorrente a pagar 4 u.c.'s de taxa de justiça; solidariamente pagarão as custas com 1/3 da procuradoria.
Lisboa, 9 de Março de 1994.
Amado Gomes,
Ferreira Vidigal,
Ferreira Dias,
Silva Dias.
Decisão impugnada:
Acórdão de 22 de Junho de 1992 do Tribunal Judicial de Caminha