Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17909/17.5T8PRT-A.P2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
OBJECTO DO RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
INTERPRETAÇÃO
PRINCÍPIO GERAL DE APROVEITAMENTO DO PROCESSADO
CAUSA DE PEDIR
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
FACTOS COMPLEMENTARES
PRINCÍPIO DA SUBSTANCIAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
NOVOS FACTOS
SIMULAÇÃO
INTERPOSIÇÃO FICTÍCIA DE PESSOAS
Apenso:
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Não sendo caso de total inexistência, só em casos nos quais de todo em todo não se consiga vislumbrar qualquer conteúdo útil na alegações e/ou conclusões se deve lançar mão da rejeição do recurso, cabendo no demais ao tribunal delimitar o âmbito do recurso em função do que, em face da decisão recorrida e do conteúdo da alegação e suas conclusões, ainda que deficientes, depreende serem as questões relevantes e sem embargo do respeito pelo contraditório.

II – Nos termos do n.º 1 do art.º 5.º CPCiv, as partes têm de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

III - Factos essenciais são os factos constitutivos dos elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, ou seja, os factos que permitem a substanciação do pedido, independentemente de poderem ser indiciados por factos instrumentais de conhecimento oficioso, ou de serem complementados ou concretizados pelo que resulte da discussão da causa (n.ºs 2 als. a) e b) do art.º 5.º).

IV – A simulação dos sujeitos do negócio (interposição fictícia) constitui uma modalidade da simulação relativa, implicando o intuito de enganar terceiros, facto esse essencial para a caracterização da causa de pedir.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

No processo de execução comum para pagamento de quantia certa, sob a forma sumária, que a Caixa Económica Montepio Geral (à qual sucedeu, no decurso do processo Panorama Jubilante, S.A., enquanto cessionária do crédito exequendo), move contra AA e mulher BB, vieram os Executados deduzir oposição por embargos, pedindo que a execução seja julgada extinta e que a exequente seja condenada, como litigante de má fé, em multa de € 10.000, e em indemnização a favor dos Executados, no montante de € 15.000.

Alegaram para o efeito que o contrato de abertura de crédito em conta corrente que baseia a execução é nulo, por simulação, já que a real beneficiária da operação de financiamento foi a Sociedade I..., S.A., que era administrada pelo Embargante AA, sendo tal facto do perfeito conhecimento da Exequente.

Na data da formalização daquele contrato a sociedade encontrava-se em situação de incumprimento perante o Montepio Geral e o financiamento destinou-se a colocar as responsabilidades de tal sociedade fora de tal situação.

A Exequente apenas formalizou o contrato em causa, através da interposição fictícia dos Embargantes, com vista a financiar a sociedade.

A Exequente contestou, pugnando por não se verificar qualquer dos requisitos da simulação (acordo simulatório, intenção de prejudicar terceiros e intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração), mais alegando, que os Embargantes, por sua iniciativa, recorreram à Exequente para contrair o financiamento no valor de € 220.000 e que, ademais, foi pelos Embargantes constituída a favor da Exequente hipoteca sobre prédio urbano a que foi atribuído, por via de avaliação efectuada, um valor de mercado de € 260.000 euros, sendo da responsabilidade exclusiva dos Embargantes a administração e gestão do valor financiado.


As Decisões Judiciais

Julgada a acção em 1.ª instância, foi decidido declarar os embargos procedentes e, em consequência, determinar a extinção da execução e o cancelamento das penhoras realizadas nos autos.

Em face do recurso de apelação da Exequente, a Relação revogou a sentença, absolveu a Exequente/Embargada do pedido e determinou o prosseguimento da execução.


Inconformados, recorrem agora de revista os Embargantes, para o efeito apresentando as seguintes conclusões de alegação:

1.O acórdão recorrido entende que não existe motivo para a rejeição do recurso já que, das conclusões do recurso “não consta, por exemplo, o texto constante dos pontos com os números 1 a 4,7,8,9,10,11,12 e 13 do corpo das alegações” e que, “além disso, não obstante as conclusões repetirem, em grande parte, texto utilizado no corpo das alegações, as mesmas cumprem perfeitamente a sua função de delimitação do objecto do recurso”.

2. Não concordamos de todo com este entendimento. Na verdade, dispõe o n.º 1 do artigo 639º do Código de Processo Civil: “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.

3. Ora as alegações apresentadas pela então recorrente findam com proposições que, sob a designação de “conclusões”, se apresentam enumeradas com letras em vez de números, mas que não sintetizam de todo o que foi alegado.

4. Sendo apenas e só a reprodução, fiel e integral do texto que constitui o corpo das alegações.

5. Assim entendemos que, ao contrário do que decidiu o acórdão recorrido, o recurso interposto deveria ter sido rejeitado dado que as alegações apresentadas pela recorrente não contêm conclusões, na concepção exigida pelo n.º 1 do artigo 639º do Código de Processo Civil, e tal constitui fundamento para a rejeição do recurso por si interposto, ao abrigo do disposto no artigo 641º, nº 2, b) do mesmo diploma legal o que desde já se requer seja decidido no âmbito do presente recurso.

6. Por outro lado, o acórdão recorrido refere que, “Não obstante ter sido rejeitada a impugnação da matéria de facto esboçada pela recorrente, entende este tribunal, usando da competência oficiosa que a lei lhe atribui por força das disposições conjugadas dos arts. 663º nº2 e 607º nº 4, que há que extirpar do elenco factual da sentença recorrida a factualidade que consta da segunda parte do ponto 3.1.13. dos factos provados, sob a asserção “apenas figurando no contrato como beneficiários por dele não poder constar a SIV”, e a que consta do ponto 3.1.15. dos factos provados, com o conteúdo “… tal como sabia que a entidade reguladora não permitiria a realização do negócio caso o mesmo fosse celebrado em nome da beneficiária”.

7. Entendemos que o acórdão recorrido não podia ter alterado a matéria de facto, dado que a mesma não foi sequer impugnada pela então recorrente.

8. No caso vertente, dado que no recurso da matéria de facto interposto pela recorrrente esta não alega este pedido de alterações, não poderia o acórdão recorrido alterar a mesma tendo por isso violado o artigo 662º do CPC.

9. Caso assim não se entenda, deve manter-se na íntegra o ponto 3.1.13 da matéria de facto provada, dado que, ao contrário do que refere o acórdão recorrido, a mesma foi alegada pelos aqui Recorrentes na sua petição inicial (vide artigos 8º a 11º da petição inicial), bem como a matéria de facto constante do ponto 3.1.15, pois a mesma foi alegada no artigo 11º da petição inicial.

10. Violou assim o acórdão recorrido o vertido no artigo 607º nº 4 do CPC.

11. Quanto ao tema da simulação e indo ao caso concreto e com uma clareza linear, a sentença recorrida refere que “… temos que a Sociedade I..., S.A não dispunha de condições que permitissem a atribuição pela embargada de crédito. Porém, tornava-se necessário viabilizar aquela sociedade, pelo que a embargada sugeriu a celebração de um alegado contrato de credito em conta corrente com os aqui embargantes, de forma a ultrapassarem a aludida impossibilidade. Acordaram, então, com o intuito de subtrair ao conhecimento da entidade supervisora – presunção judicial - a atribuição de credito a quem não detinha condições financeiras para o efeito, celebrar contrato de atribuição de credito em conta corrente, bem sabendo que o real beneficiário era a SIV, que os embargantes não pretenderam celebrar para si aquele negócio, conscientes que por ele a SIV via viabilizada a sua atividade, simulando, assim, o verdadeiro contraente: a SIV, que foi querido e era do conhecimento de todos os intervenientes (único fundamento de com a celebração do contrato não terem sido libertados fundos).

Temos, assim, que se tratando de negócio simulado por interposição fictícia de pessoa, o negócio é nulo quanto aos embargantes e, consequentemente, inexiste título executivo quanto aos mesmos - artº 240º, nº2, do C.C”.

12. E não se percebe o “amor aos bancos” constante da fundamentação constante do acórdão recorrido, parecendo viver no mundo do século passado, em que as entidades bancárias mereceriam algum tipo de consideração e de respeito.

13. Basta atentar nos sucessivos escândalos que atingiram a banca portuguesa para se perceber que o mundo mirífico de que a exequente original sendo um banco “seria a ultima interessada em celebrar um negocio simulado” não tem fundamento!

14. A exequente de facto simulou o contrato de empréstimo com os executados para com o referido empréstimo serem liquidadas responsabilidades vencidas da Sociedade I.... Não tendo celebrado tal contrato com a referida Sociedade I... devido à situação de incumprimento da mesma!

15. E como parece lógico e óbvio não iria constar da escritura que o empréstimo seria para liquidar responsabilidades da SIV.

16. O acórdão recorrido omite que conforme consta da sentença da 1ª instância a funcionária da embargante CC, “de forma simples e coerente, esclareceu que a operação em apreço nos autos foi aprovada para liquidar as responsabilidades a que se refere o documento a fls. 163 vº do grupo JALopes (vide do. 162 - contrato e ...64 confirmando que não existiu qualquer libertação de fundos “.

17. Mais refere a sentença da 1ª instância: “Decorre do mail remetido por funcionária da embargada a DD, com conhecimento à testemunha, que o referido contrato não teve por objecto a real concessão de crédito em conta corrente, tal como afirmado pela embargante”.

18. E omite também que o funcionário EE, funcionário da embargada, “confirmou que o pagamento realizado e que pôs termo às responsabilidades da SIV englobou o valor reclamado na execução de que estes são apensos / cerca de sete milhões de euros )”.

19. É pois manifesta a existência da simulação e, em último caso, está provado que o pretenso crédito já foi liquidado pela Sociedade I... que, conforme resulta também do acórdão recorrido, foi a real beneficiária do mesmo!

20. Por último vem o acórdão recorrido referir que existirá abuso de direito por parte dos aqui recorrentes.

21. Salvo melhor opinião e dando de barato que a referida questão pode ser de conhecimento oficioso, o certo é que existem limites a tal conhecimento.

22. Conforme inúmera jurisprudência era necessária que constassem dos autos factos alegados a esse respeito e, analisando as peças processuais vertidas nos autos, verificamos que não existe qualquer alegação de factos que pudessem levar o tribunal recorrido a concluir que os embargantes e aqui recorrentes tivessem actuado com abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

23. Violou assim o acórdão recorrido o vertido no artigo 334º do Código Civil e 608º nº 2 do CPC.

Por contra-alegações, a Exequente pugna pela improcedência do recurso.


Factos Apurados

1. Por escritura outorgada em 4 de Abril de 2011 no Cartório Notarial ... a cargo da Drª FF exarada de fls. 33 a fls. 38 do L..., SA, pessoa colectiva nº ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o mesmo número, procedeu ao trespasse à Caixa Económica Montepio Geral, aqui Reclamante, pessoa colectiva nº... matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o mesmo número, do “estabelecimento comercial que constitui a universalidade de activos (intangíveis e fixos tangíveis) e passivos, nomeadamente, contratos de depósito, contratos de mútuo, e, de uma forma geral, a totalidade dos direitos e obrigações de que é titular o trespassante no âmbito da sua actividade bancária”.

2. Consta daquela escritura “estão incluídos neste contrato de trespasse, nomeadamente:(…)  h) O restante activo do estabelecimento, incluindo nomeadamente os créditos sobre os mutuários, devedores e restante clientela a ele afecta, acompanhados de todas as respectivas garantias e acessórios, mediante a cessão da posição contratual da sociedade trespassante ou outro título jurídico suficiente…”.

3. Na mesma data e Cartório foi outorgada uma escritura de “Cessão de Créditos” exarada de fls. 47 a 49 do Livro de nº 130-B através da qual o F..., SA, pessoa colectiva nº ... acima identificado, procedeu, enquanto titular de “conjunto de créditos vencidos e vincendos, concedidos a diversos mutuários”, à cessão dos mesmos a favor da Exequente.

4. Tal cessão comportou, relativamente a todos os créditos cedidos, a transmissão para a Exequente” de todos os direitos, garantias e acessórios a eles inerentes, designadamente hipotecas constituídas para a sua garantia, bem como a posição processual do C..., SA) nos processos identificados na referida listagem que constitui documento complementar anexo a esta escritura, relativamente a cada um dos Créditos ora cedidos.”

5. Por escrito particular celebrado em 22 de Setembro de 2006, o então F..., SA, no exercício da sua actividade, abriu um crédito aos executados GG e mulher HH sob a forma de abertura de crédito em conta corrente até ao limite de € 220.000,00 (DUZENTOS E VINTE MIL EUROS) destinado a apoio de tesouraria.

6. O referido contrato foi celebrado pelo prazo de 6 (seis) meses, prorrogável de acordo com Cláusula Segunda do contrato, podendo ser movimentado a débito e a crédito, nos termos da Cláusula Quarta, obrigando-se os beneficiários perante a Exequente a pagar-lhe juros mensal e postecipadamente sobre os saldos utilizados indexada à taxa Euribor a 6 Meses acrescida de uma margem de 1%, como tudo consta da Cláusula Quinta.

7. Nos termos da Cláusula Oitava, encontra-se estipulada a indemnização de 4% ao ano (actualmente fixada em 3%), a título de cláusula penal, calculada sobre o capital em dívida, desde a data da entrada em mora.

8. Por escritura pública outorgada em 22 de Setembro de 2006 no Cartório Notarial ... exarada de fls. 16 a 20 do Livro de Escrituras Diversas nº 45-A e para garantir o cumprimento de todas e quaisquer responsabilidades até ao limite de € 220.000,00 elencadas na al. a) da escritura assumidas ou a assumir pelo executados e perante a Exequente, estes constituíram hipoteca voluntária a favor da Exequente sobre o imóvel infra mencionado e melhor identificado nos “"Bens indicados à penhora" , a saber:

- Prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão e primeiro andar, com garagem e lavandaria sitio na Avenida ..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art. ... descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...10 melhor identificado em “Bens indicados à penhora”

9. A hipoteca encontra-se registada a favor da Exequente na aludida Conservatória pela Ap. ...8 de 2006/08725 e Averb. da transmissão de crédito - Ap. ...41 de 2011/11/25 a qual garante o Montante Máximo de Capital e Acessórios de €291.500,00.

10. Por cartas registadas datadas de 20.03.2017 e recebidas pelos executados, a embargada comunicou aos embargantes:

Exmºs Senhores

Foi celebrado com V. Exªs, na qualidade de mutuário, o contrato supra identificado.

O referido contrato encontra-se em incumprimento desde 2015-03-22, estando nesta data em dívida o valor total de € 194 733,51.

Nessa conformidade, vimos interpelar V. Exª para no prazo de 8 (oito) dias proceder ao pagamento do montante em dívida acima indicado.

Caso a quantia em dívida não seja liquidada por V. Exª naquele prazo, o incumprimento tornar-se-á definitivo e considerando-se imediatamente vencidas todas as obrigações emergentes do contrato, com as consequências daí resultantes.

11. O Valor a que se refere o contrato de abertura de crédito destinou-se a fazer face a questões de tesouraria da Sociedade SIV, tendo o valor do alegado credito em conta corrente sido utilizado pela embargada para liquidar responsabilidades daquela sociedade.

12. Embargantes e embargada outorgaram o referido crédito em conta corrente com a intenção do seu valor ser utilizado pela embargada em benéfico da SIV, por esta àquela data não dispor de liquidez para solver as suas responsabilidades.

13. Os embargantes ao outorgarem o referido contrato não quiseram obter para si qualquer crédito.

14. A embargada ao atuar como descrito estava consciente de que os embargantes não pretendiam contrair em nome próprio qualquer crédito, bem como sabia que o valor do crédito não iria ser utilizado pelos mesmos em beneficio próprio.


Factos Não Provados

1. O crédito foi utilizado aos beneficiários nos termos das condições constantes das Cláusulas Terceira, Quarta e Quinta do contrato

2. Os executados deixaram pagar as obrigações assumidas a partir de 27/02/2015.

3. Mercê das utilizações efetuadas encontra-se em dívida, a título de capital, o montante de € 180.000,00.


Conhecendo:


I


Começando por avaliar da pretensão de que a apelação tivesse sido rejeitada, tal como antes formulado nas contra-alegações de apelação, por via de as conclusões do recurso não passarem de uma reprodução do corpo das alegações.

Quanto à primeira questão, verificou-se de facto, na formulação de conclusões de apelação, uma quase repetição do corpo das alegações – exceptuaram-se apenas destas os artigos 8.º a 12.º, entre os 16 artigos de alegação.

Apreciando a matéria, a Relação citou, apropriadamente, o Ac.S.T.J. 16/12/2020 (proc. nº2817/18.0T8PNF.P1.S1 – rel. Tomé Gomes, desta mesma 2.ª secção), onde se escreveu que “a falta de conclusões a que se refere a alínea b), parte final, do nº2 do artigo 641º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso, deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objectivo, independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena de se abrir caminho a interpretações de pendor subjectivo”, devendo ocorrer “uma aferição casuística em ordem a ponderar, à luz do princípio da proporcionalidade, a repercussão que uma reprodução mais ou menos integral nas conclusões do corpo das alegações possa acarretar, em termos da inteligibilidade das questões suscitadas, em sede do exercício do contraditório e da delimitação do objecto do recurso por parte do tribunal”.

É necessário pois que as conclusões favoreçam o exercício do contraditório e a delimitação do objecto do recurso.

Em sentido semelhante, veja-se o que se discorreu no Ac.S.T.J. 28/10/21, pº 8975/17.4TSTB.E1.S1 (desta mesma 2ª Secção, rel. Rijo Ferreira), onde se ponderou ter-se generalizado, na prática judiciária, uma atitude condescendente em que os Tribunais Superiores desconsideram o incumprimento dos ónus de alegação e conclusão, avançando para a decisão em face do que têm como, e do que depreendem da decisão recorrida e da alegação, as questões que constituem o objecto do recurso.

Tal fica a dever-se a razões de ordem prática:

Ao reconhecimento da impotência para obviar a um reiterado afastamento dos padrões legalmente estabelecidos, alia-se a percepção de nessa matéria não ser admissível a existência de critérios de exigência diversificados em função de idiossincrasias individuais, que redundariam num tratamento desigualitário e arbitrário dos cidadãos no seu acesso ao recurso.

Por outro lado, a consideração de que a utilização de um critério mais rigoroso redundaria num prejuízo para a parte recorrente, que veria o acesso ao recurso negado em função de um comportamento que não lhe será imputável.

Assim, não sendo caso de total inexistência, só em casos extremos em que de todo em todo não se consiga vislumbrar qualquer conteúdo útil na alegações e/ou conclusões se deve lançar mão da rejeição do recurso.

Nos demais casos cabe ao tribunal delimitar o âmbito do recurso em função do que, em face da decisão recorrida e do conteúdo da alegação e suas conclusões, ainda que deficientes, depreende serem as questões relevantes.

Sem embargo, porém, do respeito pelo contraditório, sendo certo que, no caso dos autos, os Embargantes, ora Recorrentes, apresentaram contra-alegações de apelação nas quais impugnaram a matéria alegada, revelando integral compreensão da mesma.

Diga-se que esta é também a repetida posição do blog do ippc, por M. Teixeira de Sousa (veja-se aquela que é, na presente data, a última entrada, n.º 217, de 24/5/2021).

No caso dos autos, o facto de as conclusões serem reprodução do já constante (em parte) das alegações – com transcrição dos próprios artigos das alegações – não prejudicou a compreensão do alcance do recurso de apelação, seja pela contraparte, seja pelo tribunal, para o que certamente contribuiu o teor sintético, seja das conclusões, seja das alegações, no respectivo corpo.

Por via dessa “simplicidade” da impugnação recursória, e porque se entendeu que a impugnação poderia ser apreciada, como veio a ser, prosseguiu-se com a apreciação do recurso.

Nada há assim que dizer, improcedendo este primeiro fundamento da revista.



II


A Relação expurgou do acervo dos factos provados a expressão, que finalizava o facto 13 – “apenas figurando no contrato como beneficiários por dele não poder constar a SIV”.

Ou seja: onde em 1.ª instância se entendeu provado que “os embargantes, ao outorgarem o referido contrato, não quiseram obter para si qualquer crédito, apenas figurando no contrato como beneficiários dele por não poder constar a SIV”, figura supra, sob 13, proveniente da Relação:

“Os embargantes ao outorgarem o referido contrato não quiseram obter para si qualquer crédito”.

Também a Relação desconsiderou o facto 15.º proveniente de 1.ª instância, do seguinte teor: “A Embargada sabia que a entidade reguladora não permitiria a realização do negócio, caso o mesmo fosse celebrado em nome da beneficiária”.

Basicamente, considerou a Relação que tais factos não haviam sido alegados no processo, assumindo um perfil conclusivo.

Se olharmos aos articulados dos embargos, a Relação tem, pelo menos em parte, razão – de nenhum passo resulta que “a entidade reguladora não permitiria a realização do negócio caso o mesmo fosse celebrado em nome da beneficiária” e que a Embargada de tal fosse conhecedora.

Mais duvidoso é saber se a alegação compreendia a ideia de que “os Embargantes apenas figuraram no contrato como beneficiários, por dele não poder constar a sociedade” (facto 13); na verdade, resulta de diversos passos do petitório que a situação de incumprimento da sociedade era inconveniente que se mantivesse para o Banco Embargado e para o respectivo balanço (cf. art.ºs 11.º e 14.º).

Vejamos a questão em maior pormenor.



III


A decisão da Relação merece um pequeno transcurso sobre a noção de factos essenciais, factos complementares ou concretizadores e factos instrumentais, tal como hoje constam do disposto nos n.ºs 1 e 2, nas suas diversas alíneas, do art.º 5.º CPCiv.

Referem os preceitos que as partes têm de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

Para lá desses factos, o juiz pode ainda considerar:

- factos complementares ou concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, desde que resultem da discussão da causa e desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem;

- factos instrumentais que resultem da discussão da causa.

Ora, os factos essenciais, único dependentes exclusivamente de alegação, são os factos constitutivos dos elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo.

Fazendo uso de uma distinção antiga do processo civil português, são os factos que permitem a substanciação do pedido.

Ora, quais são os factos que, no caso dos autos, permitem a oposição à execução?

Tais factos encontram-se sintetizados no art.º 14.º da petição de embargos:

“Em conclusão é manifesta a existência de simulação, pois a Exequente apenas formalizou o contrato de mútuo em causa, através da interposição fictícia dos aqui devedores, com vista a financiar a Sociedade I..., S.A., e assim conseguir que a mesma não ficasse numa situação de incumprimento evitando assim e igualmente a existência de imparidades que iriam afectar o seu balanço.”

Ou seja – factos essenciais são os que permitam concluir pela simulação do contrato, por via da interposição fictícia dos ora Embargantes.

E não há dúvida de que pode ocorrer interposição fictícia de pessoas quando o intermediário apenas empresta o seu nome, no quadro da contratação, visando ocultar as relações jurídicas estabelecidas, mas – e esse é um ponto decisivo – desde que tal implique acordo simulatório entre as partes a quem o negócio interessa e o intermediário aparente maxime desde que tal implique o intuito de enganar terceiros.

Na verdade, a simulação dos sujeitos do negócio constitui uma modalidade da simulação relativa – art.ºs 240.º n.º1, 241.º n.º1 CCiv e Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1983, pg. 186.

Ora, foi o intuito de enganar terceiros que não defluiu minimamente do teor do petitório ou dos articulados, integrando tal intuito um facto essencial para a caracterização da causa de pedir, independentemente da forma como a mesma causa de pedir se poderia complementar ou caracterizar.

Evitar imparidades no balanço é uma finalidade lícita, corresponde a conveniências subjectivas e insindicáveis do outorgante – outra coisa, diferente, é o objectivo de enganar a entidade reguladora ou outrem (matéria que deveria ter sido alegada, a fim de que a interposição fraudulenta pudesse dizer-se integrada).

Portanto, não tendo sido alegado o facto essencial, o mesmo não poderia ter sido considerado na sentença, não cabendo a desconsideração da decisão da Relação de afastar o citado facto 15.º do elenco dos provados.

Sublinhe-se também que o acordo simulatório teria que abranger o referido “intuito de enganar terceiros”, o que também nunca resultaria do singelo facto 15.º aludido (e provado em 1.ª instância).

Em conclusão, não existiam factos essenciais alegados que permitissem a conclusão dos factos considerados provados em 1.ª instância n.ºs 15.º e da parte final do n.º 13.º, razão pela qual nada existe que apontar à desconsideração de tais factos ou segmentos factuais na Relação.

Como salientou adequadamente essa 2.ª instância:

“Os embargantes vincularam-se livremente a obter, por si próprios e em seu nome, o financiamento e, também livremente, a ficar por si próprios responsáveis pelo seu pagamento, dando até de hipoteca, para garantia de tal pagamento, o prédio urbano de sua propriedade referido sob o ponto 3.1.8. dos factos provados. Tê-lo-ão feito, com certeza, devido ao facto de terem algum especial interesse na vida e na situação económica daquela sociedade (não obstante não estar referido na matéria de facto da sentença, note-se que são os próprios embargantes que afirmam no artigo 3º da petição inicial que aquela sociedade, ao tempo da celebração do contrato de financiamento, era administrada pelo embargante AA).”

(…) “Como tal, o banco financiador não quis contratar com um terceiro mas sim com os embargantes e por causa de a garantia de patrimonialidade do crédito concedido ficar assegurada com a hipoteca de prédio urbano destes.”

“O facto de ambos os outorgantes saberem (pontos 11 a14 dos factos provados) que o dinheiro iria ser utilizado para pagar dívidas da sociedade da qual o embargante marido era administrador, isso apenas diz respeito à utilização posterior do dinheiro e não “transforma” aquele contrato num contrato com a sociedade nem num contrato para enganar quem quer que seja.”

Ou poderá mesmo citar-se a sentença de 1.ª instância:

“Não deve confundir-se a interposição fictícia com a interposição real, que se verifica quando alguém conclui um negócio jurídico em seu nome, mas por conta ou interesse ou a favor de outrem, pelo que os direitos e obrigações emergentes do negócio se produzem em relação àquele que, todavia, se obriga a transferir os direitos para esse outro”.

Não existia assim fundamento para a afirmação de interposição fictícia de pessoas, ficando prejudicada a apreciação de abuso de direito por parte dos Embargantes, a qual resultaria em inútil obiter dictum.


Em suma:

I – Não sendo caso de total inexistência, só em casos nos quais de todo em todo não se consiga vislumbrar qualquer conteúdo útil na alegações e/ou conclusões se deve lançar mão da rejeição do recurso, cabendo no demais ao tribunal delimitar o âmbito do recurso em função do que, em face da decisão recorrida e do conteúdo da alegação e suas conclusões, ainda que deficientes, depreende serem as questões relevantes e sem embargo do respeito pelo contraditório.

II – Nos termos do n.º 1 do art.º 5.º CPCiv, as partes têm de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

III - Factos essenciais são os factos constitutivos dos elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, ou seja, os factos que permitem a substanciação do pedido, independentemente de poderem ser indiciados por factos instrumentais de conhecimento oficioso, ou de serem complementados ou concretizados pelo que resulte da discussão da causa (n.ºs 2 als. a) e b) do art.º 5.º).

IV – A simulação dos sujeitos do negócio (interposição fictícia) constitui uma modalidade da simulação relativa, implicando o intuito de enganar terceiros, facto esse essencial para a caracterização da causa de pedir.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelos Recorrentes.

                              

S.T.J., 13/7/2022


Vieira e Cunha (relator)

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique Cabral Ferreira