Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B097
Nº Convencional: JSTJ00036059
Relator: SOUSA INÊS
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA - TIR
PERDA DAS MERCADORIAS
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ199903110000972
Data do Acordão: 03/11/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 672/98
Data: 07/06/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: DL 46235 DE 1965/03/18.
D 28/88 DE 1988/09/06.
CCIV66 ARTIGO 342 N1 N2 ARTIGO 799 N1.
Referências Internacionais: CONV RELATIVA AO CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS POR ESTRADA (CMR) ART17 N1 N2 ART18 N1 N2 ART20 N1 ART23 N1 N2 N3 ART24 ART29.
PROT DE GENEBRA DE 1978/07/03.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1994/10/05 IN CJSTJ ANO1994 TIII PAG80.
Sumário : I- No âmbito da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), o conceito de perda de mercadoria é heterogéneo: efectiva destruição da coisa por acção interna ou externa, substituição de uma coisa por outra, entrega em lugar diverso, ou falta de entrega nos trinta dias seguintes ao termo do prazo convencionado, ou, se não foi convencionado prazo, dentro dos sessenta dias seguintes à entrega da mercadoria ao cuidado do transportador.
II- Cabe ao transportador a responsabilidade pela perda da mercadoria, com os limites referidos no artigo 23 da Convenção, os quais não existem se o expedidor mencionar na declaração de expedição um valor que exceda o limite legal, ou se o transportador (ou os seus agentes ou outras pessoas a cujos serviços recorra) actuar com dolo ou praticar falta que, segundo a jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.
III- A culpa do devedor, mas não o dolo, presume-se, recaindo sobre o credor da indemnização pela perda da mercadoria o ónus de alegar e provar os factos necessários à demonstração do dolo do transportador.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
"A - Companhia de Seguros, SA" intentou, a 15 de Novembro de 1996, acção declarativa, de condenação, com processo ordinário, contra "B - Transportes Internacionais, Lda" e "C - Companhia de Seguros" pedindo a condenação das rés a pagarem-lhe, solidariamente entre si, a quantia de dois milhões seis mil setecentos e vinte e três escudos acrescida de juros, à taxa anual de quinze por cento, a partir da citação.
Para tanto, em resumo, a autora alegou que segurou mercadoria expedida pela exportadora "D - Representações, Lda", por intermédio
da transitária "E", com destino à importadora "F", de Itália, consignada à "G", daquele mesmo país, que dela faria entrega à sua destinatária. A ré "B", incumbiu-se do transporte remunerado por estrada, de Portugal para Itália, mas não fez a entrega, no destino, de seis cartões. Por isto, a importadora não pagou o preço desta mercadoria à exportadora; e a autora, no cumprimento das suas obrigações emergente do seguro, pagou à exportadora o respectivo valor, de um milhão oitocentos e noventa e oito escudos, tendo ficado sub-rogada nos direitos da exportadora sobre a transportadora. A Autora dispendeu, ainda, a quantia de cento e oito mil duzentos e vinte e cinco escudos em averiguações que mandou fazer por intermédio de "H".
A ré "C" segurou a responsabilidade da "B".
A ré "B" contestou pugnando pela absolvição do pedido alegando haver transferido a sua responsabilidade para a co-ré.
A ré "C" contestou pugnando pela sua absolvição do pedido pelo que este excede a quantia de cento e oitenta e três mil quinhentos e trinta e oito escudos por a não mais ascender a sua responsabilidade, seja por força do disposto no artigo 23, n. 3, da Convenção C.M.R., seja nos termos do contrato de seguro celebrado com a "B"; e não devendo juros por ser caso de mora do credor.
O Quinto Juízo Cível da Comarca do Porto, por douta sentença de 16 de Dezembro de 1997:
a) absolveu a ré "B" do pedido;
b) condenou a ré "C" a pagar à autora a quantia de cento e noventa mil trezentos e dezanove escudos, respeitante a parte do pedido concernente ao reembolso do que pela autora foi pago à "D", com juros de 10% a partir da notificação da sentença;
c) absolveu a "C" do restante pedido (resto do reembolso, despesa e juros).
Em apelação da autora, o Tribunal da Relação do Porto, por douto Acórdão de 6 de Julho de 1998, alterou a sentença pelo que respeita à ré "B" que, agora, foi condenada, solidariamente com a sua co-ré, no pagamento acima referido na alínea b).
Ainda inconformada, a autora pede revista.
Mediante este recurso a autora pretende que a acção seja julgada totalmente procedente pelo que respeita ao reembolso do que pagou à "D".
Para tanto, a recorrente ofereceu douta alegação onde conclui de sorte a procurar mostrar que no Acórdão recorrido se violou o disposto nos artigos 17, n. 2, e 23, n. 3, da Convenção CMR, 799, n. 1, e 342, n. 2, estes do CCIV.(1)
A "C" alegou, doutamente, no sentido de se negar a revista.
A "B" não alegou.
O recurso merece conhecimento.
Vejamos se merece provimento.
A matéria de facto adquirida no Acórdão recorrido não vem posta em crise pelo que, em obediência ao disposto no artigo 713, n. 6, aplicável por força do disposto no artigo 726, ambos do CPC, remete-se, nesta parte, para os termos do Acórdão sob revista.
A qualificação jurídica dos contratos celebrados, um de transporte internacional de mercadorias por estrada e dois de seguro, nem vem questionada, nem merece reparo.
A questão que se coloca para ser decidida por este Tribunal respeita à responsabilidade do transportador perante o expedidor; e à respectiva
medida, no primeiro dos aludidos contratos.
É aplicável a "Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)", recebida no direito português pelo DL 46235, de 18 de Março de 1965, com a redacção do Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado, para adesão, pelo D 28/88, de 6 de Setembro.
De harmonia com o artigo 17, n. 1, desta Convenção, o transportador é responsável pela perda, total ou parcial, da mercadoria entre o momento do carregamento e o da entrega.
O conceito de perda da mercadoria é heterogéneo: efectiva destruição da coisa por acção interna (evaporação e combustão), ou externa (incêndio, furto), substituição de uma coisa por outra, entrega em lugar diverso, ou falta da entrega dentro dos trinta dias seguintes ao termo do prazo convencionado ou, se não foi convencionado prazo, dentro dos sessenta dias seguintes à entrega da mercadoria ao cuidado do transportador. Cfr. o artigo 20, n. 2, da Convenção e Acórdão deste Tribunal de 3 de Outubro de 1994 (Torres Paulo), in CJ, STJ, 1994, III, pág.80.
No entanto, o transportador fica isento de responsabilidade quando a perda da mercadoria resultar de riscos particulares especificados no artigo 17, n. 4, da Convenção; e fica desobrigado desta responsabilidade nos casos previstos no artigo 17, n. 2, da Convenção.
Quanto ao ónus da prova, é sobre o credor da respectiva indemnização devida pela perda da mercadoria que recai o de mostrar que essa perda ocorreu, como resulta do disposto no artigo 342, n. 1, do CCIV, já que a perda da mercadoria é elemento constitutivo do direito à indemnização; e resulta, ainda, a contrario, do disposto no artigo 18, n. 1, da Convenção.
De qualquer modo, esta prova, a cargo do lesado, está muito facilitada pela regra do artigo 20, n. 1, da Convenção, que autoriza o interessado, sem ter de apresentar outras provas, a considerar a mercadoria como perdida quando esta não tiver sido entregue dentro dos trinta dias seguintes ao termo do prazo convencionado ou, se não foi convencionado prazo, dentro dos sessenta dias seguintes à entrega da mercadoria ao cuidado do transportador.
Em contrapartida, é sobre o transportador que recai o ónus de alegar e provar as circunstâncias que o desobriguem ou isentem de responsabilidade, como resulta dos artigos 17 e 18 da Convenção, aliás de harmonia com o artigo 342, n. 2, do CCIV.
Questão diferente desta é a da medida da responsabilidade do transportador pela perda da mercadoria.
A regra é esta; tal responsabilidade é calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que foi aceite para transporte, segundo a cotação na bolsa, ou, na falta desta, pelo preço corrente no mercado, ou, na falta de ambos, pelo valor usual das mercadorias da mesma natureza e qualidade (artigo 23, ns. 1 e 2, da Convenção).
Todavia, esta responsabilidade tem um limite máximo: não pode ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta, de harmonia com o artigo 23, n. 3, da Convenção, na redacção do Protocolo de 5 de Julho de 1978.
Este limite só não existe em duas circunstâncias.
A primeira é a de o expedidor mencionar na declaração de expedição, contra pagamento de um suplemento de preço, um valor da mercadoria que exceda o dito limite (artigo 24 da Convenção).
A segunda, é a de o transportador (ou de seus agentes ou outras pessoas a cujos serviços recorra) actuar com dolo ou praticar falta que, segundo a jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo (artigo 29 da Convenção).
A culpa do devedor presume-se, nos termos do disposto no artigo 799, n. 1 do CCIV.
Mas o que não se presume é o dolo.
Este é um conceito mais restrito. Para haver dolo é necessário que o agente tendo conhecimento do efeito antijurídico da sua conduta, saiba que ela é ilícita e, apesar disso, queira ou aceite o resultado.
Ora, não se presumindo o dolo do devedor, mas somente a sua culpa, recai sobre o interessado, o credor de indemnização pela perda da mercadoria, o ónus de alegar e provar os factos necessários à demonstração do dolo do transportador, caso queira valer-se da isenção de limite de indemnização ao abrigo do artigo 29 da Convenção, por força do artigo 342, n. 1, do CCIV.
Isto posto, e regressando à espécie em julgamento, temos que resulta ter havido perda da mercadoria visto que os seis cartões expedidos pela "D" não chegaram ao seu destino, a transitária "G", quando, em 22 de Novembro de 1995, se procedeu à descarga da camioneta em que teriam sido transportados.
Presume-se a culpa da transportadora "B".
Não resulta provado que a transportadora (ou os seus comitidos) hajam actuado com dolo (ou em falta equiparada).
E é certo que não resulta que a expedidora tenha declarado, ao expedir, um valor da mercadoria superior ao limite estabelecido no artigo 23, n. 3, da Convenção.
Por isto, a responsabilidade da transportadora, "B" - e reflexamente a da sua seguradora "C" - está limitada ao valor consignado no artigo 23, n. 3, da Convenção.
Foi neste sentido a condenação ditada pelas instâncias.
Não se torna, por isto, necessário apreciar a questão de saber se a "C" tem a sua responsabilidade limitada a esse mesmo valor por força do clausulado no contrato que celebrou com a sua segurada.
Concluiu-se, assim, que no Acórdão recorrido não foram violado os
preceitos legais invocados pela recorrente.
Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.
(1) A "C" diz que a recorrente não indica quais as normas jurídicas que diz terem sido violadas, mas sem daí tirar qualquer consequência, invocando o disposto no artigo 722, n. 1, do CPC. Ora, por um lado, não é esta a norma aplicável, mas sim o artigo 690, n. 2, daquele Código. E, por outro lado, como resulta das conclusões da alegação da recorrente, a indicação vem feita, como no texto se acaba de apontar.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 11 de Março de 1999.
Sousa Inês,
Nascimento Costa,
Pereira da Graça.