Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
48/12.2YREVR.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DELITO DE OPINIÃO
CRIMINALIZAÇÃO DO NEGACIONISMO DO HOLOCAUSTO
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
EVOLUÇÃO E ESTRUTURA
Data do Acordão: 07/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO COMUNITÁRIO - MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PENAL - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA A IDENTIDADE CULTURAL E INTEGRIDADE PESSOAL.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da Republica Portuguesa”, Anotada, p. 573.
- Mário Elias Soltoski, “O controlo da dupla incriminação e o mandado de detenção europeu”, RPCC, Ano 16, p. 475.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, p. 867 e seg..
- Rafael Alcácer Guirao, “DISCURSO DEL ODIO Y DISCURSO POLÍTICO En defensa de la libertad de los intolerantes”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia RECPC 14-02 (2012) − http://criminet.ugr.es/recpc − ISSN 1695-0194.
- Timothy Garton Ash, A liberdade de expressão em debate.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 240.º, N.º2, AL. B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 26.º, 37.º, 41.º, 42.º, 43.º, 45.º, 46.º, N.º4.
LEI N.º 23/2007, DE 04.07.
LEI Nº 65/2003, DE 23.8: - ARTIGOS 1.º, N.º2, 2.º, N.º3, 12.º, 13.º.
Legislação Comunitária:
DECISÕES-QUADRO 2002/584/JAI, 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI E 2008/913/JAI, 2008/947/JAI, 2009/299/JAI.
RECOMENDAÇÃO NÚM. R (97) 20 DO COMITÉ DE MINISTROS DO CONSELHO DE EUROPA, DE 30 DE OUTUBRO DE 1997
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CONSELHO EUROPEU DE TAMPERE, PONTO 37 DAS CONCLUSÕES, APROVADO PELO CONSELHO EM 30 DE NOVEMBRO DE 2000.
TRATADO DE AMESTERDÃO, EM VIGOR DESDE 1 DE MAIO DE 1999, QUE INSTITUIU O ESPAÇO DE LIBERDADE, SEGURANÇA E JUSTIÇA – ELSJ: - ARTIGO 29.°.
TUE: - ARTIGO 38.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS (CEDH): - ARTIGOS 10.º, 17.º, 53.º.
Jurisprudência Nacional:

ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 4/1/2007.
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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº 81/84 (PUBLICADO NA 2ª SÉRIE DO DIÁRIO DA REPÚBLICA DE 31 DE JANEIRO DE 1985 E NO VOLUME 4º DOS ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, 225 E SEGS.).
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (EM HTTP://WWW.ECHR.COE.INT/ECHR ) :
- CASOS OBSERVER E DD V. THE UNITED KINGDOM, PROC. Nº 13585/88, DE 26/11/1991; CASO EE V. SPAIN, PROC. Nº 11798/85, DE 23/04/1992; CASO FF V. ÁUSTRIA, PROC. Nº 15974/90, DE 26/04/1995; CASO GG V. PORTUGAL, PROC. Nº 37698/97, DE 28/09/2000; CASO HH A.S. V. TURQUIE, PROC. Nº 64178/00, 64179/00, 64181/00, 64183/00, 64184/00, DE 30/03/2006; CASO II V. ÁUSTRIA, PROC. Nº 60899/00, DE 02/11/2006; CASO JJ, S.A. V. PORTUGAL, PROC. Nº 11182/03 E 11319/03, DE 26/04/2007.
- GÜNDÜZ C. TURQUÍA DE 4 DE DEZEMBRO DE 2003, § 41; ERBAKAN C. TURQUÍA, DE 6 DE JULHO DE 2006.
- GARAUDY C. FRANCIA, DE 24 DE JUNHO DE 2003.
- LEHIDEUX E ISORNI C. FRANÇA, DE 23 DE SETEMBRO DE 1998; CHAUVY Y OTROS C. FRANÇA, DE 23 DE JUNHO DE 2004, § 69.
- RIFA PARTISI E OUTROS C. TURQUÍA, DE 13 FEVEREIRO DE 2003, § 98; DECISÃO FDANOKA C. LETONIA, DE 17 JUNHO DE 2004.
- ERGOGDU E INCE C. TURQUIA, DE 8 DE JULHO DE 1999.
Sumário :
I- Os motivos de não execução facultativa não vinculam a autoridade judiciária de execução a não proceder á detenção e entrega, pois conferem-lhe, uma potestas decidendi dentro da liberdade e independência de convicção e de decisão que lhe é comummente reconhecida, mas vinculam-na a perpetrar um juízo jurídico de hermenêutica profundo e de ponderação da tutela de interesses juridicamente protegidos em conflito - a protecção de bens jurídicos em confronto com o crime e a protecção de interesses humanos face ao jus puniendi.

II- A recusa facultativa assenta em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo e susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente factos invocados pelos interessados, que, devidamente equacionados, levem a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente.

III- O mandado de detenção europeu corporiza três características que simbolizam o princípio do reconhecimento mútuo.

IV-A liberdade de opinião e de expressão são indissociáveis: a primeira é a liberdade de escolher a sua verdade no segredo do pensamento, a segunda é a liberdade de revelar a outrem o seu pensamento; liberdades simétricas, têm necessidade uma da outra para se desenvolverem e se expandirem.

V-A liberdade de expressão, segundo a jurisprudência do TEDH "constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, o que vale mesmo para as ideias que ferem, chocam ou inquietam; e qualquer restrição a essa liberdade só é admissível se for proporcionada ao objectivo legítimo protegido.

VI- A liberdade de expressão não é, não pode ser, a possibilidade de um exercício sem quaisquer limites alheio á possibilidade de colisão com outros valores de igual ou superior dignidade constitucional. Em Portugal, tal como na Alemanha, existem limites ao exercício do direito de exprimir, e divulgar, livremente o pensamento, e a sua violação pode conduzir á punição criminal ou administrativa. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes que gozam de protecção, inclusive, penal.

VII- A liberdade de expressão não pode prevalecer quando o seu exercício violar outros valores aos quais a lei confere tutela adequada. Tais valores tanto podem emanar de uma necessidade de defesa de bens jurídicos radicados na ordem constitucional, e cuja valoração é intuitiva, como podem resultar de uma necessidade de tutela de valores que inscritos no espaço jurídica em que o nosso país se inscreve nomeadamente o comunitário.

VIII- Critério da dupla incriminação, ou da sua ausência, sendo omisso no elenco do artigo 12 da Lei 65/2003, está por alguma forma enunciado no nº3 do artigo 2 quando afirma que só é possível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação.

IX- Fundamental na negação do Holocausto é a rejeição do facto de ter existido uma politica de perseguição, e extermínio, dos judeus, elaborada pelo estado nacional-socialista alemão, com a finalidade de sua exterminação enquanto povo; que mais de cinco milhões de judeus foram sistematicamente mortos pelos nazistas e seus aliados; e que o genocídio foi realizado em campos de extermínio recorrendo a formas de extermínio em que prevalece a utilização de ferramentas de assassinato em massa, tais como câmaras de gás.

X- Existem duas formas de encarar a maneira de combater o negacionismo: ou no campo das ideias do debate livre, e aberto, ou na valorização do bem jurídico fundamental que está em causa, tutelando-o com o recurso á criminalização. Tal dualidade está bem patente na circunstância de o negacionismo do Holocausto ser explícita ou implicitamente ilegal em dezasseis países, mas não criminalizado noutros países.

XI- A mera difusão de conclusões sobre a existência, ou não, de determinados factos, sem emitir juízos de valor sobre os mesmos, ou a sua ilicitude, não se pode considerar como uma excepção á liberdade de expressão, mas sim como o produto de uma eventual elaboração intelectual, porventura injustificada ou patética, mas admissível. Falamos, assim, da diferença entre a mera negação do genocídio por contraposição á conduta que comporta uma adesão valorativa ao mesmo crime de genocídio, promovendo-o e exprimindo sobre ele um juízo de apreciação positiva. No mesmo plano se situa a incitação indirecta ao genocídio apresentando-o como justo, ou resultante de alguma espécie de provocação por parte daqueles que foram as suas vítimas. O entendimento de que deve ser penalizada a difusão de condutas justificativas do genocídio como manifestação do discurso do ódio está em consonância com as mais recentes aquisições em termos de direito comunitário como é o caso da Decisão-Quadro 2008/913/JAI do Conselho.

XII Não contem o vicio da inconstitucionalidade a penalização de condutas que, embora não sejam claramente idóneas para incitar directamente á comissão de delitos contra o direito dos povos como o genocídio, supõem uma incitação indirecta ao mesmo ou provocam, de modo mediato, a discriminação, o ódio ou a violência que é precisamente o que permite, em termos constitucionais, o estabelecimento do tipo legal do artigo 240 nº 2 b) do Código Penal.

XIII- A decisão sobre a prestação de garantia nos termos do artigo 13 da Lei 65/2003 depende da resposta formulada ao módulo do formulário pré estabelecido e, nomeadamente, á resposta afirmativa, ou negativa, á pergunta de se o interessado foi notificado pessoalmente, ou por outro modo informado da data e local da audiência. Interpretada a norma pela forma referida a resposta apenas admite uma daquelas alternativas e não uma incursão sobre a notificação dos prazos judiciais que foram fixados, como faz o mandado emitido.

Decisão Texto Integral:



                                    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            Em cumprimento de pedido de detenção emitido por autoridade judicial alemã, inserida no Sistema de Informação de Shengen, procedeu-se à detenção, em 11.04.2012, ao abrigo do disposto no art. 4.º, n.ºs 4 e 5, da Lei n.º 65/2003, de 23.08 (que aprovou o regime jurídico do mandado de detenção europeu em cumprimento da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho da União Europeia, de 13.06), do cidadão AA, de nacionalidade alemã, aí devidamente identificado.           

Tal pedido refere-se a mandado emitido pelo Tribunal Regional de Nuremberg-Furth, na Alemanha, tendo por finalidade o cumprimento, por aquele cidadão, da pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em que havia sido condenado, por Agitação criminal contra segmentos da população, insultando comunidades religiosas, difamação pública qualificada/Agravada do Estado, que coincide com o insulto (=ofensa/afronta), difamação pública Qualificada/Agravada do Estado, que coincide com o insulto, difamação pública qualificada/agravada do Estado, que coincide com a Agitação criminal contra segmentos da população.  

Em 12.04.2012, teve lugar a audição do detido, nos termos do art. 18.º da Lei n.º 65/2003, tendo o mesmo sido assistido por defensor e com a presença de intérprete, então nomeados.

Nessa mesma data, antes da audição, veio a ser junto o mandado de detenção europeu (MDE), concluindo-se que foi emitido por aquele Tribunal, na Alemanha, para cumprimento daquela pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, a que é descontado o período de 85 (oitenta e cinco) dias de prisão preventiva, decorrente de condenação por sentença aí proferida em 06.04.2005, pela prática de um total de 32 infracções, qualificadas como de difamação do Estado, racismo e xenofobia, insulto de comunidades religiosas, difamação agravada do Estado e afronta agravada, p. e p., como do mesmo consta, pelo parágrafo 90-a, partes 1 e 3, pelo parágrafo 130, parte 1, n.ºs 1 e 2, e parte 3, pelo parágrafo 166, parte 2, pelo parágrafo 185 e pelos parágrafos 52, 53, 92-b, frase 1, n.º 1, do Código Penal Alemão. 

                        Consta do mesmo mandado que:

O condenado AA, nacional-socialista e, segundo a sua própria declaração, “Funcionário do Reich Alemão”, fez declarações em vários artigos na internet e no âmbito de um discurso público no período do dia 8 de Maio de 2002 e o dia 11 de Janeiro de 2004 difamando a República Federal da Alemanha, fazendo propaganda contra judeus e estrangeiros afrontando outras pessoas:

Ele considera o Terceiro Reich como ainda existente e declara a República Federal da Alemanha como uma “construção dos ocupantes” e um “regime de vassalos” dos Estados Vencedores da Segunda Guerra Mundial. A República Federal da Alemanha era dedicada à decadência e contra a lei internacional; ele desmente os crimes do Terceiro Reich contra a população judeia isto é ele minimiza­-a e fala da maior e mais profitável mentira na história da raça humana; no que diz respeito aos estrangeiros, ele utiliza palavras como “negro impertinente”, “misturação das raças"”e “terror multi-cultural”; acusou uma procuradora da República da alta traição e da prevaricação.

Transcrevendo, ainda, o mesmo documento e no que respeita ás molduras legais dos crimes imputados:

- Quanto às referidas infracções, a duração máxima da pena respectiva é de:

a) 3 anos (difamação do Estado e dos seus símbolos)

b) 5 anos (Volksverhetzung) - em tradução do Relator, incitamento ao ódio e violência da população

c) 3 anos (insulto de comunidades religiosas)

d) 1 ano (afronta)

- No tocante às aludidas disposições legais:

§ 90 a difamação do Estado e dos seus símbolos:

(1) Quem (§ 11, par. 3)

1. afronte a República Federal da Alemanha ou um dos seus estados federais ou a sua ordem constitucional ou a faz desdenhoso de uma maneira malévola ou

2. difame as cores, a bandeira, o brasão ou o hino da República Federal da Alemanha ou de um dos seus estados federados, numa reunião ou pela difusão de escritos, é penalizado a cinco anos de prisão ou a pagar uma multa.

(3) A pena é uma pena de prisão se o autor se empenha com o seu delito por engano contra a existência da República Federal da Alemanha ou contra os princípios constitucionais.

§ 130 Volksverhetzung (incitamento ao ódio e violência da população) 

(1) Quem, de qualquer maneira adequada para perturbar a paz pública,

1. incite ao ódio contra partes da população ou a métodos de violência ou de arbitrariedade ou

2. ataque a dignidade humana de outras pessoas difamando, fazendo desdenhoso de uma maneira malévola ou caluniando partes da população, é penalizado a uma pena de prisão entra 3 meses e 5 anos.

(3) É penalizado a pagar uma multa ou a uma pena de prisão de até cinco anos, quem aceite, desminta ou minimize um ato cometido sob o regime do nacional-socialismo de uma maneira designada no § 6, par. 1 do Võlkerstrafgesetzbuch – em tradução do Relator, Código Penal - e adequada para perturbar a paz pública.

§ 166 Insulto de confissões, comunidades religiosas e uniões de concepções do mundo

(1) Quem, pela distribuição de escritos (§ 11, par. 3), insulte o conteúdo de uma confissão religiosa ou uma concepção do mundo de outras pessoas de uma maneira adequada a perturbar a paz pública é penalizado a uma pena de prisão de até três anos ou a pagar uma multa.

(2) Também penalizado é quem, pela distribuição de escritos (§ 11, par. 3), insulte uma Igreja existente no interior ou o conteúdo de um outro grupo religioso ou de uma concepção do mundo, as suas instituições ou costumes de uma maneira adequada a perturbar a paz pública.

§ 185 Afronta

A afronta é penalizada com uma pena de prisão de até um ano ou com o pagamento de uma multa se a afronta é feita por meio de vias de facto.

            - Relativamente às garantias (art. 13.º da Lei n.º 65/2003):

Detalhes sobre a ausência do condenado: O condenado foi convidado ordenadamente para as datas da audiência e ele participou em 17 dias da audiência principal; fugiu ao processo restante resultando no fato que os últimos dois dias do processo, inclusive a publicação da sentença, tiveram lugar na sua ausência, mas na presença do seu advogado de defesa. 

             O detido declarou, nessa audição, não consentir na sua entrega ao Estado requerente e não renunciar à regra da especialidade.

Pelo seu ilustre defensor foi requerido que lhe fosse concedido prazo para deduzir oposição.

Proferiu-se despacho, validando, por legal, a detenção, e mantendo-a, tendo sido concedido o prazo de dez dias para oposição, nos termos e para os efeitos do art. 21.º, n.º 4, da Lei n.º 65/2003.

Nesse prazo, constituiu mandatário, através de procuração que juntou, vindo a requerer, por isso, a prorrogação do mesmo e por dez dias, o que lhe foi concedido.

Não obstante, no prazo inicialmente concedido, veio o seu defensor nomeado a deduzir oposição, no essencial, nos seguintes termos:

            Acontece ter o mesmo declarado e reafirmar “que não consente numa sua entrega ao estado requerente e que não renuncia à regra da especialidade”, por, afirmou e reafirma, “não haver liberdade de expressão na Alemanha” e “sendo perseguido politicamente”; assim, invocando o artigo 19º dos Direitos Humanos, e os demais aplicáveis ao seu caso, requer que lhe seja concedido o Asilo Político, pois está a viver há seis anos em Portugal, estando perfeitamente integrado, por se sentir bem aqui, não existindo perigo de fuga, e até por não possuir meios para se ausentar.  

O Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do prosseguimento dos autos e de prolação de decisão de deferimento do pedido com a entrega do requerido ao Estado emitente.

Já em 31.05.2012 e, assim, bem depois de decorrida aquela prorrogação de prazo para oposição, o ilustre mandatário apresentou requerimento, no essencial, referindo:

1 - O arguido foi sentenciado numa pena de trinta e três meses de prisão efectiva por, alegadamente, ter cometido as infracções em foi condenado.

2 - Porém, requereu a reapreciação da prova por terem surgido dados novos, veiculados pela Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas uma vez que, segundo esta Comissão, os factos praticados pelo arguido relacionam-se com a História, pelo que podem e devem ser objecto de debate e inserem-se na livre expressão do pensamento de cada um.

3 - E os países democráticos, refere o mesmo relatório daquela Comissão, não podem coarctar a livre expressão do pensamento e de opinião, sobretudo quanto aos temas históricos, antes devendo estimular e promover o debate sobre essas questões.

4 - O recurso foi, recentemente, apresentado, aguardando, o seu mandatário em Portugal, que o mesmo lhe seja enviado para o apresentar ao tribunal, após tradução e certificação.

5 - Assim, pode, o ora arguido, requerer que a sua extradição não tenha lugar, até ser proferida uma decisão sobre o recurso apresentado.

Pelo exposto, vem requerer, a V. Exa., se digne determinar que o detido permaneça em Portugal, até que seja proferida uma decisão sobre o recurso ora apresentado.

Pelo Tribuna da Relação de Évora foi emitido decisão na qual se decidiu deferir a execução do mandado de detenção europeu para entrega do cidadão AA às competentes autoridades judiciárias da Alemanha, para efeitos de cumprimento da pena fixada, pelos factos e infracções que a motivaram.

Desta decisão o mesmo requerido interpõe recurso para este Supremo Tribunal no qual se refere, em sede de conclusão, que:         

I- O ora recorrente é um intelectual que, para além do estudo em ciências gráficas e Belas Artes, dedicou-se, também, aos estudos linguísticos, nomeadamente aos estudos comparativos da linguística indo-germânica, indologia e arqueologia, dedicando-se, mais tarde, ao estudo do tibetano;

II- Nessa qualidade de investigador e intelectual, faz, como muitos outros, uma interpretação própria dos diversos factos históricos que investiga, entre eles os relacionados com a própria Alemanha, nomeadamente os referentes ao pós-guerra;

III- Foi assim que, ao analisar e comentar um documento, aliás, histórico, concernente à rendição da Alemanha, emitiu a sua própria interpretação, que esteve na origem da sua detenção e condenação;

IV- Mas de que documento se trata e quem o subscreveu?

V- Apensa o documento assinado pelo então Comandante-Geral Supremo das Forças Militares Alemãs, Grossadmiral Donitz ( não sabemos traduzir esta patente, mas será comparada a de Marechal, julgamos );

VI- Segundo este documento, o que se verificou foi a rendição, incondicional, das Forças Armadas Alemãs perante o Comandante-em-Chefe das Forças Expedicionárias dos Aliados e o Comando Supremo Soviético. ( Doc. 2 ).

VII- Perante este documento, o ora recorrente entende - é a sua opinião - que não houve rendição do Gov. Alemão, ao tempo, mas sim do seu exército, apenas;

VIII- Esta é a sua opinião e por esta razão encontra-se detido, um indivíduo que jamais cometeu qualquer crime e desconhecia, até, os tribunais;

IX- A título de curiosidade, relevamos que o ora recorrente não é o único a pensar deste modo e todos os intelectuais que assim procedem, curiosamente alguns magistrados e advogados, experimentaram graves problemas, desde multas a processos disciplinares, quando não acabavam detidos, acusados do crime de "delito de opinião";

X- Contudo, a sua opinião, repetimos, é fundamentada no documento ( doe. 2 ) supra e junto aos autos, subscrito pelo representante máximo das forças militares, nessa altura;

XI- Analisando o dito documento à distância e sem qualquer paixão, parece-nos curial admitir, como o faz o ora recorrente, que o que se verificou foi a capitulação das Forças Armadas Alemãs e não a renúncia política à soberania do Reich ( Reino ) Alemão;

XII- Esta é a opinião do ora recorrente, por ser esta a interpretação que ele faz do conteúdo do documento e, nessa medida, assiste-lhe o direito de expressar, livremente, o seu pensamento, não podendo ser coarctado nem condenado por emitir esse mesmo pensamento;

XIII- Aliás, o próprio mandatário do ora recorrente que patrocinou a sua defesa na Alemanha, foi condenado a uma pesada multa por, pasme-se, não se ter distanciado da posição do seu constituinte e assim o defender, como se confirma pelo documento enviado por um dos mandatários de outro preso, nas mesmas circunstâncias. ( Doc. 3 );

XIV - São muitos os intelectuais que foram detidos pelo "crime" de "delito de opinião", noção mais que vaga, como convém, para justificar, é o termo, uma férrea censura e, de entre os mais recentes, referimos o escritor austríaco BB, autor da obra "Adios Europa", que vivia em Espanha há vários anos, extraditado para Viena, mas devolvido a Espanha, onde reside, gozando do estatuto de asilado político. ( mesmo doc. 3 );

XV- De tal modo assume repercussão todos estes casos, raiando o escândalo num País que se arroga de democrático, que um intelectual alemão, o Dr. CC, ele próprio já sofredor, na pele, pelos mesmos factos, ao tomar conhecimento da detenção do ora recorrente e o consequente pedido de extradição, endereçou uma missiva à Embaixada Portuguesa, na Alemanha, bem demonstrativa da verdadeira perseguição que se faz naquele País a quem ousa pensar de modo diferente. ( Doc. 4 );

XVI- Vale isto por dizer, que o mandado emitido contra o ora recorrente foi determinado por motivos políticos, pelo que o mesmo pode ser recusado, por força do disposto no art. 11.° al. e), da L 65/03, de 23/VHI;

XVII- Por outro lado, a emissão de uma opinião relativa a um facto histórico, ainda que contrário ao pensamento do politicamente correcto, não constitui infracção punível, perante a lei portuguesa, pelo que o mandado pode e deve ser, ainda, recusado, por força do disposto no art. 12.° al a), do mesmo diploma legal atrás citado;

XVIII- Além disso, o ora recorrente encontra-se em território nacional, sendo que o Estado Português, quanto à medida da pena aplicada ao ora recorrente, pode comprometer-se a executar, de acordo com lei portuguesa;

XIX- Aqui levanta-se, porém, um problema, já que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado, entre outros, no pluralismo de expressão, como se estatui no art.° 2.°, da C. R. P.;

XX- Significa isto que, perante a lei portuguesa, o ora recorrente não cometeu qualquer crime, uma vez que lhe é garantido o direito ao pluralismo de expressão;

XXI - Na verdade, sob a capa - demasiado ampla - do "crime" de "delito de opinião", a R. F. da Alemanha exerce uma férrea censura, privando de direitos e prejudicando qualquer cidadão, em função das suas convicções políticas ou ideológicas;

XXII - Tal conduta contraria o vertido no art.° 13.°, da C. R. P., segundo o qual  "ninguém pode ser prejudicado, privado de qualquer direito, em razão de    convicções políticas ou ideológicas... ";

XXIII     - Ou seja, pelo simples facto de, livremente, expressar o seu pensamento, o ora recorrente jamais seria condenado em Portugal, pois é a lei fundamental que defende, nobremente, a liberdade de cada um e a livre expressão da sua opinião;

XXIV     - Em reforço do que supra alegamos, remetemos para o art.° 37.°, da C. R. P., que tem como título: "liberdade de expressão e informação";

XXV      - Por força do n° 1 deste artigo e citamos: "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações";

XXVI     - Como supra foi dito, não há a livre expressão do pensamento na Alemanha, mas antes uma forte censura e coacção, sobre todos os que ousam expressar, livremente, o seu pensamento, como é o caso do ora recorrente;

XXVII    - Tal conduta contraria a lei portuguesa, nomeadamente o n° 2.° do mesmo normativo atrás citado, que nos diz: " O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura";

XXVTII - Justamente o inverso, que ocorre no Estado-membro da emissão do mandado, que detém o ora recorrente;

XXIX-O ora recorrente sentiu-se vexado, humilhado, perseguido e, acima de tudo, injustiçado pela acusação ridícula e atentatória de sua dignidade e condição de homem livre e a consequente condenação, pelo simples facto de ter expressado uma opinião do desagrado do politicamente correcto;

XXX     - Sentiu por si e também pelos mais de cem mil presos políticos hoje existentes na R. F. da Alemanha, condenados pelo "crime" eufemisticamente chamado de "delito de opinião";

XXXI     - For isso, a sua fuga, se assim a podemos chamar, mais não foi do que um veemente protesto e um direito a resistir à ordem que, em rigor, ofendo o seu direito à livre expressão do seu pensamento, privando-o do direito à liberdade e não garantindo, pelas razões já supra aduzidas e documentadas, um julgamento justo e imparcial;

XXXII    - Ou seja, o ora recorrente, ao agir como agiu, mais não fez do que exercer o seu direito de resistência a uma ordem que reputa de iníqua, ofensiva dos seus direitos, liberdades e garantis, tal como estatui o art.° 21.°, da C. R. P.;

XXXIII-Assim, entendemos que o ora recorrente não pode ser extraditado para o Estado-membro da emissão do mandado e, se tal decisão se mantiver, outra alternativa não teremos senão a de recorrer para o T. Constitucional;

XXXIV- É que dúvidas não subsistem de que, uma vez extraditado para o Estado-membro da emissão, ser-lhe-á negado um julgamento justo, até porque o próprio ordenamento jurídico alemão, segundo o mandatário do ora recorrido e que o patrocinou na Alemanha, não prevê qualquer tipo de deferimento ao recurso pelo crime de "delito de opinião", como se alcança pela tradução do doe. 1, junto aos autos;

XXXV- Significa isto, que o Estado-membro da emissão não poderá garantir um só dos requisitos previstos no art.° 13.°, da L 65/03, de 23/VIII, pelo que a execução do mandado pode ser recusada, por força do estatuído neste normativo;

XXXVI- Em abono da nossa tese, se nos é permitido, lembramos a resposta de Aristóteles, quando questionado se já não era amigo de Platão, seu Mestre, uma vez que divergia na sua Filosofia, respondeu: "Sim, sou amigo de Platão, mas mais ainda da Verdade";

XXXVII - Sabemos quão incómoda poder ser a Verdade, mas temos de nos bater, não só por amor a ela, mas também por amor à justiça, à justeza das decisões, à liberdade e ao respeito por todos aqueles que, por ela, se viram privados da liberdade.

Termina pedindo que seja revogada a decisão que ordena a extradição do recorrente para o Estado-membro da emissão, pelas razões alegadas e por força das disposições legais invocadas e conjugadas, substituindo-se por outra, que determine a permanência do recorrente em território nacional.

Respondeu o M°.P°.  nos termos do disposto no artigo 24° n° 4° da Lei n° 65/2003, de 23 de Agosto, referindo que

Não se vê qualquer fundamento, por isso mesmo, para não proceder à entrega do Recorrente ás Autoridades Judiciais do Estado de Emissão do MDE, tanto mais quanto o Estado de Execução não poderá (nem deverá) pôr em causa a decisão que fundamenta o respectivo pedido, que o Estado de Emissão assegura tratar-se de Sentença com força executiva.

São justamente os princípios do reconhecimento e da confiança mútuos em que se estriba a Decisão-Quadro nº 2002/584/JAI que o impõe.

Continuando a aderir à exaustiva e convincente fundamentação do Acórdão sob Recurso, eis o que entendemos referir/acrescentar quanto aos 3 restantes argumentos do Recorrente:

1)         O direito à liberdade de opinião e de expressão não é um direito absoluto (como parece entender o Recorrente) e por isso deve conter-se em determinados limites, designadamente quando

contende com outros direitos (individuais e colectivos) da mesma gradação constitucional.

É o que sucede quando a opinião expressa consubstancia, por exemplo, incitamento á violência, à discriminação e ao ódio, como é o caso (claro e inequívoco) dos factos que estiveram na base da condenação do Recorrente na Alemanha, alias também expressamente violadores da respectiva Constituição.

Diga-se, de resto, que o artigo 46° n° 4o da CRP proíbe (também) expressamente a constituição de organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista (e, por maioria de razão, a propaganda dos seus fundamentos ideológicos), o que corresponderá - na visão do Recorrente - a uma verdadeira constitucionalização de "delitos de opinião".

O que nos conduz, de imediato, ao segundo argumento.

Na verdade,

2)         Não é só a CRP que tal não consente.

Dando corpo aos princípios enformadores do Estado de Direito Democrático que a Constituição consagra, também o Código Penal Português prevê e pune, entre outros, a discriminação racial, religiosa ou sexual, a traição à Pátria e o ultraje de símbolos nacionais e regionais.

Por isso e ao contrário do que defende o Recorrente, os factos por que foi condenado na Alemanha no Processo que esteve «na base da Emissão do MDE são igualmente previstos e puníveis pelo artigo 240° n° 2° alínea b), pelo artigo 308° alínea b), por referência aos artigos 180°, 182° e 184° e pelo artigo 308° alínea b), todos do Código Penal Português.

3) Nos exactos termos em que este argumento vem formulado (e deles não podemos sair nem extrapolar), nenhuma razão assiste ao Recorrente.

É que, conforme é jurisprudencial e pacificamente entendido, a remissão feita para a Hei portuguesa" no segmento final da alínea g) do n° 1° do artigo 12° da Lei n° 65/2003 é apenas e exclusivamente para a que regula o cumprimento das penas de prisão e das medidas de segurança privativas da liberdade, devendo considerar-se intocada (e intocável) a Sentença Estrangeira a executar em Portugal.

Citando um excerto do Acórdão do STJ de 27/05/2010, aliás proferido no Processo n° 53/10.3YREVR,"O MDE ... é um instrumento específico que substitui integralmente o processo de extradição dentro da União Europeia. A Lei n.° 65/2003, que o introduziu no nosso ordenamento jurídico, não prevê nenhum processo de revisão de sentença estrangeira, pois tal seria absolutamente contraditório com a razão de ser e função do MDE. O Título IV da Lei n.° 144/99, de 31-08, não tem aplicação ao MDE, pois constitui a "lei geral" de cooperação judiciária penal, ao passo que a Lei n. ° 65/2003 constitui "lei especial". Mas a que "lei portuguesa " se refere a parte final da al. g) do n.°J da Lei n. ° 65/2003? Obviamente à lei de execução das penas ou medidas de segurança! Ou seja, o Estado da execução deve aceitar a condenação nos seus precisos termos, mas tem o direito de executar a pena ou a medida de segurança de acordo com a lei nacional. É uma reserva de soberania quanto à execução" (em rodapé Ac. de 26-11-2009, Proc. n.° 325/09.0JDLSB.L1.S1 -5." remetendo, por sua vez, para o Ac. de 23-11-2006, Proc. n. ° 4352/06) "

                                 Termina pedindo a improcedência do recurso

                                        Os autos tiveram os vistos legais. 

                                                                 *

                                                     Cumpre decidir:

Como ponto prévio impõe-se a consideração de que a oposição deduzida pela requerente se centrou em três eixos essenciais:

a)-O mandado emitido contra o recorrente  foi determinado por motivos políticos pelo que o mesmo pode ser recusado por força do disposto no artigo 11 alínea e) da Lei 65/2003

b)-A emissão de uma opinião relativa a um facto histórico ainda que contrário ao pensamento politicamente correcto não constitui infracção punível perante a lei portuguesa pelo que o mandado pode e deve ser recusado em função do disposto no artigo 12 alínea a) do mesmo diploma.

c) Uma vez extraditado ser-lhe-á negado um julgamento justo até porque o ordenamento jurídico alemão não prevê qualquer deferimento ao recurso por delito de opinião o que significa que o Estado demissão não poderá garantir um só dos requisitos previsto no artigo 13 da lei 65/2003 pelo que a execução pode ser recusada

 A análise de tal impetração do requerente implica uma breve digressão sobre o conceito e evolução do denominado mandado de detenção europeu.                          

Assim,

O Tratado de Amesterdão, em vigor desde 1 de Maio de 1999, instituiu o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça - ELSJ (artigo 29.°).A cooperação judiciária em matéria penal continuou a fazer parte do III Pilar, não tendo sido "comunitarizada", como o foram a cooperação em matéria civil e as matérias de asilo e emigração. Realçam-se as importantes alterações introduzidas a nível da cooperação penal a qual deixou de ser uma cooperação meramente intergovernamental, dado o crescente papel da Comissão e do Parlamento Europeu.

Efectivamente passou a existir a possibilidade de adopção de decisões-quadro para efeitos de aproximação legislativa (instrumento de contornos semelhantes ao da directiva do I Pilar mas sem efeito directo);

- a Comissão passou a ter direito de iniciativa

- previu-se, em termos a definir, a participação de autoridades judiciárias e de polícia criminal em acções a realizar no território de um outro Estado Membro;

- a nível das relações externas, o artigo 38 do TUE veio permitir à União Europeia concluir por, unanimidade, acordos internacionais com Estados terceiros ou organizações internacionais em matérias relevantes do III pilar.

Por outro lado, o Tratado de Amesterdão integrou o "acquis Schengen" no acervo da União Europeia.

Um dos objectivos do Tratado de Amesterdão foi facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça, mediante a instituição de acções em comum no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal, através da prevenção e combate à criminalidade, organizada ou não, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos, os crimes contra as crianças, o tráfico ilícito de armas, o tráfico de droga e o combate à corrupção e à fraude através, quer de uma cooperação mais estreita entre autoridades judiciárias e outras autoridades competentes dos Estados Membros, quer da aproximação de disposições de direito penal dos Estados Membros.

0 Tratado de Nice, que entrou em vigor a 1 de Fevereiro de 2003, não introduziu grandes alterações institucionais em matéria de cooperação judiciária penal, traduzindo antes um quadro de continuidade.

A importância conferida ao Espaço de Segurança, Liberdade e Justiça pelo Tratado de Amesterdão foi reafirmada pelos Chefes de Estado e de Governo, tendo sido realizado um Conselho Europeu em Tampere, em 15 e 16 de Outubro de 1999, exclusivamente dedicado a estas matérias, cujas conclusões são invocadas como fundamento do trabalho da União Europeia em matéria de cooperação judiciária penal nos últimos cinco anos. Mais do que um mero enunciar de princípios, constituíram um desenvolvimento qualitativo nos trabalhos da União Europeia e um momento essencial na história do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Para além das múltiplas áreas aí elencadas (protecção das vítimas, prevenção da criminalidade, luta contra a criminalidade - Eurojust, Task Force Chefes de Polícia, equipas de investigação conjuntas, Academia Europeia de Polícia, reforço da Europol, Estratégia contra a droga - acção específica contra o branqueamento de capitais), que foram efectivamente incrementadas, foi retomada a ideia de um Plano de Acção para Concretização do ELSJ, tendo-se concluído que o reconhecimento mútuo de decisões se deveria tomar o eixo essencial da cooperação judiciária na União Europeia tanto em matéria penal como em matéria civil, aplicável quer a sentenças judiciais, quer a outras decisões de autoridades judiciárias.

Para implementação deste princípio foi adoptado um Programa de medidas destinadas a aplicar o princípio do reconhecimento mútuo de decisões penais com um conjunto de medidas a adoptar e respectivo prazo de adopção.

O programa de medidas destinado a dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais, referido no ponto 37 das conclusões do Conselho Europeu de Tampere, e aprovado pelo Conselho em 30 de Novembro de 2000, aborda a questão da execução mútua de mandados de detenção.

Na elaboração da decisão quadro que conduziu á criação do mandado de detenção europeu foi determinante o objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça o que conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias.

A instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que, até á criação da referida figura, prevaleciam entre os Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial, como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

            O objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas, ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleciam entre Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitada em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

O mandado de detenção europeu, previsto na decisão-quadro de 2002, constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de "pedra angular" da cooperação judiciária.

 Pode-se afirmar que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros substituindo, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição, incluindo as disposições nesta matéria do título III da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen.

O seu núcleo essencial reside em que, «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União».

Tal significa que as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste Estado.

Directamente conexionada com os motivos de não execução obrigatória, a decisão quadro genética do mandado de detenção europeu prescreveu motivos de não execução facultativa. Motivos que dotam a autoridade judiciária de execução de uma potestas decidendi livre, e de refúgio, face à quase automática vinculação de execução do mandado de detenção europeu, tendo em conta ao controlo jurídico a que aquela estava, aparentemente, submetida.

Os motivos de tal recusa não só equilibram os princípios da liberdade e da segurança, como servem de fiel da balança na procura da segurança da União e escudo protector de ofensa aos direitos e liberdades fundamentais.

Acresce que, como refere Monteiro Valente, devemos não olvidar que os motivos de não execução facultativa não vinculam a autoridade judiciária de execução a não proceder á detenção e entrega, pois conferem-lhe, uma potestas decidendi dentro da liberdade e independência de convicção e de decisão que lhe é comummente reconhecida, mas vinculam-na a perpetrar um juízo jurídico de hermenêutica profundo e de ponderação da tutela de interesses juridicamente protegidos em conflito - a protecção de bens jurídicos em confronto com o crime e a protecção de interesses humanos face ao jus puniendi.

A recusa facultativa não pode ser concebida como um acto gratuito ou arbitrário do tribunal. Há-de assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo e susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente factos invocados pelos interessados, que, devidamente equacionados, levem a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente.

Na verdade, concedendo aquela Lei ao Estado requerido a faculdade de recusa, nomeadamente nos casos de pendência de processo «pelo mesmo facto», ela permite que aquele mesmo Estado, através das entidades competentes, nomeadamente o Ministério Público, ou do arguido, demonstrem ao tribunal a existência de possíveis vantagens e ou utilidade na concretização da recusa. O que não pode nem deve é tratar-se de um acto arbitrário, caprichoso ou meramente voluntarista, capaz de pôr em causa os sãos princípios de cooperação internacional a que tal Lei quis dar corpo.

Segundo Pires da Graça as causas de recusa facultativa de execução constantes do art. 12.º, n.º 1, da Lei 65/2003, de 23-08, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.

            Estando nós de acordo com a perspectiva que inscreve as causas de recusa facultativa numa equação entre uma afirmação residual de soberania nacional e as exigências conjugadas da protecção dos direitos do requerido e funcionalidade da perseguição penal não é menos exacto que as mesmas têm, também, uma leitura orientada teleologicamente em dois patamares distintos:

-Por um lado a construção de um direito penal europeu em que se procure obviar as fracturas resultantes das visões parcelares orientadas para uma unilateralidade redutora. Particularmente apropriadas surgem as palavras de Ulrich Sieber quando refere que os perigos específicos de uma perseguição penal europeia para a protecção de direitos individuais residem na circunstância de diferentes sistemas jurídicos nacionais (e também supranacionais) próximos terem competência de aplicação sobreposta, especialmente em crimes transnacionais. O possível conflito de inúmeros sistemas de processo penal daí derivado pode, particularmente na criminalidade transnacional, originar um prejuízo adicional para o arguido devido aos diversos processos concorrentes.

.           Processos concorrentes deste tipo devem ser evitados num direito penal "europeu" através de uma clara regulamentação do âmbito de aplicação e das regras de concorrência, como também através da proibição de dupla incriminação (ne bis in idem), tanto de um ponto de vista da eficiência como a fim de prevenir o forum shopping. Também nestes casos o direito penal europeu 'tem 'de desenvolver mecanismos de protecção específicos para além das soluções do direito penal nacional clássico.

A possibilidade apresentada de um agravamento da posição jurídica do arguido, através de uma alteração do direito aplicável, tem como consequência para as normas de competência que estas - inversamente ao que sucede no âmbito de uma ordem jurídica homogénea - terão de ter uma força de aplicação reforçada em relação à posição jurídica do arguido, comparativamente com o que normalmente acontece com as regras de competência de um sistema jurídico unitário. Por esse motivo, no desenvolvimento do direito penal europeu é preciso assegurar as respectivas garantias processuais.

Mas as regras de competência materiais e processuais para a resolução de conflitos de competência também são exigidas no interesse de uma perseguição penal efectiva, dado que na praxis penal europeia é frequente, em complexos casos de fraude internacional, nenhum Ministério Público querer ficar com o caso, apesar de existir, inclusivamente, concurso de competências de diversos Estados. Ou seja, também por razões de interesse numa perseguição penal efectiva é imperativo que se estabeleçam regras de competência adequadas, porque uma perseguição penal insuficiente num Estado-membro com uma determinada decisão final pode conduzir a uma proibição de incriminação em todas as outras ordens jurídicas europeias através do ne bis in idem. As competências concorrentes podem, assim, conduzir não apenas ao forum shopping das autoridades judiciais como também ao forum shopping de caso julgado por parte do arguido (ou ne bis in idem shopping). No interesse da segurança e da liberdade, o direito penal europeu exige tanto regras de competência suficientes para os direitos penais nacionais como também os respectivos meios jurídicos adequados.

O funcionamento dos mecanismos de articulação das jurisdições pleiteantes, tal como está perfilado no mandado de detenção europeu e, nomeadamente, nas causas de recusa surge, assim, também como uma antecipação e exigência da construção de um espaço judiciário único.

II

O mandado de detenção europeu corporiza três características que simbolizam o princípio do reconhecimento mútuo

A primeira característica é o dever para o Estado solicitado a cumprir a decisão de uma autoridade judiciária de um outro estado que foi formulada em conformidade com as exigências formais da decisão quadro. O mandato deve conter todas as informações.

Idealmente a autoridade solicitada não deve necessitar de mais informações do que aquelas que forma fornecidas de acordo com o formulário pré estabelecido.

A segunda característica é a redução radical das razões que permitem ao Estado solicitado a recusa de reconhecimento e de execução do pedido formulado mais precisamente as possibilidades de recusa no âmbito do mandato de detenção europeu estão limitadas ao caso de amnistia; ao risco de não aplicação do principio ne bis in idem que subentende a impossibilidade para uma pessoa de ser acusada num país por um delito já julgado; não respeito pelo decurso do prazo prescricional ou, ainda, o não respeito do principio da territorialidade. Num terceiro plano situa-se a evolução das regras relativas á dupla incriminação.

Significa o exposto que o que está em causa é a confiança recíproca nos ordenamentos jurídicos o que significa a aceitação a decisão tal como foi proferida e não um repartição de tarefas de diferentes ordenamentos estaduais na construção da decisão penal.

III

A oposição ensaiada pelo recorrente assenta numa pluralidade de equívocas que viciam as conclusões. O primeiro de tais equívocos reside na circunstância de formatar a matéria da decisão que fundamenta a extradição em sede de uma manifestação de liberdade de expressão ou de exercício de um direito de crítica que constitui uma pedra angular de qualquer sociedade democrática. Ao fim e ao cabo o recorrente invoca estar a a ser perseguido por ousar afirmar as suas ideias, usando um direito que assiste a qualquer cidadão livre.

Relativamente a tal argumentário importa esclarecer que é certo que a liberdade de expressão é um valor que assume a dignidade constitucional conferida pelo artigo 37 da Constituição. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da Republica Anotada pag 573 o direito de expressão é, desde logo e em primeiro lugar, a liberdade de expressão, isto é, o direito de não ser impedido de exprimir-se e de divulgar ideias e opiniões. Neste sentido, enquanto direito negativo ou direito de defesa, a liberdade de expressão é uma componente da clássica liberdade de pensamento, que tem outras dimensões na liberdade de criação cultural (art. 42°), na liberdade de consciência e de culto (art. 41°), na liberdade de aprender e ensinar (art. 43°) e, em certa medida, na liberdade de reunião e manifestação (art. 45°).  Tais direitos não podem ser sujeitos a impedimentos nem discriminações (n° 1, in fine) ou seja, dentro dos limites do direito (expressos ou implícitos), não pode haver obstáculos ao seu exercício e, fora as exclusões constitucionalmente admitidas, todos gozam dele em pé de igualdade.

Referem ainda aqueles autores que a exclusão constitucional da possibilidade de qualquer tipo de limitação ou censura é tão vincado que se exclui obviamente qualquer «delito de opinião», mesmo quando se trate de opiniões que se traduzam em ideologias ou posições anticonstitucionais como é o caso de ideologias extremista ( o art. 46°-4 da constituição proíbe apenas as organizações de ideologia fascista e racista e não a expressão individual de opiniões fascistas ou racistas).

A liberdade de opinião e de expressão são indissociáveis: a primeira é a liberdade de escolher a sua verdade no segredo do pensamento, a segunda é a liberdade de revelar a outrem o seu pensamento; liberdades simétricas, têm necessidade uma da outra para se desenvolverem e se expandirem. Foi nesta perspectiva que os próprios redactores da Declaração de 1789 consagraram ambas as liberdades num mesmo artigo, afirmando que "ninguém deve ser inquietado pelas suas opiniões, mesmo religiosas, contanto que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida na lei".

A liberdade de expressão, segundo a jurisprudência do TEDH "constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, o que vale mesmo para as ideias que ferem, chocam ou inquietam; e qualquer restrição a essa liberdade só é admissível se for proporcionada ao objectivo legítimo protegido."

Porém a liberdade de expressão não é, não pode ser, a possibilidade de um exercício sem quaisquer limites alheio á possibilidade de colisão com outros valores de igual ou superior dignidade constitucional

Em Portugal, tal como na Alemanha, existem limites ao exercício do direito de exprimir, e divulgar, livremente o pensamento, e a sua violação pode conduzir á punição criminal ou administrativa. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes que gozam de protecção, inclusive, penal. Entre eles estarão designadamente os direitos dos cidadãos à sua integridade moral, ao bom nome e reputação (conf. art. 26°); a injúria e a difamação ou o incitamento ou a instigação ao crime (que não se deve confundir com a defesa da descriminalização de certos factos) não podem reclamar-se de manifestações da liberdade de expressão ou de informação.

Como refere o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 81/84 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 31 de Janeiro de 1985 e no volume 4º dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 225 e segs.), “A liberdade de expressão - como, de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de protecção pára, ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (v. neste sentido: J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 213 e segs.) Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v.g. o direito à integridade moral (artigo 25.º, n.º 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização.

Dizer isto é reconhecer que, sendo proibida toda a forma de censura (artigo 37.º, n.º 2), é, no entanto, lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão

O artigo 37.º aponta - segundo cremos - no sentido de que se não devem permitir limitações à liberdade de expressão para além das que forem necessárias à convivência com outros direitos, nem impor sanções que não sejam requeridas pela necessidade de proteger os bens jurídicos que, em geral, se acham a coberto da tutela penal. Mas, não impede que o legislador organize a tutela desses bens jurídicos lançando mão de sanções de outra natureza (civis, disciplinares ...)”.

Por seu turno a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em matéria de conflito destes dois direitos, quando está em causa a protecção da privacidade, do bom nome, da reputação e da honra de “figuras públicas” (ver casos Observer e DD v. The United Kingdom, proc. nº 13585/88, de 26/11/1991; caso EE v. Spain, Proc. nº 11798/85, de 23/04/1992; caso FF v. Áustria, Proc. nº 15974/90, de 26/04/1995; caso GG v. Portugal, Proc. nº 37698/97, de 28/09/2000; caso HH A.S. v. Turquie, Proc. nº 64178/00, 64179/00, 64181/00, 64183/00, 64184/00, de 30/03/2006; caso II v. Áustria, Proc. nº 60899/00, de 02/11/2006; caso JJ, S.A. v. Portugal, Proc. nº 11182/03 e 11319/03, de 26/04/2007, todos disponíveis em ttp://www.echr.coe.int/echr) admite amplas restrições àqueles direitos quando está em causa a liberdade de expressão e de imprensa, desde que: (i) justificadas numa necessidade social imperiosa e (ii) sejam proporcionais aos fins prosseguidos

Consequentemente a liberdade de expressão não pode prevalecer quando o seu exercício violar outros valores aos quais a lei confere tutela adequada. Tais valores tanto podem emanar de uma necessidade de defesa de bens jurídicos radicados na ordem constitucional, e cuja valoração é intuitiva, como podem resultar de uma necessidade de tutela de valores que inscritos  no espaço jurídica em que o nosso país se inscreve nomeadamente o comunitário.

Vem isto a propósito da circunstância de a condenação do arguido não se fundamentar tão-somente num exercício crítico que, no entender do tribunal alemão emitente, consubstancia uma violação de normas legais com parcial simetria no Código Penal Português.

Relembremos as infracções imputadas:

a) difamação do Estado e dos seus símbolos:

(1) Quem (§ 11, par. 3)

1. afronte a República Federal da Alemanha ou um dos seus estados federais ou a sua ordem constitucional ou a faz desdenhoso de uma maneira malévola ou

2. difame as cores, a bandeira, o brasão ou o hino da República Federal da Alemanha ou de um dos seus estados federados, numa reunião ou pela difusão de escritos, é penalizado a cinco anos de prisão ou a pagar uma multa.

(3) A pena é uma pena de prisão se o autor se empenha com o seu delito por engano contra a existência da República Federal da Alemanha ou contra os princípios constitucionais.

b) § 130 Volksverhetzung (incitamento ao ódio e violência da população)  

(1) Quem, de qualquer maneira adequada para perturbar a paz pública,

1. incite ao ódio contra partes da população ou a métodos de violência ou de arbitrariedade ou

2. ataque a dignidade humana de outras pessoas difamando, fazendo desdenhoso de uma maneira malévola ou caluniando partes da população, é penalizado a uma pena de prisão entra 3 meses e 5 anos.

(3) É penalizado a pagar uma multa ou a uma pena de prisão de até cinco anos, quem aceite, desminta ou minimize um ato cometido sob o regime do nacional-socialismo de uma maneira designada no § 6, par. 1 do Võlkerstrafgesetzbuch – em tradução do Relator, Código Penal - e adequada para perturbar a paz pública.

c) § 166 Insulto de confissões, comunidades religiosas e uniões de concepções do mundo

(1) Quem, pela distribuição de escritos (§ 11, par. 3), insulte o conteúdo de uma confissão religiosa ou uma concepção do mundo de outras pessoas de uma maneira adequada a perturbar a paz pública é penalizado a uma pena de prisão de até três anos ou a pagar uma multa.

(2) Também penalizado é quem, pela distribuição de escritos (§ 11, par. 3), insulte uma Igreja existente no interior ou o conteúdo de um outro grupo religioso ou de uma concepção do mundo, as suas instituições ou costumes de uma maneira adequada a perturbar a paz pública.

d) § 185 Afronta

A afronta é penalizada com uma pena de prisão de até um ano ou com o pagamento de uma multa se a afronta é feita por meio de vias de facto. 

No ordenamento jurídico português tais infracções encontram-se previstas e punidas nos artigos artigo 240° n° 2° alínea b), pelo artigo 308° alínea b), por referência aos artigos 180°, 182° e 184° e pelo artigo 308° alínea b), todos do Código Penal Português pelo que não tem cabimento a afirmação de existência de uma assimetria dos dois ordenamentos.

Todavia, importa referir que a coincidência dos dois ordenamentos não é total pois que á face da lei portuguesa nomeadamente o artigo 240 (Discriminação racial ou religiosa) dispõe que:

1. Quem:

………

2. Quem, em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social:

a) Provocar actos de violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião; ou

b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião, nomeadamente através da negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade; com a intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa ou de a encorajar, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

Como se refere no Código Penal Conimbricense (Parte especial II volume anotação ao artigo 240) no nº 2 deste artigo a conduta do agente consiste em provocar actos de violência contra pessoa, ou grupo de pessoas, por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião ou em difamar, ou injuriar, pessoa, ou grupo de pessoas, por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião. Para o preenchimento do tipo objectivo de ilícito é, ainda, necessário que o agente leve a cabo as condutas referidas em reunião pública, através de escrito destinado a divulgação, ou através de qualquer meio de comunicação social.

Como exemplo de difamação ou injúria de pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião, o legislador refere a negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade. Trata-se, contudo, de um mero exemplo, particularmente emblemático, uma vez que a negação em si de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade não pode ser criminalizada, sob pena de violação do princípio jurídico-constitucional da liberdade de expressão (cf. art. 37° da CRP e supra art. 239° § 9). Daí também a exigência no sentido de a negação difamatória ou injuriosa ser com intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa ou de a encorajar sendo necessário que o agente actue com intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa ou de a encorajar (dolo específico).

Tal dessintonia parcial convoca a questão do controle da dupla incriminação pois que, como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Janeiro de 2007, a Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, estabelece como causa de recusa facultativa de execução, entre outras, a circunstância de a conduta - fora das infracções da “lista” - não ser punida pela lei portuguesa: «- A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando: a) O facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infracção punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infracção não incluída no nº 2 do artigo 2º».

Moldadas nas finalidades do instrumento específico de cooperação e nos pressupostos essenciais que lhe estão subjacentes (mútuo reconhecimento; substituição da extradição), as normas aplicáveis a cada situação têm de ser interpretadas no contexto dos referidos âmbito e finalidades, e na conjugação ainda entre as exigências decorrentes do reconhecimento mútuo e os deveres assumidos e a permanência de alguns espaços de soberania estadual em matéria penal.

Nesta perspectiva complexa, o estabelecimento de causas facultativas de não execução do mandado resulta dos compromissos assumidos no âmbito da União e dos consensos possíveis na conjugação do binómio espaço único e soberania estadual.

Tratando-se, no caso, de um modelo de substituição integral da extradição, simplificado e inteiramente jurisdicionalizado, tudo quanto fosse anteriormente regulado pelo regime da extradição, deve ser integrado no regime do mandado de detenção europeu no que respeita ao respectivo âmbito objectivo e subjectivo de aplicação.

É neste enquadramento que têm de ser interpretadas as disposições sobre causas de não execução, e especificamente as causas de recusa facultativa de execução.

As causas de recusa facultativa de execução, constantes das alíneas a) a h) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, têm todas,

em diversas perspectivas, fundamentos ainda ligados, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.

Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Janeiro de 2007 a lei não define, no entanto, no que respeita a algumas das causas (designadamente a da alínea a) do nº 1 do artigo 12º), os fundamentos e os critérios para o exercício da faculdade, que é faculdade do Estado português como Estado da execução, como resulta da expressão da lei - a execução «pode» ser recusada.

Poder-se-á questionar se a enunciação dos fundamentos e, dentro destes, dos critérios de exercício, não deveria ser (ter sido) tarefa do legislador, sem o que ficariam (amplos) espaços de oportunidade à margem de apreciação da instância judicial. Seja como for, o legislador não estabeleceu fundamentos e critérios, sendo a lei inteiramente omissa a este respeito. E a omissão não pode constituir motivo ou razão de inaplicabilidade da norma.

Ainda na perspectiva da mesma decisão supra citada fixando a lei causa de recusa deixada à faculdade do Estado de execução, o plano da lei só se completaria com o estabelecimento de critérios que permitam integrar a função da norma, com base em princípio que se não remetam a discricionariedade ou oportunidade simples sem suporte. Não estando fixados, manifesta-se uma incompletude contrária a um plano que se traduz numa lacuna, que o juiz deve integrar segundo os critérios injuntivos para a integração de lacunas definidos no artigo 10º do Código Civil, seja por recurso a casos análogos, seja por apelo a princípios operativos compreendidos na unidade do sistema.

 Não obstante a brilhante lógica argumentativa da mesma decisão estamos em crer que o critério da dupla incriminação, ou da sua ausência, sendo omisso no elenco do artigo 12  da Lei 65/2003, está por alguma forma enunciado no nº3 do artigo 2 quando afirma que só é possível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação. Significa o exposto que, independentemente da configuração do tipo legal de crime, o que releva é a circunstância de aquele facto ofender bens jurídicos com dignidade suficiente para serem tutelados pela lei penal do estado emissor e do estado receptor.

        É essa convergência que importa averiguar no caso vertente.

IV

O controle efectivo da dupla incriminação no caso vertente tem subjacente um tema pungente na História contemporânea que é o Holocausto (ou o Shoah) e a sua negação. Sinteticamente está em causa a postura ideológica que se consubstancia na afirmação de que o genocídio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial não aconteceu, ou minimizando tal acontecimento,   refere que o mesmo não aconteceu da maneira e nas proporções historicamente reconhecidas.

Fundamental na negação é a rejeição do facto de ter existido uma politica de perseguição, e extermínio, dos judeus, elaborada pelo estado nacional-socialista alemão, com a finalidade de sua exterminação enquanto povo; que mais de cinco milhões de judeus foram sistematicamente mortos pelos nazistas e seus aliados; e que o genocídio foi realizado em campos de extermínio recorrendo a formas de extermínio em que prevalece a utilização de ferramentas de assassinato em massa, tais como câmaras de gás.

Muitos dos chamados negacionistas do Holocausto argumentam que o mesmo é uma construção elaborada com o intuito de favorecer a criação do Estado de Israel e obter avultadas compensações de guerra pagas pela Alemanha a organizações sionistas e, mais recentemente, para criar uma certa complacência da opinião pública mundial perante a ocupação por Israel de territórios palestinianos.

A existência de uma corrente ideológica que, negando a realidade histórica, procura justificar, ou negar, o genocídio praticado em nome de uma ideologia suscitou uma reacção defensiva por parte de sociedades ainda traumatizadas pelos crimes cometidos no século XX. E se, para muitos, a questão se resume ao debate das ideias e á necessidade de esclarecer as novas gerações sobre as perversões originadas em regimes totalitários, já para outros o que está em causa é a defesa de valores jurídicos essenciais numa sociedade democrática e a circunstância de não se poder transigir em tal matéria, pactuando com uma apologética que, de forma directa ou indirecta, nega a essência da democracia e a própria dignidade humana.

Tal fractura é patente nas palavras de Timothy Arton Ash (A liberdade de expressão em debate) quando refere que a memória do Holocausto é de enorme importância….. todo o esforço que fizemos pós-1945 na Europa para construir um amplo projecto de uma ordem internacional liberal traduz-se, no seu nível mais profundo, em uma tentativa de impedir que algo como o Holocausto aconteça novamente. Mas impedir por lei que as pessoas neguem que o Holocausto tenha acontecido é uma perspectiva totalmente equivocada sobre o tema.

Existe uma enorme quantidade de evidências históricas que provam que ocorreu o assassinato em massa de judeus da Europa durante aquele período. Se alguém não acredita em tais evidências, ele ou ela não será convencido do contrário por força de uma lei. Na melhor das hipóteses, sentir-se-á ameaçado de dizer publicamente o que realmente pensa.

Quando uma bem-intencionada ministra da Justiça alemã estipulou, tomando como base uma decisão-quadro da União Europeia, que todos os membros deveriam criminalizar a negação de tais atrocidades históricas, ela foi confrontada por países do leste europeu que sugeriam que a negação dos horrores cometidos por regimes totalitários comunistas deveriam ser criminalizados também. Em 2010, o parlamento húngaro aprovou uma lei criminalizando a negação do Holocausto. No mesmo ano, uma nova maioria no parlamento modificou tal lei, adicionando que também “serão punidos aqueles que negarem os genocídios cometidos por regimes comunistas ou socialistas”. E como esses, há muitos outros exemplos.

Nada do que foi dito aqui sugere que tais falsificações da história ou de qualquer outro campo de conhecimento devem ser aceitas. É justamente o oposto: essas falsificações devem ser vigorosamente contestadas por um debate aberto e livre. Com a experiência de um século de regimes totalitários baseados em grandes mentiras, não podemos mais ter o magnífico optimismo que o poeta inglês John Milton tinha em relação à verdade no século XVII: “Deixem que a verdade e a mentira lutem entre si; alguém já viu a verdade levar a pior num encontro livre e aberto com a mentira?” Porém, um método de combate às mentiras que seja melhor do que o sugerido por Milton ainda está por ser descoberto

Tal posição consubstancia uma das formas de encarar a forma de combater o negacionismo: ou no campo das ideias do debate livre, e aberto, ou na valorização do bem jurídico fundamental que está em causa, tutelando-o com o recurso á criminalização. 

Tal dualidade está bem patente na circunstância de o negacionismo do Holocausto ser explícita ou implicitamente ilegal em dezasseis países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Eslováquia, França, Hungria, Israel, Liechtenstein, Lituânia, Países Baixos, Polónia, Portugal, República Checa, Roménia e Suíça mas não criminalizado noutros países. [1]

Na verdade, tal tipo de legislação suscita a fractura na comunidade jurídica quando não na própria sociedade. Assim, em 2006, os Países Baixos rejeitaram o projecto de lei que propunha uma sentença máxima de um ano de detenção para negação de actos de genocídio em geral, apesar de manter especificamente a negação do Holocausto como ofensa criminal. Em Outubro de 2007, um tribunal da Espanha declarou inconstitucional a lei de negação do Holocausto. No mesmo ano, a Itália rejeitou a lei que propunha sentença de prisão de até quatro anos para crimes de negacionismo. Reino Unido, Dinamarca e Suécia também rejeitaram propostas de lei relacionadas ao tema.

Estamos em crer que o reconhecimento constitucional da dignidade humana configura o marco dentro do qual se deve desenvolver o exercício dos direitos fundamentais e, consequentemente, carece de suporte constitucional a admissibilidade de uso da liberdade de expressão na apologia do crime de genocídio, glorificando a sua imagem e justificando a sua existência. Igualmente se tem por assente que violam o núcleo intocável de valores nucleares de sistema constitucional os juízos ofensivos contra o povo judeu que, emitidos na sequência de posições que negando a evidencia do genocídio nazi, pressupõem uma incitação ao ódio.

Tal posição converge com o entendimento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos na aplicação do artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Considera o mesmo (conf. decisão Ergogdu e Ince c. Turquía, de 8 de julho de 1999) que a liberdade de expressão não pode oferecer cobertura ao denominado "discurso do ódio", isto é, aquele que surge por forma a supor uma incitação directa á violência contra os cidadãos em geral, ou contra determinadas raças, ou crenças, em particular.

Neste ponto, serve de referência interpretativa a Recomendação núm. R (97) 20 do Comité de Ministros do Conselho de Europa, de 30 de Outubro de 1997, que solicita aos Estados que actuem contra todas as formas de expressão que propagam, incitam ou promovem o ódio racial, a xenofobia, o anti-semitismo ou outras formas de ódio baseadas na intolerância (SSTEDH Gündüz c. Turquía de 4 de Dezembro de 2003, § 41; Erbakan c. Turquía, de 6 de Julho de 2006).

Em função do exposto a regra geral de liberdade de expressão garantida no art. 10 CEDH pode sofrer excepções por aplicação do art. 17 CEDH. É nessa sequência que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos considerou que não se pode entender legitimada pela liberdade de expressão a negação do Holocausto na medida em que a mesma implique um propósito "de difamação contra os judeus e incitação ao ódio contra os mesmos" (Decisão Garaudy c. Francia, de 24 de Junho de 2003). Em concreto, estava em causa a autoria de diversos artigos dedicados a combater a realidade do Holocausto com a declarada finalidade de atacar o Estado de Israel e o povo judeu no seu conjunto, de tal forma que o Tribunal teve em conta decisivamente a intenção de acusar as próprias vítimas de falsificação histórica. Posteriormente, a mesma entidade advertiu sobre a diferença entre o debate aberto entre historiadores acerca de aspectos relacionados com os actos genocidas do regime nazi, avalizado pelo art. 10 da convenção e a mera negação de "factos históricos claramente estabelecidos" que os Estados podem subtrair á protecção do mesmo artigo por aplicação do art. 17 CEDH (SSTDH Lehideux e Isorni c. França, de 23 de Setembro de 1998; Chauvy y otros c. França, de 23 de Junho de 2004, § 69).

Importa aqui assinalar que, conforme á jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, para invocar a excepção á garantia dos direitos prevista no art 17 CEDH é preciso comprovar a vontade expressa daqueles que pretendem amparar-se na liberdade de expressão para destruir com o seu exercício as liberdades, e o pluralismo, ou atentar contra as liberdades reconhecidas na Convenção (STEDH Rifa Partisi e outros c. Turquía, de 13 Fevereiro de 2003, § 98; Decisão Fdanoka c. Letonia, de 17 Junho de 2004). Só nestes casos, no entendimento do Tribunal Europeu, os Estados poderiam, dentro da sua margem de apreciação, permitir no seu direito interno a restrição da liberdade de expressão daqueles que negam factos históricos claramente estabelecidos, com o entendimento de que a Convenção estabelece um denominador comum europeu que não pode ser interpretado no sentido de limitar as liberdades fundamentais reconhecidas pelos ordenamentos constitucionais internos (art. 53 CEDH).

Assim, e não obstante a natureza especialmente desumana do crime de genocídio, e repulsiva a sua negação historicamente comprovada, o certo é que, na esteira do posicionamento do TEDH importa distinguir se a conduta concreta se configura, ou não, como uma modalidade do denominado "discurso do ódio"  pois que só neste caso não tem cobertura no direito á liberdade de expressão. Na verdade, a conduta concreta consistente na mera negação do delito de genocídio, na sequência de um pretenso revisionismo histórico –conf a citada STEDH Ergogdu e Ince c. Turquia, de 8 de Julho de 1999-  só constitui uma excepção á liberdade de expressão se configurar também uma incitação directa á violência contra determinados cidadãos portadores de uma concreta raça ou credo.

A mera difusão de conclusões sobre a existência, ou não, de determinados factos, sem emitir juízos de valor sobre os mesmos, ou a sua ilicitude, não se pode considerar como uma excepção á liberdade de expressão mas sim como o produto de uma eventual elaboração intelectual, porventura injustificada ou patética, mas admissível.

Falamos, assim, da diferença entre a mera negação do genocídio por contraposição á conduta que comporta uma adesão valorativa ao mesmo crime de genocídio, promovendo-o e exprimindo sobre ele um juízo de apreciação positiva. No mesmo plano se situa a incitação indirecta ao genocídio apresentando-o como justo, ou resultante de alguma espécie de provocação por parte daqueles que foram as suas vítimas.

O entendimento de que deve ser penalizada a difusão de condutas justificativas do genocídio como manifestação do discurso do ódio está em consonância com as mais recentes aquisições em termos de direito comunitário como é o caso da Decisão-Quadro 2008/913/JAI do Conselho[2]  .

Assim é legitimo concluir que não contem o vicio da inconstitucionalidade a penalização de condutas que, embora não sejam claramente idóneas para incitar directamente á comissão de delitos contra o direito dos povos como o genocídio, supõem uma incitação indirecta ao mesmo ou provocam, de modo mediato a discriminação, o ódio ou a violência que é precisamente que permite em termos constitucionais o estabelecimento do tipo legal do artigo 240 nº 2 b) do Código Penal.[3]

Regressando ao caso vertente afirma-se no mandado de detenção emitido que o recorrente desmente os crimes do Terceiro Reich contra a população judeia isto é ele minimiza­-a e fala da maior e mais profitável mentira na história da raça humana.

A questão é, pois, da consideração de tal afirmação como portadora de dignidade penal á face do ordenamento jurídico português sendo certo que o critério da dupla incriminação é susceptível de leituras diferente. Efectivamente, como refere Mário Elias Soltoski (O controlo da dupla incriminação e o mandado de detenção europeu RPCC Ano 16 Pag 475) o controle de dupla incriminação pode ser realizado de duas manei­ras: in abstracto e in concreto. Na primeira, verifica-se se a qualificação jurídica realizada pelo Estado requerente sobre os fatos é compatível com a qualificação jurídica prevista na lei do Estado requerido, mesmo que não haja identidade material entre ambas. Já na segunda, a verificação engloba, além da qualificação jurídica dada nos Estados, ainda outros elementos objectivos e subjectivos, que possam influenciar na punibilidade do agente, à luz da legislação do Estado requerido. Noutras pala­vras, a exigência da dupla incriminação pode ser examinada, a princí­pio, sob dois prismas, na versão mais radical, a dupla incriminação implica, não apenas na análise de ser o fato uma infracção no âmbito do direito do Estado de execução, mas também se deve proceder a um exame de todos os elementos susceptíveis de influenciar na punibilidade ou na justificação do fato. Já na versão mais célere, a dupla incri­minação implica apenas verificar se os fatos correspondem a uma infracção prevista no direito do Estado de execução. Na prática se constata que o Juiz, quando é chamado para apreciar a existência da dupla incriminação, procede a uma avaliação in abstracto levando em consideração, além dos elementos constitutivos da infracção, os elementos objectivos tocantes à punibilidade, em especial, as causas de justificação do fato.

                Reportando-nos a um critério da dupla incriminação em concreto estamos em crer que a as afirmações imputadas ao recorrente tipificam os elementos constitutivos do artigo 240 nº2 b do Código Penal. Na verdade, o recorrente não se limitou a negar a existência de um crime contra a humanidade, como é o genocídio, mas emitiu um juízo valorativo negativo e ofensivo da dignidade das vítimas considerando o mesmo como a maior mentira da história da humanidade.

              Não está agora em causa uma opção sobre a criminalização deste tipo de comportamentos pois essa foi uma discussão que se processou a montante e sobre a qual o legislador comunitário e o legislador português tomaram uma posição. Adquirido que a criminalização é o instrumento eleito para tutelar a dignidade, e a não descriminação ofendida pela negação, e não se vislumbrando razão para suscitar a questão da constitucionalidade do preceito incriminador, entendemos que no caso vertente existe uma dupla incriminação da conduta pelo que improcede a invocação da causa de recusa do artigo 12 nº1 alínea a) da Lei 65/2003  

            Implícita em tal posição está também a decisão sobre a circunstância de a conduta do recorrente extravasa a protecção concedida pelo direito constitucional á liberdade de expressão incorrendo em responsabilidade criminal

V

Em homenagem a princípios fundamentais a lei relativa ao mandado de detenção europeu admite causas de recusa obrigatórias, e facultativas, bem como admite a necessidade de prestação de garantias pelo estado de emissão quando tão for essencial para garantia de direitos, entre os quais sobressai o direito de defesa. Neste aspecto uma particular atenção suscita a circunstância de o julgamento que está na origem da pena que justifica o mandado ter sido proferida em processo em que o arguido esteve ausente caso em que a decisão reconhecida deve ficar condicionada na sua execução á prestação de garantia pelo estado emissor.

O condicionalismo que rodeia a necessidade de tal prestação está regulada, no que interessa ao caso vertente, no artigo 13 da lei 65/2003.Dispõe o mesmo que:

         Garantias a fornecer pelo Estado membro de emissão em casos especiais

A execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar uma das seguintes garantias:    

a) Quando o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança imposta por uma decisão proferida na ausência do arguido e se a pessoa em causa não tiver sido notificada pessoalmente ou de outro modo informada da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na sua ausência, só será proferida decisão de entrega se a autoridade judiciária de emissão fornecer garantias consideradas suficientes de que é assegurada à pessoa procurada a possibilidade de interpor recurso ou de requerer novo julgamento no Estado membro da emissão e de estar presente no julgamento.

Tudo depende, assim da resposta á questão de saber se o recorrente foi, ou não notificado pessoalmente. Tal resposta deve ser encontrada na letra, e no espírito da lei 65/2003, que faz apelo á própria decisão quadro como base de execução e, consequentemente, critério de interpretação.

O que a lei romena e portuguesa dispõem sobre a notificação do ausente e o regime da contumácia é indiferente na decisão do caso concreto pois o que está em causa é a interpretação da norma transcrita na sua conformidade com a decisão quadro (artigo 1 nº 2 da Lei 65/2003). As legislações nacionais-o direito interno- deverá ser adaptado e modelado ás normas da mesma decisão quadro e não o contrário.

            Em tal interpretação terá de estar presente uma percepção da própria teleologia da norma a qual pretende que o automatismo inerente ao principio do reconhecimento mútuo do mandato de detenção europeu não se sobreponha a garantias processuais e a direitos fundamentais inscritos na própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem como é o caso do direito de defesa inserido no direito a um processo justo. Notificação pessoal para os efeitos do artigo 13 é aquela que é feita directamente na pessoa do notificando e não num terceiro, independentemente dos efeitos que o direito interno atribua a esta.  

Sendo assim a decisão sobre a prestação de garantia nos termos do artigo 13 da Lei 65/2003 depende da resposta formulada ao módulo do formulário pré estabelecido e, nomeadamente, á resposta afirmativa, ou negativa, á pergunta de se o interessado foi notificado pessoalmente, ou por outro modo informado da data e local da audiência. Interpretada a norma pela forma referida a resposta apenas admite uma daquelas alternativas e não uma incursão sobre a notificação dos prazos judiciais que foram fixados, como faz o mandado emitido.

            Na verdade, a pergunta formulada nos termos do anexo á Lei 65/2003, que transpôs para a ordem interna a Decisão Quadro 2002/584/JAI, é respondida, em abstracto, de sim, ou não, o interessado foi notificado pessoalmente, ou informado de outro modo, da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na sua ausência. No que concerne a tal matéria o mandado emitido nos presentes autos informa que o recorrente esteve presente no julgamento e apenas se ausentou na parte final estando representado por defensor.

O artigo 5.°, nº 1 da decisão-quadro 2002/ 584/JAI sobre o mandado de detenção europeu, transposto pelo artigo 13.° da Lei nº 65/2003, de 23.8, previa o direito de requerer o retrial (novo julgamento) do arguido que não tenha sido notificado pessoalmente ou que não tenha sido informado de outro modo da data e local do julgamento (nat summoned in person or otherwise informed of the date and place of the hearing). Pretendia-se deste modo consagrar uma garantia mínima do princípio do contraditório conforme com o estalão fixado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no acórdão M.... v. Suíça, de 2001, como resulta da motivação do artigo 3.° da proposta de decisão-quadro apresentada pela Comissão Europeia (vd. COM (2001) 522 final).

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal pag 867 e seg)  a jurisprudência do TEDH evoluiu desde o acórdão M........ No acórdão do TEDH proferido no caso Da KK v. Bélgica, já se sustentou o dever de realização de novo julgamento do arguido condenado em anterior julgamento in absentia, mesmo que ele conhecesse a data da audiência e a sua ausência se tenha ficado a dever à sua negligência. Esta jurisprudência estabelece, pois, um estalão mais favorável ao arguido do que o da decisão-quadro 2002/ 584/JAI e do acórdão M....... v. Suíça.

As questões suscitadas por tal matéria deram origem á da Decisão-Quadro 2009/299/JAI do Conselho de 26 de Fevereiro de 2009 que alterou as Decisões-Quadro 2002/584/JAI, 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI e 2008/947/JAI, e que reforça os direitos processuais das pessoas e promove a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido

É o seguinte o teor das alterações ali constantes relativas á estrutura do mandado de detenção europeu:

                                                                 Artigo 1º

                                                 Objectivos e âmbito de aplicação

1. A presente decisão-quadro tem por objectivos reforçar os direitos processuais das pessoas contra as quais seja instaurado um processo penal, facilitar a cooperação judiciária em matéria penal e melhorar o reconhecimento mútuo das decisões judiciais entre Estados-Membros.

2. A presente decisão-quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados no artigo 6.o do Tratado, incluindo o direito de defesa das pessoas contra as quais seja instaurado um processo penal, nem prejudica quaisquer obrigações que nesta matéria incumbam às autoridades judiciárias.

3. A presente decisão-quadro estabelece regras comuns para o reconhecimento e/ou a execução num Estado-Membro (Estado-Membro de execução) das decisões judiciais emitidas por outro Estado-Membro (Estado-Membro de emissão) na sequência de um julgamento no qual o arguido não tenha estado presente, nos termos do nº 1 do artigo 5º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, da alínea g) do nº 2 do artigo 7º da Decisão-Quadro 2005/214/JAI, da alínea e) do nº 2 do artigo 8º da Decisão-Quadro 2006/783/JAI, da alínea i) do nº 1 do artigo 9º da Decisão-Quadro 2008/909/JAI e da alínea h) do nº 1 do artigo 11º da Decisão-Quadro 2008/947/JAI.

                                                                  Artigo 2º

                                    Alterações à Decisão-Quadro 2002/584/JAI

A Decisão-Quadro 2002/584/JAI é alterada do seguinte modo:

1. É inserido o seguinte artigo:

                                                              Artigo 4º-A

Decisões proferidas na sequência de um julgamento no qual o arguido não tenha estado presente

1. A autoridade judiciária de execução pode também recusar a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado de detenção europeu conste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos no direito nacional do Estado-Membro de emissão:

a) Foi atempadamente

i) notificada pessoalmente e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efectivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto,

ii) informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

ou

b) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal e foi efectivamente representada por esse defensor no julgamento;

ou

c) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial:

i) declarou expressamente que não contestava a decisão,

ou

ii) não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável;

ou

d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas:

i) será notificada pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial,

e

ii) será informada do prazo para solicitar um novo julgamento ou recurso, constante do mandado de detenção europeu pertinente.

2. No caso de o mandado de detenção europeu ser emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, nas condições da alínea d) do nº 1, e de a pessoa em causa não ter recebido qualquer informação oficial prévia sobre a existência do processo penal que lhe é instaurado, nem ter sido notificada da decisão, a pessoa, ao ser informada sobre o teor do mandado europeu de detenção, pode requerer que lhe seja facultada cópia da decisão antes da entrega. Imediatamente após ter sido informada do requerimento, a autoridade de emissão faculta a cópia da decisão à pessoa procurada por intermédio da autoridade de execução. O facto de ser facultada essa cópia da decisão não deve atrasar o processo de entrega nem retardar a decisão de executar o mandado europeu de detenção. A decisão é facultada à pessoa em causa a título meramente informativo; esta comunicação não é considerada como uma notificação formal da decisão nem relevante para a contagem de quaisquer prazos aplicáveis para requerer novo julgamento ou interpor recurso.

3. No caso de a pessoa ser entregue nas condições da alínea d) do nº 1 e ter requerido um novo julgamento ou interposto recurso, a detenção da pessoa que aguarda esse novo julgamento ou recurso é, até estarem concluídos tais trâmites, revista em conformidade com a lei do Estado-Membro de emissão, quer oficiosamente quer a pedido da pessoa em causa. Essa revisão inclui nomeadamente a possibilidade de suspensão ou interrupção da detenção. O novo julgamento ou recurso tem início num prazo atempado após a entrega.".

2. No artigo 5º, é suprimido o nº 1.

3. No Anexo ("Mandado de detenção europeu"), a alínea d) passa a ter a seguinte redacção:

"d) Indicar se a pessoa esteve presente no julgamento que conduziu à decisão:

 Sim, a pessoa esteve presente no julgamento que conduziu à decisão.

 Não, a pessoa não esteve presente no julgamento que conduziu à decisão.

3. Se assinalou a quadrícula no ponto 2, queira confirmar se se verifica uma das seguintes situações:

3.1a. a pessoa foi notificada pessoalmente em … (dia/mês/ano) e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão e informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

OU

3.1b. a pessoa não foi notificada pessoalmente, mas recebeu efectivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que teve conhecimento do julgamento previsto, e foi informada de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento;

OU

3.2. tendo conhecimento do julgamento previsto, a pessoa conferiu mandato a um defensor que foi designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal e foi efectivamente representada por esse defensor no julgamento;

OU

3.3. a pessoa foi notificada da decisão em … (dia/mês/ano) e foi expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, e declarou expressamente que não contestava a decisão;

OU

não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável;

OU

3.4. a pessoa não foi notificada pessoalmente da decisão, mas

- será informada pessoalmente da decisão imediatamente após a entrega; e

- quando notificada da decisão, a pessoa será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial; e

- será informada do prazo para solicitar um novo julgamento ou recurso, que será de … dias.

4. Se assinalou a quadrícula no ponto 3.1b, 3.2 ou 3.3 supra, queira fornecer informações sobre a forma como foi preenchida a condição pertinente:

                                                           Artigo 8º

                                         Aplicação e disposições transitórias

1. Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para dar cumprimento às disposições da presente decisão-quadro até 28 de Março de 2011.

2. A presente decisão-quadro é aplicável, a contar da data referida no n.o 1, ao reconhecimento e execução das decisões proferidas na ausência do arguido no julgamento.

3. Se um Estado-Membro tiver declarado, aquando da aprovação da presente decisão-quadro, ter motivos fundamentados para presumir que não poderá dar cumprimento às disposições da presente decisão-quadro até à data referida no n.o 1, a presente decisão-quadro será aplicável a partir de 1 de Janeiro de 2014, o mais tardar, ao reconhecimento e execução das decisões proferidas na ausência do arguido no julgamento pelas autoridades competentes daquele Estado-Membro. Qualquer outro Estado-Membro pode requerer que o Estado-Membro que fez tal declaração aplique as disposições pertinentes das decisões-quadro referidas nos artigos 2.o, 3.o, 4.o, 5.o e 6.o, nas versões em que foram inicialmente aprovadas, ao reconhecimento e execução das decisões proferidas na ausência do arguido no julgamento por esse outro Estado-Membro.

4. Até às datas referidas nos nº 1 e 3, continuam a aplicar-se, nas versões em que foram inicialmente aprovadas, as disposições pertinentes das decisões-quadro referidas nos artigos 2.o, 3.o, 4.o, 5.o e 6.o

            Resulta do exposto que a alteração introduzida em 2009 no mandado de detenção europeu exprime um cuidado acrescido que deve existir e uma redobrada exigência nos pressupostos que resultam da particular situação da decisão proferida na ausência do arguido.

 Conforme refere o Autor supracitado foi precisamente este o estalão mais generoso consagrado na nova decisão-quadro 2009/299/JAI, de 26.2.2009, que reviu a dita decisão-quadro 2002/584/JAI, além das decisões-quadro 2005/214/JAI, 2006/783/JAI e 2008/909/JAI, e deveria ser implantado em Portugal até 28.3.2011. Tal como resulta do memorandum explicativo da iniciativa da Eslovénia, França, República Checa, Suécia, Eslováquia, Reino Unido e Alemanha, de 30.1.2008, a uniformização impunha-se, a nível europeu, porquanto as decisões-quadro revistas estabeleciam diferentes critérios para a validade transfronteiriça da sentença proferida in absentia, não permitindo, por exemplo, a recusa da execução de uma ordem de confisco em relação a um arguido ausente no julgamento, que tivesse estado representado no julgamento por defensor, mas permitindo a recusa da execução de uma pena de multa nas mesmas circunstâncias.

A nova decisão-quadro 2009/299/ JAI prevê a recusa da execução de uma sentença ou mandado em relação a um arguido ausente no julgamento, salvo quando o arguido foi notificado em pessoa da data do julgamento ou recebeu, por qualquer outro meio, informação oficial da data do julgamento, desde que possa estabelecer-se de forma inequívoca que o arguido teve conhecimento dessa informação oficial. A notificação ou comunicação oficial deve ocorrer no tempo devido, isto é, de forma a permitir ao arguido participar no julgamento e exercer efectivamente os seus direitos de defesa. A data do julgamento pode ser uma de várias datas dentro de um período curto de tempo. Por outro lado, a execução de uma sentença ou mandado em relação a um arguido ausente no julgamento também não pode ser recusada quando o arguido ausente tenha sido notificado da data de julgamento, "tenha escolhido deliberadamente" (deliberately have chosen, nas palavras do ponto 11 do preâmbulo) estar representado por um defensor em vez de comparecer no julgamento e tenha efectivamente sido representado no julgamento pelo defensor. Portanto, o arguido ausente considera-se representado no julgamento por um defensor, nomeado ou constituído, desde que ele, arguido, tenha sido notificado da data de julgamento e tenha escolhido deliberadamente estar representado por esse defensor em vez de comparecer no julgamento.

É exactamente essa situação que o caso presente configura, não se vislumbrando á luz do critério interpretativo da referida decisão quadro, ou mesmo nos limites impostos pela teleologia do preceito invocado, que o exercicio do direito de defesa do arguido possa implicar no caso vertente a garantia de um novo julgamento, ou de um direito ao recurso, derivado do simples facto de não ter estado presente a uma parte do julgamento.

Foi uma opção voluntária a atribuição da defesa ao seu defensor e a sua ausência á a parte final do julgamento e, consequentemente, não é admissível no plano jurídico, ou ético, exigir ao Estado emitente a garantia do exercício de um direito que efectivamente foi atribuído ao recorrente e que este geriu da forma como entendeu.

   VI

Subsiste uma invocada causa de recusa em relação á qual se subsceve a decisão recorrida na medida em que no tocante à permanência do requerido em Portugal, não se comprova que a mesma corresponda á realidade ou que efectivamente resida no País de modo válido e regular, designadamente de acordo com os imperativos estabelecidos pela Lei n.º 23/2007, de 04.07.Aliás, muito menos se demonstra que a sua inserção neste Paíse implique uma quebra de laços que exija um juízo de ponderação.

Termos em que se julga improcedente o recurso interposto pelo cidadão AA.

Custas pelo recorrente

Taxa de Justiça 4 UC

Lisboa, 05 de Julho de 2012

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes

__________________________


[1] Confrontar a propósito Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia RECPC 14-02 (2012) − http://criminet.ugr.es/recpc − ISSN 1695-0194 “DISCURSO DEL ODIO Y DISCURSO POLÍTICO
En defensa de la libertad de los intolerantes”* de Rafael Alcácer Guirao

[2] Considerando o seguinte:

(1) O racismo e a xenofobia constituem violações directas dos princípios da liberdade, da  democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de direito, princípios nos quais assenta a União Europeia e que são comuns aos Estados-Membros.

(2) O Plano de Acção do Conselho e da Comissão sobre a melhor forma de aplicar as disposições do Tratado de Amesterdão relativas à criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça [2], as Conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 15 e 16 de Outubro de 1999, a Resolução do Parlamento Europeu de 20 de Setembro de 2000, sobre a posição da União Europeia na Conferência Mundial contra o Racismo e a situação actual na União [3] e a Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu sobre a actualização semestral do Painel de Avaliação dos progressos realizados na criação de um espaço de "liberdade, segurança e justiça" na União Europeia (segundo semestre de 2000) requerem uma acção neste domínio. No Programa da Haia de 4 e 5 de Novembro de 2004, o Conselho recorda o seu firme compromisso de oposição a todas as formas de racismo, anti-semitismo e xenofobia, tal como já expresso pelo Conselho Europeu em Dezembro de 2003.

(3) A Acção Comum 96/443/JAI do Conselho, de 15 de Julho de 1996, relativa à acção contra o racismo e a xenofobia [4] deverá ser seguida de novas medidas legislativas que respondam à necessidade de aproximar ainda mais as disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros e de eliminar os obstáculos a uma cooperação judiciária eficaz que provêm essencialmente da divergência entre as abordagens jurídicas dos Estados-Membros.

(4) De acordo com a avaliação da Acção Comum 96/443/JAI e com os trabalhos efectuados noutras instâncias internacionais, tais como o Conselho da Europa, subsistem algumas dificuldades no que respeita à cooperação judiciária, sendo por conseguinte necessário continuar a aproximar as disposições de direito penal dos Estados-Membros de forma a assegurar a aplicação eficaz de uma legislação clara e completa para combater o racismo e a xenofobia.

(5) O racismo e a xenofobia representam uma ameaça aos grupos de pessoas que são alvo de comportamentos dessa natureza. É necessário definir uma abordagem comum deste fenómeno em termos de direito penal na União Europeia para garantir que o mesmo comportamento constitua uma infracção em todos os Estados-Membros e para que sejam previstas sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas aplicáveis às pessoas singulares e colectivas que tenham cometido essas infracções ou que por elas sejam responsáveis.

(6) Os Estados-Membros reconhecem que a luta contra o racismo e a xenofobia requer vários tipos de medidas num quadro circunstanciado e não pode limitar-se ao âmbito penal. A presente decisão-quadro circunscreve-se a lutar por via do direito penal contra formas particularmente graves de racismo e xenofobia. Uma vez que as tradições culturais e jurídicas dos Estados-Membros são até certo ponto diferentes, sobretudo neste domínio, não é actualmente possível a plena harmonização dos respectivos direitos penais.

(7) Na presente decisão-quadro, "ascendência" deverá ser entendida como referindo-se primordialmente a pessoas ou grupos de pessoas que descendem de pessoas susceptíveis de serem identificadas por determinadas características (tais como a raça ou a cor), mesmo que não persistam necessariamente todas essas características. Apesar disso, devido à sua ascendência, essas pessoas ou grupos de pessoas podem ser sujeitas a ódios ou violências.

(8) "Religião" deverá ser entendida como referindo-se, em sentido lato, a pessoas que são definidas por referência às suas convicções ou crenças religiosas.

(9) "Ódio" deverá ser entendido como referindo-se ao ódio baseado na raça, cor da pele, religião, ascendência ou origem nacional ou étnica.

(10) A presente decisão-quadro não impede os Estados-Membros de aprovarem disposições de direito interno que estendam as alíneas c) e d) do n.o 1 do artigo 1.o a crimes dirigidos contra um grupo de pessoas que seja definido por outros critérios que não a raça, cor, religião, ascendência ou origem nacional ou ética, tais como o estatuto social ou as convicções políticas.

(11) Há que garantir que as investigações e as acções penais relativas a infracções que digam respeito a racismo e xenofobia não dependam de denúncia ou de apresentação de queixa por parte das vítimas, que são muitas vezes especialmente vulneráveis e mostram relutância em mover acções judiciais.

(12) A aproximação dos direitos penais deverá servir para combater mais eficazmente as infracções de carácter racista e xenófobo, promovendo uma plena e efectiva cooperação judiciária entre os Estados-Membros. As dificuldades que possam existir neste domínio deverão ser tidas em conta pelo Conselho ao rever a presente decisão-quadro na perspectiva de analisar a necessidade de medidas adicionais neste domínio.

(13) Atendendo a que o objectivo da presente decisão-quadro, a saber, assegurar que as infracções de carácter racista e xenófobo sejam punidas em todos os Estados-Membros com pelo menos um nível mínimo de sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas, não pode ser suficientemente realizado pelos Estados-Membros actuando individualmente, dada a necessidade de essas regras serem comuns e compatíveis, e uma vez que esse objectivo pode, pois, ser melhor alcançado ao nível da União Europeia, a União pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade referido no artigo 2.o do Tratado da União Europeia e consagrado no artigo 5.o do Tratado que institui a Comunidade Europeia. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade consagrado neste último artigo, a presente decisão-quadro não excede o necessário para atingir aquele objectivo.

(14) A presente decisão-quadro respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.o do Tratado da União Europeia e pela Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, nomeadamente nos artigos 10.o e 11.o, e reflectidos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em especial nos capítulos II e VI.

(15) Considerações relacionadas com a liberdade de associação e a liberdade de expressão, em especial a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão noutros meios de comunicação social conduziram a que, em muitos Estados-Membros, se previssem no direito interno garantias processuais e normas específicas no tocante à determinação ou à limitação da responsabilidade.

(16) A Acção Comum 96/443/JAI deverá ser revogada, uma vez que, com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, da Directiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de Junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica [5] e da presente decisão-quadro, se tornará caduca,

APROVOU A PRESENTE DECISÃO-QUADRO:

Artigo 1.o

Infracções de carácter racista e xenófobo

1. Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que os seguintes actos sejam puníveis como infracções penais quando cometidos com dolo:

a) A incitação pública à violência ou ao ódio contra um grupo de pessoas ou os seus membros, definido por referência à raça, cor, religião, ascendência ou origem nacional ou étnica;

b) A prática de algum dos actos a que se refere a alínea a) pela difusão ou distribuição públicas descritos, imagens ou outros suportes;

c) A apologia, negação ou banalização grosseira públicas de crimes de genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra definidos nos artigos 6.o, 7.o e 8.o do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, contra um grupo de pessoas ou seus membros, definido por referência à raça, cor, religião, ascendência ou origem nacional ou étnica, quando esses comportamentos forem de natureza a incitar à violência ou ódio contra esse grupo ou os seus membros;

d) A apologia, negação ou banalização grosseira públicas dos crimes definidos no artigo 6.o do Estatuto do Tribunal Militar Internacional, anexo ao Acordo de Londres de 8 de Agosto de 1945, contra um grupo de pessoas ou seus membros, definido por referência à raça, cor, religião, ascendência ou origem nacional ou étnica, quando esses comportamentos forem de natureza a incitar à violência ou ódio contra esse grupo ou os seus membros.

2. Para efeitos do n.o 1, os Estados-Membros podem optar por punir apenas os actos que forem praticados de modo susceptível de perturbar a ordem pública ou que forem ameaçadores, ofensivos ou insultuosos.

3. Para efeitos do n.o 1, a referência à religião visa abranger, pelo menos, o comportamento que constitui um pretexto para praticar actos contra um grupo de pessoas ou os seus membros, definido por referência à raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica.

4. Aquando da aprovação da presente decisão-quadro ou ulteriormente, qualquer Estado-Membro pode fazer uma declaração no sentido de só tornar punível o acto de negação ou banalização grosseira dos crimes referidos nas alíneas c) e/ou d) do n.o 1 se esses crimes tiverem sido estabelecidos por uma decisão transitada em julgado de um tribunal nacional desse Estado-Membro e/ou de um tribunal internacional, ou apenas por uma decisão transitada em julgado de um tribunal internacional.

Artigo 2.o

Instigação e cumplicidade

1. Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que seja punível a instigação à prática dos actos referidos nas alíneas c) e d) do n.o 1 do artigo 1.o

2. Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que seja punível a cumplicidade com a prática dos actos referidos no artigo 1.o

Artigo 3.o

Sanções penais

1. Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que os actos referidos nos artigos 1.o e 2.o sejam puníveis com sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas.

2. Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que os actos referidos no artigo 1.o sejam puníveis com pena com duração máxima de, pelo menos, um a três anos de prisão.

Artigo 10.o

Aplicação e revisão

1. Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para dar cumprimento às disposições da presente decisão-quadro até 28 de Novembro de 2010.

2. Os Estados-Membros devem transmitir ao Secretariado-Geral do Conselho e à Comissão, até à mesma data, o texto das disposições que transpõem para o respectivo direito interno as obrigações que lhes incumbem por força da presente decisão-quadro. Com base num relatório elaborado pelo Conselho a partir destas informações e num relatório escrito da Comissão, o Conselho verifica, até 28 de Novembro de 2013, em que medida os Estados-Membros deram cumprimento às disposições da presente decisão-quadro.

3. Antes de 28 de Novembro de 2013, o Conselho deve rever a presente decisão-quadro. Para preparar esta revisão, o Conselho deve solicitar aos Estados-Membros que comuniquem eventuais dificuldades havidas ao nível da cooperação judiciária no que respeita aos actos referidos no n.o 1 do artigo 1.o. Além disso, o Conselho pode solicitar à Eurojust que lhe apresente um relatório sobre quaisquer problemas de cooperação judiciária entre os Estados-Membros neste domínio resultantes de diferenças entre as legislações nacionais.

Artigo 11.o

Revogação da Acção Comum 96/443/JAI

É revogada a Acção Comum 96/443/JAI.

[3] Um dos efeitos negativos da criminalização de condutas que também podem configurar o exercício de um direito é o denominado efeito do desalento  – chilling effect –, originado na jurisprudência do Tribunal
Supremo americano.
O  efeito de desalento -particularmente associado á liberdade de expressão, parte da vertente institucional dos direitos fundamentais e do seu desenvolvimento, e coloca-se se         quando uma determinada norma,seja pela sua vacuidade, seja pela sua amplitude, pode dissuadir  ou desmotivar o exercício dum  direito fundamental. Não se cuida de saber se a norma proíbe conduta protegida pelo direito fundamental, mas que, ao abarcar condutas muito próximas do âmbito protegido pelo direito, ou ao permitir a sua indeterminação, pode desmotivar o seu exercício Pela mesma razão o efeito inibitório pode incidir  sobre condutas legitimadas pelo exercício do direito fundamental mas, eventualmente, situadas na periferia do proibido.