Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9570/16.0TBPRT.P1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
AÇÃO DE PREFERÊNCIA
DEPÓSITO DO PREÇO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
INCONSTITUCIONALIDADE
PROPRIEDADE PRIVADA
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / COMPROPRIEDADE / DIREITOS E ENCARGOS DO COMPROPRIETÁRIO / ACÇÃO DE PREFERÊNCIA.
Doutrina:
- Almeida e Costa, RLJ, Ano 129, n.º 3868, p. 194 e ss.;
- Antunes Varela, RLJ, ANO 119, n.º 3745, p. 106 e ss ; O Exercício do Direito de Preferência, RLJ, Ano 100, p. 242;
- Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, p., 187 e ss.;
- Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Teses, 2006, Uni. Católica, p. 658, 663 e ss.;
- Castanheira Neves, O Atual Problema Metodológico da Interpretação, RLJ, Ano 117º, p. 193 e ss.;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2014, p. 836;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VII, Almedina, 2010, p. 517-519;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação ao artigo 1410º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1410.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 65.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 11-01-2011, PROCESSO N.º 1204/07.0TVPRT.P1.S1;
- DE 21-01-2016, PROCESSO N.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1;
- DE 08-09-2016, PROCESSO N.º 1022/12.4TBCNT.C1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT;


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


- ACÓRDÃO N.º 583/2016, DE 03-11-2016, PROCESSO N.º 17072016, IN DR N.º 235/2016, II SÉRIE, DE 09-06-2016.
Sumário :
I – Atento o teor do artigo 1410º, nº1, do CC, o titular do direito de preferência deve proceder ao depósito da totalidade do preço contratado, mesmo nos casos em que o preço convencionado deva ser pago em prestações e uma ou algumas delas ainda se não encontrem pagas ou vencidas no momento em que a ação é proposta;

II – A interpretação da norma ínsita no art. 1410º, nº1, do CC, no sentido atrás mencionado, não viola o direito constitucional consagrado no art. 65º, da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA e mulher BB instauraram a presente ação sob a forma comum contra “CC” e “DD, Ld.ª” pedindo que:

- Seja reconhecido o direito de preferência dos autores na compra e venda do imóvel descrito na petição inicial, havendo-o para si mediante o pagamento da quantia de EUR 117 000,00, depositando EUR 30.000,00, 15 dias após a propositura da ação, e EUR 87 000,00 até 17 de Julho de 2017;

- A referida transmissão seja efetuada com a garantia hipotecária constituída a favor da 1ª ré sobre o imóvel objeto da preferência, nos termos e condições constantes da escritura de compra e venda celebrada entre as rés a 25 de Agosto de 2015, ou, em alternativa, a constituição de fiança bancária de igual montante a favor da referida ré;

- Seja ordenado o cancelamento da inscrição registada na CRP da Amora, referente ao prédio nº 3120 da União das freguesias de ..., ..., ..., ..., ... e ..., ..., e averbada a propriedade sobre o mesmo imóvel a favor dos autores, na CRP e na matriz, bem como da garantia hipotecária a constituir.

Para tanto, alegam, em síntese, que:

Por contrato celebrado em 9.10.1969 tomaram de arrendamento o prédio sito na rua ..., União das freguesias de ..., ..., ..., ..., ... e ..., ..., atualmente inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4979º, e descrito na conservatória do registo predial sob o nº 3120, pertencente à 1ª ré.

Por carta datada de 4.5.2015, a 1ª ré comunicou-lhes a intenção de alienar o dito imóvel à 2ª ré, pelo preço e condições ali indicados, aquisição que, nos termos em que foi comunicada, não interessou aos autores, razão pela qual se abstiveram de exercer a preferência.

Tomaram, porém, conhecimento de que, por escritura pública outorgada a 25.8.2015, a 1ª ré vendeu o imóvel à 2ª ré, em condições diferentes das comunicadas aos autores.

Mais alegaram que, se lhes tivesse sido oferecida a compra do imóvel, nas condições vertidas na escritura de compra e venda, os autores teriam exercido a preferência, direito que pretendem exercer através da presente ação.

Por isso, vão efetuar o depósito de EUR 30.000,00 à ordem dos presentes autos, comprometendo-se a efetuar o pagamento da restante parte do preço (EUR 87.000,00) até ao dia 17.72017, conforme estipulado na escritura pública de compra e venda.

2. As rés contestaram.

2.1. Na sua contestação, a 1ª ré alegou, em síntese, que:

O direito invocado se encontra extinto, por caducidade, por já ter decorrido o prazo previsto na 1ª parte do nº1, do art. 1410º do CC, e também porque os autores não efetuaram o depósito da totalidade do preço da venda no prazo fixado na 2ª parte do mesmo preceito legal.

Por outro lado, tendo a compradora constituído garantia especial de cumprimento através da constituição de hipoteca sobre duas frações autónomas, os autores nada fizeram para garantir o cumprimento do pagamento do remanescente do preço, pelo que é de considerar que não se mostram preenchidos os requisitos para o exercício da preferência.

Mais alegou que o autor AA renunciou expressamente ao exercício do direito de preferência que agora pretende exercer, indicando ser o preço da venda o motivo da renúncia.

Finalmente, sustentou que se verificam os pressupostos do abuso de direito, uma vez que os autores reconheceram a compradora como legítima proprietária do imóvel em Setembro de 2015, gerando confiança na manutenção do negócio e que, nessa medida, litigam de má-fé, fazendo uso reprovável do processo.

2.2. A 2ª ré alegou, em resumo, que:

Os autores, por carta datada de 11.5.2015, expressamente renunciaram ao direito de preferência apenas devido ao montante do preço, que afirmaram ultrapassar as suas possibilidades e que o valor declarado na escritura de compra e venda se manteve inalterado, assim como a generalidade das condições do negócio.

Invocou, ainda, a caducidade do eventual direito de preferência, dado que os autores têm conhecimento dos exatos termos do negócio, pelo menos, desde Setembro de 2015.

Pediu igualmente a condenação dos autores como litigantes de má-fé.

3. Na 1ª instância foi proferido saneador-sentença que, julgando procedente a exceção de caducidade do direito de preferência, por falta de depósito do preço devido, absolveu as rés do pedido.

4. Desta decisão apelaram os autores, tendo o Tribunal da Relação do Porto negado provimento ao recurso.

5. De novo irresignados, vieram os autores interpor revista excecional para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido pela Formação a que alude o art.º. 672º, nº 3, do CPC.

Nas suas alegações, os autores, em conclusão, disseram:

I. Pelo exposto, verificam-se os fundamentos legais para a admissão da revista excecional, por razões pragmáticas (a existência de decisões contraditórias), por razões teleológicas (estabilidade do agregado familiar) e pela efetiva contradição entre o acórdão recorrido e outros acórdãos proferidos sobre a mesma matéria.

II. O conceito de preço devido adotado no douto acórdão recorrido, como correspondente ao preço contratual total, constitui uma errada leitura do art. 1410º, n° l do Código Civil, porquanto, tal leitura está em contradição com o disposto nos arts. 416° e 883° do mesmo diploma legal.

III. A norma do art.1091° do Código Civil funda-se no disposto no n° 1 e na alínea c) do n° 2 do art. 65° da Constituição da República Portuguesa, sendo uma norma de interesse e ordem pública, obrigando à prevalência da interpretação mais favorável ao preferente habitacional das normas ordinárias que o concretizam, como é o caso do art.1410° n° 1 do mesmo Código.

IV. Sendo condição essencial do exercício da preferência, o projeto de venda previsto no art. 416º, do Código Civil, onde se englobam obrigatoriamente as condições de pagamento do preço, tem de considerar-se relevante para a opção do preferente a questão de saber se tem de obter o dinheiro em oito dias ou em 2, 3 ou 10 anos, pelo que não pode ser exigido que disponha do preço total na ação de preferência, quando ao terceiro adquirente, sem qualquer razão específica, foi concedido o pagamento em prazo dilatado no tempo.

V. A exigência do depósito da totalidade do preço como condição para o prosseguimento da ação de preferência, além de violar o disposto no art. 416° do CC, na sua melhor interpretação, constitui também nessa perspectiva uma leitura inconstitucional da norma do art.1410° n° 1 do CC.

VI.    Releva ainda concluir que a leitura do n°1 do art.1410° do Código Civil considerando «preço devido» como preço do contrato ou preço total, independentemente de estar vencido ou não, cria uma contradição, entre essa disposição e as normas dos arts. 416° e 883° do Código Civil, em violação da regra do art.9° do Código Civil, que manda integrar no sistema jurídico a leitura de cada norma de forma a manter a lógica do conjunto.

VII.    A leitura da expressão «preço devido», feita no douto acórdão recorrido, como se se tratasse de prestação de caução, não pode ser aceite porquanto, o legislador distingue perfeitamente o preço da caução, como se vê do art. 623 ° do Código Civil; e, se pretendesse com a expressão preço devido uma garantia a favor do adquirente e do alienante, adotaria a expressão prestação de caução e não preço, de acordo com a regra de interpretação do art.9° do Código Civil que obriga a interpretar as normas considerando que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

VIII.     Mesmo que se entendesse ser de exigir aos Autores, uma garantia para a parte do preço ainda não paga pelo adquirente e não recebida pelo alienante, a solução proposta por aqueles na sua petição, oferecendo a reserva de propriedade do próprio prédio - art. 20° da p.i-, era perfeitamente aceitável, satisfatória e adequada.

IX.     Se a Ré alienante tivesse cumprido rigorosamente com a obrigação de preferência (indicando que o preço era pago em prestações) e os AA exercessem esse direito, não podia chegar à escritura pública de venda e dizer perante o notário: Não respeito o projeto de venda e só assino a escritura se me for paga a totalidade do preço. Pelo que não se compreende que, no caso de litígio, já possa tomar essa atitude, exigindo o depósito da totalidade do preço.

X.     Aliás, não foi alegada pelos RR qualquer circunstância específica que permitisse à Ré Irmandade considerar que a Ré DD

merecia mais crédito do que os Autores, não havendo qualquer motivo para diferente exigência no que ao pagamento do preço diz respeito.

XI.     Em suma: O preferente ao exercer judicialmente o direito de preferência está apenas a pretender tomar a posição do terceiro adquirente no contrato de compra e venda, nos precisos termos dos direitos e obrigações ali assumidos.

Nestes termos, deve dar-se provimento a presente revista, revogando-se o douto acórdão recorrido e em consequência julgando-se procedente a ação, tomando em linha de conta que o preço se encontra depositado pelos Autores na sua totalidade; Se tal se não entender, deve julgar-se improcedente a exceção de caducidade, enviando-se o processo à primeira instância para decisão em conformidade

6. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.


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7. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.[1]

Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

Sendo assim, as únicas questões de que cumpre conhecer consistem em saber se:

a) - Face ao disposto no artigo 1410º, nº1, do CC, é de julgar procedente a exceção de caducidade, por falta de depósito integral do preço da venda;

b) - Se é inconstitucional a norma do artigo 1410º, nº1, do CPC, se interpretada no sentido de a expressão «preço devido» significar «preço contratado», e não preço pago ou já vencido.


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II – Fundamentação de facto

8. Está provado que:

1 - Por contrato reduzido a escrito a 09 de Outubro de 1969, EE declarou dar de arrendamento, e o autor AA declarou tomar de arrendamento, pelo prazo de 1 ano, renovável por iguais períodos, mediante o pagamento da quantia mensal de 2 200$00, o prédio sito na rua ..., atualmente da União das Freguesias de ..., ..., ..., ..., ... e ..., ..., hoje inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4979º, e descrito na conservatória do registo predial sob o nº 3120;

2 - Por carta datada de 04 de Maio de 2015, a ré “CC” comunicou ao autor AA que pretendia vendê-lo à ré “DD, Ldª”, pelo valor global de € 117 000,00, nas seguintes condições:

a. pagamento de € 15 000,00 com a celebração do contrato promessa de compra e venda;

b. pagamento do remanescente do preço, no valor de € 102 000,00, no ato de celebração da escritura de compra e venda, mediante a entrega de € 15 000,00 e da entrega da fração autónoma, designada pela letra “D”, do prédio sito na rua ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo 13832º, e descrita na conservatória do registo predial sob o nº 2437/19970303, com o valor de € 87 000,00;

c. a escritura de compra e venda será celebrada após inscrição do prédio a favor dos promitentes vendedores, e após ultrapassados os prazos das comunicações aos preferentes, sem que estes tenham exercido os respectivos direitos;

3 - Por escritura pública outorgada a 25 de Agosto de 2015, a ré “CC” declarou vender e a ré, “DD, Ldª”, declarou comprar, pelo preço global de € 117 000,00, o prédio sito na rua..., da União das freguesias de ..., ..., ..., ..., ... e ..., ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4979º, e descrito na conservatória do registo predial sob o nº 3120, consignando o seguinte quanto ao pagamento do preço:

a. do preço, a vendedora já recebeu a quantia de € 30 000,00;

b. o remanescente (€ 87 000,00) será pago até ao dia 17 de Julho de 2017;

c. para garantia do bom pagamento do remanescente do preço, a ré “DD, Ldª”, declarou constituir hipoteca a favor da ré “CC”, sobre os seguintes imóveis: i - fração autónoma designada pela letra “J”, destinada à habitação, sita no ...º andar, com acesso pelo nº ... da rua ..., do prédio sito na rua ..., nº ..., ..., ..., ..., ... e .., e rua ...; ii - fração autónoma designada pela letra “...”, correspondente ao lugar de estacionamento na ..., com entrada pelo nº ... da rua do ..., do prédio sito na rua..., nº ..., ..., ..., ..., ... e ..., e rua ...;

4 - No âmbito dos presentes autos, a 4 de Maio de 2016, os autores realizaram depósito autónomo no valor de € 30 000,00.


***

III – Fundamentação de direito

9. O depósito do «preço devido»

Invocando serem titulares do direito de preferência na compra e venda do prédio onde se encontra instalado o local arrendado e terem sido preteridos no exercício desse direito potestativo, vieram, os autores, instaurar a presente ação, ao abrigo do disposto no art. 1410º, do CC, aplicável ex vi do art. 1091º, nº4, do mesmo Código.

É entendimento unânime deste Supremo Tribunal que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente à data da celebração do ato de alienação, por o direito legal de preferência não passar de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário e que só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo (cf., entre outros, o ac. do STJ de 21.01.2016, proc. nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

In casu, à data da outorga da escritura pública de compra e venda (25.8.2015), vigorava (como ainda hoje) o disposto no art. 1091.º, n.º 1, al. a) do CC, reposto pelo art. 3º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), pelo que será à luz deste normativo (aplicável ex vi do disposto no art. 59º, nº1, do NRAU) e do disposto no art. 1410º, do CC, que será apreciado se se mostra extinto por caducidade, por falta do depósito do preço devido, o direito de preferência invocado pelos autores, na sua qualidade de arrendatário(s) desde 9.10.1969 do prédio urbano objeto do ato translativo do direito de propriedade.

Vejamos, então.

No acórdão sob impugnação, confirmando-se integralmente a sentença, defendeu-se que, face ao disposto no art. 1410º, nº1, do CC, e sob pena de caducidade, o arrendatário que pretenda exercer o direito de preferência deve proceder ao depósito da totalidade do preço da venda do bem que é objeto da preferência.

Nesta perspetiva, tendo os autores procedido ao depósito de (apenas) EUR  30 000,00, quando o preço declarado na escritura pública de compra e venda foi de EUR 117 000,00, as instâncias julgaram extinto por caducidade o direito de preferência que os autores pretendiam ver judicialmente reconhecido.

Contra esta decisão se insurgem os autores, sustentando que a expressão «preço devido«, constante do art. 1410º, nº1, do CC, não deve ser entendida como significando «preço da alienação», mas antes como preço pago (ainda que parcialmente) pelo adquirente do bem. 

Assim, constando da escritura pública de compra e venda que a compradora entregou à vendedora apenas a quantia de EUR 30.000,00, por conta da aquisição do prédio, montante que os autores depositaram, consideram que deram cabal cumprimento ao estipulado no nº1, 2ª parte, do citado art. 1410º, do CC.

Ora bem.

Estabelece-se no art. 1410º, nº1, do CC[2] que:

1 - O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação; “.

Apesar da sua aparente linearidade, esta norma tem servido de palco para amplo debate na doutrina e na jurisprudência, sendo por todos reconhecida a necessidade de algum esforço para precisar o seu sentido.

A questão concreta sobre a qual este Supremo é chamado a pronunciar-se, qual seja a de saber se o preferente deve depositar a totalidade do preço contratado entre o vinculado à preferência e o terceiro-adquirente, coloca-nos, assim, perante um problema de interpretação da lei, concretamente da norma ínsita no art. 1410º, nº1, 2ª parte, do CC.

Importa, portanto, trazer à colação o disposto no art. 9º, do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Sobre a matéria, recorde-se o que escreveu Antunes Varela[3], em anotação a um acórdão do STJ de 25.5.1982:

“Ao redigir o artigo 1410.°, nº1, do novo Código, o legislador teve naturalmente, antes de tudo o mais, a preocupação de corrigir as principais deficiências imputadas pela doutrina e jurisprudência ao texto correspondente da legislação anterior.

O texto (onde ao tempo se definia o esquema fundamental da ação de preferência) era o do § 1.° do artigo 1566.° do Código Civil de 1867 e a sua redação era a seguinte: «O comproprietário a quem se não der conhecimento da venda, poderá haver para si a parte vendida a estranhos, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que tenha conhecimento da venda, depositando, antes de efetuada a entrega, o preço que, segundo as condições do contrato, estiver pago ou vencido».[4]

Por um lado, a compreensível iniciativa de converter o depósito do preço por parte do preferente numa condição de entrega da coisa, deixando de constituir uma condição de admissibilidade da ação, como parecia suceder no direito anterior à reforma de 1930, pecava pela sua imprecisão e criava o grave risco de deixar prosseguir a ação em muitos casos nos quais ao preferente faleciam as condições materiais necessárias para exercer o seu direito. Julgou-se preferível, para assegurar a real utilidade prática da ação e pôr cobro a puras manobras de especulação por parte do autor, obrigá-lo a depositar o preço logo na fase inicial da ação e fixar com precisão o período destinado ao depósito. (…).

A segunda correção que o legislador, ao elaborar o (novo) texto do artigo 1410.°, pretendeu introduzir no direito anterior refere-se ainda ao depósito do preço imposto ao autor da ação (real) da preferência, mas tocando já a questão do seu objeto.

Prescrevia-se no § 1.° do artigo 1566.° do velho Código (de 1867), relativamente ao depósito exigido do preferente, que este depositaria «o preço que, segundo as condições do contrato, estiver pago ou vencido».

A fórmula usada no texto obedecia manifestamente à ideia de transmitir para o depósito exigido do preferente (o comproprietário preterido) todas as facilidades de pagamento que o comproprietário alienante houvesse concedido ao estranho a quem tivesse vendido ou dado a sua quota em pagamento.

Só assim se explica que o comproprietário preferente fosse obrigado a depositar, antes da entrega da quota, não o preço convencionado, mas apenas a parte do preço que estivesse já paga ou que, segundo as cláusulas da compra e venda realizada com o adquirente, se tivesse já vencido.

Entendeu-se não ser essa a melhor doutrina, especialmente em vista da função preventiva que o depósito do preço é chamado a desempenhar na ação de preferência.

Por um lado, pode haver facilidades de crédito, dispensas de garantia, ou dilações no pagamento que o alienante tenha concedido ao adquirente, só pela especial confiança que este lhe merecesse, e que o julgador não pode arbitrariamente estender, por conta alheia, ao titular da preferência.

A igualdade de condições - tanto por tanto, nota por nota, escudo por escudo - que está na base do direito de preferência não parece que deva ir até ao ponto de ignorar a existência destes fatores pessoais na forma de realização das prestações convencionadas, desde que ressalve a prioridade essencial estabelecida a partir da igualdade objetiva das prestações.

Por outro lado, mesmo entendendo, numa conceção rigorista do direito de preferência, que ao preferente se comunicam todas as condições de pagamento oferecidas ao adquirente, nada obsta a que do preferente se exija, no momento inicial fixado por lei, o depósito do preço (de todo o preço) devido, como meio de garantir a real utilidade da ação, nos próprios casos em que o preço convencionado deva ser pago em prestações e uma ou algumas delas ainda se não encontrem vencidas no momento em que a ação é proposta ou até na data em que a sentença é proferida.”.

Sobre a finalidade prosseguida pela lei ao impor este ónus ao preferente, afirma o mesmo autor[5] que a razão de ser desta exigência se explica pela “ideia de garantir, na medida do possível, a utilidade real da ação de prefe­rência, pondo o alienante a coberto do risco de perder o contrato com o adquirente e não vir a celebrá-lo com o preferente (por este se desinteressar entretanto da sua realização ou por não ter os meios necessários para a aquisição) [...]. É uma segurança para o alienante e não deixa de consti­tuir também uma garantia para o próprio preferente, forçado a apresentar desde logo os meios necessários para a aquisição que pretende realizar”.

Também Cardoso Guedes[6], em consonância com a posição perfilhada por Antunes Varela, sustenta que:

“(…) face a um acordo entre sujeito passivo e adquirente mediante o qual o primeiro recebeu uma parte do preço e aceitou receber a parte restante em momento posterior à conclusão da venda, é legítimo perguntar se o preferente não deveria depositar apenas a parte do preço já paga e, eventualmente, a prestação ou prestações entretanto vencidas, atento o princípio de que a preferência se exerce em paridade de condições. Porém, considerando a finalidade do depósito prévio de constituir uma garantia para o alienante, pondo-o a coberto do risco de perder o contrato com o adquirente e não vir a celebrá-lo com o preferente e a letra do art.° 1410.°, nº1, do Código Civil, que impõe o depósito do "preço devido" e não do "preço pago ou vencido", parece-nos evidente que o titular do direito só cumpre este ónus se depositar a totalidade do preço, mesmo que uma parte dele (ou todo) não seja ainda exigível.”.

No mesmo sentido, se pronuncia Menezes Cordeiro[7], escrevendo:

“O artigo 1410º, nº1, na redação atual, exige ainda o "depósito do preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação".

(…)

Esse depósito equivale, de resto, a um preço pago ad nutum, enquanto o terceiro adquirente, provavelmente, terá podido faccioná-lo. “.

Por sua vez, Almeida e Costa[8], muito embora considere, face ao direito constituído, que os argumentos aduzidos por aqueles que defendem que o preferente é obrigado a depositar a totalidade do preço, mesmo que uma parte dele (ou todo ele) não seja ainda exigível, são muito ponderosos, preconiza, de iure constituendo, a consagração legal de uma solução que, sem deixar de acautelar os interesses do alienante, pondere também os do preferente. Concretizando, propõe a reformulação do (atual) nº1, do art. 1410º, do CC, nos seguintes termos:

“1- O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido, após o trânsito em julgado da decisão que que considere o pedido procedente, no prazo nela fixado pelo juiz; em qualquer estado do processo, pode o tribunal, se isso lhe for requerido, determinar a prestação de caução idónea pelo preferente.”.

Tomando posição sobre a questão solvenda, é nosso entendimento que, no caso dos autos, as instâncias decidiram acertadamente.

Com efeito:

Como decorre do art. 9º, do CC, a letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, in "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, págs., 187 e segs., a função negativa de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Nesta sede, ter-se-á presente, como refere Castanheira Neves, in O Atual Problema Metodológico da Interpretação, RLJ, Ano 117º, 193 e ss., que o legislador não usa palavras e exprime enunciados, que terão porventura um sentido linguístico-gramatical comum, apenas para comunicar esse sentido comum. Quer antes prescrever uma intenção jurídica através dessas palavras; ou seja, o referente do seu texto é um sentido jurídico.

Ora, como salienta como salienta Cardoso Guedes[9], o termo “preço” é usado em sentido técnico, para designar o valor correspondente ao benefício económico ajustado entre sujeito passivo e adquirente como contrapartida da alienação do bem (cf. art. 874º, do CC), valor esse a pagar pelo preferente pela aquisição do bem sujeito à preferência.

Por outro lado, como acima se referiu, o art. 1410º, nº1, do CC teve por fonte o art. 1566º, § 1º do Código Civil de Seabra, na redação a este conferida pelo Decreto n.º 19.126, de 16/12/1930, no qual se dispunha que o preço a depositar seria aquele, que, segundo as condições do contrato, se encontrasse pago ou vencido.

Sucede que, face ao estatuído no art. 1566º, do Código de Seabra, o art. 1410º do C.C. eliminou a referência ao depósito do «preço que, segundo as condições do contrato, estiver pago ou vencido», exigindo, pelo contrário, o depósito do «preço devido».

Nesta conformidade, devendo presumir-se que o legislador soube  exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas (cf. art. 9º, nº3, do CC), é patente que a nova formulação normativa deixou bem clara a sua intenção de pôr fim à dicotomia preço acordado/preço pago, assegurando ao vendedor que, em caso de aquisição do bem pelo preferente, o seu direito ficará devidamente acautelado por ter sido depositada a totalidade do preço contratualizado.

Em convergência com esta orientação, se pronunciou este Supremo Tribunal, no acórdão de 11.1.2011, proferido no proc. 1204/07.0TVPRT.P1.S1 (Relator: Sousa Leite), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado:

“I - Constitui um dos requisitos substantivos para o exercício, por parte do arrendatário, do direito de preferência que lhe é legalmente conferido, o depósito, nos 15 dias subsequentes à propositura da ação, do preço devido, em conformidade com o consignado no art. 1410.º, n.º 1, do CC. 

II - Esta norma teve por fonte o art. 1566.º, § 1.º, do Código Civil de Seabra, na redação a este conferida pelo Decreto n.º 19 126, de 16-12-1930, no qual se dispunha que o preço a depositar seria aquele que, segundo as condições do contrato, se encontrasse pago ou vencido, de tal se extraindo que, no caso do preço respeitante à alienação não ter sido objeto de integral pagamento por parte do comprador/terceiro, o titular do direito de preferência apenas se encontrava obrigado a proceder ao depósito da parte do numerário já satisfeita, estatuição essa, porém, que se não mostra inserida no conteúdo do atual art. 1410.º do CC. 

III - Perante a literalidade constante deste último normativo, conclui-se que a intenção do legislador, ao empregar a expressão preço devido, em contraponto à dualidade preço pago/preço vencido, anteriormente consagrada, teve por objetivo alterar o antecedentemente estatuído, reportando, assim, tal preço ao numerário correspondente ao acordado para a alienação do bem que é objeto do direito de preferência. 

IV - Tal interpretação é, aliás, aquela que mais se adequa ao princípio vertido no art. 9.º, n.º 1, do CC, já que se, na situação similar em que se verifique a venda de vários bens por um preço global, foi expressamente indicado, por via legislativa, o procedimento específico a observar relativamente ao acionamento, pelo preferente, do direito de que é titular, quando o mesmo se circunscreva, apenas, a um dos bens alienados – art. 417.º, n.º 1, do CC –, seria de todo em todo irrazoável que, pretendendo o legislador a manutenção de um regime análogo ao antecedentemente vigente, relativamente à diferenciação dos valores do preço a depositar, omitisse a sua consagração pela via legislativa.”.

Mais recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça veio reafirmar esta mesma orientação em acórdão de 8.9.2016, proferido no proc. 1022/12.4TBCNT.C1.S1 (Relatora: Fernanda Isabel Pereira), disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:

“(…)

III - O depósito do preço, no âmbito da ação de preferência, cobre o risco do alienante se ver confrontado com a hipótese de perder o negócio com o adquirente e de não vir a celebrar qualquer contrato com o preferente, forçando-o a apresentar os meios para a aquisição que pretende efetuar;

 

IV - A expressão preço devido corresponde ao valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem que constitui objeto da preferência (cf. art. 874.º do CC). Trata-se da totalidade (e não somente aquela parcela que se acha paga ou vencida) do preço real já pago ou declarado para a transação.

Os mencionados arestos debruçam-se sobre a questão agora trazida à apreciação deste Supremo Tribunal, pelo que a sua doutrina não poderia deixar de ser por nós especialmente ponderada, atendendo designadamente ao disposto no art. 8º, nº3, do CC, segundo o qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.

Nessa medida, a solução que defendemos colhe das suprarreferidas decisões argumentos reforçados no sentido de que o art. 1410º, nº1, do CC consagra a obrigatoriedade de o preferente dever proceder ao depósito integral do preço fixado no contrato (o «preço devido»), e não apenas de uma parte desse preço (a que eventualmente esteja paga ou vencida).


***

10. Da inconstitucionalidade

Os recorrentes vieram alegar que a norma do art.1091° do Código Civil se funda no disposto no n° 1 e na alínea c) do n° 2 do art. 65° da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e que, sendo uma norma de interesse e ordem pública, obriga à prevalência da interpretação mais favorável ao preferente habitacional, das normas ordinárias que o concretizam, como é o caso do art.1410°, n° 1, do mesmo Código.

Nesta perspetiva, sustentam que a interpretação do artigo 1410º, nº1,  do CC no sentido fixado pelas instâncias e agora acolhido por este Supremo Tribunal, configura uma violação do disposto no art. 65.º da CRP.

Não lhes assiste qualquer razão.

Na verdade:

No art. 65.º da CRP dispõe-se que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” (nº1); e que “para assegurar o direito à habitação incumbe ao Estado: a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social; b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução (nº2).

Dali decorre claramente que a Constituição visa garantir o direito a uma habitação condigna, mas não o direito à habitação própria.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito à habitação não se reduz ao direito a habitação própria (o que o transformaria num caso de direito à propriedade), podendo ser realizado também por via do direito de arrendamento.[10].

Sobre esta matéria, concretamente sobre a constitucionalidade da norma do art. 1091º, do CC, numa situação em que se discutia a abrangência do direito de preferência do arrendatário, se pronunciou o acórdão nº 583/2016, do Tribunal Constitucional, proferido em 3.11.2016, proc. 17072016, (Relator: Teles Pereira), publicado no DR nº 235/2016, II Série, de 9.6.2016, e no qual se pode ler:

“… o direito à habitação tanto pode ser assegurado por via do arrendamento como por via da propriedade (habitação própria) - cf., a propósito, o artigo 65.º, n.º 2, alínea c), da Constituição.

(…)

Trata-se, aliás, de matéria em que o legislador goza de ampla margem de conformação, como foi justamente se assinala no Acórdão n.º 806/93:

"[...]

A conceção constitucional quanto à efetivação do direito à habitação é, assim, uma conceção «plural» ou «aberta» quanto aos meios, que tanto pode ser canalizada na promoção e regulação da oferta habitacional, como da sua procura. [...] [E]stá em causa uma pura opção de política social, adotada ao abrigo da liberdade que assiste ao legislador, dentro dos limites constitucionalmente estabelecidos. Não pode, pois, um juízo de constitucionalidade incidir sobre as finalidades dessa política, mas tão somente sobre o confronto dos normativos que a corporizam com os pertinentes preceitos constitucionais

[...]".

Por outro lado, o direito à habitação, por si só, "[...] não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão [...]" (Acórdão n.º 649/99) ou, nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, "[...] o direito à habitação não se reduz ao direito a habitação própria (o que o transformaria num caso de direito à propriedade), podendo ser realizado também por via do direito de arrendamento" (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 836).

2.2.3.2. Para além da margem de liberdade de que goza no estabelecimento do regime jurídico que entende ser mais adequado à satisfação do direito à habitação, o legislador também pode transformá-lo ao longo do tempo.

(…)

Ou seja, como se lê no Acórdão n.º 346/93:

"[...]

[N]esta matéria do direito constitucional à habitação, tem de ponderar-se que o seu grau de realização fica dependente sempre, em última análise, das opções que o Estado seguir em matéria de política de habitação, as quais são sempre condicionadas pelos recursos financeiros de que o próprio Estado possa dispor em cada momento (a chamada ‘reserva do possível’) e pelo grau de sacrifício que o legislador considerar razoável impor aos proprietários privados, senhorios de casas de habitação.

(…)”.

Sufragando sem reservas esta argumentação, resta concluir que:

A concretização do direito em causa é uma tarefa cuja realização gradual a Constituição comete ao Estado.

Sendo um direito «sob reserva do possível», para além de um mínimo que o Estado não pode deixar de satisfazer, o legislador infraconstitucional goza de ampla margem de conformação.

O direito de preferência, impondo-se unilateralmente à contraparte, restringe o comércio jurídico e a liberdade de contratar, valores fundamentais do nosso ordenamento. É, assim, incontestável que, na medida em que faculta a aquisição de uma propriedade, mesmo contra a vontade do próprio titular, o instituto assume natureza excecional.

Sendo a esta luz que deve ser avaliada a conformidade constitucional das normas que consagram o direito de preferência do arrendatário e definem os requisitos do seu exercício, não sofre dúvidas de que a interpretação do disposto no artigo 1410º, nº1, do C.C. no sentido de que o «preço devido» é o preço da aquisição, ainda que não tenha sido integralmente pago, não afronta o direito à habitação consagrado no artigo 65° da Constituição.

Improcede, pois, a revista.


***

IV – Decisão

11. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 21/6/2018

Maria do Rosário Morgado (Relatora)

Sousa Lameira

Hélder Almeida

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[1] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).
[2] A redação atual foi introduzida pelo DL nº 68/96, de 31 de maio, visando adequar ao novo regime, saído da Reforma do Processo Civil operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de dezembro, o que, sobre o prazo de depósito do preço nas ações de preferência se estabelecia então no n.º 1 do artigo citado, uma vez que se havia eliminado, como marco temporal de referência, o prazo posterior «ao despacho que ordene a citação dos réus».
[3] Cf. RLJ, ANO 119,nº 3745, págs. 106 e ss.; no mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, anotação ao art. 1410º.
[4] A redação transcrita no texto não é a versão original do (corpo do) artigo 1566.° do velho Código de Seabra, mas a forma do primeiro dos quatro (novos) parágrafos introduzidos na disposição pelo Decreto n.° 19 126, de 16 de Dezembro de 1930.
[5] In O Exercício do Direito de Preferência, RLJ, Ano 100, pág. 242.
[6] In O Exercício do Direito de Preferência, Teses, 2006, Uni. Católica, págs. 663 e ss.
[7] In Tratado de Direito Civil, VII, Almedina, 2010, págs. 517-519.
[8] In RLJ, Ano 129, nº 3868, págs. 194 e ss.
[9] Ob. cit., pág.658.
[10] In Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2014, pág. 836.