Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1916/03.8TVPRT.P2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
SOCIEDADE ANÓNIMA
ADMINISTRADOR
INSUFICIÊNCIA DO ACTIVO
INSUFICIÊNCIA DO ATIVO
ÓNUS DA PROVA
NEXO DE CAUSALIDADE
NULIDADE DE SENTENÇA
CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
Data do Acordão: 01/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:

DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - SOCIEDADES ANÓNIMAS.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS.
Doutrina:
- Adelaide Menezes Leitão, “Responsabilidade dos administradores para com a sociedade e os credores sociais pela violação de normas de protecção”, in RDS, n.º 3, 2009 p. 661 e ss..
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, volume V, 3.ª edição, 1952, reimpressão, Coimbra, 2007, pp. 67 a 70.
- António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, Coimbra, Junho de 1997, p. 121.
- Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1985, pp. 675 a 677.
- Calvão da Silva, “Tradição da coisa e indemnização alternativa por incumprimento de promessa sinalizada” in R.L.J, Ano 133.º, Abril de 2001, p. 363 e ss., e in R.L.J, Ano 134.º, Maio de 2001, p. 21 e ss., em anotação aos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/09/2000 e de 19/04/2001.
- Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas – Organização e Estatuto dos Administradores, Lisboa, 1990, pp. 222, 223, 230.
- J. M. Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, Coimbra, Outubro de 2010, pp. 894, 895-897, 904 e ss..
- Jorge Augusto Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 3ª edição, Coimbra, p. 343.
- Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum - à luz do código revisto, Coimbra, 2000, p. 288.
- Menezes Cordeiro, “Código das Sociedades Comerciais” Anotado, Coimbra, 2009, p. 279; Da responsabilidade dos administradores das sociedades comerciais, Lisboa, 1997, pp. 494 e ss., 810, 837, 838 e 931 e ss.;e Manual de Direito das Sociedades, I volume, Das sociedades em geral, Coimbra, 2007, pp. 40, 496, 497, 522 e 523.
- Miguel Pupo Correia, “Sobre a Responsabilidade por Dívidas Sociais dos Membros dos Órgãos da Sociedade”, in ROA, ano 61, Abril de 2001, p. 667.
- Raúl Ventura e Luís Brito Correia, “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas”, Estudo Comparativo dos Direitos Alemão, Francês, Italiano e Português, Lisboa, 1970, pp. 330 e 331 e 445.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 442º, N.º 2, 483.º, N.º 1, 487.º, 527.º, N.ºS 1 E 2, 566.º, N.º 2.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 31.º, 34.º, 64.º, 72.º, N.º 1, 78.º, N.ºS 1, 2 E 5, 79.º, 218.º, 220.º, N.º 2, 236.º, 295.º, 296.º, 316.º, N.º 1, 317.º, N.ºS 1, 2 E 4, 323.º E 6.º, 346.º, N.º 1, 513.º, 514.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 553.º, 609.º, N.ºS 1 E 3, E 615.º, N.º 1, AL. E), 684.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 12/03/1987, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 04/04/2002, IN C.J., S.T.J., 2002, TOMO I, P. 151;
-DE 05/12/2006, CJ, STJ;
-DE 31/03/2011, PROCESSO N.º 242/09.3YRLSB.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 29/01/2014, PROCESSO N.º 548/06.3TBARC.P1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O juiz não pode proferir sentença que transponha os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objecto, pelo que, não havendo coincidência entre a decisão e o pedido, a sentença é nula – arts. 609.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, al. e), do NCPC (2013).

II - Tendo sido pedida, numa acção fundada em responsabilidade civil extracontratual, a condenação do réu, administrador de facto de uma sociedade anónima, no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor que teria a moradia que lhe havia sido prometida vender por aquela sociedade, por esta última ter incumprido definitivamente, por força de alegada violação dos deveres legais e contratuais que recaíam sobre o réu, o contrato-promessa que consigo havia celebrado e tendo a Relação condenado o réu no pagamento ao autor da quantia de € 250 000, correspondente ao “sinal em dobro”, tal decisão é nula por ter condenado em objecto diverso do pedido.

III - A responsabilidade dos administradores de uma sociedade, no quadro do art. 78.º, n.º 1, do CSC, que é de natureza extracontratual, impõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) a inobservância de disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais; (ii) a insuficiência do património social; (iii) a culpa dos administradores; e (iv) o nexo de causalidade entre a referida inobservância e a insuficiência do património societário.

IV - O art. 64.º do CSC não é, por si só, fonte de responsabilidade civil em face dos credores sociais, não sendo uma norma destinada à protecção destes.

V - É sobre o autor, enquanto credor social indirectamente prejudicado pela inobservância das supra referidas normas de protecção, que recai o ónus de provar os requisitos enunciados em III, os quais não se presumem – arts. 483.º, n.º 1, 487.º, e 342.º, n.º 1, do CC.

VI - Não tendo ficado demonstrado o nexo causal entre o acto ilícito consubstanciado na violação de uma norma destinada a proteger os credores sociais e o resultado danoso (insuficiência do património societário), isto é, que o dano decorreu da violação de uma norma de protecção (e não de quaisquer outras), não pode o administrador da sociedade ser responsabilizado ao abrigo do mencionado regime legal.

VII - A responsabilidade dos administradores a que alude o artigo 79.º do CSC – que é, igualmente, no que se refere aos terceiros, de natureza extracontratual – visa apenas os danos que incidem directamente no património destes, isto é, os que lhes sejam causados sem interferência da sociedade.

VIII - Os administradores – quer se esteja no âmbito de aplicação do disposto no art. 78.º, n.º 1, do CSC, quer se esteja no campo de aplicação do preceituado no art. 79.º do mesmo Código – não respondem perante os credores pelo mero incumprimento culposo das obrigações da sociedade, já que nesse caso apenas existirá responsabilidade contratual e esta apenas à sociedade poderá ser imputada.

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:



A) Relatório:


AA, identificado nos autos, intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB e CC, identificado nos autos, pedindo a condenação solidária destes a indemnizá-lo na quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a título de danos morais e na quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença, correspondente ao valor da moradia que lhe foi prometida vender.

Alegou, para tanto e em síntese, que, por contrato-promessa, datado de 13/03/2001, a sociedade DD, Sociedade de Gestão Imobiliária, S.A. lhe prometeu vender e ele, por sua vez, lhe prometeu comprar uma fracção autónoma correspondente a uma moradia a construir pela referida sociedade no terreno que identificou, pelo preço de Esc.: 50.000.000$00 (cinquenta milhões de escudos), que foi, de imediato, liquidado na totalidade, moradia essa que lhe deveria ser entregue integralmente concluída e pronta a habitar, no prazo máximo de 18 meses a contar da data do levantamento do alvará de licença de construção referente ao empreendimento habitacional em que a moradia se inseria, o que, contudo, a dita sociedade não fez já que, apesar de ter sido notificada do deferimento do pedido de licenciamento do projecto, não procedeu ao pagamento da licença, nem, consequentemente, ao seu levantamento, deixando caducar o licenciamento concedido, apesar de ter obtido financiamento para o efeito, ao que acresce a circunstância de, até à data da propositura da acção, também não ter dado início às obras de construção da moradia que lhe prometeu vender, estando, ademais, a procurar alienar a terceiros o terreno no qual a morada devia ter sido construída sem salvaguardar os direitos do autor decorrentes do contrato-promessa celebrado entre ambos, o que demonstra uma vontade clara e inequívoca de se furtar ao cumprimento daquele, consubstanciando o seu comportamento um inadimplemento definitivo.

Mais alegou que os supra descritos actos, embora sejam formalmente imputados à referida sociedade, são da responsabilidade material dos réus, nos termos dos artigos 64.º, 78.º n.º 1, 79.º, 80.º, 259.º, 405.º, 406.º do Código das Sociedades Comerciais e do artigo 483.º do Código Civil, já que o 2.º réu, CC, passou, a partir de finais de 2000, a actuar como administrador da sociedade DD, S.A., agindo em seu nome e representação e omitindo os cuidados e a diligência que lhe eram exigíveis por forma a que o contrato-promessa em questão, que vinculava a sociedade, fosse pontualmente cumprido; e o 1.º réu, BB, sendo administrador daquela sociedade, para além de também não ter praticado, durante o período da sua administração, os actos inerentes à função que detinha em ordem ao cumprimento do dito contrato, não fiscalizou a actuação do 1.º réu (administrador de facto), faltando, assim, ao dever de diligência e vigilância que sobre ele recaía.

Concluiu dizendo que, assim sendo, os réus estão constituídos na obrigação de o indemnizar pelo prejuízo sofrido (que corresponde ao valor – que estima ser de, pelo menos, € 300.000,00 – que a moradia teria depois de integralmente construída, bem como à sua angústia, agitação, tensão, tristeza, aflição, ansiedade e desgosto), uma vez que a conduta daqueles, por acção e omissão, implicou o empobrecimento do património da sociedade DD, S.A., sendo que da caducidade do licenciamento resultou quer a impossibilidade daquela cumprir a promessa, quer a impossibilidade de lhe pagar o seu crédito, que emerge desse incumprimento definitivo, pelas forças do capital social, por o seu património se ter tornado insuficiente para esse efeito em consequência da violação pelos réus de normas de protecção dos credores.

Tendo sido entendido que os réus, apesar de pessoal e regularmente citados, não deduziram contestação no respectivo prazo legal, foi proferido despacho no qual, ao abrigo do disposto no artigo 484.º do Código de Processo Civil, se julgaram confessados os factos, após o que foi proferida sentença na qual se julgou a acção improcedente, com a consequente absolvição dos réus do pedido.

Desta sentença interpôs recurso o autor, tendo o Tribunal da Relação julgado a apelação parcialmente procedente e, em consequência, confirmado a improcedência total da acção no que diz respeito ao 1.º réu, BB que, assim sendo, foi absolvido dos pedidos, bem como a improcedência da acção quanto ao 2.º réu, CC, relativamente ao segundo pedido, do qual o mesmo foi absolvido, revogando, no entanto, a decisão proferida, relativamente este réu, quanto ao primeiro pedido e ordenando, face ao provimento do agravo pelo mesmo interposto, o prosseguimento dos autos, quanto a esse pedido e a esse réu, com possibilidade de contestação por parte dele.

Inconformado, recorreu o autor para o Supremo Tribunal de Justiça que julgou verificada a nulidade, por omissão de pronúncia, do despacho que julgou confessados os factos articulados pelo autor, determinando, em consequência, a anulação dele e de todo o processado posterior, bem como a apreciação do requerimento - atinente ao pedido de apoio judiciário e à concernente interrupção do prazo para contestar - apresentado pelo 2.º réu, CC.

Contestou, entretanto, o 2º réu, CC, alegando, em suma, que o contrato-promessa invocado não traduziu um negócio real (tanto mais que o autor nada pagou por conta do mesmo e o réu não tinha sequer poderes para representar a sociedade DD, S.A.), tendo, ao invés, visado apenas a obtenção, por parte do autor, de um empréstimo bancário, sem que tenha havido qualquer interpelação para o seu cumprimento. Sustentou, ademais, que, podendo a licença de construção ser levantada, pelo menos, até 18/06/2002, sem contar com eventual pedido de prorrogação do prazo, só a partir daí correria o prazo de 18 meses para a construção do imóvel, muito para além da data em que a acção foi proposta. Impugnou, por último, os alegados danos não patrimoniais por os desconhecer, dizendo que, para além de pecarem por excesso, sempre estariam prejudicados pela inexistência de qualquer contrato-promessa e de qualquer pagamento efectuado, ao que acresce a circunstância de o segundo pedido ter de improceder por não se ter verificado a tradição da coisa nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.

Por sua vez, o 1.º réu, BB, apresentou igualmente contestação, na qual invocou que, não dispondo o 2.º réu, na data da outorga do invocado contrato-promessa, de poderes para representar a sociedade DD, S.A., aquele é ineficaz relativamente a esta, sendo insusceptível de gerar quaisquer obrigações para si, enquanto administrador, sendo, ao invés, o co-réu CC o único responsável pelo cumprimento ou pelo incumprimento do dito contrato, tanto mais que, tendo ele próprio sido administrador da sociedade apenas até 31/01/2002 e podendo as taxas ser pagas até Junho de 2002, aquela teve ainda cinco meses para praticar todos os actos necessários para evitar que o licenciamento caducasse, o que determina, quanto a si, a inviabilidade do pedido. Afirmou, por fim, que o autor não alegou factos dos quais decorra ter existido mora por parte da sociedade DD, S.A., consubstanciada na falta de outorga da escritura pública, não tendo sido, de resto, fixado qualquer prazo para esse efeito, ao que acresce a circunstância de a caducidade do alvará não determinar qualquer impossibilidade de cumprimento já que o seu titular sempre poderia requerer uma nova licença. Concluiu pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição dos pedidos deduzidos.

Em sede de réplica, o autor pugnou pela improcedência das excepções que descortinou, impugnando a matéria alegada pelos réus e clarificando que o contrato-promessa em causa nos autos se inscreveu no âmbito de um negócio (cessão de posição contratual) que conduziu à aquisição pela DD, S.A. do terreno onde iria ser construída a moradia que lhe foi prometida vender, mas que reflectiu o acordo estabelecido entre as partes, tendo constituído o instrumento de pagamento de parte do preço devido pela referida sociedade como contrapartida pela aquisição por esta da posição contratual detida por si no contrato-promessa de aquisição do aludido terreno. No mais, o autor manteve, em suma, o que previamente havia alegado, concluindo pela obrigação que recai sobre os réus de o indemnizar.

Foi proferido despacho saneador, tendo sido especificada a matéria de facto assente e elaborado questionário servindo de base instrutória.

Realizou-se audiência de julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, após o que foi proferida sentença na qual, no que ora releva, se julgou a acção parcialmente procedente, condenando, em consequência, o 2.º réu, CC, a pagar ao A. a quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, absolvendo, no mais, os réus dos pedidos.

Inconformado com o assim decidido, interpôs o autor recurso de apelação, sendo que, conjuntamente com este, subiram igualmente ao Tribunal da Relação três agravos que haviam sido igualmente interpostos pelo autor. Por acórdão de 05/02/2013, aquele Tribunal, concedendo provimento a dois desses agravos, ordenou a reabertura da audiência de julgamento com vista à produção de prova que não tinha sido admitida, com a consequente anulação da decisão sobre a matéria de facto e da sentença proferidas.

Despois de cumprido o determinado, foi proferida nova decisão sobre a matéria de facto e nova sentença na qual se manteve o decidido previamente.

Novamente inconformado com essa decisão, apelou o autor, pedindo a sua revogação com todas as legais consequências, bem como a baixa do processo ao Tribunal a quo com vista à ampliação da selecção da matéria de facto e à repetição do julgamento. Por acórdão de 06/05/2014, foi a apelação julgada parcialmente procedente e, em consequência, parcialmente revogada a sentença e o 2.º réu, CC, condenado a pagar ao autor, a título de danos patrimoniais decorrentes do incumprimento do contrato promessa em apreço nos autos, a quantia de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), tendo, no mais, sido confirmada a decisão recorrida.


Inconformado, recorreu agora de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça, o 2.º réu, CC, pedindo a revogação do citado Acórdão, pelas razões que enunciou nas suas alegações, das quais constam as seguintes conclusões:

1. O pedido formulado pelo recorrente na petição inicial referente à indemnização por danos patrimoniais foi em valor a liquidar em execução de sentença correspondente ao valor da moradia prometida vender;

2. Tal pedido foi julgado improcedente, unicamente por razões de direito, porquanto, estaria dependente da tradição da coisa, o que, in casu, não se verificou;

3. Sendo que, tal julgamento constou de duas sentenças de primeira instância e um acórdão deste mesmo Tribunal, anteriormente proferidos no âmbito deste processo;

4. Não se podendo concordar com o caminho seguido no acórdão recorrido, por via do qual se entendeu que o pedido formulado pelo recorrente, apesar de errado, engloba o pedido de pagamento do sinal em dobro, na medida em que se tratam de previsões alternativas contidas no n.° 2 do artigo 442.° do Código Civil, com regime, pressupostos e processualismos distintos;

5. Ora, o recorrente não deduziu pedidos alternativos, ou subsidiários, nos termos do disposto nos artigos 553.° ou 554.° do Código do Processo Civil, mas sim um só pedido, e que corresponde ao valor que a moradia teria depois de integralmente concluída.

6. Foi sobre tal pedido que o Recorrente apresentou a sua defesa, não lhe sendo exigível perspetivar que o Tribunal viole o disposto no artigo 609.° do mesmo Código, condenando em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

7. A decisão recorrida violou, entre outros normativos que Vs. Exas. doutamente suprirão, o disposto no n.° 2 do artigo 442.° do Código Civil, e artigo 609.° do Código do Processo Civil.

O autor contra-alegou, sem que tenha apresentado conclusões, mantendo, em suma, a posição que assumiu nos seus articulados, designadamente que a acção não foi proposta contra a sociedade DD, S.A. (promitente-vendedora), mas antes contra os administradores desta, assentando, portanto, a causa de pedir na responsabilidade extracontratual e daí que tenha sido pedida a condenação daqueles no pagamento do montante correspondente ao valor de mercado do imóvel que lhe foi prometido vender, pedido esse que é correcto e que deveria ter sido julgado procedente nos precisos termos formulados, sendo que, mesmo que assim não se entenda, sempre deverão os réus ser condenados no pagamento do sinal em dobro por este estar implicitamente contido naquele outro pedido.



***



Tudo visto,

Cumpre decidir:


B) Os Factos:


As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1. Por escrito datado de 13 de Março de 2001 e assinado por CC em representação da DD – Sociedade de Gestão Imobiliária, SA, e por AA onde se declarava que aquela prometia vender e este prometia comprar uma moradia a construir no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º …76, pelo preço de 50.000.000$00, que ali se declarou estar integralmente pago naquela data, devendo a moradia objecto de tal promessa ser entregue ao promitente-comprador em 18 meses a contar do levantamento da licença de construção, tudo conforme doc. de fls. 33 a 35, cujo teor, por economia, aqui se dá por integralmente reproduzido. – Al. A) da matéria de facto assente.

2. Em 9.07.2001, a DD, ali representada por BB, celebrou com o Banco EE, SA., o contrato de mútuo – cujo teor é o de fls. 40 a 43, cujo teor, por economia, aqui se dá por integralmente reproduzido e de que é documento complementar o doc. de fls. 44 a 51, cujo teor, por economia, aqui se dá por integralmente reproduzido – pelo qual contrai empréstimo de 208.000.000$00 e constitui como garantia, hipoteca sobre o imóvel referido em A). – Al. B) da matéria de facto assente.

3. Encontra-se inscrita – desde 12.03.2001 – na Conservatória de Registo Comercial do Porto, na matrícula da sociedade DD – Sociedade de Gestão Imobiliária, SA, a designação de administrador único da mesma o réu BB, em 2.01.2001, bem como a cessão de tais funções, por renúncia de 31.01.2002, com inscrição de 1.03.2002. – Al. C) da matéria de facto assente.

4. Por escritura pública de 14 de Março de 2001, FF e GG declararam vender a DD-Sociedade de Gestão Imobiliária, SA, comprar o imóvel referido em A), tudo conforme doc. junto a fls. 1186 a 1188, cujo teor, por economia, aqui se dá por integralmente reproduzido. – Al. D) da matéria de facto assente.

5. A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, por ofício datado de 18 de Junho de 2001, notificou a DD do deferimento do pedido de licenciamento do projecto a implantar no prédio referido em A). – resposta ao art.º 1.º da base instrutória.

6. Tal comunicação foi recebida pela DD nos dias imediatos. – resposta ao art.º 2.º da base instrutória.

7. A DD não procedeu ao pagamento da quantia de €11.513,00 à Câmara Municipal de V.N.Gaia para a emissão do Alvará da licença de construção. – resposta ao art.º 3.º da base instrutória.

8. O que determinou a caducidade de tal licenciamento. – resposta ao art.º 4.º da base instrutória.

9. A DD não deu início às obras de construção da fracção referida em A). – resposta ao art.º 5.º da base instrutória.

10. À data da subscrição do documento referido em A) era do conhecimento dos ali contraentes que o deferimento do projecto de construção estava para breve e que a respectiva licença seria emitida nos três ou quatro meses seguintes. – resposta ao art.º 6.º da base instrutória.

11. Era vontade da DD concluir e entregar a moradia em causa no prazo máximo de 18 meses a contar da data do levantamento da respectiva licença de construção, facto que era do conhecimento e do interesse do autor. – resposta aos art.ºs 7.º e 8.º da base instrutória.

12. A DD tem procurado alienar a terceiros o terreno id. em A). – resposta ao art.º 9.º da base instrutória.

13. Equacionado um negócio que omite a existência do contrato referido em A). – resposta ao art.º 10.º da base instrutória.

14. Em finais de 2000, as acções representativas da totalidade do capital social da DD foram adquiridas pelo réu CC. – resposta ao art.º 11.º da base instrutória.

15. Que, desde tal data, passou a efectuar a gestão quotidiana da DD, definindo os objectivos da empresa e a sua organização, direcção e controlo. – resposta ao art. 12.º da base instrutória.

16. Comportando-se como seu representante e agindo em seu nome. – resposta ao art.º 13.º da base instrutória.

17. O réu CC passou a ser visto como representante da DD. – resposta ao art.º 14.º da base instrutória.

18. Nessa qualidade celebrou o contrato referido em A). – resposta ao art.º 15.º da base instrutória.

19. Nessa qualidade colocou à venda o terreno referido em A). – resposta ao art.º 16.º da base instrutória.

20. Com esse propósito ofereceu-o a diversas pessoas e fixou o seu preço e as suas demais condições de negócio. – resposta ao art.º 17.º da base instrutória.

21. A partir do início de 2001, a administração da DD passou a funcionar na Rua …, n.º …, Oliveira do Douro, por decisão do réu CC. – resposta ao art.º 18.º da base instrutória.

22. Ali estão instalados os escritórios da DD. – resposta ao art.º 19.º da base instrutória.

23. Ali pode ser regularmente encontrado o réu CC. – resposta ao art.º 20.º da base instrutória.

24. Recebendo clientes e fornecedores e estabelecendo contactos com potenciais parceiros de negócio. – resposta ao art.º 21.º da base instrutória.

25. Era ali que o autor habitualmente contactava a DD. – resposta ao art.º 22.º da base instrutória.

26. Era essa morada que o réu CC indicava como sede social nos contratos celebrados e no carimbo da sociedade que apunha em documentos. – resposta ao art.º23.º da base instrutória.

27. Era do conhecimento do réu CC que o não levantamento do alvará de licenciamento no prazo de um ano desde a sua emissão o faria caducar. – resposta ao art.º 24.º da base instrutória.

28. Ao longo do tempo em que foi administrador único da DD, o réu BB praticou alguns actos em representação da mesma. – resposta ao artº. 25.º da base instrutória.

29. Entre eles emitiu procuração a favor do réu CC onde lhe conferia poderes para obrigar a DD. – resposta ao art.º 26.º da base instrutória.

30. O réu BB tinha conhecimento de alguns dos actos praticados pelo réu CC em representação da DD. – resposta ao art.º 27.º da base instrutória.

31. A ausência de realização, pela sociedade DD, da obra projectada para o terreno id. em A) levou a que aquela sociedade não pudesse obter os lucros do negócio inerente a tal obra e para o qual celebrou o mútuo referido em B). – resposta ao art.º 31.º da base instrutória.

32. A DD não dispõe de património capaz de garantir a entrega ao autor da moradia prometida vender, em espécie ou através de quantia correspondente ao valor da mesma. – resposta ao art.º 32.º da base instrutória.

33. A moradia referida em A) valeria hoje €250.000,00. – resposta ao art. 33.º da base instrutória.

34. O autor dela pretendia fazer a sua casa de morada de família. – resposta ao art. 34.º da base instrutória.

35. O autor criou a expectativa de poder a vir ocupar a sua nova casa no prazo estipulado no doc. junto a fls. 33 a 38, dos autos. – resposta ao art.º 36.º da base instrutória.

36. Por isso, o autor abandonou o andar em que vivia. – resposta ao art.º 37.º da base instrutória.

37. Após abandonar o andar em que vivia, o autor e a sua família foi habitar um pequeno apartamento. – resposta ao art.º 39.º da base instrutória.

38. O autor sentiu angústia e agitação permanente com o atraso no início da obra, o não levantamento da licença de construção e as tentativas de alienação do imóvel por banda da DD. – resposta ao art.º 40.º da base instrutória.

39. Tal tensão comunicou-se à sua família e o autor penaliza-se por sentir a aflição desta. – resposta ao art. 42.º da base instrutória.

40. O autor não pagou o preço referido em A) nem qualquer outro por ocasião de tal contrato. – resposta ao art.º 48.º da base instrutória.

41. Devido a uma série de promessas de venda de cessões de posição contratual, o autor tornou-se promitente-comprador do terreno referido em A), sendo promitentes vendedores os respectivos proprietários FF e GG. – resposta aos art.ºs 54.º a 57.º da base instrutória.

42. Em Novembro de 2000, o autor prometeu ceder a posição contratual que detinha naquele contrato promessa à Sociedade HH, Sociedade de Construções, Ld.ª, representada pelo réu CC. – resposta ao art.º 58.º da base instrutória.

43. Pelo preço de 83.000.000$00, sendo 33.000.000$00, a pagar em dinheiro e o remanescente pela entrega da moradia referida em A), a que atribuíram o valor de 50.000.000$00. – resposta ao art.º 59.º da base instrutória.

44. O autor e o réu CC, em representação de HH - Sociedade de Construções, Ld.ª, acordaram em celebrar um contrato promessa com o objecto referido em A), como forma de assegurar o direito do autor a tal aquisição. – resposta ao art.º 60.º da base instrutória.

45. A Sociedade HH – Sociedade de Construções, Ld.ª reservou o direito de transmitir a terceiro a sua posição contratual no contrato referido em 58) a 60). – resposta ao art.º 61.º da base instrutória.

46. O réu CC pagou ao autor a quantia de 33.000.000$00, atrás referida. – resposta aos art.ºs 62.º e 66.º da base instrutória.

47. Em finais de Fev./01, a HH, Sociedade de Construções, Ld.ª, através do réu CC comunicou ao autor que cederia a sua posição contratual à DD entidade que assumiria os direitos e deveres a ele inerentes. – resposta ao art.º 63.º da base instrutória.

48. O réu CC apresentou a DD como uma sociedade detida por si e da qual era o administrador. – resposta ao art.º 64.º da base instrutória.

49. Alegando que era por sua conveniência pessoal que ocorreria a referida cedência da posição contratual. – resposta ao art.º 65.º da base instrutória.

50. Na sequência da comunicação da Sociedade HH-Sociedade de Construções, Ld.ª ao autor, atrás referida, foi celebrado o contrato referido em A) e o contrato referido em B). – resposta aos art.ºs 67.º e 68.º da base instrutória.

C) O Direito:


O “thema decidendum” no presente recurso reconduz-se à questão de saber se, ao ter condenado o réu CC a pagar ao autor, a título de danos patrimoniais decorrentes do contrato-promessa em apreço nos autos, a quantia de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), correspondente ao pagamento do “sinal em dobro”, reduzido, porém, ao montante peticionado pelo autor, o Tribunal condenou em objecto diverso do pedido.

Dispõe o artigo 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que: “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.

Conforme ensina, a este propósito, Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, volume V, 3ª edição 1952, reimpressão, Coimbra, 2007, p. 67 a 70), trata-se de limite que se encontrava já previsto no artigo 281º do Código de 1867 que proibia que, na sentença, o juiz condenasse além, ou em cousa diversa, do que se houvesse pedido.

Com efeito, A sentença deve manter-se quanto ao seu conteúdo, dentro dos limites definidos pela pretensão do autor e da reconvenção eventualmente deduzida pelo réu (cf. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1985, p. 675 a 677), não podendo o juiz proferir sentença que transponha os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objecto (cf. Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum - à luz do código revisto”, Coimbra, 2000, p. 288 e Jorge Augusto Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 3ª edição, Coimbra, p. 343).  

A limitação contida no normativo em questão – consubstanciada na velha máxima do direito romano ne eat iudex ultra vel extra petita partium - constitui um corolário do princípio dispositivo, numa área que constitui o núcleo irredutível deste princípio. Será, assim, sobre o titular de determinado direito subjectivo que recairá o ónus de escolher, de entre diversas providências possíveis, aquela que melhor satisfaça os seus interesses, sendo o tribunal alheio a essa escolha, que depende única e exclusivamente da vontade do interessado e que uma vez efectuada – através da dedução do pedido – delimitará os poderes do juiz.

Os tribunais são órgãos incumbidos de dirimir os conflitos reais formulados pelas partes, mas não constituem, no foro da jurisdição civil contenciosa, instrumentos de tutela ou curatela de nenhum dos litigantes e daí que quando não haja coincidência entre a decisão e o pedido a lei fulmine a sentença com o vício da nulidade – artigo 615º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil.

Na verdade, a condenação em objecto diverso do pedido só é lícita quando a lei expressamente o permitir, como sucede, por exemplo, nas obrigações com carácter alternativo ou nas acções de manutenção ou de restituição da posse – artigos 553º, e 609º, n.º 3, do Código de Processo Civil (veja-se, no sentido exposto, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., p. 675 a 677).

No caso vertente, sustenta o réu CC, ora recorrente, que, ao tê-lo condenado no pagamento do sinal em dobro, quando o autor tinha pedido a condenação dos réus na quantia a liquidar em execução de sentença correspondente ao valor da moradia que lhe foi prometida vender, o Tribunal violou o disposto no artigo 609º do Código de Processo Civil já que lhe estava vedado condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido e aquele não deduziu qualquer pedido alternativo ou subsidiário, quando, na verdade, o podia ter feito.

E, de facto, no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação, depois de ter considerado que, não tendo havido tradição da moradia prometida vender ao autor pela sociedade DD, S.A., o pedido de condenação no valor daquele bem não poderia proceder e que o mesmo, formalmente e em face da lei – artigo 442º, n.º 2, do Código Civil – era errado, entendeu que, ainda assim, não repugnava, face aos factos carreados para os autos e dados como provados, considerar englobado no pedido formulado pelo autor o pedido de pagamento do sinal em dobro.

Para tal entendimento terá contribuído, além do mais, a posição que foi assumida por este Supremo Tribunal no Acórdão de 04/04/2002 (in C.J., S.T.J., 2002, tomo I, p. 151). Sucede, porém, que o caso que aí foi tratado não apresenta qualquer similitude com o dos presentes autos que justifique a adopção de entendimento idêntico ao que ali foi sufragado.

Na verdade e conforme resulta do antecedente relatório, na presente acção, o autor, aqui recorrido, imputando ao réu CC uma actuação ilícita e culposa por pretensa violação dos deveres que, enquanto administrador de facto da sociedade DD, S.A., lhe eram exigíveis, peticionou, além do mais, a condenação daquele no pagamento de uma indemnização em montante correspondente ao valor que teria a moradia que lhe foi prometida vender pela dita sociedade caso a mesma tivesse sido construída e ingressasse no seu património, já que esta última incumpriu definitivamente o contrato-promessa que consigo celebrou e não dispõe de património para responder perante si por esse incumprimento, sendo que a sua expectativa na celebração do contrato prometido era grande tendo em consideração que o preço ficou, desde logo, integralmente liquidado. Ou seja, como é bom de ver, o recorrido fundou a pretensão que pretende fazer valer na presente acção na alegada responsabilidade extracontratual do dito réu, invocando, para tanto e além do mais, o disposto no artigo 483º do Código Civil e no artigo 78º do Código das Sociedades Comerciais, tendo calculado a indemnização a que diz ter direito com base na teoria da diferença entre a sua actual situação real e a sua actual situação hipotética nos termos do artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil.

Por sua vez, no processo no qual veio a ser proferido o Acórdão deste Supremo Tribunal a que acima se fez referência, estava em causa uma típica acção de incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda, tendo por objecto duas lojas, que opunha o promitente-comprador (aí autor) ao promitente-vendedor (aí réu) e na qual o primeiro, alegando a tradição da coisa prometida vender, tinha pedido uma indemnização actualizada e o reconhecimento do seu direito de retenção sobre aquela e daí que, não tendo ficado provada a dita tradição, o Supremo tenha entendido que o pedido do dobro do sinal se continha naquele outro pedido, que era mais amplo, de indemnização. No fundo, considerou-se, seguindo a tese defendida pelo Professor Calvão da Silva (“Tradição da coisa e indemnização alternativa por incumprimento de promessa sinalizada” in R.L.J, Ano 133.º, Abril de 2001, p. 363 e segs. e in R.L.J, Ano 134.º, Maio de 2001, p. 21 e segs., em anotação aos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/09/2000 e de 19/04/2001), que o pedido do valor da coisa baseado na “traditio rei” leva implícito o do pedido do dobro do sinal, a que se confina a prestação indemnizatória possível determinada por lei, se não for provada a traditio alegada já que quem, como indemnização, pede o mais (valor da coisa), pede o menos (dobro do sinal).

Todavia e como se disse, no caso sub judice, nem a acção se baseia no incumprimento do contrato-promessa qua tale, nem o autor demandou a promitente-vendedora à qual imputou o incumprimento definitivo do mencionado contrato (mas antes o administrador desta última), nem o autor invocou a constituição de qualquer sinal ou sequer a tradição da coisa prometida vender, tendo antes fundado a acção na responsabilidade extracontratual do administrador de facto da dita sociedade (promitente-vendedora da moradia) e não na responsabilidade contratual desta, não tendo, por conseguinte, o pedido sido deduzido com base nas regras do sinal previstas no artigo 442º, n.º 2, do Código Civil – sinal esse que, de resto e em conformidade com o próprio autor alegou, ficou demonstrado não ter existido.

Repare-se que o que foi alegado a esse propósito (e que ficou provado) foi que o autor não entregou qualquer quantia à sociedade DD, S.A. aquando da outorga do contrato-promessa de compra e venda celebrado com esta e que a razão de se ter declarado que o preço da moradia que foi objecto daquele se encontrava liquidado na sua totalidade se deveu à circunstância de o autor ser credor dessa sociedade em montante equivalente àquele que correspondia ao remanescente do preço de uma cedência de posição contratual que o autor tinha feito a favor da dita sociedade (enquanto promitente-comprador do terreno onde a mencionada moradia seria construída). E foram precisamente estas razões – ou seja, o facto de o autor não ter demandado a sociedade promitente-vendedora, aliado à circunstância de ter inexistido sinal, por o contrato-promessa ter constituído mero instrumento de concretização e de garantia de um outro negócio (cedência de posição contratual) – que levaram a que o autor tivesse deduzido o pedido nos termos supra expostos já que, de acordo com os factos por si carreados para os autos – que vieram a ficar provados – não fazia qualquer sentido que tivesse peticionado, a título indemnizatório, o valor do sinal em dobro.

Ora, tendo presente que o pedido deve ser interpretado à luz da causa de pedir em que mesmo se alicerça e constituindo aquele o círculo dentro do qual o tribunal tem de mover-se para a solução do conflito de interesses que é chamado a resolver (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/1987, disponível em www.dgsi.pt), afigura-se ser de concluir, que, ao ter condenado o réu CC, ora recorrente, nos termos em que o fez, o Tribunal alterou a qualidade do pedido, tendo, pois, transposto a linha do citado círculo fora dos casos em que a lei o permite.

É que, convenhamos, uma coisa é pedir uma indemnização fundada em responsabilidade extracontratual dos administradores de uma sociedade, fixada de acordo com a teoria da diferença entre a actual situação real e a actual situação hipotética do lesado e outra, qualitativamente diferente, é pedir uma indemnização, dirigida contra o próprio promitente-vendedor e, portanto, fundada em responsabilidade contratual, fixada de acordo com as regras do sinal previstas no artigo 442º, n.º 2, 2ª parte, do Código Civil. Na verdade, este normativo rege apenas e tão só para casos de incumprimento contratual do próprio promitente-vendedor, constituindo, desde logo, pressuposto básico para a sua aplicação que tenha sido constituído um sinal.

De resto, nem sequer se pode dizer que se esteja perante uma alteração decorrente de uma errada qualificação jurídica do pedido e nem tão-pouco perante uma condenação que represente, em termos qualitativos ou quantitativos, um minus relativamente ao pedido formulado pelo autor na petição inicial.

Com efeito e contrariamente ao que se plasmou na decisão posta em crise, a condenação aí contida não encontra apoio no princípio (acolhido nos acórdãos a que acima se fez referência, mas em situações totalmente diversas) de que, “quem pede o mais, pede o menos”, tanto mais que o Tribunal recorrido se viu até na necessidade, em obediência ao disposto no artigo 609º, n.º 1, do Código de Processo Civil, de reduzir a medida da condenação ao valor que tinha sido pedido (precisamente por, no caso, o dobro do “sinal” corresponder à quantia de € 498.797,90 quando, na verdade, ficou demonstrado que o valor da moradia prometida vender – que foi o que foi pedido – ascende a € 250.000,00). Ora, ao ter feito tal redução, o Tribunal recorrido acabou por incorrer em contradição com a posição que havia deixado expressa acerca da possibilidade de considerar contido no pedido formulado o pedido de restituição do sinal em dobro – o que é bem elucidativo da fragilidade do raciocínio que aí foi seguido a esse propósito.

Tudo para concluir que, ao ter condenado o recorrente em quantia correspondente ao “sinal” em dobro, reduzida ao peticionado, o Tribunal o condenou numa indemnização qualitativamente diversa e que, inequivocamente, não foi pedida (ainda que o seu montante, atenta a mencionada redução, se tenha, contido, quantitativamente, dentro dos limites do peticionado), tanto mais que a causa de pedir invocada não abarca sequer, conforme se explanou, o pedido correspondente à dita condenação.

Pelas razões aduzidas, dúvidas não restam que o acórdão recorrido enferma de nulidade por condenação em objecto diverso do pedido nos termos dos artigos 609.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil.

Ora, dispõe o artigo 684.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que “Quando for julgada procedente alguma das nulidades previstas nas alíneas c) e e) (…) do n.º 1 do artigo 615.º (…), o Supremo Tribunal de Justiça supre a nulidade, declara em que sentido a decisão deve considerar-se modificada e conhece dos outros fundamentos de recurso”.

In casu, pretende o recorrente que se revogue o acórdão recorrido e que se decida pela improcedência do acção por o pedido formulado pelo autor – de condenação no valor a liquidar em execução de sentença correspondente ao valor que a moradia prometida vender teria depois de construída – estar dependente da tradição da coisa e esta não se ter verificado.

Em consequência e com vista a suprir a mencionada nulidade, é, pois, este o pedido que cumpre apreciar à luz das normas jurídicas aplicáveis ao caso.

Dispõe o artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais que “Os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos”.

Consagra-se neste preceito a responsabilidade directa dos administradores para com os credores sociais, à qual corresponde uma acção autónoma ou directa destes últimos, enquanto titulares de um direito indemnizatório, que não se confunde com a acção sub-rogatória para proveito directo da sociedade prevista no artigo 78.º, n.º 2, do citado Código.

Constituem requisitos, de verificação cumulativa, da dita responsabilidade: a) A inobservância das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais; b) A insuficiência do património social; c) A culpa dos gerentes ou administradores; e d) O nexo de causalidade entre a referida inobservância e a insuficiência do património societário.

Vejamos cada um deles de per se.

O primeiro pressuposto da responsabilidade prevista no supra citado normativo citado é, pois, como se disse, a inobservância das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais. Porém, a ilicitude de que aqui se trata não abarca a violação de todo e qualquer dever que recaia sobre os administradores, mas antes tão só e apenas os deveres prescritos em disposições legais ou contratuais de protecção dos credores sociais.

Incluem-se no primeiro grupo as disposições “legais” de protecção, isto é, as normas que, apesar de não conferirem direitos subjectivos aos credores sociais, visam a defesa de interesses (só ou também) deles, sendo exemplo das mesmas as que prevêem a conservação do capital social, tais como previstas no Código das Sociedades Comerciais, que proíbem, em regra, a distribuição de bens sociais aos sócios sem prévia deliberação deste, que proíbem a distribuição de bens sociais quando o património líquido da sociedade seja ou se torne (em consequência da distribuição) inferior à soma do capital e das reservas legais e estatutárias, que interditam a distribuição de lucros do exercício em certas circunstâncias e de reservas ocultas, que proíbem a subscrição de acções próprias, bem como certas aquisições e detenções de acções próprias e ainda as que estabelecem ser ilícita a amortização de quotas sem ressalva do capital social, as relativas à constituição e utilização da reserva legal e a que delimita a capacidade jurídica das sociedades (cf. artigos 31.º, 34.º, 514.º, 236.º, 346.º, n.º 1, 513.º, 220.º, n.º 2, 317.º, n.º 4, 218.º, 295.º, 296.º, 316.º, n.º 1, 317.º, n.º 2, 323.º e 6.º, todos do Código das Sociedades Comerciais).

Já as disposições “contratuais” serão as disposições “estatutárias” tuteladoras dos credores sociais, de que é exemplo a permitida pelo artigo 317.º, n.º 1, do citado Código (veja-se, no sentido exposto, J. M. Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, Coimbra, Outubro de 2010, p. 894).

Porém, não basta a inobservância das supra referidas normas de protecção para que os administradores possam ser responsabilizados, sendo ainda necessário que a dita inobservância cause uma diminuição do património social (dano directo da sociedade), tornando-o insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (dano indirecto dos credores sociais). Ou seja, para além de ter de haver dano para a sociedade – traduzido na insuficiência do seu património – tem de existir nexo de causalidade entre a dita violação das normas de protecção a que se fez referência e o dano. No fundo, o dano tem de decorrer dessa violação já que, de outro modo, isto é, se o mesmo decorrer da violação de outras normas (que não aquelas que se destinam a proteger os credores sociais), a responsabilidade dos administradores será para com a sociedade e não para com os seus credores, ainda que estes possam ser, mediatamente, afectados por esse dano – caso em que poderão, eventualmente, lançar mão da acção sub-rogatória em benefício da sociedade prevista no n.º 2 do artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais.

Para além disso, não é todo e qualquer dano para a sociedade que justificará a responsabilidade dos administradores perante os credores sociais, mas antes tão só e apenas aquele que consista numa diminuição do património social em montante tal que ele fique sem forças para cabal satisfação dos direitos dos credores. Só quando se verifica esta insuficiência do património social existe dano (mediato) relevante para os credores da sociedade, traduzindo-se a mesma na superioridade do passivo da sociedade relativamente ao seu activo (cf. J. M. Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, ob. cit., p. 895 e 896).

Ou seja, enquanto no regime geral os prejuízos têm de ser directos (directamente causados no património do lesado), aqui a situação é excepcional já que os prejuízos são directamente causados no património da sociedade e só indirectamente afectam os credores sociais e daí que, resultando o dano dos credores sociais do dano da sociedade, aqueles não possam exigir dos administradores indemnização superior ao valor do dano provocado por estes no património daquela.

Por último e para que haja lugar à responsabilização de que se vem tratando, importa que os administradores tenham agido com culpa, incumbindo aos credores o ónus de provar tal requisito já que, contrariamente ao que sucede na responsabilidade para com a sociedade, aqui a culpa não se presume – artigos 72.º, n.º 1, e 78.º, n.º 5, do Código das Sociedades Comerciais.

Sendo pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que a responsabilidade dos administradores perante os credores sociais é de qualificar como extracontratual, por não existir entre uns e outros qualquer relação obrigacional, é, pois, o artigo 487.º do Código Civil a norma a aplicar in casu (vide, neste sentido, entre outros, Raúl Ventura e Luís Brito Correia, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas, Estudo Comparativo dos Direitos Alemão, Francês, Italiano e Português, Lisboa, 1970, p. 330 e 331 e p. 445; J. M. Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, ob. cit., p. 897; António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, Coimbra, Junho de 1997, p. 121; e Menezes Cordeiro, Da responsabilidade dos administradores das sociedades comerciais, p. 494 e segs.; bem como, a título exemplificativo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29/01/2014, proferido no processo n.º 548/06.3TBARC.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Do que já vem sendo dito, fácil é concluir que a responsabilidade dos administradores perante os credores sociais apenas existe quando se mostrem preenchidos os pressupostos cumulativos supra enunciados e não quando ocorra um mero incumprimento culposo das obrigações da sociedade.

É que, como é evidente, ainda que tal incumprimento possa envolver responsabilidade civil da sociedade perante terceiros e dos administradores para com a sociedade, não envolve, por si só, a responsabilidade do administrador perante terceiros. Repare-se que, estando em causa obrigações contratuais, os credores sociais sabem, necessariamente, ao contratar com a sociedade, que a lei apenas lhes dá como garantia o património desta, sendo que, se houver culpa dos administradores na referida falta de cumprimento, estes serão responsáveis para com a sociedade e os credores sociais poderão, quando muito, fazê-la valer a seu favor através da competente acção sub-rogatória – a qual, porém, como se disse, se distingue da acção directa a que alude o artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais. Trata-se, pois, de solução que está em inteira consonância com a ideia de que os riscos da actividade social correm por conta da sociedade (o mesmo é dizer por conta dos sócios), posto que, beneficiando a sociedade da actividade do administrador, deve a mesma suportar igualmente as desvantagens decorrentes dessa actividade.

Em suma, pode dizer-se que a responsabilidade para com os credores sociais prevista no citado normativo, a que corresponde um direito próprio destes e uma acção directa, nada tem que ver com a questão de saber se o administrador tem ou não o dever de cumprir uma obrigação da sociedade para com o credor social, mas antes com o dever que recai sobre o administrador de não afectar o património social em violação de leis destinadas a proteger aqueles credores.

Pois bem, transpondo as considerações expendidas para o acervo factual dado como provado, resulta ser evidente que este não revela a inobservância, por parte do recorrente, de quaisquer disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais, mas antes tão só e apenas que aquele não cumpriu uma obrigação da sociedade para com o credor social, a saber: a obrigação decorrente do contrato-promessa celebrado com o recorrido de construir a moradia que lhe prometeu vender e a de, consequentemente, celebrar o contrato de compra e venda prometido que tinha por objecto o referido bem imóvel – incumprimento esse que, como se deixou dito, não é suficiente para o responsabilizar perante aquele.

Senão vejamos:

Ficou provado, no que ora releva, que, desde finais de 2000, as acções representativas do capital social da sociedade DD, S.A. foram adquiridas pelo recorrente e que, desde essa data, foi ele quem passou a efectuar a gestão quotidiana da sociedade, definindo os seus objectivos e a sua organização, direcção e controlo, comportando-se como seu representante e agindo em seu nome, passando a ser visto como representante da mesma, sendo que foi precisamente nessa qualidade que celebrou o contrato-promessa de compra e venda com o recorrido, através do qual a mencionada sociedade lhe prometeu vender a este uma moradia a construir no prédio melhor identificado nos autos, obrigando-se a entregá-la no prazo de 18 meses a contar do levantamento da respectiva licença de construção.

Mais ficou demonstrado que, apesar de o pedido de licenciamento do projecto a implementar no dito prédio ter sido deferido pelo Câmara Municipal e de a sociedade DD, S.A. ter sido notificada desse deferimento, por ofício datado de 18/06/2001 recebido nos dias imediatos, a mesma não procedeu ao pagamento da quantia devida pela emissão do respectivo alvará da licença de construção, o que determinou a caducidade do licenciamento, sem que, em consequência, a sociedade tenha dado início às obras de construção da moradia em questão, tendo, ao invés, procurado alienar a terceiros o terreno em que a referida moradia seria construída, equacionando um negócio que omitia a existia do contrato-promessa celebrado com o autor.

Provado ficou também que a ausência de realização, pela sociedade DD, S.A., da obra projectada para o terreno a que se fez referência levou a que a sociedade não pudesse obter os lucros do negócio inerentes a tal obra, bem como que aquela não dispõe de património capaz de garantir a entrega ao autor da moradia prometida vender em espécie ou através de quantia correspondente ao valor da mesma.

Perante esta factualidade, sustentou o Tribunal da Relação, na decisão recorrida, que a sociedade DD, S.A. incumpriu definitiva e culposamente o contrato-promessa celebrado com o autor e que, consequentemente, essa responsabilidade se estendia ao seu administrador de facto, o réu, ora recorrente, por força do disposto nos artigos 78º, n.º 1, e 79º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais já que, ao não ter cumprido, em nome da sociedade, o referido contrato, o mesmo não teria assegurado os legítimos direitos do autor, não tendo actuado, como impunha o artigo 64º do citado Código, como um administrador criterioso e ordenado, nem como um bom pai de família.

Tal conclusão é, todavia, incorrecta, não podendo ser acompanhada: quer porque os mencionados preceitos legais – artigos 78º, n.º 1, e 79º, n.º 1 – regem para situações totalmente diversas (não se vislumbrando como poderiam estar preenchidos, concomitantemente, esses dois tipos de responsabilidade), quer porque, como acima se deixou dito, o mero incumprimento culposo das obrigações da sociedade não responsabiliza os seus administradores, quer ainda porque o artigo 64º do Código das Sociedades Comerciais, convocado na decisão recorrida, não constitui uma norma destinada a proteger os credores sociais.

Com efeito, ainda que não se ignore que alguma doutrina tem vindo, mais recentemente, a discutir a possibilidade de o artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais poder ser fonte de responsabilidade civil em face dos credores sociais (cf. Adelaide Menezes Leitão, “Responsabilidade dos administradores para com a sociedade e os credores sociais pela violação de normas de protecção” in RDS, n.º 3, 2009 p. 661 e segs.), não se crê que o citado preceito constitua, por si só, uma “norma legal de protecção” de credores no sentido a que alude o artigo 78º do mesmo Código.

Conforme defende, neste particular, Menezes Cordeiro (Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lisboa, 1997, p. 810, 837, 838 e 931 e segs. e Manual de direito das Sociedades, I volume, Das sociedades em geral, Coimbra, 2007, p. 40, 496, 497, 522 e 523), o artigo 64º compreende tão só e apenas “normas de conduta” incompletas, em face da presença de “deveres incompletos”, pelo que tais regras, ainda que violadas, implicarão sempre o apelo a outras para determinar uma eventual responsabilidade civil.

Acresce que a referida posição que é secundada por alguma doutrina – e que não se acompanha - é diametralmente contrária ao que se dispõe no artigo 78º do Código das Sociedades Comerciais já que um tal entendimento levaria à conclusão de que, no fundo, todas as normas legais que gizassem os deveres dos gerentes, administradores e directores tutelariam directa ou reflexamente os interesses dos credores sociais, quando, na verdade, o que se extrai daquele normativo é antes que os administradores apenas responderão pessoalmente perante os credores sociais quando violem disposições legais ou estatutárias “destinadas à protecção destes”.

Ora, se o legislador tivesse pretendido responsabilizar os administradores com uma tão ampla abrangência teria aludido apenas à infracção de disposições legais ou contratuais por parte daqueles, ao invés de ter dito expressamente que as disposições infringidas que relevam para este efeito são apenas aquelas que se destinem a proteger os credores sociais, isto é, as que tenham em vista a protecção destes, não bastando, portanto, que apenas lhes aproveitem ou que, eventualmente, os beneficiem reflexamente. Conforme observa Miguel Pupo Correia (“Sobre a Responsabilidade por Dívidas Sociais dos Membros dos Órgãos da Sociedade” in ROA, ano 61, Abril de 2001, p. 667), a não ser assim, poderia chegar a incluir-se na abrangência deste requisito do n.º 1 do artigo 78.º praticamente todas as normas aplicáveis ao exercício das funções dos titulares dos órgãos sociais e, portanto, ao cumprimento dos seus deveres funcionais, eliminando, de todo em todo, o alcance restritivo do requisito em questão e criando um estado de total insegurança jurídica no tocante à responsabilidade dos titulares dos órgãos em questão. Aliás, em boa medida, aquele entendimento teria como consequência criar uma assimilação do alcance deste n.º 1 do art.º 78 ao n.º do art.º 72, restaurando, assim, na prática, a presunção de culpa que, como vimos já, o legislador quis manifestamente afastar (cf., também neste sentido, Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas – Organização e Estatuto dos Administradores, Lisboa, 1990, p. 222 e 223).

Tendo presentes as considerações expendidas e voltando ao caso concreto, facilmente se conclui que o que resulta da matéria fáctica dada como provada é apenas e tão só que a sociedade DD, S.A. incumpriu o contrato-promessa celebrado com o autor mas já não que o recorrente deva ser pessoalmente responsabilizado por esse incumprimento. Com efeito, ainda que não se conteste que era ao réu, enquanto administrador de facto da mencionada sociedade, que competia, em nome e em representação desta, proceder ao pagamento do alvará de construção com vista a obstar à caducidade do licenciamento em causa nos autos e diligenciar pela construção da moradia prometida vender ao autor a fim de que a sociedade cumprisse a obrigação a que se vinculou, a verdade é que esse incumprimento não é, por si só, suficiente para a dita responsabilização por não se descortinar, na actuação daquele, a violação de qualquer norma legal ou contratual destinada a proteger os credores sociais.

Não é demais relembrar que não está aqui em causa saber se o administrador tem ou não o dever de cumprir a obrigação da sociedade para com o credor social, mas antes de saber se o administrador tem ou não, perante certo credor social, o dever de não afectar o património social em violação de normas destinadas a proteger os credores sociais (vide, neste sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 05/12/2006, CJ, STJ).

Por outro lado, ainda que se admitisse – como parece decorrer da decisão recorrida – que a conduta a que estava adstrito o recorrente, enquanto administrador da sociedade DD, S.A., por não ter sido conforme com a gestão diligente, criteriosa e ordenada, no interesse da sociedade, a que o mesmo estava obrigado, seria suficiente para o responsabilizar pelo mencionado incumprimento por constituir, afinal de contas, inobservância de uma disposição legal destinada a proteger o autor, enquanto credor da sociedade, sempre ficaria a faltar o preenchimento de outro dos requisitos impostos pelo artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, a saber: o nexo de causalidade entre essa conduta ilícita (inobservância dessa disposição) e a insuficiência de património da sociedade, quando, na verdade e como se disse, aqueles requisitos são de verificação cumulativa.

Vejamos:

Ficou provado que a ausência de realização, pela sociedade DD, S.A., da obra projectada para o terreno melhor identificado nos autos levou a que a sociedade não pudesse obter os lucros do negócio inerentes a tal obra, tendo ficado igualmente provado que a referida sociedade não dispõe de património capaz de garantir a entrega ao autor da moradia prometida vender em espécie ou através de quantia correspondente ao valor da mesma. Porém, já não ficou provado que tenha sido a ausência de lucros desse negócio que tenha levado à insuficiência do património social e a verdade é que esse facto (que se traduziria no aludido nexo causal) não se presume, carecendo, ao invés, de ser demonstrado – artigos 342º, n.º 1, e 483.º do Código Civil.

Conforme se deixou dito no Acórdão deste Supremo Tribunal de 31/03/2011 (proferido no processo n.º 242/09.3YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt), o nexo de causalidade desdobra-se em duas perspectivas ou dimensões, a factual ou naturalística (também dita ontológica) e a jurídica ou normativa, sendo que enquanto na sua primeira vertente, o problema do nexo causal envolve somente matéria de facto (escapando, assim, ao controlo e à censura deste Supremo), na segunda vertente, cabem nos seus poderes de cognição apreciar se a condição de facto que, ficou apurada, constitui ou não causa adequada do evento lesivo.

Ora, no caso vertente, não resulta da materialidade dada como provada quais as razões que levaram a sociedade a ficar sem património que pudesse responder pelo crédito do autor, nada se sabendo, em bom rigor, a esse propósito.

Donde, não estando provado que a conduta do réu CC tenha sido a causa da insuficiência do património societário e não prescindindo a responsabilidade civil daquele, no quadro dos artigos 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, e 483º, n.º 1, do Código Civil, da verificação do nexo causal entre o acto ilícito consubstanciado na violação da norma e o resultado danoso, tal é quanto basta para que, por esta via, o pedido de indemnização deduzido a título de danos patrimoniais contra aquele não possa proceder.

Com efeito, não se mostrando preenchidos os pressupostos legais específicos, de verificação cumulativa, de que dependeria a aludida responsabilidade pessoal do referido réu, enquanto administrador de facto da sociedade, perante o autor, o referido pedido sempre estaria condenado ao fracasso, não havendo que convocar, como se fez na decisão recorrida, o regime do contrato-promessa já que este apenas seria aplicável à relação estabelecida entre o autor e a sociedade.

Por outro lado, também não há que chamar à colação o preceituado no artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais uma vez que, conforme acima se aflorou, se trata de norma que rege para situações totalmente distintas daquela que está em causa nos autos.

Vejamos porquê:

Dispõe tal normativo que “Os gerentes ou administradores respondem, também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções”.

A responsabilidade de que aqui se cuida, no que aos terceiros concerne, é também uma responsabilidade extracontratual resultante de factos ilícitos, culposos e danosos praticados pelos administradores no exercício das suas funções, isto é, durante e por causa da actividade de gestão e/ou representação social – artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil. Porém, os administradores apenas poderão ser responsabilizados quando violem deveres no tráfico a que pessoalmente estejam obrigados, ou seja, quando desrespeitem o dever jurídico de actuar sobre aspectos da organização ou do funcionamento empresarial-societário que constituam fontes especiais de risco para terceiros. Por conseguinte, não serão responsáveis por toda e qualquer deficiência organizativo-funcional da sociedade geradora de danos como se tivessem a “posição de garantes” desses terceiros já que, a entender-se de outra forma, tal levaria a uma extensão ilimitada da sua responsabilidade que não se encontra consagrada no nosso ordenamento jurídico.

Por outro lado, os danos aqui visados, contrariamente ao que sucede na responsabilidade que se mostra consagrada no artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais, são apenas os que incidem directamente no património do terceiro, não relevando já o dano meramente reflexo, derivado de dano causado directamente à sociedade por ter sido afectado o património desta (cf. J. M. Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, ob. cit., p. 904 e segs.).

Tem sido este, de resto, o entendimento deste Supremo Tribunal em casos similares, de que é exemplo o citado Acórdão de 29/01/2014, no qual se decidiu que Para os efeitos previstos no art. 79º, nº1 do CSCom., danos causados directamente pelo gerente aos sócios ou a terceiros são aqueles que, assentes em responsabilidade delitual comum, ocorrem em termos que não são interferidos pela presença da sociedade – designadamente, a recusa ilícita de informações ou o fornecimento de informações falsas que causem prejuízos –, sendo irrelevante para a produção de tais danos, ainda que invocada, a representação da sociedade (cf., no mesmo sentido, Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coimbra, 2009, p. 279).

É de sublinhar que, também aqui, os administradores não respondem perante os terceiros (credores) pelo incumprimento das obrigações da sociedade, já que nesse caso apenas existirá responsabilidade contratual e esta apenas à sociedade poderá ser assacada (cf. Ilídio Duarte Rodrigues, A administração das Sociedades por Quotas e Anónimas – Organização e Estatuto dos Administradores, Lisboa, 1990, p. 230).

Ora, delimitado que está o campo de aplicação do artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais, resulta ser cristalino, à luz das considerações expendidas, que o caso sub judice não é susceptível de ser subsumido na sua previsão normativa por não estarem em causa, desde logo, quaisquer prejuízos directamente causados ao autor sem interferência da sociedade.

Destarte, não existindo fundamento legal para a pretendida responsabilização do réu CC pela satisfação do crédito do autor, o presente recurso não pode deixar de proceder, embora por razões não totalmente coincidentes com as invocadas pelo recorrente para justificar a revogação da decisão posta em crise. Manter-se-á, porém, a condenação concernente à indemnização por danos não patrimoniais porquanto, não tendo a decisão sido impugnada nessa parte, se mostra, nesse segmento, transitada em julgado.

Tendo ficado vencidos, são o recorrido e o recorrente responsáveis pelo pagamento das custas do processo, fixando-se a responsabilidade do primeiro em 97,5% e a do segundo em 2,5% - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.


Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça em conceder revista e, consequentemente, suprindo a nulidade de que padece o Acórdão recorrido, revogam este último na parte em que condenou o recorrente a pagar ao autor, a título de danos patrimoniais decorrentes do incumprimento do contrato promessa em causa nos autos, a quantia de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), absolvendo-o deste pedido.

Custas pelo recorrido e pelo recorrente na proporção dos respectivos decaimentos.


Lisboa, 28 de Janeiro de 2016

Orlando Afonso (Relator)

Távora Victor

Granja Fonseca