Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
323/17.0T8SRT.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
OMISSÃO
INCÊNDIO
PROPRIETÁRIO
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
OBRAS DE CONSERVAÇÃO ORDINÁRIA
ILICITUDE
CULPA
DANOS PATRIMONIAIS
EQUIDADE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
REQUISITOS
SEGURADORA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
SEGURO FACULTATIVO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
RECURSO DE REVISTA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
VIOLAÇÃO DE LEI
MATÉRIA DE DIREITO
TEMAS DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 07/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: PARCIALMENTE CONCEDIDAS AS REVISTAS.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A nulidade de decisão prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, – contradição entre os fundamentos – verifica-se na construção lógica da decisão e ocorre quando o julgador concluiu num sentido oposto ou diverso do que resultaria face aos fundamentos nela indicados enquanto alicerces da própria decisão, vício que não é confundível com a ocorrência de erro material, nem com erro de julgamento da matéria de facto ou de subsunção jurídica.
II - A intervenção do STJ no domínio da apreciação da matéria de facto é muito limitada encontrando-se circunscrita às situações previstas no art. 674.º, n.º 3, do CPC; como tal, não cabe no âmbito de cognição deste tribunal sindicar o erro da decisão fáctica fixada pela instância recorrida quando estejam em causa meios de prova sem valor probatório tabelado.
III - Por integrar uma questão de direito e, nessa medida, da esfera de competência própria deste Supremo Tribunal, cabe-lhe verificar da legalidade do uso dos poderes que a lei confere ao tribunal da Relação em sede de decisão fáctica, avaliando se este agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer.
IV - O tribunal da Relação, em sede de matéria de facto, goza dos mesmos poderes que o tribunal de 1.ª instância, incluindo os que decorrem do princípio da livre apreciação consagrado legalmente, devendo, em sede de reapreciação da prova impugnada, e através dos meios de prova disponíveis, formar uma convicção autónoma e própria.
V - As respostas à matéria de facto não têm necessariamente de ser afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas (consubstanciando juízos delimitativos ou até mesmo elucidativos da situação nelas descrita) exigindo-se, apenas, que se mantenham no enquadramento da matéria de facto indicada na acção por uma das partes.
VI - São consideradas excessivas as respostas que não se contenham nos temas da prova, naturalmente por referência aos factos ínsitos nos articulados, por estarem fora desses mesmos temas ou os exorbitarem, o que não ocorre quando estejam em causa meros factos acessórios.
VII - Impende sobre os proprietários de imóvel o dever de manter as condições de segurança contra o risco de incêndio dos edifícios destinados à habitação e, nessa medida, proceder à limpeza das condutas de evacuação dos fumos das lareiras, já que, sendo a fuligem inflamável, a sua acumulação nas paredes das condutas constitui um risco para a segurança do edifício por acarretar perigo de incêndio.
VIII - Não cabe ao Supremo Tribunal a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar nos casos em que o cálculo da indemnização tenha assentado em juízos de equidade, competindo-lhe apenas controlar os pressupostos normativos do recurso à equidade e os limites dentro dos quais se situou tal juízo face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto.
IX - A lei prevê dois mecanismos para superar a falta de determinação do valor do dano indemnizável: a liquidação posterior (art. 609.º, n.º 2, do CPC) ou o julgamento de acordo com a equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC). A opção por um ou outro dependerá do juízo que, em face das circunstâncias concretas, se possa formular sobre a maior ou menor probabilidade da futura determinação do montante em questão. Assim, se for de concluir no sentido da improbabilidade de vir a ser feita prova do valor exacto do dano em sede de liquidação, deve prevalecer, desde logo, o recurso à equidade.
Decisão Texto Integral:



Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – Relatório

1. AA e BB intentaram, por si e em representação dos seus filhos menores, CC e DD, acção declarativa de condenação, com processo comum, contra EE e mulher, FF (1.ºs Réus), e Companhia de Seguros Tranquilidade, SA (que alterou a sua denominação para Seguradoras Unidas SA e, posteriormente, para Generali Seguros, SA), deduzindo o seguinte pedido:

- condenação solidária dos Réus no pagamento de indemnização, no valor global de 31.636,00€ (sendo 21.636,00€ por danos patrimoniais e 10.000,00€ a título de danos não patrimoniais), acrescida de juros de mora, à taxa legal, até efectivo pagamento.

Fundamentaram a acção na responsabilidade civil dos Réus (sendo quanto aos 1.ªs, na qualidade de proprietários e locadores do imóvel e a Ré Seguradora, decorrente da transferência da responsabilidade por efeito de contrato de seguro celebrado) pelas consequências do incêndio que, em 18-11-2014, eclodiu na habitação onde residiam.

2. Os Réus impugnaram as causas do incêndio (cuja eclosão os 1.ºs imputam aos Autores) e os danos dele resultantes. A Ré Seguradora invocou ainda que o contrato de seguro celebrado com os 1.ºs Réus (do ramo multirriscos habitação) não cobre os danos cuja reparação é pedida pelos Autores.

3. Os Autores apresentaram resposta.

4. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido.

5. Inconformados apelaram os Autores impugnando a matéria de facto fixada pela 1.ª instância.

6. Por acórdão (de 10-12-2020), o tribunal a quo, dando procedência parcial à apelação, alterou a matéria de facto e julgou a acção parcialmente procedente, com a condenação dos Réus a pagarem aos Autores:

a) A quantia de quinze mil euros [€ 15 000,00], a título de indemnização de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a citação até efectivo pagamento;

b) A quantia de cem euros [€ 100] a cada um dos autores AA e BB, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data desta decisão até integral e efectivo pagamento.

c) A quantia de duzentos e cinquenta euros [€ 250] ao autor CC, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data desta decisão até integral e efectivo pagamento;

Absolveu os Réus do mais que se encontrava pedido.

7. Inconformados os Réus recorreram de revista.

7.1. Concluiu (transcrição) a Ré Seguradora nas suas alegações:
“1. O presente recurso versa sobre o Acórdão do Tribunal da Relação …. que revogou a decisão de 1ª instância e consequentemente determinou a condenação solidária dos Réus no pagamento aos Autores da quantia de € 15.350,00.
2. O objecto do presente recurso prende-se com se seguintes decisões, (i) o apuramento dos danos, conforme determinado no ponto 10 dos factos assentes e consequente condenação em € 15.350,00; (ii) e a condenação solidária dos Réus, e em concreto da ora Recorrente, nos termos em que o Tribunal da Relação interpretou as cláusulas do contrato de seguro para assim concluir pela sua responsabilidade.
3. O Tribunal da Relação decidiu condenar a ora Recorrente por entender que o seguro celebrado pelos proprietários deveria responder nos termos gerais da responsabilidade civil, uma vez que os Autores, na qualidade de inquilinos são terceiros ao contrato de seguro.
4. No entender da Recorrente o Tribunal da Relação não fez a interpretação correcta da cláusula de Responsabilidade Civil do Proprietário ou Inquilino/Ocupante, pelos motivos que se passam a enunciar:
5. No entendimento da Recorrente, no n.º 1 da 1ª cláusula, os proprietários e os inquilinos são equiparados, sendo essa a razão para mencionar expressamente que fica garantida a responsabilidade extracontratual do proprietário ou do inquilino/ocupante.
6. A redação da cláusula utiliza uma conjunção disjuntiva (ou), pelo que, importa analisar qual a consequência desta conjunção para determinar qual a interpretação que se deve dar à cláusula.
7. As conjunções disjuntivas exprimem exclusão ou inclusão, e no entender da Recorrente o n.º 1 da cláusula 1ª pretende incluir o inquilino/ocupante na garantia da responsabilidade extracontratual. Se a conjunção disjuntiva fosse exclusiva a redação teria de ser diferente.
8. O objectivo da cláusula é incluir o inquilino/ocupante na garantia, logo, a consequência é que o inquilino/ocupante não pode ser considerado terceiro para efeitos de seguro, conforme foi entendido pelo Tribunal da Relação.
9. A cobertura essencial do contrato mencionado nos autos é a cobertura legal relativa ao risco de incêndio, sendo que tal significa que foi transferida para a ora Recorrente a responsabilidade por danos decorrentes de incêndio, danos esses sofridos pelo local do risco – ou seja, o imóvel.
10. Sendo uma cobertura obrigatória, o que está previsto na lei é que o seguro de incêndio, cubra o risco de danos provocados no imóvel por incêndio, em edifícios em regime de propriedade horizontal. Este seguro deve cobrir cada fração autónoma e as partes comuns do edifício (telhado, escadas, elevadores, garagem, etc.).
11. No caso em apreço, foi celebrado um contrato multirrisco habitação e o contrato de seguro em causa cobre danos ao imóvel decorrentes do incêndio sendo essa génese do contrato por ser também uma decorrência legal.
12. A par de tal cobertura obrigatória, foram ainda contratadas outras coberturas facultativas, discriminadas nas condições particulares. Entre tais coberturas não se encontram os danos causados ao recheio, sendo que o objecto seguro é, apenas e só, o imóvel.
13. Nos termos do contrato e de acordo com a redação da Cláusula de Responsabilidade Civil do Proprietário ou Inquilino/Ocupante, o imóvel não deixa de estar garantido só pelo facto de ter sido celebrado um contrato de arrendamento sobre o mesmo.
14. Para efeitos do contrato de seguro o Inquilino/Ocupante é equiparado ao proprietário e tomador. Assim a cláusula visa proteger também o Inquilino/Ocupante.
15. De igual modo, nos termos do n.º 2 da cláusula 1ª, o Inquilino/Ocupante é equiparado ao proprietário, na eventual responsabilidade por danos patrimoniais ou não patrimoniais, diretamente decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros.
16. Se o objectivo desta cláusula fosse considerar o Inquilino/Ocupante como terceiro, conforme foi entendido pelo Tribunal da Relação, nunca poderia referir “bem como decorrentes da sua qualidade de inquilino ou ocupante do local de risco.”
17. O Tribunal da Relação andou mal, ao considerar que a cláusula de Responsabilidade Civil do Proprietário ou Inquilino/Ocupante teria aplicação ao caso em apreço, pois a mesma está pensada para danos causados exclusivamente a terceiros.
18. Da matéria assente não resulta que no imóvel estariam bens que tenham ficado destruídos e que fossem da propriedade de um terceiro, caso em que a referida cláusula teria aplicação.
19. No caso dos autos importa apreciar se as cláusulas em vigor no contrato de seguro aqui em causa garantem ou não os danos que os Autores reclamam e conforme já se viu anteriormente a cláusula que o Tribunal da Relação usou para condenar a ora Recorrente não tem aplicação ao caso em apreço.
20. Face ao anteriormente exposto, a Recorrente requer que este douto tribunal altere a decisão do Acórdão da Relação e em consequência determine a absolvição da Recorrente, por se entender que o contrato de seguro em causa não responde perante os danos reclamados pelos Autores.
21. Com respeito ao valor dos danos, o Tribunal da Relação decidiu alterar a resposta à matéria de facto e desta forma passou a constar como facto provado que: “Em consequência do incêndio os autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição sob o n.º 7, cujo valor, embora não tenha sido concretamente apurado, não é inferior a dez mil euros (€ 10 000,00).”
22. O Tribunal da Relação admite como possível que os bens tenham ficado destruídos ou danificados.
23. O Tribunal apresenta várias considerações, que na ótica da Recorrente se limitam a justificar a recusa do recurso dos Autores, mas ainda assim e sem enunciar qualquer critério dá como assente que os bens teriam um valor mínimo de € 10.000,00.
24. Se forem analisados os depoimentos das testemunhas e da Autora sobre os valores que cada uma atribuiu aos bens, vamos encontrar valores diferentes para cada bem e ainda assim tudo somado não teríamos o valor de € 10.000,00.
25. Assim, a Recorrente entende que o Tribunal andou mal ao decidir que os bens teriam um valor mínimo de € 10.000,00 sem que tenha explicado porque escolheu tal valor e quando do processo não existem mais elementos que permitam chegar a tal quantia.
26. Acresce que o Tribunal da Relação após decidir neste sentido com respeito à matéria de facto, quando tomou posição sobre o valor da indemnização não respeitou a matéria de facto provada e não foi coerente com o que tinha mencionado anteriormente, senão vejamos:
27. O Tribunal da Relação começa por admitir que não há prova da diferente entre a situação patrimonial que existia antes do incêndio e depois do incêndio. Em seguida, reafirma que não é possível determinar a situação em que os Autores se encontravam antes do incêndio.
28. No seguimento da apreciação sobre as modalidades de condenação, reitera que não existe prova sobre o valor dos bens e depois concluiu que com recurso à equidade os Autores devem ser ressarcidos em € 15.000,00.
29. A Recorrente não concorda com esta conclusão, em primeiro lugar, toda a matéria de facto e fundamentação do Acórdão, vai no sentido que não foi produzida prova dos danos alegados pelos Autores e que os Autores não conseguiram demonstrar o que tinham alegado, tanto assim é que o recurso dos Autores foi julgado improcedente a este respeito.
30. Ora, tais conclusões devem culminar com a aplicação do artigo 414.º do CPC e não com a atribuição de uma indemnização de forma arbitrária.
31. Repare-se que o Tribunal começou por entender que os bens podiam ter ficado destruídos ou danificados, mas para atribuir o valor dos € 10.000,00 ou pior dos € 15.000,00, o Tribunal não levou em linha de conta, que muitos dos bens podiam ter sido recuperados.
32. Veja-se a título de exemplo, da lista elaborada pela Autora consta: 1 par de óculos graduados – ….. - € 199,00; 1 par de óculos de sol …… - € 120.00; 1 Decanter em vidro …. com copos - € 300,00; vários conjuntos de copos de cristal (cristaleira) - € 100,00.
33. Destes bens todos eles seriam recuperados, bastando para isso serem lavados e a recuperação nem sequer teria custos adicionais. Ainda assim o Tribunal não considerou tais factos para a sua decisão.
34. Outro aspecto que o Tribunal também ignorou foi que os bens já teriam uso e os valores que foram mencionados quer pelas testemunhas, quer pela Autora, diziam respeito aos valores de aquisição em novo.
35. De facto, uma coisa é colocar os Autores na situação em que se encontravam na data anterior ao incêndio, isto é, com bens já usados, e outra diferente é atribuir aos Autores uma indemnização que lhes permita obter um enriquecimento sem causa.
36. Esta apreciação importaria ter sido feita pelo Tribunal da Relação, já que alguns dos bens que estão identificados, tem uma depreciação de uso bastante elevada, como por exemplo, uma mala de senhora da marca ….. que ficou identificada como € 60,00, mas que sendo uma mala em segunda mão nunca teria esse valor no mercado.
37. É com base em considerações genéricas dos peritos que o Tribunal da Relação entendeu que se devia fixar uma indemnização de € 15.000,00.
38. Repare-se que numa lista de 70 itens os peritos viram entre 5 a 6 bens, numa lista de 70 itens limitaram-se a emitir opinião sobre a razoabilidade de alguns desses bens, no entanto alguns não sabemos quantos são, nem o Tribunal da Relação o disse.
39. Resulta evidente que a matéria de facto e a fundamentação deste acórdão não são coerentes nem coincidentes, pois o tribunal deveria ter decidido nos termos do artigo 414.º do CPC, isto é, contra quem o facto aproveita.
40. Por outro lado, a decisão de atribuição de € 15.000,00 não se encontra devidamente fundamentada e os dois argumentos apresentados são incompatíveis outras considerações que o Tribunal foi fazendo ao longo do Acórdão.

41. Face ao exposto, a Recorrente entende que o Tribunal não tinha como atribuir um valor de condenação com recurso à equidade e deveria ter decidido nos termos do artigo 414.º do CPC, absolvendo a Recorrente do pedido.

7.2 Os Réus EE e FF deduziram as seguintes conclusões (transcrição):

1ª - Nos termos do disposto no artº 674º do Código de Processo Civil, o recurso de revista pode ter por fundamento:
a) A violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável;
b) A violação ou errada aplicação da lei de processo;
c) As nulidades previstas nos artigos 615º e 666º;
2ª - Atendendo a tal limite, diga-se que, por se entender que foi violada a lei substantiva, por se verificar a violação ou errada aplicação da lei de processo e as nulidades previstas nos artºs, 615º nº 1 , als. b), c) d) , e) e 666º do C.P.C., é licito a este venerando Supremo Tribunal de Justiça , por se tratar de matéria de natureza jurídica é, como tal, sindicável por este Venerando Tribunal.
3ª- O douto Acordão ora em recurso, julgou parcialmente procedente o recurso interposto quanto à reapreciação da matéria de facto e quanto à matéria de direito, e, alterou a douta sentença recorrida, julgando parcialmente procedente o recurso e, em consequência:
1. Revoga-se a decisão de julgar improcedente a acção e de absolver os réus do pedido;
2. Substitui-se a sentença por decisão a julgar parcialmente procedente a acção e a condenar os réus a pagar aos autores os seguintes montantes:
a) A quantia de quinze mil euros [€ 15 000,00], a título de indemnização de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a citação até efectivo pagamento;
b) A quantia de cem euros [€ 100] a cada um dos autores AA e BB, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data desta decisão até integral e efectivo pagamento.
c) A quantia de duzentos e cinquenta euros [€ 250] ao autor CC, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data desta decisão até integral e efectivo pagamento;
3. Absolvem-se os réus da parte restante do pedido.
4ª - Salvo o devido respeito e que é muito – tentaremos demonstrar que não se decidiu bem, não só porque não se reflectem as questões que foram colocadas e dirigidas ao Tribunal da Relação, mas principalmente porque existiu violação da lei substantiva, consubstanciada em erro de interpretação ou aplicação do direito, violação ou errada aplicação da lei de processo e ofensa de disposição expressa que exija certa espécie de prova para a existência de facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, ao abrigo do disposto no artº 674º do C.P.C.
5ª - E, como se referiu, os limites previstos nos artigos 674º e 682º do CPC quanto ao julgamento em revista, não constituem obstáculo, sob pena de aos ora recorrentes ser cortado o grau de recurso constitucionalmente garantido, a que o Supremo Tribunal exerça também censura sobre a decisão da Relação que, em concreto modifique a matéria de facto excedendo os poderes que lhe são conferidos nos termos do disposto no artº 662º, nº 1 do CPC, por forma a que se verifique se, no uso dos seus poderes de anulação, actuou em observância dos limites legalmente impostos, como in casu, e ao que se entende, não sucedeu.
6ª - O Tribunal da Relação alterou a decisão da matéria de facto, julgando provados e não provados os seguintes factos:

Factos considerados provados:
1. Os primeiros réus são proprietários em exclusivo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz urbana da freguesia da ….., sob o artigo …. e descrito no registo predial sob o nº …., sito na Praceta …….
2. Por contrato de arrendamento, outorgado entre o autor AA e os primeiros réus, os autores e seus três filhos menores residiram entre 16 de Agosto de 2014 e início de 2016 na fracção autónoma designada pela letra …… correspondente ao 1º andar direito, parte do prédio urbano supra identificado.
3. Por contrato de seguro titulado pela apólice ….., o primeiro réu, EE, na qualidade de proprietário do imóvel supra identificado, celebrou com a companhia de seguros Tranquilidade um contrato de seguro multirriscos habitação, que entrou em vigor em 21.09.2013, regulado pelas Condições Gerais e Particulares juntas com a contestação sob os documentos 01 e 02 que se dão aqui por integralmente reproduzidas.
4. No dia 18 de Novembro de 2014, ou seja, passados cerca de 90 dias desde o início do contrato de arrendamento, por volta das 2/2.30 (duas horas/duas horas e trinta minutos) da madrugada, quando os autores estavam a dormir, eclodiu um incêndio na fracção ….. (1.º direito) do edifício supra identificado, junto à lareira da sala.
5. Na sequência do acendimento da lareira do 3.º andar direito, a fuligem acumulada na conduta de saída de fumos da lareira dessa fracção incendiou-se e essa fuligem incandescente passou, através da abertura exterior dessa conduta, para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os autores, incendiando um sofá que encontrava ali à frente;
6. Na sequência, as chamas alastraram à sala, danificando a pintura da fracção e queimando haveres pessoais dos autores.
7. Os primeiros réus há tempo não apurado em concreto que não limpavam as condutas de saída de fumos das lareiras do 1.º andar direito e do 3.º andar direito;
8. Procederam à entrega dos apartamentos aos autores e aos arrendatários do 3.º andar direito com fuligem acumulada nas paredes das condutas de saída de fumos das respectivas lareiras.
9. A falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras teve como consequência a acumulação de fuligem, originando que a mesma, sujeita a aquecimento, se incendiasse.
10. Em consequência do incêndio os autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição sob o n.º 7, cujo valor, embora não tenha sido concretamente apurado, não é inferior a dez mil euros (€ 10 000,00).
11. Os autores (pais e filhos) ficaram desgostosos com a perda dos bens em consequência do incêndio.
12. Alguns dos bens, designadamente móveis, alguns quadros, e roupas dos autores, haviam sido oferecidos, e alguns deles estavam relacionados com eventos marcantes, baptizado, como sucedia com a toalha do baptizado e as velas do baptizado.
13. Com o alastrar das chamas, a autora e os seus filhos menores foram obrigados a abandonar a dita fracção, permanecendo na rua com frio, só com a roupa que tinham no corpo.
14. A autora acordou com o crepitar das chamas do incêndio.
15. A autora e os filhos, em virtude de terem inalado fumo, foram conduzidos por precaução ao centro de saúde, onde foram observados e receberam algum conforto e apoio psicológico.
16. O menor CC, a partir do incêndio, tem dificuldade em dormir.
17. A autora ficou muito abalada após o incêndio, quer pelo trauma, quer pelo desgosto de ter ficado praticamente sem nada no tocante a objectos pessoais e roupa.

Factos julgados não provados:
a) Que a inundação consequente ao rescaldo do apartamento tenha causado a perda de um colchão de casal no valor de € 300,00;
b) Que na própria noite e na noite seguinte ao incêndio, permaneceram os autores e seus filhos menores no apartamento queimado, no quarto de casal, o único que não ardeu totalmente, em condições sub-humanas, com inalação de fumo presente na fracção.
c) Que o menor CC, a partir do evento traumático, não pode ficar sozinho à noite, tendo necessidade de tomar medicação até hoje para dormir e que fique em pânico cada vez que ouve falar ou vê um incêndio.
d) Que a autora teve necessidade de tomar medicação para dormir após o sucedido e que ficou sem vontade de conviver com familiares e amigos até hoje e viu-se obrigada a tomar anti- depressivos.
7ª - Desta forma, a Relação colocou em crise toda a prova produzida em julgamento , desprezando toda a prova que foi ouvida e analisada pelo julgador e que lhe foi colocada pelas partes, pois o que é pedido ao Tribunal de 1ª instancia, com fundamento no relatório final elaborado pela Polícia Judiciária, é a condenação dos RR. no pagamento de indemnização em virtude de danos sofridos pela eclosão de um incêndio que estes afirmam ter ocorrido pela projecção de pedaços de fuligem incandescente na lareira dos AA., por se ter incendiado a chaminé comum do prédio, que por sua vez, incendiou o colector da fracção.
8ª - Depois de toda a prova produzida, ficou sem margem para qualquer duvida demonstrado e aceite no douto Acordão ora em recurso, que, cada uma das lareiras tem uma saída própria para o telhado, as chaminés são independentes umas das outras, separadas por alvenaria ou tijolo, não existindo qualquer colector comum, razão pela qual entendeu o tribunal de 1ª instancia não sendo fisicamente possível ter o incêndio resultado da factualidade alegada pelos Autores.
9ª - Em sede de recurso os AA. pedem a alteração da decisão sobre a matéria de facto, solicitando que se julgue provado o que alegaram na petição inicial sobre as referidas causas do incêndio.
10ª - O douto Tribunal da Relação, na impossibilidade de poder considerar tal matéria como provada (porque na realidade, as chaminés não são comuns, são independentes umas das outras por alvenaria, não existindo colector comum, sendo impossível fisicamente que as causas do incêndio tenham sido as alegadas pelos AA.) vem entender que é possível formar uma convicção segura quanto às causas do incêndio, embora não coincidentes com a pretensão dos recorrentes.
11ª - Em face disso, cria uma nova versão conclusiva quanto às causas do incêndio, dizendo-se, para justificar tal, não existir leve sinal de outra causa.
12ª - Ora, os recursos não visam criar decisões sobre matéria que não foi invocada, matéria nova, mas antes visam submeter a reexame do tribunal superior questões já antes submetidas á apreciação do tribunal de 1º instancia, não podendo o Tribunal da Relação alterar a decisão proferida sobre tal matéria de facto pois, nem os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impunham decisão diversa da proferida em 1º instancia.
13ª - Tal consubstancia uma clara violação dos ónus da prova e das próprias regras do julgamento e da livre apreciação da prova, que são menosprezados em detrimento de factos indiciários, meras suposições e conclusões, que foram dados como provados sem nunca terem sido invocados e submetidos a apreciação.
14ª - Esta convicção do Tribunal da Relação (nova) resultou do depoimento do Sr. Inspector da Policia Judiciaria, que explicou com base na sua experiencia profissional e inspecção ao local.
15ª - Mas, esqueceu o Tribunal da Relação que o Sr. Inspector da Policia Judiciária tudo explicou com base na sua experiencia profissional, no pressuposto, diga-se, errado, de que existia uma conduta ou colector comum às três lareiras, pois que, chamado ao Tribunal para esclarecer o depoimento que havia prestado e a forma como alcançou a conclusão que trouxe primeiramente ao tribunal esclareceu que do prédio em questão não, “aquilo para nós é mais um, repetido, igual a tantos outros.” O depoimento que fez foi baseado nas regras de experiencia comum, sempre no pressuposto de que existia uma conduta de fumos ou colector comum às três lareiras.
16ª - Relativamente á falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras do 1º andar e do 3º andar direito foi convicção do tribunal da Relação que os primeiros réus não limpavam tais condutas (embora desse como provado que não o faziam há tempo não apurado em concreto) e esta convicção resultou do facto conclusivo de a inflamação da fuligem só ser possível se esta mesma fuligem existir e não for retirada.
17ª - Esta conclusão só é possível através de um raciocínio abstracto, com violação clara do ónus da prova e das regras do julgamento e do processo.
18ª - Existe prova documental nos autos, que foi desprezada pelo Tribunal da Relação, de que resulta claramente o contrário. Na verdade, os AA., após o incêndio e antes de saírem do locado, requereram à Câmara Municipal da ….. uma vistoria para efeitos de verificação das condições de segurança, salubridade e estética do edifício em causa, a qual foi realizada pelos peritos GG e HH, técnicas superiores em representação da aludida Câmara e ainda por II, em representação da comissão Municipal de Protecção Civil.
19ª - Tendo lavrado o respectivo Auto de inspecção junto aos autos e do qual consta expressamente que a fuga de exaustão de fumos provenientes da lareira não se encontra obstruída, conforme pode ser comprovado pela observação das fotografias captadas aquando da referida vistoria , não se verificando, inclusive, como é referido no douto Acordão da Relação sinais de aquecimento excessivo no extrator de fumos de metal que encimava a cobertura nem sinais de que as aberturas exteriores das chaminés estão queimadas.
20ª Tais técnicos foram ainda ouvidos em audiência de julgamento e reafirmaram que, estes sim, ao contrário do Sr. Inspector da Policia Judiciária, examinaram a lareira do 1º andar e a saída das chaminés no telhado e não observaram sinais de que se encontrasse obstruída, designadamente, por fuligem.
21ª - É no mínimo inverosímil que se possa fazer o raciocínio conclusivo feito pelo Tribunal da Relação relativamente às causas do incêndio.
22ª - O Tribunal da Relação deu como provados factos quanto às causas do incêndio e à falta de limpeza do interior das chaminés, baseando-se num depoimento do Sr. Inspector da Policia Judiciária, que, conforme este esclareceu, se baseou em pressupostos errados (de que havia um colector único para todas as chaminés), e se baseou em regras de experiencia comum e não do conhecimento objectivo da materialidade do prédio.
23ª - A resposta que o Tribunal da Relação entendeu dar, alterando a inicial proferida em 1ª instancia, é constituída exclusivamente por meros juízos conclusivos e não por factos, o que constitui questão de índole jurídica, logo sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, saber se determinada matéria tem ou não natureza conclusiva e se, tendo-a, deverá ela ter-se por não escrita.
24ª - Não podendo o Supremo Tribunal de Justiça apreciar a bondade da decisão de facto, próprio sensu, é-lhe, todavia, lícito – por se tratar de matéria jurídica – verificar se determinada proposição, retida como facto provado reflecte indevidamente (e em que medida) uma questão de direito ou um juízo de feição meramente conclusiva ou valorativa, como entendemos ser o caso.
25ª - Ao alterar a decisão sobre a matéria de facto, como o fez, o Tribunal da Relação extravasou os seus poderes, visto que o Tribunal da Relação apenas tem poderes para alterar a matéria de facto e já não para formular juízos conclusivos que encerram o próprio thema dicidendo.
26ª - É nossa humilde opinião que o douto Tribunal da Relação não tinha fundamento, nem legal nem resultante da prova documental e testemunhal produzida (e muito menos convicção segura) para alterar a matéria de facto fixada na primeira instancia relativamente às causas do incêndio.
27ª - Relativamente aos bens que alegadamente foram destruídos e ao seu valor, a situação é ainda mais clamorosa, pois o Tribunal da Relação com total ausência de prova, quer pericial, quer documental quer testemunhal, sobre a identificação de tais bens e valor de cada um dos objectos, alterou a decisão proferida em 1ª instancia julgando provado que, em consequência do incêndio os autores sofreram a perda de objectos indicada na relação junta com a petição sob o nº 7 , e cujo valor embora não tenha sido concretamente apurado, não é inferior a dez mil euros,
28ª - Apenas a A. confirmou tal (em declarações de parte e não de modo claro e preciso pois limitou-se a confirmar a lista constante dos autos e que ela própria elaborou) mas, mesmo assim, o Tribunal da Relação entendeu, nessa parte, dar crédito a essas declarações, o mesmo não sucedendo, quanto a outros pontos pois já não deu crédito ou desconsiderou as declarações da autora no que toca à perda de um colchão, que na noite do incêndio e na seguinte os AA. e seus filhos permaneceram no apartamento queimado e que o menor CC não pode ficar sozinho à noite tendo necessidade de tomar medicação até hoje para dormir, que fica em pânico quando vê ou ouve falar de um incêndio e que a própria A. teve necessidade de tomar medicação para dormir, ficou sem vontade de conviver e toma anti-depressivos, etc.
29ª - Não se compreende nem é compreensível à luz das regras de experiencia comum e do processo, que as declarações da autora mereçam credibilidade numa parte e em outras não.
30ª - Tendo sido valorado pelo tribunal da Relação tais declarações de parte da autora, para dar como provado os factos que constam dos pontos 10., 11,., 12., 13., 14., 15., 16., e 17., violou o Acordão recorrido, por utilização de prova indevida, o disposto nos artºs. 496º, do CPC, o que convoca a sua nulidade.
31ª - Por outro lado, resulta do Relatório elaborado pela Policia Judiciária que o fogo lavrou sem grande intensidade na sala tendo atingido uma ou outra divisão, apenas com fuligem, e, a ser assim, como efectivamente é, não é possível terem sido destruídos todos os bens constantes da lista que a autora elaborou, pois é de todo impossível que na sala estivessem tantos e tão diversos objectos e tivessem sido todos destruídos.
32ª - Esta conclusão , julgando-se provado que em consequência do incêndio os autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a p.i. sob o nº 7, cujo valor embora não tenha sido concretamente apurado não é inferior a dez mil euros, é constituída exclusivamente por meros juízos conclusivos e não por factos, o que constitui questão de índole jurídica , logo sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça , ou seja, saber se determinada matéria tem ou não natureza conclusiva e se, tendo-a, deverá ela ter-se por não escrita.
33ª - Ou seja, o juízo operativo em crise, realizado pelo Tribunal da Relação quando entendeu alterar a decisão da matéria de facto supra referida é de natureza juridica e como tal sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, pois não existe fundamento, nem legal nem resultante da prova pericial, documental e testemunhal produzida (e muito menos convicção segura) para alterar a matéria de facto fixada na primeira instancia relativamente á perda dos objectos e ao seu valor.
34ª - O tribunal da Relação ao revogar a decisão proferida em 1ª instancia julgando a acção parcialmente procedente errou, ao decidir, como decidiu, modificar a decisão sobre a matéria de facto provada, incorrendo em violação de normas de direito probatório material e ultrapassando mesmo os limites adjectivamente estabelecidos ao exercício de tal poder, mas também, e independentemente dessa operada alteração, na subsunção da matéria de facto provada e não provada ao direito aplicável.
35ª – O Tribunal da Relação apenas tem poderes para alterar a matéria de facto e já não para formular juízos conclusivos que encerram o próprio thema dicidendo, como o fez, violou ou infringiu, nomeadamente, o disposto nos artºs., 341º, 342º, nºs 1 e 2 do C. Civil e também dos artigos 662º do CPC.
36ª - Mas mesmo que assim se não entenda e mantendo-se de facto a decisão proferida pela douta Relação, convém salientar que nos presentes autos não se verificam todos os requisitos essenciais para que opere o instituto da responsabilidade civil.
37ª - As simples omissões só dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando independentemente de outros requisitos legais, havia por força da lei ou de negócio jurídico o dever de praticar o acto omitido.
38ª - Foram os Réus condenados por o Tribunal da Relação considerar que houve incumprimento dos Réus de procederem à limpeza de fuligem que se depositava nas paredes das lareiras, mas o certo é que não resultou provado há quanto tempo tal limpeza não era feita.
39ª . Não havia por força da lei ou negócio jurídico, qualquer dever de praticar o alegado ato omitido, mas, mesmo que assim se não considere, o certo é que não poderá tal incumprimento ser considerado culposo.
40ª - Para que haja conduta culposa o agente tem que prever a lesão de direitos alheios, tem que conhecer os limites objectivos do seu dever e não usar do zelo de um homem médio para cumprir o seu dever.
41ª - O conceito de diligencia de bom pai de família só poderá ser utilizável nos casos em que o conteúdo do dever exigível não se encontrasse já determinado por lei ou negócio jurídico.
42ª - Neste caso, só existe culpa sempre que o autor da lesão, capaz de conhecer o comportamento devido e de prever as consequências danosas da sua conduta, não as evita, devendo prever como provável uma lesão, devendo aferir-se o comportamento em concreto do autor do facto danoso, nas circunstancias concretas em que ocorreu.
43ª - Ainda, cabe ao lesado a prova da culpa, cuja prova não sucedeu neste caso.
44ª - Não se mostrando preenchidos os requisitos da responsabilidade por factos ilícitos - que o facto seja ilícito, a imputação do facto ao lesante – culpa - o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano – não existe obrigação de indemnizar.
45ª - Sendo reconhecido no Acordão do Tribunal da Relação que não se sabe o valor exacto dos danos causados pelo incêndio, por falta de prova, entendeu fixar, com recurso à equidade a indemnização em €15.000,00 pelos danos patrimoniais, com o fundamento de que se apurou que os bens não têm valor inferior a €10.000,00 e os peritos, apesar de não procederem à avaliação dos bens, por os mesmos já não existirem, foram de opinião que muitos dos valores indicados pelos autores era razoável.
46ª - Entendemos que também neste aspecto a decisão de fixação da indemnização não foi fundamentada e se baseou em critérios abstactos pois é o próprio Tribunal da Relação que refere que a prova relativamente aos valores dos objectos foi incompleta e imprecisa, por os peritos, as declarações dos autores e depoimento das testemunhas não se pronunciarem sobre o valor de alguns bens.
47ª – Mas, depois deste raciocínio, como que por artes mágicas, sem qualquer fundamento e critério, condena os réus no pagamento de uma indemnização de €15.350,00 pelos danos causados pelo incêndio, pois, seria inútil condenar os réu no que se viesse a liquidar porque o tribunal da Relação não viu outra prova que poderia ser feita para apurar o valor exacto dos danos.
48ª - Existe, assim clara contradição entre a decisão e a fundamentação e violação claro de preceitos legais, designadamente, no disposto nos artºs. 609º, nº 2 e 414º do C.- Civil.

49ª - Por ultimo dir-se-á que, sem prescindir do exposto, o Tribunal da Relação sempre teria que atender a limitação da indemnização no caso de mera culpa, ou seja, fixar a indemnização em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, o que não fez, violando assim o disposto no artº 494º do C. Civil.

13. Em contra-alegações os Autores pronunciam-se no sentido da improcedência dos recursos.

   

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil - CPC) e elencadas em termos de precedência lógica, impõe-se conhecer as seguintes questões:
ü Da nulidade do acórdão recorrido (recurso dos 1.os Réus);
ü Do erro de julgamento da matéria de facto (recursos dos 1.os Réus e da Ré Seguradora)
ü Da responsabilidade dos 1.os Réus (recurso dos 1.os Réus);
ü Do montante dos danos patrimoniais (recursos dos 1.os Réus e da Ré Seguradora);
ü Da responsabilidade da Ré Seguradora (recurso da Ré Seguradora).

1 Os factos

Provados

1. Os primeiros Réus são proprietários em exclusivo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz urbana da freguesia …., sob o artigo ….. e descrito no registo predial sob o nº …….87, sito na …….

2. Por contrato de arrendamento, outorgado entre o Autor AA e os primeiros Réus, os Autores e seus três filhos menores residiram entre 16 de Agosto de 2014 e início de 2016 na fracção autónoma designada pela letra …. correspondente ao 1º andar direito, parte do prédio urbano supra identificado.

3. Por contrato de seguro titulado pela apólice …..03, o primeiro Réu, EE, na qualidade de proprietário do imóvel supra identificado, celebrou com a companhia de seguros Tranquilidade um contrato de seguro multirriscos habitação, que entrou em vigor em 21.09.2013, regulado pelas Condições Gerais e Particulares juntas com a contestação sob os documentos 01 e 02 que se dão aqui por integralmente reproduzidas.

4. No dia 18 de Novembro de 2014, ou seja, passados cerca de 90 dias desde o início do contrato de arrendamento, por volta das 2/2.30 (duas horas/duas horas e trinta minutos) da madrugada, quando os Autores estavam a dormir, eclodiu um incêndio na fracção …. (1.º direito) do edifício supra identificado, junto à lareira da sala.

5. Na sequência do acendimento da lareira do 3.º andar direito, a fuligem acumulada na conduta de saída de fumos da lareira dessa fracção incendiou-se e essa fuligem incandescente passou, através da abertura exterior dessa conduta, para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os Autores, incendiando um sofá que encontrava ali à frente;

6. Na sequência, as chamas alastraram à sala, danificando a pintura da fracção e queimando haveres pessoais dos Autores.

7. Os primeiros Réus há tempo não apurado em concreto que não limpavam as condutas de saída de fumos das lareiras do 1.º andar direito e do 3.º andar direito;

8. Procederam à entrega dos apartamentos aos Autores e aos arrendatários do 3.º andar direito com fuligem acumulada nas paredes das condutas de saída de fumos das respectivas lareiras.

9. A falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras teve como consequência a acumulação de fuligem, originando que a mesma, sujeita a aquecimento, se incendiasse.

10. Em consequência do incêndio os Autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição sob o n.º 7, cujo valor, embora não tenha sido concretamente apurado, não é inferior a dez mil euros (€ 10 000,00).

11. Os Autores (pais e filhos) ficaram desgostosos com a perda dos bens em consequência do incêndio.

12. Alguns dos bens, designadamente móveis, alguns quadros, e roupas dos autores, haviam sido oferecidos, e alguns deles estavam relacionados com eventos marcantes, baptizado, como sucedia com a toalha do baptizado e as velas do baptizado.

13. Com o alastrar das chamas, a Autora e os seus filhos menores foram obrigados a abandonar a dita fracção, permanecendo na rua com frio, só com a roupa que tinham no corpo.

14. A Autora acordou com o crepitar das chamas do incêndio.

15. A Autora e os filhos, em virtude de terem inalado fumo, foram conduzidos por precaução ao centro de saúde, onde foram observados e receberam algum conforto e apoio psicológico.

16. O menor CC, a partir do incêndio, tem dificuldade em dormir.

17. A Autora ficou muito abalada após o incêndio, quer pelo trauma, quer pelo desgosto de ter ficado praticamente sem nada no tocante a objectos pessoais e roupa.
2. O direito

2.1. Da nulidade do acórdão recorrido (recurso dos 1.os Réus)

Sem especificarem ou concretizarem o que afirmam, os Réus (cfr. 1 e 2. das conclusões) imputam ao acórdão recorrido as nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c), d) e e), do CPC. Todavia, a propósito do quantum indemnizatório fixado e da alegada violação dos artigos. 609.º, n.º 2, e 414.º do CPC, os Recorrentes invocam ocorrer clara contradição entre a decisão e a fundamentação do acórdão.

Tendo em conta que tal alegação poderá, em abstracto, integrar uma das nulidades previstas no citado artigo 615.º do CPC, cabe apreciar o acórdão sob esta perspectiva.

A nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, - contradição entre os fundamentos - verifica-se na construção lógica da decisão e ocorre quando o julgador concluiu num sentido oposto ou diverso do que resultaria face aos fundamentos nela indicados enquanto alicerces da própria decisão.

Tal vício, porém, não se confunde com a ocorrência de erro material[1], nem com erro de julgamento (quer da matéria de facto, quer de subsunção jurídica).

Referem os Recorrentes a tal propósito que o tribunal a quo, embora tenha considerado que a prova em relação ao valor dos objectos danificados em consequência do incêndio foi incompleta e imprecisa, concluiu que esses objectos não tinham valor inferior a 10.000,00€ e, sem qualquer fundamento ou critério, acabou por fixar a indemnização pelos danos patrimoniais, com recurso à equidade, em 15.000,00€, porquanto entendeu que seria inútil condenar os Réus no que se viesse a liquidar atenta a circunstância de resultar evidenciado a impossibilidade de ser feita qualquer outra prova para apurar o valor exacto dos danos.

Ao invés do que consideram os Réus, os aspectos que apontam não consubstanciam qualquer contradição lógica entre a fundamentação e a decisão, podendo integrar uma questão de erro de julgamento (fáctico e também em termos de integração jurídica) que, como já referido, não encontra cabimento no âmbito das nulidades da decisão.

Com efeito, verifica-se que o tribunal a quo, conhecendo da apelação, entendeu que, em face da prova que reapreciou, se impunha a alteração da decisão na parte em que, em consequência do incêndio, os Autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição inicial sob o n.º 7, cujo valor, apesar de não concretamente apurado, não era inferior a € 10.000,00.

Tal entendimento, segundo o explicitado no acórdão recorrido, decorreu do facto da prova em relação ao valor dos objectos destruídos, ainda que incompleta e imprecisa (impedindo dar como provado que os bens tinham o valor indicado na referida relação elaborada pela autora), permitia afirmar, com segurança (atendendo à multiplicidade de bens destruídos e aos valores que foram indicados pelos Autores em sede de declarações de parte e por uma testemunha), que o seu valor não era inferior a10.000,00 €.

Por outro lado, no que toca à indemnização arbitrada a título de danos patrimoniais, o acórdão fixou-a por recurso à equidade tendo subjacente o entendimento de se revelar inútil condenar os Réus em montante a liquidar, por não se vislumbrar que outra prova poderia ser feita para apurar o valor exacto dos referidos danos (justificando no facto de ter sido já feita prova pericial e na impossibilidade de examinação dos bens por os mesmos já não existirem). Por sua vez, o montante fixado (em 15.000,00€) encontra-se justificado com fundamento em ter sido apurado que os bens não têm valor inferior a10.000,00 € e por os peritos, não obstante não terem examinado os bens, emitirem opinião no sentido de se mostrarem razoáveis os valores indicados pelos Autores.

Resulta claramente do que decorre do acórdão recorrido a inexistência de qualquer contradição lógica entre as premissas e a decisão porquanto o tribunal a quo partiu de um raciocínio e dele retirou conclusão alicerçado, num primeiro momento, em sede de decisão de facto e, num segundo momento, em sede de decisão de direito.

Não se verifica, por isso, qualquer nulidade da decisão, designadamente por contradição entre os fundamentos e a decisão.

2.2 Do erro de julgamento da matéria de facto (recursos dos 1.os Réus e da Ré Seguradora)

Alegam os 1.ºs Réus que o acórdão recorrido, ao ter criado “uma nova versão conclusiva quanto às causas do incêndio”, extravasou os poderes legais quanto à alteração da matéria de facto. Invocam nesse sentido não ser lícito ao tribunal da Relação:

i) formular juízos conclusivos que encerram o próprio thema decidendum, violando, com isso, o disposto nos artigos 662.º, do CPC, e 341.º, 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil;

ii) alterar a matéria de facto valorando elementos probatórios (e desprezando outros) sem qualquer fundamento probatório.

Relativamente à apreciação das provas, invocam os Recorrentes que o tribunal recorrido valorou, sem fundamento, o depoimento do Inspector da Polícia Judiciária em detrimento do auto de vistoria (feito pela Câmara Municipal) e dos depoimentos dos técnicos que foram à fracção. Alegam, igualmente, que foi dada credibilidade a excertos das declarações de parte da Autora, o que é incompreensível à luz das regras da experiência comum e violador do disposto no artigo 496.º, do CPC. Concluem, assim, que ao ser utilizada prova indevida a mesma é nula.

Vejamos.

Conforme decorre do disposto nos artigos 682.º, n.º 1 e 674.º, n.º 3, do CPC, o STJ, enquanto tribunal de revista, em regra, apenas conhece de matéria de direito, não lhe cabendo sindicar a matéria de facto apurada pelas instâncias, a não ser que se verifique algum dos casos excepcionais expressamente previstos na lei.

Com efeito, a intervenção do STJ no domínio factual é muito limitada porquanto não lhe cabe, enquanto tribunal de revista, sindicar o erro na livre apreciação das provas, excepto quando, nos termos contemplados no artigo 674.º, n.º 3, do CPC, ocorra ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, ou ainda quando a apreciação feita se mostre alicerçada num juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade.

Não pode, pois, este tribunal modificar ou sancionar a decisão fáctica fixada pela instância recorrida quando estejam em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal, ou seja, sem valor probatório tabelado[2].

Todavia, embora o Supremo Tribunal de Justiça se encontre impedido de sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, não se encontra impedido de verificar da legalidade do uso de tais poderes pela Relação, ou seja, se a mesma agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer, sendo que tal avaliação se reconduz a uma questão de direito que integra, nessa medida, a esfera de competência própria deste Supremo Tribunal[3].

Delimitados que estão, neste campo, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça, cumpre aferir se o tribunal recorrido, ao reapreciar a matéria de facto impugnada pelos Autores na apelação observou (ou não) os parâmetros que balizam a sua actuação, nos termos que lhe são impostos pelo artigo 662.º, do CPC.

Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (sublinhado nosso).

Com a nova redacção dada ao preceito[4], o legislador pretendeu que o tribunal da Relação produzisse um novo julgamento em função da sua própria convicção, exercendo, assim, um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição da matéria de facto[5].

Acresce que tal autonomia decisória da Relação no julgamento da matéria de facto mediante a reapreciação dos meios de prova constantes do processo, não só não o limita quanto aos meios de prova indicados pelo recorrente, como lhe impõe que forme a sua própria convicção (juízo autónomo em função dos elementos de prova acessíveis) numa apreciação global de todos os elementos de prova carreados para os autos.

Mantém-se, assim, a possibilidade de sindicar a decisão da matéria de facto quando esta assente em prova oralmente produzida que tenha ficado gravada, afastando-se, desta forma, o argumento recorrente no sistema anterior de que a modificação da decisão da matéria fáctica deveria ser reservada para casos de “erro manifesto”, e de que não era permitido à Relação contrariar em termos de convicção o juízo formulado pela 1.ª instância relativamente a meios de prova que haviam sido objecto de livre apreciação.

O reforço dos poderes da Relação neste campo está, de resto, bem patente na possibilidade quer de renovação da produção de certos meios de prova (quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de algum depoente ou sobre o sentido do depoimento que não sejam ultrapassadas por outras vias), quer de produção de novos meios de prova quando existir dúvida fundada acerca da prova realizada em 1.ª instância (artigo 662.º, n.ºs 1, e 2, alíneas a) e b), do CPC).

Por conseguinte, nas situações em que a decisão fáctica da 1.ª instância resulte da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, sempre que a parte recorrente cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo artigo 640.º, do CPC, o tribunal da Relação, assumindo-se como verdadeiro tribunal de instância, tem o dever de proceder à reavaliação da matéria de facto impugnada[6] a partir dos meios de prova de que dispõe e formar, com total autonomia, a sua própria convicção por forma a confirmar a decisão, decidir em sentido contrário ao da 1.ª instância ou introduzir na decisão que considere erradamente julgada as alterações que se mostrem pertinentes (alterando-a em sentido restritivo ou explicativo)[7].

Assim, o tribunal da Relação, em sede de matéria de facto, goza dos mesmos poderes que o tribunal de 1.ª instância, incluindo os que decorrem do princípio da livre apreciação consagrado legalmente (cfr. artigos 607.º, n.º 5, 466.º, n.º 3, e 494.º, n.º 2, do CPC, 349.º, 351.º, 376.º, n.º 3, 391.º e 396.º, do Código Civil).

Importa ter presente que, em virtude da alteração introduzida no processo civil por forma a atenuar os efeitos do rigorismo formal obstrutivo da busca da verdade material (no que se refere aos temas da prova, por contraposição ao regime anterior alicerçado nos pontos de facto da base instrutória), a produção de prova em audiência de julgamento passou a incidir sobre os temas da prova e, com isso, uma maior liberdade no que se refere à descrição da realidade que é objecto do litígio.

Reportando tais considerações para o caso sob apreciação não podemos deixar de concluir que o tribunal recorrido ao alterar a realidade fáctica (desde logo no que se refere às causas do incêndio) não extravasou os poderes que lhe estão cometidos nesse âmbito, conforme passaremos a justificar.

Alegam os Recorrentes que tendo os Autores sustentado o pedido indemnização em consequência dos danos sofridos pela projecção de pedaços de fuligem incandescente na sua lareira por se ter incendiado a chaminé comum do prédio que, por sua vez, incendiou o colector da fracção, e, bem assim, reiterado em sede de apelação, que fosse julgada provada a versão dos factos vertida na petição inicial, não podia o tribunal a quo, ao conhecer da impugnação da matéria de facto, proceder à alteração do factualismo criando matéria nova quanto às causas do incêndio.

Defendem, assim, a violação das regras do ónus da prova, do julgamento e o princípio da livre apreciação. Carecem, porém, de razão.

Os Autores alegaram, efectivamente, na petição inicial, ter ocorrido um incêndio na fracção que habitavam, provocado pela projecção de fuligem incandescente, proveniente da chaminé/colector (baseando-se, para o efeito, num relatório da polícia judiciária que juntaram aos autos), ocorrida na sequência do acendimento da lareira da fracção correspondente ao 3.º andar, fuligem essa que, ao ser projectada, incendiou o sofá que estava colocado em frente à lareira, por causa que não lhes foi imputável (pois que não tinham acendido a lareira).

Imputaram o incêndio aos 1.os Réus por os mesmos, na qualidade de proprietários de todas as fracções do prédio, obrigados que estavam, além do mais, a proceder à limpeza periódica dos colectores/chaminés para evitar a acumulação de fuligem e alcatrão, não o terem feito.

Resulta, assim, da factualidade alegada, que o pedido indemnizatório deduzido na acção se funda em responsabilidade civil, concretamente, na alegada conduta omissiva, ilícita e culposa dos Réus, danosa para os Autores.

Note-se que em conformidade com essa alegação foram enunciados, como constituindo temas da prova, o incêndio ocorrido na fracção que constituía a habitação dos autores e a conduta (por acção e/ou omissão) dos 1.ºs  Réus (na qualidade de proprietários dessa fracção e de senhorios daqueles) causadora do referido incêndio[8].

Não se vislumbra, por isso, em que medida é que o tribunal recorrido, no uso dos seus poderes de reapreciação das provas e de modificação da matéria de facto impugnada, extravasou tais poderes ou violou as regras do ónus da prova.

Repare-se que a discordância dos Recorrentes centra-se, exclusivamente, no facto de a Relação não ter dado como provada a exacta versão dos factos alegados na petição no que concerne ao local por onde a fuligem incandescente teria passado para depois ser projectada para a lareira da fracção que era, então, habitada pelos Autores (de acordo com aquela versão, tal fuligem teria tido origem no colector/chaminé comum) Ora, de acordo com a factualidade dada como provada, a fuligem acumulada na conduta de saída de fumos da lareira da fracção do 3.º andar incendiou-se, tendo a fuligem incandescente passado, através da abertura exterior dessa conduta para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os Autores, que incendiou o sofá que se encontrava em frente da lareira (cfr. facto provado sob o ponto 5.).

Como é evidente, tal resposta explicativa insere-se quer na alegação vertida na petição, quer nos temas da prova supra referidos, sendo que o local pelo qual a fuligem passou constitui aspecto acessório irrelevante porquanto não desvirtua a causa de pedir em que o pedido se alicerça.

Como já sublinhado, o tribunal da Relação tem, em sede de reapreciação da prova impugnada, poderes em tudo idênticos aos conferidos ao tribunal de 1.ª instância, devendo, nessa reapreciação formar uma convicção autónoma e própria e expressar o seu resultado, designadamente, alterando a matéria de facto, ainda que em sentido explicativo, como sucedeu no caso.

Refira-se, de resto, que é pacífico que as respostas quanto à matéria de facto que permanece controvertida não têm necessariamente de ser afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas (consubstanciando juízos delimitativos ou até mesmo elucidativos da situação nelas descrita) exigindo-se, apenas, que se mantenham no círculo da matéria alegada, mais precisamente, no enquadramento da matéria de facto indicada na acção por uma das partes. Por isso, apenas serão consideradas excessivas as respostas que não se contenham nos temas da prova, naturalmente por referência aos factos ínsitos nos articulados, por estarem fora desses mesmos temas ou os exorbitarem, o que não ocorre quanto a factos acessórios como o supra referido[9].

Em consequência, não tendo a Relação extravasado os poderes que lhe estão cometidos em sede de modificação da matéria de facto e não tendo, igualmente, sido violadas as regras sobre o ónus da prova, tem a revista, nesta parte, de improceder.

Já a questão de saber se a matéria de facto dada como provada pela Relação foi fixada de forma acertada constitui matéria que, tendo sido precedida de um juízo assente na livre apreciação da prova, está subtraída ao conhecimento deste Supremo Tribunal.

É que, conforme já realçado, a intervenção do Supremo, no que concerne ao controlo da decisão da matéria de facto, circunscreve-se a aspectos em que se tenha verificado a violação de normas de direito probatório material por, nessa hipótese, estarem em causa verdadeiros erros de direito.

Ora, no caso vertente, apesar de os Recorrentes terem alegado que a Relação incorreu em violação de normas de direito probatório material ao ter modificado a decisão da matéria de facto, não invocaram, para além da já apreciada violação das regras sobre o ónus da prova, que tenha sido ofendida qualquer norma de direito probatório material que se enquadre numa das supra referidas excepções previstas na lei (de prova vinculada ou tarifada).

O que decorre da sua alegação recursória e, bem assim, das conclusões da revista, é que os Recorrentes não se conformam com a apreciação crítica que o tribunal fez da prova testemunhal, pericial e declarações de parte, que foi produzida, nem com convicção que o tribunal a quo formou da análise crítica e conjugada dessa prova para dar como provada a factualidade que permanecia controvertida.

Oos Recorrentes limitam-se (ainda que a pretexto de supostos juízos conclusivos, que não se mostram concretizados) a manifestar a sua discordância quanto à circunstância de o tribunal se ter ancorado em determinados depoimentos em detrimento de outros elementos probatórios que, no seu entender, imporiam resposta diversa.

Acontece que, estando a prova testemunhal, pericial, documental e por declarações de parte, a que os Recorrentes aludem, sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigos 396.º, 389.º, e 376.º, n.º 1, a contrario, do Código Civil, e artigos 466.º, n.º 3, e 607.º, n.º 5, do CPC), não pode deixar de se concluir que a sua discordância acerca da apreciação crítica que dela foi feita pelo tribunal recorrido não se enquadra em nenhuma das excepções previstas na parte final do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, estando, como tal, o STJ impedindo de sindicar a decisão da matéria de facto que resultou da apreciação desses meios probatórios.

O raciocínio exposto assume igualmente aplicação quanto à questão suscitada pela Ré Seguradora na revista no que se refere à factualidade atinente ao valor dos danos que o tribunal a quo deu como provada sob o ponto 10, uma vez que a mesma se limita a manifestar a sua discordância quanto à convicção que a Relação formou a esse propósito; como tal, porque no domínio da prova sujeita à livre apreciação do tribunal, constitui matéria subtraída ao conhecimento deste tribunal.

Não existindo, pois, no que toca à decisão da matéria de facto, erro susceptível de ser sindicado pelo STJ, não pode, nesta parte, conhecer-se do objecto dos recursos, mantendo-se, em consequência, inalterada a materialidade dada como assente pela Relação.

2.3 Da responsabilidade dos 1.os Réus (recurso dos 1.os Réus);

Sustentam os Recorrentes a este propósito que não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil de que depende a obrigação de indemnizar por:

- não impender sobre eles qualquer dever de praticar o acto legalmente omitido;

- não resultar provado há quanto tempo não era feita a limpeza da fuligem que se depositava nas paredes das lareiras;

- não ter sido demonstrada (pelos lesados) a culpa.

Vejamos.

Com relevância para a apreciação desta questão mostra-se provado:

- que o incêndio foi causado por fuligem incandescente, que provinda da conduta de saída de fumos da lareira do 3.º andar direito, passou para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os autores, incendiando um sofá que encontrava ali à frente (cfr. factos provados sob os pontos 4. e 5.);

- que, nessa sequência, as chamas alastraram à sala danificando a pintura da fracção e queimando haveres pessoais dos autores (cfr. facto provado sob o ponto 6.)

- que há tempo não apurado em concreto que os 1.ºs Réus não limpavam as condutas de saída de fumos das lareiras do 1.º andar direito e do 3.º andar direito (cfr. facto provado sob o ponto 7.);

- que os 1.ºs Réus procederam à entrega dos apartamentos aos Autores e aos arrendatários do 3.º andar direito com fuligem acumulada nas paredes das condutas de saída de fumos das respectivas lareiras (cfr. facto provado sob o ponto 8.);

- que a falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras teve como consequência a acumulação de fuligem, originando que a mesma, sujeita a aquecimento, se incendiasse (cfr. facto provado sob o ponto 9.).

Em face desta materialidade assente, é indubitável que, tal como se decidiu no acórdão recorrido, se mostram preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil consignados no artigo 483.º do CC.

Com efeito, a fuligem acumulada nas paredes das condutas de saídas de fumos das lareiras das fracções supra identificadas, que, uma vez sujeita a aquecimento, se incendiou, constitui, sem margem para dúvida, um facto dominável ou controlável pela vontade humana, ainda que, em concreto, os 1.ºs Réus não o tenham controlado, pois que sobre eles recaía o dever de o fazer.

O preenchimento deste primeiro pressuposto encontra-se explanado e fundamentado, de forma extensa, pormenorizada e com inteiro acerto, no acórdão recorrido.

Os Recorrentes, aliás, nem sequer concretizam em que medida e por que razão entendem não existir o dever de praticar o acto omitido, quando, na verdade, sendo proprietários das fracções em causa lhes incumbia o dever de proceder à limpeza das paredes das condutas de evacuação de fumos por forma a evitar que nelas se acumulasse fuligem, como ficou demonstrado que sucedeu.

Dispõe o artigo 486.º, do Código Civil que As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.

Tal dever resulta, no caso, da lei, em concreto e conforme se refere no acórdão impugnado, da conjugação do que se dispõem os artigos 1.º, alínea a), 6.º, n.º 3, e 8.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Segurança Contra Incêndio em Edifícios (RJSCIE),[10] e no artigo 89.º, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE)[11].

Extrai-se, pois, da leitura conjugada dos referidos normativos, que é sobre os proprietários que recai a responsabilidade de manter as condições de segurança contra o risco de incêndio dos edifícios destinados à habitação, sendo igualmente sobre eles que impende a obrigação de realizar todas as obras necessárias à manutenção da segurança, salubridade e arranjo estético das edificações.

Encontrando-se as obras de limpeza expressamente abrangidas pela definição de obras de conservação[12] ínsita no artigo 2.º n.º 1, alínea f), do RJUE, sem dúvida que impendia os 1.ºs Réus, na qualidade de proprietários das fracções, o dever de proceder à limpeza das condutas de evacuação dos fumos das lareiras, já que, sendo a fuligem inflamável, a sua acumulação nas paredes das condutas constitui um risco para a segurança do edifício por acarretar perigo de incêndio.

A circunstância de não se ter apurado há quanto tempo os Réus não procediam a essa limpeza mostra-se irrelevante para o caso, uma vez que não afasta a sua conduta omissiva porquanto, para além de se ter provado que não procediam à limpeza em questão, também se encontra apurado que a fuligem se encontrava ali acumulada, que as fracções foram, por eles, entregues aos Autores e aos arrendatários do 3.º direito nesse estado e que foi essa falta de limpeza que provocou a acumulação de fuligem, que sujeita a aquecimento originou que a mesma se incendiasse.

Encontra-se assim demonstrada a ilicitude, pressuposto da responsabilidade civil, que os Recorrentes põem em causa.

Relativamente à culpa, defendem os Réus que a obrigação de indemnizar estaria dependente da prova de que, apesar de terem previsto como provável a lesão e as consequências danosas da sua conduta, não as teriam evitado.

É manifesto que, quanto a este aspecto, carecem também de razão.

A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente (…) e pode revestir duas formas distintas: o dolo (…) e a negligência (culpa em sentido estrito)[13].

Tais modalidades de culpa encontram-se expressamente previstas no artigo 483.º do Código Civil - Aquele que, com dolo ou mera culpa (…), pelo que a modalidade a que os Recorrentes aludem (se bem se perceciona, reporta-se ao dolo eventual) não esgota as vertentes em que se desdobra a culpa em sentido lato.

E se é certo que o dolo (ainda que eventual) pressupõe a consciência do prejuízo ou do carácter danoso do facto, a mera culpa ou negligência basta-se com a omissão da diligência exigível do agente, sendo que, na negligência inconsciente (a que se verifica na maioria das situações da vida corrente), o agente não chega sequer a conceber a possibilidade de o facto se verificar (por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão), podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação se usasse da diligência devida[14].

Dispondo o artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, que A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, uma vez que a diligência relevante para a determinação da culpa é a de uma pessoa normal em face do circunstancialismo do caso concreto, no quadro do evento em apreciação, a pessoa padrão a que a lei se reporta terá de ser o proprietário de um edifício, que sendo constituído por fracções, as dá de arrendamento sabendo que as mesmas têm lareiras que permitem a combustão de lenha.
Tem-se, assim, por acertado o juízo de censura ético-jurídica por parte do acórdão quanto à conduta omissiva dos 1ºs Réus, pois que, em face do referido circunstancialismo, um proprietário medianamente diligente teria verificado o estado das condutas de saída de fumos das lareiras e teria procedido à sua limpeza sem deixar que aí se acumulasse fuligem.

Não tendo os Réus demonstrado qualquer facto tendente a excluir a sua culpa, há que concluir que tal omissão lhes é censurável por lhes ser exigível que tivessem agido de modo diverso.

Provada que se encontra a omissão ilícita e culposa dos 1.ºs Réus, sendo os danos incontroversos em face da realidade fáctica provada e tendo os mesmos resultado como consequência directa da referida conduta omissiva (o incêndio foi originado pela fuligem que se encontrava acumulada nas condutas de saída de fumos das lareiras em virtude da falta da sua limpeza que, ao ser sujeita a aquecimento, se incendiou - nexo de causalidade)[15], mostram-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil dos Recorrentes, recaindo sobre os mesmos a obrigação de indemnizar os Autores.

Ainda, quanto a esta parte, improcedem as conclusões do recurso dos Réus.

2.4 Do montante dos danos patrimoniais (recursos dos 1.os Réus e da Ré Seguradora);

Insurgem-se os Réus quanto à fixação, com recurso à equidade, da indemnização por danos patrimoniais, defendendo que, na falta de prova dos danos, a consequência devia ter sido a da absolvição do pedido nos termos do artigo 414.º, do CPC.

Sustentam, ainda e em qualquer caso, que o montante de 15.000,00€ fixado no acórdão recorrido se baseou em critérios abstractos e em considerações genéricas, não se encontrando tal montante justificado.

Vejamos.

Entendeu o tribunal a quo, sufragando o entendimento vertido nos acórdãos do STJ que cita, que não se sabendo o valor exacto dos danos e não se antevendo a possibilidade de, em sede de liquidação, ser apurado o valor exacto[16], a aludida indemnização teria de ser fixada segundo a equidade ao abrigo do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.

Lançando mão desse critério, atentas as circunstâncias do caso (tendo sido apurado que os bens não têm valor inferior a € 10.000,00 e tendo os peritos sido da opinião, apesar de não terem examinado os bens por eles não existirem, que muitos dos valores indicados pelos autores era razoável) o acórdão considerou equitativo fixar o montante indemnizatório em 15.000,00€.

Conforme o STJ vem repetidamente afirmando[17], quando o cálculo da indemnização tenha assentado decisivamente em juízos de equidade, não cabe ao Supremo Tribunal a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (na medida em que a aplicação de puros juízos de equidade, não traduz, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito), cabendo-lhe, contudo, controlar quer os pressupostos normativos do recurso à equidade, quer os limites dentro dos quais se situou tal juízo face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto.

Na verdade, nas situações em que tais pressupostos e limites não sejam respeitados (por o juiz ter apelado indevidamente à equidade num caso em que a lei lhe impunha a aplicação de critérios de índole normativa, extraídos da interpretação dos preceitos aplicáveis e/ou por ter extravasado os limites que tenham ficado provados), haverá já violação de lei, cuja apreciação se insere no âmbito dos poderes do STJ.

Quanto ao primeiro aspecto, relacionado com os referidos pressupostos normativos, o tribunal a quo ao considerar que seria inútil remeter a fixação da indemnização em causa para liquidação actuou com respeito pela lei, já que o juízo antecipatório feito no acórdão recorrido acerca da inutilidade da condenação em quantia a liquidar se encontra ampla e correctamente fundamentado, sendo, de resto, inteiramente conforme com a jurisprudência do STJ nesta matéria.

Concretizando.

Mostra-se pacífico o entendimento de que, uma vez assente a existência de um dano indemnizável (porque verificados todos os pressupostos da obrigação de indemnizar) sem que, porém, seja determinável o seu exacto montante, é possível optar-se por um dos mecanismos previstos na lei para superar a falta de determinação do referido valor: a liquidação posterior (artigo 609.º, n.º 2, do CPC) ou o julgamento de acordo com a equidade (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil). A opção por um ou outro desses mecanismos dependerá do juízo que, em face das circunstâncias concretas, se possa formular sobre a maior ou menor probabilidade da futura determinação do montante em questão; assim, se for de concluir no sentido da improbabilidade de vir a ser feita prova do valor exacto do dano em sede de liquidação, deve prevalecer, desde logo, o recurso à equidade[18].

Na situação sob apreciação o tribunal a quo, depois de ter ponderado que apesar de se ter realizado prova pericial os bens não puderam ser examinados pelos peritos (por, na sua esmagadora maioria, já não existirem), concluiu pela improbabilidade de se fazer prova do valor exacto desses bens e, nessa medida, recorreu desde logo à equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, ao invés de condenar em quantia a liquidar.

Em face do que se mostra considerado pelo acórdão recorrido a opção por que enveredou, para além de acertada, encontra-se devidamente fundamentada, impondo-se concluir no sentido de que se encontram preenchidos os pressupostos normativos a que se fez referência, improcedendo, nesta parte, as revistas.

Porém, relativamente aos limites do referido juízo equitativo, não podemos acompanhar o decidido pelo tribunal a quo.

Dispõe o artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, que Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (sublinhado nosso).

Decorre deste preceito que o recurso à equidade depende da prova de factos que balizem o juízo a fazer no caso concreto, sobretudo quando esteja em causa a fixação de indemnização por danos patrimoniais.

Há, na verdade, uma grande diferença entre o recurso à equidade para obter a quantificação de danos ligados à violação de bens eminentemente pessoais - danos morais, lesão do direito à vida – e o apelo a juízos equitativos para obter uma exacta e precisa quantificação de danos patrimoniais resultantes da inutilização ou privação de um bem material: é que, no primeiro caso, o recurso à equidade constitui elemento absolutamente essencial e insubstituível para avaliar o dano, representando o juízo equitativo um verdadeiro momento constitutivo na determinação da compensação adequada a tal tipo de danos; ao passo que, no segundo tipo de hipóteses, o recurso à equidade – consentido pelo art. 566º, nº3, do CC – desempenha uma função meramente complementar e acessória, representando um instrumento para suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um dano, inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exacto montante.

Daqui decorre que, enquanto em sede de avaliação do dano moral o que normalmente estará em causa num recurso de revista é verificar se o montante indemnizatório arbitrado - através do inevitável e decisivo apelo à equidade - como compensação da lesão de bens eminentemente pessoais se conforma com os padrões e critérios jurisprudenciais adequados, seguidos por uma jurisprudência actualista para situações idênticas ou equiparáveis à do caso concreto «sub juditio», a aplicação do regime prescrito no nº3 do art 566º do CC em sede de puros e típicos danos patrimoniais envolve, desde logo, a questão de saber se a indefinição factual acerca do real valor do dano sofrido é susceptível de suprimento através de uma ponderação equitativa; é que, como atrás se referiu, o apelo à equidade é, neste caso, puramente complementar e acessório da aplicação da teoria da diferença, pressupondo que o «núcleo essencial» do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado e quantificado – não devendo o juízo equitativo representar um verdadeiro e arbitrário «salto no desconhecido», dado perante matéria factual de contornos manifestamente insuficientes e indeterminados.

A previsão contida no referido preceito legal supõe, na verdade, o preenchimento de duas condições ou requisitos: não estar determinado apenas o «valor exacto» do dano mas terem sido provados «limites», máximo e mínimo, para esse dano – que não podem considerar-se verificadas quando, no momento do julgamento, ocorre uma essencial indefinição acerca do valor real do dano material sofrido, pressupondo a formulação do juízo complementar de equidade uma base factual minimamente sólida e consistente sobre os valores indemnizatórios em causa (…)[19].

Este tribunal tem vindo a sublinhar que, não equivalendo a equidade a arbitrariedade, a fixação de indemnização com recurso a esse juízo não pode surgir como expressão de sensibilidades ou intuições meramente subjectivas do julgador, tendo antes de se alicerçar em factualidade donde se possa, com base em padrões sedimentados na experiência comum, chegar a um valor racional[20].

Ora, em face da realidade factual dada como provada, apenas se encontra apurado com relevância para a formulação do juízo equitativo, que os haveres pessoais dos Autores ficaram queimados em consequência do incêndio e que o seu valor, que não foi concretamente apurado, não é inferior a 10.000,00€ (cfr. factos provados sob os pontos 6 e 10.).

Assim sendo, na falta de quaisquer outros elementos fácticos passíveis de complementar a materialidade acima descrita e balizar o juízo equitativo a leva a cabo no caso concreto quanto ao valor dos danos patrimoniais, somos de entender que a fixação da indemnização apenas se poderá ater ao único facto que, a esse propósito, foi dado como provado: o valor dos bens não é inferior a € 10.000,00.

Em consequência, uma vez que o juízo equitativo feito no acórdão recorrido extravasa os limites dos factos tidos por provados, nos quais não encontra suporte, há que reduzir a indemnização fixada a título de danos patrimoniais para a quantia de € 10.000,00 (artigo 566.º, n.º 3, do CPC).

De salientar que relativamente ao montante dos danos não pode merecer acolhimento o defendido pelos 1.ºs Réus no sentido de a indemnização ser fixada em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados nos termos do artigo 494.º, do Código Civil, pois que, para além de se tratar de uma faculdade e não de uma obrigação[21], a limitação da indemnização nos casos aí contemplados sempre dependeria da alegação e prova de factos tendentes a preencher os critérios previstos na referida norma e a permitir concluir que as circunstâncias do caso o justificariam, prova que, de todo, não foi feita.

Procedem, assim, nesta parte, as conclusões da revista da Ré Seguradora, e, parcialmente, a revista dos 1.ºs Réus.

2.5 Da responsabilidade da Ré Seguradora (recurso da Ré Seguradora):

Resta, por fim, apreciar se os danos em causa estão excluídos das coberturas do seguro celebrado, tal como sustenta a Recorrente.

Desde já se adiante que a Ré carece de razão, porquanto a interpretação que faz da cláusula 1.ª da cobertura, referente à “Responsabilidade Civil Proprietário ou Inquilino/Ocupante” não tem qualquer correspondência no texto do documento que constitui as condições específicas da apólice do Seguro Multiriscos Habitação e que resultou provado; como tal, não pode valer com o sentido que lhe pretende dar (artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil).

Com relevância para a apreciação desta questão mostra-se provado que:

- por contrato de seguro titulado pela apólice ….., o 1.º Réu, na qualidade de proprietário do imóvel, celebrou com a companhia de seguros Tranquilidade um contrato de seguro multirriscos habitação, que entrou em vigor em 21-09-2013 e cujas condições foram dadas por reproduzidas no ponto 3. dos factos provados;

- de acordo com as Condições Gerais da apólice, o contrato de seguro celebrado regula-se pelas Condições Gerais e Particulares e, quando contratadas, pelas Condições Especiais que prevêem regimes específicos de cobertura ou a cobertura de outros riscos e ou garantias além dos previstos nas Condições Gerais (cf. pontos 1. e 4. da cláusula preliminar).

- de acordo com as mesmas Condições Gerais, o contrato celebrado destina-se a cumprir a obrigação de segurar os edifícios constituídos em regime de propriedade horizontal (fracções autónomas e partes comuns) contra o risco de incêndio, podendo, no entanto, o contrato garantir, para além dessa cobertura, a título facultativo, bens aí não enquadráveis e outros riscos nos termos previstos nas Condições Especiais e Particulares (cfr. cláusula 2.ª, pontos 1 e 4, das Condições Gerais);

- consta, além do mais, das Condições Particulares da apólice, a cobertura de responsabilidade civil do proprietário até ao montante de € 100.000,00, sem franquia;

- a Condição Específica referente à Responsabilidade civil Proprietário ou Inquilino/Ocupante, tem a seguinte redacção:

Cláusula 1.ª – Âmbito da Cobertura

1. A presente Condição Especial garante a Responsabilidade civil extracontratual do Segurado na qualidade de proprietário ou inquilino/ocupante.

2. A garantia abrange, até ao limite de capital seguro constante nas Condições Particulares, os danos patrimoniais ou não patrimoniais, directamente decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros, em consequência da propriedade do imóvel seguro, bem como decorrentes da sua qualidade de inquilino ou ocupante do local de risco.

Cláusula 2.ª – Exclusões

Sem prejuízo das exclusões previstas nas Condições Gerais aplicáveis à presente cobertura, não ficam garantido:

(…)

b) Os danos sofridos pelo Segurado e pelo seu agregado familiar.

Resulta, pois, com evidência destas cláusulas que os Autores, sendo inquilinos do imóvel seguro, são, para este efeito, terceiros.

Na verdade, a tese da Recorrente no sentido de o contrato de seguro em questão garantir também a responsabilidade extracontratual dos inquilinos ou ocupantes é totalmente desprovida de sentido e não encontra, sublinhe-se, qualquer apoio no texto da apólice.

A responsabilidade extracontratual que está garantida pelo contrato é apenas a do segurado que, no caso, coincide com o tomador do seguro, qualidade essa que os Autores não têm uma vez que não foram eles que celebraram com a Ré o contrato de seguro.

Por outro lado, igualmente carece de cabimento o argumento no sentido de que está em causa uma cobertura obrigatória e que, não tendo sido contratada a cobertura facultativa para danos causados ao recheio, apenas o imóvel constitui objecto do seguro.

É que, tal como decorre dos factos acima descritos, não se está aqui no âmbito da cobertura obrigatória, mas antes no domínio da cobertura facultativa de responsabilidade civil e esta, contrariamente ao que sucede com aquela outra, tem um âmbito completamente distinto, abrangendo os danos patrimoniais ou não patrimoniais, decorrentes de lesões causadas a terceiros, em consequência da propriedade do imóvel seguro (artigos 137.º, e 138.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16-04).

É, pois, esta a única interpretação possível das cláusulas a que se fez alusão, quer por ser a que encontra expressa correspondência no texto da apólice de seguro em causa, quer por ser a que traduz o sentido que qualquer declaratário normal, colocado na posição dos 1.ºs Réus, delas retiraria (artigos 236.º, e 238.º, n.º 1, do Código Civil).

Consequentemente, estando garantida, por força do contrato de seguro celebrado, a obrigação de indemnizar terceiros (como sucede com os Autores), improcede, nesta parte, a revista da Ré Seguradora.

IV. DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedentes os recursos de revista interpostos, respectivamente pelos 1.ºs Réus e pela Ré Seguradora; consequentemente, alterando o acórdão recorrido na parte atinente à indemnização por danos patrimoniais, condena-se os Réus no pagamento aos Autores da quantia de 10.000,00€ (dez mil euros), a esse título, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, mantendo, no mais, a decisão recorrida.

Custas (da acção e do recurso) pelos Autores e Réus, na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que aqueles beneficiam.


Lisboa, 7 de Julho de 2021

Graça Amaral (Relatora)

Maria Olinda Garcia

Ricardo Costa

Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] Nos casos em que a oposição é meramente aparente e resulta apenas de o juiz ter escrito coisa diversa da que queria escrever - Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, Artigos 658.º a 720.º, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 126 e ss., p. 141.
[2] A lei é, aliás, expressa ao preceituar que das decisões da Relação reportadas à modificabilidade da decisão de facto não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 662.º, n.º 4, do CPC).
[3] Cfr. entre outros, acórdão do STJ de 19-09-2017, Processo n.º 3805/04.0TBSXL.L1.S1, com sumário disponível em www.stj.pt.
[4] Dispunha, por sua vez, o artigo 712.º, n.º 1, do anterior CPC, que “A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”. (sublinhado nosso). A alteração da redacção evidencia o propósito inequívoco do legislador de assegurar um efectivo segundo grau de jurisdição em sede de julgamento da matéria de facto.
[5] Cfr. entre outros, acórdão deste Tribunal de 06-12-2016, Processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ.
[6] Lançando mão dos deveres e poderes legalmente consagrados, nomeadamente os que decorrem dos princípios da livre apreciação (artigo 607.º, n.º 5, do CPC) e da aquisição processual (artigo 413.º do mesmo Código),
[7] Cfr. neste sentido, acórdão 09-02-2017, Revista n.º 8228/03.5TVLSB.L1.S2, acessível através das Bases Documentais do ITIJ; Cfr. ainda Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2014, p. 230 e ss..
[8] Cf. despacho saneador de 04-06-2018.
[9] No sentido exposto e a propósito das respostas explicativas cfr. acórdão do STJ de 06-12-2012, Processo n.º 871/06.7TBPMS.C1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[10] Aprovado pelo DL n.º 220/2008, de 12-11, na redacção em vigor à data dos factos.
[11] Aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16-12, na redacção em vigor à data dos factos.
[12] Destinadas a manter uma edificação nas condições existentes à data da sua construção, reconstrução, ampliação ou alteração.
[13] Antunes Varela, Direito das Obrigações em Geral, vol. I, 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 1994, p. 576 e ss.
[14] Cf. Antunes Varela, obra citada, p. 579 a 583.
[15] Cf. factos provados sob os pontos 6. in fine, 9., 10.
[16] Uma vez que já se realizou, nos autos, prova pericial e os bens, na sua esmagadora maioria, não puderam ser examinados por já não existirem.
[17] Cfr. entre outros, acórdãos de 15-09-2016, Processo n.º 492/10.0TBBAO.P1.S1 e de 23-02-2021, Processo n.º 91/13.4TBSCD.C1.S1, a que se poderá aceder através das Bases Documentais do ITIJ.
[18] Cf. acórdão do STJ de 23-02-2021, Processo n.º 4335/16.2T8BRG.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[19] Cfr acórdão do STJ de 28-10-2010, Processo n.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[20] Cfr. acórdão de 21-04-2016, Revista n.º 2138/03.3TCSNT.L1.S1, a cujo sumário se pode em www.stj.pt.
[21] Como se retira da expressão “poderá” contida no normativo em análise.