Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2374/20.8T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DANO MORTE
PROGENITOR
UNIÃO DE FACTO
DESCENDENTE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DE COGNIÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. O n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil deve ser interpretado, depois de 1 de Maio de 2019, como permitindo que seja equiparado a filho o enteado que viveu com a vítima desde os 2 anos de idade e com quem se relacionada como se de um pai se tratasse, não se justificando a manutenção da ignorância das novas formulas de vivência familiar dos tempos modernos, ainda que o enteado não tenha sido adoptado ou apadrinhado pelo falecido.

II. Na definição do quantum indemnizatório devido por danos que são apurados com recurso à equidade a intervenção do STJ deve ser limitada à verificação do cumprimento da lei, do recurso aos critérios habituais usados na aferição jurisprudencial e aos princípios do tratamento igualitário e não injustificado.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO

1. AA, viúva, por si e na qualidade de representante legal de seus dois filhos menores, consigo residentes, BB e CC, e DD, solteiro, estudante, residente com a mãe/1ª A. vieram propor contra Lusitânia, Cª de Seguros S.A., acção declarativa, com processo comum, para pagamento de indemnização emergente de acidente de viação, pedindo, a final:

- se declararem os AA. como únicos e universais herdeiros da vítima mortal de acidente de viação e seja a Ré condenada a pagar-lhes quantia global não inferior a €1.108.938,10, valor acrescido de juros, calculados com base no dobro da taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.


2. Para fundamentar as respectivas pretensões invocaram, em síntese, a ocorrência de um sinistro rodoviário, pela produção do qual foi responsável culposo o condutor do veículo seguro na Ré, do qual veio a resultar o falecimento do sinistrado, marido, pai e padrasto dos AA..

Sustentam, consequentemente, a titularidade do direito à indemnização nos seguintes termos:

- Pelos danos morais próprios da vítima antes de morrer, a 1ª, a 2ª e o 3º AA. Reclamam o pagamento da quantia de €50.000,00, louvando-se em lugares paralelos e sempre menos graves da jurisprudência nacional;

- Pela perda do direito à vida a 1ª, a 2ª e o 3º AA. reclamam o pagamento da quantia de €150.000,00;

- A título de dano moral próprio, a 1ª A./viúva reclama a quantia de €60.000,00, cada um dos AA. filhos do EE reclamam a quantia de €50.000,00; já o 4º A./DD, a quantia de €30.000,00;

- A título de dano futuro emergente da perda da contribuição patrimonial do falecido, todos quantia global nunca inferior a €717.673,10.

A Autora mais reclamou o custo da realização do funeral e preparação da campa, no valor de €1.265,00.

Sempre a liquidação a dobrar dos juros vem fundamentada no disposto no artigo 38º, nº 2, do DL 291/2007, de 21/08.


3. A Ré contestou, aceitando a responsabilidade do seu segurado na produção do sinistro, sustentando, a um tempo, o exagero da liquidação dos danos feita pelos AA, a não titularidade do direito pelo enteado e sempre a insubsistência da pretensão de indemnização pela perda do salário do sinistrado.


4. Dispensada a audiência prévia, elaborou-se despacho saneador, no qual se aferiram positivamente a totalidade dos pressupostos processuais e se seleccionou a matéria assente e controvertida com interesse para a decisão da causa.


5. Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“...julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condeno a Ré a satisfazer:

- a título de indemnização pelos danos morais próprios da vítima antes de morrer, aos 1ª, e o AA. a quantiade 25.000 EUR;

- a título de indemnização pela perda do direito à vida aos 1ª, e o AA. a quantia de €130.000,00;

- a título de indemnização pelo dano moral próprio, 40.000 EUR à Autora viúva, 30.000 EUR, a cada um dos e AA., seus filhos e ao Autor, enteado da vítima, a quantia de 18.000 EUR;

- a título de indemnização pelo dano emergente da perda da contribuição patrimonial do falecido, 390.000 EUR à Autora; 4.000 EUR ao A., FF; 57.000 EUR ao Autor, CC e à Autora, BB, o montante de 129.000 EUR, tudo no montante global de 580.000 EUR;

- a título de indemnização com a despesa com o funeral e campa, 1.265 EUR, à Autora.

São devidos juros sobre as quantias fixadas, ao dobro da taxa legal relativa aos juros das obrigações civis, a contar da data da presente decisão e até integral pagamento.

Naturalmente que a reduzir ou descontar às indemnizações arbitradas os valores que vêm sendo satisfeitos no quadro da decisão proferida nos autos de procedimento cautelar apensos.

Custas na proporção do decaimento.”


6. Não se conformando a Ré com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação, tendo ocorrido impugnação da matéria de facto apurada e da solução jurídica encontrada, recurso que foi conhecido e culminou com a seguinte decisão:

Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, considerando a culpa total da condutora do veículo segurado, altera-se a sentença, condenando-se a R. seguradora nos seguintes termos:

a) - a título de indemnização pela perda do direito à vida do falecido EE: aos 1ª, 2ª e ao 3º autores a quantia de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros);

b) - a título de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios da vítima desde o momento do acidente até à sua morte: aos 1ª, 2ª e o 3º autores a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros);

c) - a título de indemnização pelo dano moral próprio: € 30.000 (trinta mil euros) à Autora viúva, € 25.000 (vinte e cinco mil euros) a cada um dos 2º e 3º autores, filhos da vítima, revogando a sentença na parte em que, a esse título, condenou a ré a pagar ao 4º autor, enteado da vítima, a quantia de €18.000,00, absolvendo aquela de tal pedido;

d) - a título de indemnização pelo dano emergente da perda da contribuição patrimonial do falecido: €267.000,00 (duzentos e sessenta e sete mil euros) à 1ª Autora, AA; € 78.000,00 (setenta e oito mil euros) à 2.ª autora, BB; € 43.000,00 (quarenta e três mil euros) ao 3.º autor, CC; € 1.000,00 (mil euros) ao 4º autor, FF.

Em tudo o mais, mantém-se a sentença, nomeadamente quanto aos juros, os quais passam a ser devidos a partir da data do presente acórdão.

Custas da apelação: por apelante e apelados, na proporção do respectivo decaimento (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil).”


7. AA e outros, AA./Recorrentes nos autos, não se conformando com o Acórdão de fls … , dele interpuseram recurso de revista, a título principal, com efeito devolutivo, no qual constam as seguintes conclusões (transcrição):

“1ª Os Recorrentes discordam das indemnizações arbitradas a título de dano morte/direito à vida; de danos morais dos próprios AA.; da arbitrada a título de dano moral da própria vítima; a título de dano patrimonial futuro e da condenação no dobro da taxa de juros apenas desde a prolação do Acórdão em crise.

2ª Sabemos que nenhuma indemnização trará o EE de volta, todavia, também sabemos e vamos tentar justificá-lo, que é importante e possível, compensar bem melhor e da forma efetivamente mais equitativa a família dos AA.

3ª Não temos dúvidas de que Vªs Exªs – Senhores Conselheiros – querem o melhor e querem que os cidadãos deste País sejam tratados de forma justa e equitativa. Por assim pensarmos e acreditar-mos apelamos para que tenham em consideração aquela que foi a posição do Estado Português na indemnização atribuída aos familiares do ucraniano Ihor Homeniuk – ressarcimento que se cifrou em 712.950€, de imediato, e no pagamento de pensão até os menores perfazerem os 28 anos, ascendendo, por isso, ao montante de 834.000,00€.

4ª Da mesma forma que a recomendação do Sr. Provedor de Justiça, na dramática situação de Entre-os-Rios passou a fazer “escola” nos nossos Tribunais, pensamos que recentíssimo caso do Ihor Homeniuk deverá ser levado em consideração. Trata-se, sem margem para dúvidas, de uma decisão que visa compensar os danos globais resultantes para a sua mulher e para os seus dos dois filhos.

O EE era mais novo que o Ihor. Deixou a mulher, dois filhos e um enteado – não merece, por isso, tratamento tão diferente.

5ª Os R.tes deduziram pedido de 1.108.938,1€ - em 1ª instância foi fixada a quantia 854.265,00€, mais juros no dobro da taxa legal, contabilizados desde a data da sentença. O TRP reduziu o valor da indemnização para o montante de 575.265,00€.

6ª Foi demais! Por isso, a decisão da 1ª instância, tendo em consideração a tragédia dos autos, deverá, por ser obviamente mais justa e equitativa, ser “repristinada”.

7ª Da indemnização arbitrada a título de dano morte/direito à vida. A este título os R.tes peticionavam a quantia de 150.000€, O Tribunal a quo condenou em 130.000€. O Tribunal da Relação do Porto reduziu para a quantia de 85.000€. Esta redução não é justa nem adequada à tragédia dos autos e à matéria de facto assente.

8ª O Tribunal de primeira instância, na fixação da indemnização levou em consideração a matéria de facto assente e a posição da mais recente jurisprudência. A este propósito vejam-se os acórdãos supra citados, de que se indica parte – o Acórdão do TRL, de 30.06.2020, proc. 65/17.6GTALQ-5, que fixou a quantia de “150.000,00€, a repartir em partes iguais pela companheira e filhos, sendo, portanto, devidos 50.000,00€ a cada um dos demandantes.”; o Acórdão do STJ, de 22.02.2018, proc. 33/12.4GTSTB.E1.S1, que considerou adequado o valor de 120.000,00€ fixado pelo acórdão recorrido da relação.”

9ª Somos da opinião que repristinando a sentença de 1ª instância e condenando em 130.000,00€ pelo direito à vida do EE sentenciar-se-á de forma mais justa e equitativo do que atribuindo os 80.000€ fixados pelo TRP.

10ª Do Dano moral da própria vítima - Os R.tes peticionavam a este título 50.000€. O Tribunal de 1ª instância condenou em 25.000€. O TRP decidiu reduzir para os 20.000€. Também aqui, tendo em consideração as graves lesões sofridas e o tempo que mediou entre a data do evento e a morte do EE, o montante fixado pela 1ª instância nos parece mais justo – veja-se, a este propósito, o Ac. do STJ5, de 22.02.2018, Proc. 33/12.4GTSTB.E1.S11 em que é Relator o Conselheiro Manuel Braz, e em que, numa situação de morte no próprio dia do evento atribuiu 30.000€ de indemnização.

11ª Danos morais dos próprios AA. – A este título os R.tes peticionavam as seguintes quantias: 60.000€ para a viúva, 50.000€ para cada um dos filhos. A 1ª instância condenou em €40.000,00 (para a viúva), €30.000,00 (para cada um dos filhos) e €18.000,00 (para o enteado). O TRP reduziu para 30.000€ e 25.000€ (para cada um dos filhos) e excluiu o enteado.

12ª Apesar de existirem condenações em valores superiores aos atribuídos pela 1ª instância, entendemos que tais condenações são equitativas. O que nos custa aceitar é o porquê da redução operada nos valores fixados pelo TRP e a exclusão da indemnização atribuída ao enteado (A. -DD).

13ª É importante constatar que o conceito de família tem vindo a sofrer alterações nos últimos anos. Não existe uma família, existem, isso sim, uma diversidade de tipos de famílias: adotivas; de acolhimento; step families (com padrasto ou madrasta e enteados), monoparentais, etc. Na sociedade atual há mais casais sem filhos, mais divórcios, mais agregados monoparentais, há os pais biológicos, os pais sociais, os novos meios-irmãos e os novos filhos que nascem do novo casal, constituindo as famílias recompostas que surgem com o desmembramento de outras famílias, do que resulta que o conceito tradicional de família está a mudar e já não temos o modelo de ideologia e de moral familiar existente à data de entrada em vigor do Código Civil vigente (1967).

14ª Tendo em consideração que o A. DD tinha uma relação com o EE igual à dos irmãos e que, na prática, perdeu o efetivo pai no acidente sub judice, será de extrema injustiça que não venha a ser indemnizado. Não temos quaisquer dúvidas que será essa a interpretação que se irá consolidar no futuro. A título meramente comparativo recordemos as divergências jurisprudenciais a propósito da possibilidade, ou não, da concorrência da culpa com o risco (responsabilidade objetiva). Hoje é pacificamente aceite a interpretação de que o art. 505º do CC permite tal concorrência.

Sem inovação, sem disrupção, estaríamos na idade da pedra…

15ª Danos Patrimoniais futuros - A este título os R.tes peticionavam a quantia de €717.673,10. O Tribunal de 1ª instância condenou na quantia de 580.000,00€. O TRP reduziu a indemnização para o montante de 389.000€.

16ª O Tribunal da Relação do Porto alterou em aspetos de pouca relevância os pontos RR) e UU). Como que que seja, é facto notório que os aqui R.tes viviam essencialmente com o salário que o EE auferia.

17ª Estamos perante um agregado familiar de 5 pessoas (considerados já família numerosa) e que, à data do sinistro, viviam com o salário do EE de 1.539,45€, ao qual acrescia o subsídio de desemprego da A. – mera prestação social temporária – no valor de 438,81€.

18ª O EE trabalhava no estrangeiro e tinha todas as despesas (alojamento, alimentação e transportes incluídos). Por isso, no caso concreto, retirar um 1/3 do salário do falecido para despesas suas consubstancia manifesto exagero. Assim, entendemos que mesmo aceitando as alterações à matéria de facto introduzidas, estas não justificam a exagerada redução ao montante indemnizatório fixado pelo TRP.

19ª O EE auferia um salário mensal de €1.539,45; prestava, por vezes, horas extras aos sábados; falava francês, por isso, atentas estas efetivas circunstâncias, tudo levava a crer que tinha boa margem de progressão na carreira em termos de vir a auferir valores salariais bem mais elevados.

20º Quanto ao facto dos AA. receberem a indemnização de uma só vez, veja-se nomeadamente o recente Acórdão do STJ, de 13.05.2021, Proc. nº 2908/18.8T8PNF.P1.S1, em que é Relatora a Conselheira Maria de Fátima Gomes e no qual se defende, justificadamente, não ser de operar qualquer “desconto, por o pagamento de uma só vez não potenciar um enriquecimento do lesado, posição com a qual se concorda.”.

21ª Assim, mesmo admitindo que o EE gastasse uma pequena parte do seu rendimento, é preciso ter em conta que estamos perante um agregado familiar numeroso, desprotegido com o do EE e que será pouco provável que venha a conseguir potenciar o capital que venha a receber de uma só vez, tendo em consideração as taxas de juro negativas.

Por outro lado, também é importante não esquecer que o EE, mesmo após a maioridade dos seus filhos, poderia, como é habitual, continuar a aumentar o património da família com o seu trabalho, situação que, em tese, poderia vir, no futuro, a beneficiar os filhos e, mais tarde, a herança a partilhar.

22ª Tomando em consideração o salário do EE (€1539,45 x 12 = €18.473,40), a sua idade (33 anos), a esperança de vida dos homens (79 anos), o facto de este auferir valores adicionais (não concretamente apurados) com a trabalho extra e a eventual progressão na carreira e, por último, multiplicando o acima indicado rendimento anual pelo número de anos de esperança de vida (18.473,40€ x 46) atingimos – sem considerar valores extra e a própria progressão salarial – o montante de 849.776,40€.

23ª A estimativa de valores adequados a prevenir a perda patrimonial futura deve ter em conta o acerto das previsões que têm vindo a ser feitas, designadamente, desde há 40, 30, 20 ou 10 anos.

A ponte de Entre-os-Rios ruiu em 04/03/2001 – fez de 21 anos há relativamente pouco tempo. Naquela altura passou a atribuir-se pelo direito à vida a quantia de €50.000,00. Em 2001 o salário mínimo era de €334,00; na atualidade – em 2022 – é de €705,00!

Entre 2015 e 2022 o salário mínimo português passou de €505,00 para €705,00, isto é, subiu 39,6%.

24ª As estimativas de cálculo que presidem ao apuramento dos valores das perdas patrimoniais futuras devem ter sempre em conta o passado. Por assim ser, impõe-se a quem opera tais cálculos – neste caso ao julgador – que reflita sobre o efetivo acerto ou desacerto das estimativas passadas.

Ora quanto a isso, é facto notório que as mesmas pecaram redondamente por defeito!

25ª No 2º e 3º § da pág. 43, o TRP fez constar o seguinte: “3.2.4. O dano (presente e futuro) emergente da perda de rendimento do cônjuge, dos filhos e do enteado da vítima.

De acordo com o n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil, “têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”.”.

Ora, conforme se alcança do Acórdão do Tribunal Constitucional acima citado, não é essa a asserção mais correta da perspetiva atual do ressarcimento dos danos patrimoniais objeto da demanda dos autos. Não é, por isso, apenas uma questão de alimentos devidos à viúva e aos filhos. É bem mais do que isso!

26ª A indemnização fixada pelo Venerando TRP no montante de 389.000,00€ é escassa. Se dividirmos o indicado montante pela quantidade de anos respeitante à esperança de vida do EE, atingimos o valor anual de 8.456,00€, o que dá a quantia mensal de 704,00€ para toda a família (montante inferior ao salário mínimo nacional!).

Assim, parece-nos justa e equitativa a indemnização fixada pelo Tribunal a quo – no montante de €580.000,00 – valor que, por isso, deverá vir a ser “recuperado” pelo Supremo Tribunal de Justiça.

27ª Condenação no dobro da taxa de juros: a condenação no dobro da taxa de juros consubstancia uma sanção pelo incumprimento dos deveres a que a R.da estava obrigada.

Por isso, ao abrigo de uma interpretação racional e equitativa da norma deverá a taxa de juros em dobro ser fixada desde a data da citação ou, no limite, desde a data da sentença de primeira instância. Caso contrário, ao fixar-se os juros desde a prolação do Acórdão o caracter sancionatório da norma perde todo o seu efeito útil – o que é inaceitável e incompreensível!

28ª Os teores inscritos pelo TRP na pág. 57, penúltimo § e na pág. 59, 3º §, com o devido respeito, parecem-nos, de facto, contraditórios. A 2ª conclusão anula a 1ª, uma vez que, na prática, não só não mantém a sentença “quanto aos juros fixados (em duplicação)” como até os elimina. Ao abrigo do princípio prescrito (para o Tribunal) no artigo 9.º-A do CPC, como diz o povo, no que diz respeito à fixação de valores indemnizatórios, o TRP esteve em tudo a puxar para trás!


8. Foram apresentadas contra-alegações ao recurso dos AA., procurando demonstrar a sua improcedência, e veio interposto recurso subordinado, na mesma peça processual, onde se conclui (transcrição):

I. O Acórdão recorrido não pode manter-se, uma vez que não consubstancia a justa e rigorosa interpretação das normas legais e dos princípios jurídicos competentes;

II. Entende a ora Recorrente que a decisão ora colocada em causa violou o disposto nos artigos 483.º, 487.º, 494.º, 496.º, n.º 3, 562.º, 564.º, n.ºs 1 e 2, 1877.º, 1878.º, 1879.º, 188.º, e 2009.º do Código Civil e, bem assim, no artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que faça a correcta aplicação do direito;

III. Por brevidade e economia processual remete-se para o teor da matéria de facto provada e não provada;

IV. Após longa e detalhada análise da Jurisprudência proferida em acidentes similares ao que se encontra em apreço nos autos, entende a Recorrente que a decisão proferida propendeu para uma flagrante situação de enriquecimento despropositado dos lesados, agravada pela, injustificada, injusta e infundada, condenação do pagamento de juros em dobro;

V. Embora esteja consolidado na Jurisprudência a orientação de que, em caso de morte, podem ser atendidos, além dos danos patrimoniais, o dano perda do direito à vida, o dano sofrido pela vítima no lapso temporal que antecedeu o seu falecimento e os danos próprios sofridos pelos familiares, e que, no fundo, corresponde ao pedido formulado pelos Autores, não pode o valor indemnizatório ser fixado de forma arbitrária e injusta, traduzindo um manifesto enriquecimento ilícito dos lesados à custa do património da responsável civil;

VI. Na fixação do quantum indemnizatório, em sede de responsabilidade civil por actos ilícitos, será conveniente ter-se particular com vista ao cumprimento de um regime jurisprudencial de segurança, igualdade e equidade na realização da justiça, seja na perspectiva dos danos não patrimoniais (cfr. artigo 496.º do Código Civil), ou dos danos patrimoniais (cfr. artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil);

VII. Na fixação do valor do dano patrimonial, como no cálculo do dano não patrimonial, há necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procuração de uma interpretação e aplicação uniformes do Direito (cfr. artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil), não incompatível com a devida atenção às circunstâncias de cada caso concreto;

VIII. Relativamente aos danos não patrimoniais não podemos perder de vista os ensinamentos dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela em cujo Código Civil Anotado, Volume I, em alusão ao artigo 496.º do Código Civil, e, bem assim, o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 21.03.2019, no âmbito do Processo n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1;

IX. Entende a Recorrente, e não obstante a gravidade dos factos em apreço nos autos, a decisão proferida, no que aos danos não patrimoniais diz respeito, desconsidera, de forma flagrante, as defendidas regras “da boa prudência, do bom sendo prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”, impondo-se, pois, nos termos do presente raciocínio a sua revogação e alteração por outra decisão que respeite os critérios definidores da justa responsabilidade da Recorrente, impondo-se, por essa razão, a redução dos valores condenatórios nos termos propugnados no presente recurso, à luz  das exigências do princípio da igualdade;

X. A tutela do direito à vida, material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto, encontra-se reconhecido no artigo 70.º do Código Civil e no artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa;

XI. Na aferição do montante indemnizatório a atribuir, o Tribunal deverá seguir os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados de forma a não colocar em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualmente, em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil;

XII. Da análise da Jurisprudência proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, colhe-se a orientação de que a indemnização do dano pela perda do direito à vida se situa, em regra, em valores que oscilam entre os € 50.000,00 e os € 80.000,00 (a título de exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.06.2020, Proc. n.º 43/16.2GTBJA.E1.S1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2009, Proc. n.º 476/07.5TBVLC.P1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2013, Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 03.03.2021, Proc. n.º 3710/18.2T8FAR.E1.S1, todos disponíveis e, www.dgsi.pt);

XIII. O valor indemnizatório decorrente do dano da perda do direito à vida arbitrado em € 85.000,00 é, no caso concreto, ainda assim desadequado, desajustado e desapropriado e extravasou a margem de liberdade consentida pelo recurso à equidade;

XIV. Tal valor deve ser substancialmente reduzido, considerando as circunstâncias apuradas nos autos, os critérios estatuídos no n.º 3 do artigo 496.º do Código Civil, e, bem assim, os critérios orientadores da mais recente Jurisprudência, para valor não superior a € 70.000,00;

XV. O valor da indemnização fixada a propósito dos danos morais da própria vítima antes de morrer, ou dano pré-morte - € 20.000,00, é manifestamente excessivo e desatende às circunstâncias do caso concreto e apuradas nos autos;

XVI. Não obstante a gravidade das lesões sofridas, os tratamentos a que foi sujeito o falecido EE, o número de dias em que se encontrou internado, entre outros, não foi possível apurar qual a percepção de que a infeliz vítima teve do acidente e dos acontecimentos que o sucederam – internamento, tratamentos;

XVII. Por brevidade e economia processual, a este propósito, remete-se para os pontos M), N), Z) e AA) dos factos assentes e, bem assim para os pontos 1, 2, 3 e 4 da matéria dada como provada;

XVIII. Constitui entendimento pacífico no seio da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que os valores a fixar, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil, variam em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente das lesões sofridas, da intensidade das dores sofridas, do período de tempo durante a qual as dores se prolongam e do eventual pressentimento da morte, salientando-se, a este propósito, o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 28.11.2013 e, bem assim, o recente Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27.04.2021,  Processo n.º 1123/19.8T8PVZ.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt;

XIX. Atento o facto de não ter resultado provado que o falecido EE teve consciência da gravidade das lesões sofridas no acidente, dos tratamentos ministrados, de que ia morrer ou, sequer, de se ter apercebido que corria risco de morrer implica a redução do valor arbitrado para a quantia de € 10.000,00, sob pena de violação do princípio da igualdade e da equidade;

XX. Os valores fixados a título de danos não patrimoniais próprios dos 1.ª, 2.º e 3.ª Autores são, ainda, excessivos e desajustados, não tendo o Tribunal tido em linha de consideração, na sua fixação, “todas as regras de boa prudência, de bom sendo prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida” (cfr. Código Civil Anotado, Volume I, pág. 501, Professores Antunes Varela e Pires de Lima);

XXI. Considerando algumas das soluções que têm vindo a ser assumidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no que respeita aos montantes atribuídos como compensação dos danos não patrimoniais decorrentes da perda de progenitor:

14.11.2002, Proc. n.º 3316/02 – a cada filho € 10.000,00;

03.03.2005, Proc. n.º 281/05, € 10.000,00, a cada filho;

da perda de cônjuge:

14.11.2002, Proc. n.º 3316/02 – € 10.000,00;

09.06.2005, Revista 1096/05 - € 14.963,94,

a redução de tais valores ser para o montante de € 25.000,00 para a 1.ª Autora e de € 20.000,00 para cada um dos 2.º e 3.º Autores é, no caso em apreço, justo e equitativo;

XXII. A forma de cálculo usada pelo Tribunal para a determinação do dano patrimonial não só alicerça em premissas erradas, como determina a condenação da Recorrente no pagamento de uma indemnização infundada, excessiva e desproporcional;

XXIII. Partindo do disposto no n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil, é manifesto que o prejuízo a indemnizar é somente o da perda de alimentos decorrente da falta da vítima, ou seja, a responsável civil não pode ser condenada em prestação superior (quer no valor, quer na duração) àquela que o lesado suportaria se fosse vivo, sem nunca perder de vista os limites decorrentes da recíproca obrigação alimentar entre os cônjuges (dever de assistência) e, bem assim, da maioridade e independência dos filhos;

XXIV. Não podemos perder de vista o critério a utilizar para efeitos de fixação da indemnização pelo dano futuro (cfr. Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 3 de Março de 2021, Proc. n.º 3710/18.2T8FAR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt);

XXV. O Tribunal deveria ter alicerçado, desde logo, o seu raciocínio não na esperança média de vida fixada, em 2021, para os homens – 77,95, mas sim a na esperança média activa de 70 anos;

XXVI. Não obstante tenha ficado apurado que, no mês anterior ao acidente, o falecido EE auferiu o salário líquido de € 1.476,15, não ficou demonstrado qual o valor efectivo do salário líquido em 2020, por falta de prova por parte dos Autores, pelo que deveria o Tribunal ter-se socorrido da declaração de rendimentos de 2019, ou seja, deveria ter considerado o valor líquido anual de € 13.257,00, correspondente a € 1.104,75 mensal, ao qual deveria ser deduzido 1/3 correspondente aos gastos pessoais do falecido EE, num valor apurado de € 736,50;

XXVII. O Tribunal, igualmente, não teve em consideração, o aumento das despesas de saúde com a vítima decorrentes do seu envelhecimento, as eventuais situações de desemprego e/ou redução do salário anua, a necessária comparticipação da 1.ª Autora nas despesas do agregado familiar; e a rentabilização/capitalização da indemnização recebida de uma só vez;

XXVIII. O montante indemnizatório fixado a este propósito, é, ainda assim, desproporcionado e violador dos princípios da igualdado e da equidade, afastando-se, de forma substancial e injustificada, dos critérios e/ou padrões generalizadamente seguidos pela actual Jurisprudência e colocando em causa a segurança na aplicação do direito (cfr. o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 07.05.2020, disponível em www.dgsi.pt);

XXIX. Tanto mais que, na senda do que tem vindo a ser o entendimento Jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, atento o recebimento imediato e na totalidade da indemnização é ajustado e equitativo aplicar uma redução ao valor indemnizatório a atribuir aos Autores, aplicando uma percentagem de desconto no intervalo de 10% a 33% (cfr. os Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em 04.06.2020, Proc. n.º 43/16.2GTBJA.E1.S1 e em 28.05.2020, Proc. n.º 16/15.2GTCBR.C1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt);

XXX. Assim alcançado o ponto de partida para encontrar, com base num juízo justo e equitativo, o valor da indemnização devida aos Autores e a percentagem de desconto, a aplicar por conta do recebimento imediato e da totalidade da indemnização é manifesto que a indemnização fixada nesta instância a título de dano patrimonial deve ser substancialmente reduzida de acordo com os dados concretos dos autos;

XXXI. A Recorrente propõe, a este título, uma indemnização global, nunca superior a € 250.000,00, a repartir pelos herdeiros do falecido, mulher e filhos, tendo por referência a data em que estes atinjam os 22 anos, idade que se ficciona, por ausência de qualquer outro elemento, como sendo a da sua emancipação laboral;

XXXII. Ao 4.º Autor FF não é devido qualquer valor a este propósito, uma vez que a simples razão de afinidade não determina a obrigação de prestar alimentos por parte do falecido EE, tanto mais que essa obrigação recai sobre os Pais do referido Autor;

XXXIII. Dos autos não consta de que forma foi/é exercido o poder paternal quanto ao Autor, nem os alimentos pagos pelo seu Pai;

XXXIV. Nenhum destes dados foi devidamente analisado, limitando-se os Senhores Juízes Desembargadores a concluir, atenta a provada relação de afinidade, pelo reconhecimento do direito do 4.º Autor à indemnização pelo dano patrimonial sofrido com a morte do padrasto;

XXXV. Recaindo sobre os Autores a alegação e prova destes concretos factos e não existindo nos autos a mínima evidência, entende a Recorrente que o 4.º Autor FF não podia, como não pode após a sua morte, exigir alimentos da vítima EE, independentemente da relação existente entre ambos;

XXXVI. A condenação da Recorrente no pagamento de juros em dobro nos termos do n.º 3 do artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto não tem qualquer suporte factual ou legal;

XXXVII. Por brevidade e economia processual dá-se por reproduzida a matéria constante dos pontos P), S), T), U) e V) dos factos assentes;

XXXVIII. O Tribunal não teve em consideração as especificidades do caso concreto, optando por fazer a aplicação da censura prevista no identificado preceito de forma cega e descontextualizada;

XXXIX. Os Autores não disponibilizaram à Recorrente os documentos necessários e essenciais para a apresentação da proposta de indemnização, designadamente a escritura de Habilitação de Herdeiros e a declaração de rendimentos, isto não obstante as diversas insistências nesse sentido;

XL. Os Autores optaram por intentar, logo em 27 de Julho de 2020 procedimento cautelar contra a aqui Recorrente, no âmbito do qual foi celebrada transacção mediante o pagamento, e a título de adiantamento da indemnização final, da quantia de € 9.600,00, em 12 prestações, mensais, iguais e sucessivas, do valor de € 800,00, cada, com início em 10 de Agosto de 2020;

XLI. Valor esse que tem vindo a ser pago pela Recorrente, aliás conforme decorre do depoimento prestado pela testemunha GG;

XLII. E, posteriormente, logo em 17 de Setembro de 2020 intentaram a presente acção, o que não se pode deixar de realçar;

XLIII. Apenas no dia 3 de Setembro de 2020, os Autores disponibilizaram, entre outros, a Habilitação de Herdeiros, não tendo, contudo, fornecido a declaração de rendimentos;

XLIV.É evidente que a declaração de rendimentos era um elemento essencial para a apresentação de tal proposta, sendo de realçar que, nos anos imediatamente anteriores à ida do falecido EE para a ..., os seus rendimentos eram manifestamente inferiores aos que auferia na data do acidente;

XLV. Contrariamente ao constante da sentença, encontra-se plenamente justificada a falta de apresentação de proposta por parte da Recorrente e tal facto ficou a dever-se à falta de colaboração dos Autores, aqui Recorridos, para o efeito;

XLVI. A Recorrente não pode deixar de frisar o curto espaço de tempo que mediou a assunção de responsabilidade do acidente e, bem assim, as diversas comunicações trocadas entre a Recorrente e os Autores e a interposição do procedimento cautelar e da presente acção;

XLVII. Nenhum destes elementos foi levado em linha de consideração pelos Senhores Juízes Desembargadores que, sem qualquer suporte e de forma subjectiva, se limitaram a condenar a Ré no pagamento de juros nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, ou seja, juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso;

XLVIII. Impõe-se, pois, a revogação da sentença e consequente condenação da Recorrente no pagamento de juros à taxa de juro legal de 4%, a contar da decisão de fixação dos montantes indemnizatórios;

XLIX. Entende a Recorrente que deve a decisão proferida ser revogada e, em consequência, ser substituída por outra que, embora condenando a Ré, ora Recorrente, o faça de forma mais justa e equitativa e conforme com as circunstâncias apuradas e a prática jurisprudencial e sempre considerando os valores propostos no presente raciocínio, com todas as consequências legais.”


9. Os AA. ofereceram oposição à admissão do recurso subordinado da Ré, invocando a dupla conformidade e não interposição de recurso de revista excepcional.


10. Os recursos foram admitidos no tribunal recorrido com o seguinte despacho: “Admite-se o recurso interposto pela autora AA, assim como o recurso subordinado interposto pela ré Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A. É de revista, sobe imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.  Notifique, remetendo, oportunamente os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”


Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

11. Das instâncias vieram provados os seguintes factos (a negrito os alterados pelo TR):

A) No dia 07/06/2020, cerca das 11 horas e 30 minutos, na Estrada Nacional nº ...5/Av. ..., freguesia ..., concelho ..., ocorreu uma colisão/acidente de viação.

B) Do indicado evento resultou, em 20/06/2020, 13 dias após o sinistro e como consequência direta e necessária, a morte de EE – de seguida apenas EE – marido da A., pai dos dois AA. menores e padrasto do 4º A./DD.

C) Além de marido e pai dos 1ºs três AA., o EE vivia ainda com o 4º A., apenas filho da A. - a quem, conjuntamente com a 1ª A., alimentava, vestia, calçava, suportava despesas escolares e outras, acarinhava e era acarinhado como se de um efectivo filho se tratasse, com quem, aliás, vivia desde os dois anos de idade.

D) No sinistro foram intervenientes os seguintes condutores e veículos: matrículas ..- ..-XH, motociclo, pertencente e conduzido pela vítima EE; e, ..-BD-.., ligeiro de passageiros, marca ..., modelo ..., conduzido pela Srª HH, de seguida apenas Dª HH - duas viaturas doravante abreviadamente indicadas por ... e por XH.

E) O evento aconteceu da seguinte forma: o EE circulava na indicada via (E.N. ...5), com o sentido de marcha ... – ...;

F) A Dª HH – condutora do ... – provinha da rua ... e pretendia seguir a marcha em direção a ... – sentido de marcha inverso ao do EE.

G) No momento em que o EE já se encontrava a cerca de 20 metros do ponto médio de intercepção das duas vias, com o XH, por si tripulado, ao alcance visual da Dª HH;

H) Esta avançou inopinadamente para a via (E.N. ...5), cortando-lhe a linha de marcha.

I) O EE, que circulava com capacete de proteção e a cerca de um metro do limite da sua hemi-faixa, ainda terá tentado travar, todavia foi-lhe impossível evitar a colisão do XH, por si tripulado, contra a lateral esquerda do ....

J) Após o embate sucedeu o seguinte: o EE, por força do desvio que ainda efectuou, foi cair do lado esquerdo da via - atento o seu sentido de marcha; e o XH imobilizou-se a cerca de 10 metros do local de embate indicado pela Dª HH, próximo da berma do lado contrário – com a roda traseira alinhada com a berma da hemi-faixa contrária àquela em que circulava (... – ...), próximo do ..., embora ligeiramente atrás e ao lado deste.

L) O embate entre o XH e o ... ocorreu na hemi-faixa do EE, pelo facto de a Dª HH não ter aguardado a sua passagem e ter entrado, de forma inadvertida e inopinada e sem imobilizar o ... em face do sinal B2, Stop, existente para quem provém da via em que a Dª HH circulava e pretende passar a circular na ....

M) Devido ao acidente o EE ficou gravemente ferido e a sofrer no local. Foi assistido no local.

N) Algum tempo após o sinistro foi socorrido e transportado para o Centro Hospitalar ..., onde, após 13 dias de tratamentos, acabou por falecer, sendo que a morte lhe adveio em consequência directa e necessária das lesões consequentes do evento acima descrito.

O) À data do sinistro o EE - pai e padrasto dos AA. – tinha 33 anos.

P) A R., mediante carta enviada à A, datada de 03/07/2020, assumiu a responsabilidade pelos danos consequentes do acima descrito evento – cfr. doc. 14 junto com a petição, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

Q) À data do sinistro achava-se transferida para a Ré a responsabilidade por acidentes de viação causados pelo ..-BD-.., através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...21.

R) Até à instauração da acção a Ré não apresentou aos AA uma proposta tendente à indemnização.

S) Na sequência da comunicação assente em P) os AA responderam à Ré via email, através de mandatário, em 14/07/2020, enviando em anexo aquilo de que dispunham no momento, certidão de óbito do sinistrado, recibos de vencimento e os cartões de cidadão dos alegados beneficiários da indemnização.

T) Em 15/07/2020 a Ré solicitou o envio de outros documentos que considerou estarem a faltar e, por isso, pediu, novamente, o envio de cópia da habilitação de herdeiros e relatório de autópsia, ao que os AA. responderam a solicitar a feitura de proposta, cujo pagamento ficaria condicionado à entrega dos documentos solicitados, mas de que os AA. ainda não dispunham.

U) A Ré voltou a solicitar os mesmos documentos, mormente o certificado de óbito, de onde constasse expressamente a causa da morte. E posteriormente solicitou também cópia do contrato de trabalho e da declaração de rendimentos do sinistrado.

V) EM 03/09/2020, os AA. enviaram o Contrato de Trabalho, Habilitação de Herdeiros e os registos clínicos que foram também juntos aos autos. Não enviaram declaração de rendimentos; tudo nos termos que se extraem das comunicações juntas aos autos pela Ré sob os documentos ... a ...0 com a contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos.

X) A A. e seus filhos – neste caso, demais três AA. – faziam face às despesas escolares, com alimentação, com vestuário e calçado, com assistência médica e medicamentosa, etc., também à custa do salário/rendimento que o EE auferia e lhes disponibilizava.

Z) Após o acidente o EE ficou prostrado na estrada. Ao menos na ocasião do embate sofreu dor física brutal.

AA) Fez pelo menos 03 cirurgias, inúmeros exames e tratamentos.

BB) À data do sinistro o EE era normalmente saudável, alegre, desportista, comunicativo e muito bem disposto.

CC) Era muito estimado por familiares, amigos e colegas de trabalho.

DD) E devotava à família grande estima, amizade e carinho.

EE) Era poupado.

FF) Ao menos parte (e significativa) do dinheiro que ganhava era para a família, para gastar em família e com a família.

GG) O EE realizava com frequência convívios, piqueniques, passeios e atividades desportivas com a família.

HH) A relação dele com a mulher e com os filhos era vista por toda a comunidade como um exemplo de família feliz.

II) A A., AA, sofreu ansiosamente durante os 13 dias que mediaram entre o sinistro e a morte.

JJ) A morte foi para ela uma dor acrescida, por via do que antecede.

LL) O EE era um marido carinhoso e um bom pai, pelo que a sua morte causou e causa um sentimento de vazio imenso e deixa toda a família em profunda depressão.

MM) A relação com os seus filhos e mulher era de grande proximidade e cumplicidade.

NN) O EE caracterizava-se pela sua boa disposição e alegria de viver contagiante, que transmitia à família.

OO) O momento em que a A. AA comunicou a notícia da morte do EE aos seus filhos foi de grande sofrimento e ficará marcado para sempre nas suas memórias.

PP) O sofrimento dos AA. está e estará presente, todos os dias, durante muitos e muitos anos.

QQ) O 4º A./DD, no seu quotidiano, relacionava-se com o EE como se de seu pai tratasse – assumiam-se, de facto, nas brincadeiras entre ambos, nas conversas, nas ajudas recíprocas, como pai e filho; A relação deles era de grande proximidade e amizade filial.

RR) À data do acidente, o EE trabalhava como carpinteiro de na SARL II, por conta da qual auferia o salário mensal de 1.539,45. Recebia horas extraordinárias, quando executava trabalho a exceder as 35 horas semanais, o que acontecia, com frequência não apurada.

SS) Para além da retribuição líquida, a sua entidade patronal suportava ainda todas as despesas consequentes da sua estada profissional em ..., designadamente com alimentação, alojamento e deslocações/transporte nomeadamente para Portugal.

TT) O EE era havido pelos colegas e entidade patronal como um bom profissional.

UU) Parte do rendimento que o EE recebia era destinado à gestão das despesas inerentes ao fluir do dia-a-dia do agregado familiar, nomeadamente em matéria de despesas com alimentação, telefones, vestuário, educação e lazer dos AA., ao menos à data do sinistro.

VV) Em consequência do falecimento do EE. 1ª A. vai suportar o custo da realização do funeral e preparação da campa, no valor de €1.265,00.

XX) BB nasceu em .../.../2016, CC, em .../.../2007, DD em .../.../2002 e a Autora AA em .../.../1985, conforme certidões juntas aos autos com a petição inicial.

ZZ) FF iniciou, ao menos após a propositura da acção, vida laboral activa.


12. Das instâncias vieram não provados os restantes factos, designadamente que:

1. O EE teve consciência da iminência da morte aquando do embate ou durante os 13 dias de internamento, antecipando a possibilidade de morrer e sofrendo com a separação da família;

2. Apesar da elevada dose de medicação para minimizar as dores, durante os 13 dias de internamento agonizou de sofrimento, tentava libertar-se dos tubos, tentava comunicar e chorou, chorou muito;

3. Aqueles 13 dias foram de intenso sofrimento e de inqualificável angústia - face à perceptível consciência de que a morte lhe poderia advir e de que ia deixar os seus entes queridos, a sua querida família;

4. A A. esteve sempre presente, e, quando o EE sentia a sua presença e quando esta lhe sussurrava ao ouvido, este agarrava-lhe a mão com a força que conseguia e chorava;

5. A A. teve razões para acalentar a esperança de recuperação do marido, sendo subsistentes as indicações de possibilidade de recuperação;

6. O EE ambicionava ter mais filhos e progredir na carreira;

7. O EE não gastava um cêntimo que fosse no estrangeiro, pelo que todo o dinheiro que ganhava era para a família;

8. A A. BB – filha mais nova – desde a morte do pai passou a ter graves transtornos/dificuldade para dormir e foi aconselhada por um médico a consultar um psicólogo, dada a gravidade do trauma;

9. Os demais AA. também andam a ser acompanhados por psicólogo;

10. O EE já tinha recebido várias propostas de outras empresas;

11. Dado o seu profissionalismo, competência e ambição, o EE em poucos anos tornar-se-ia encarregado o que iria permitir que viesse a auferir salário próximo dos €2.500, líquidos.

DE DIREITO

13. Objecto dos recursos

13.1. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.


13.2. As questões suscitadas no recurso principal são as seguintes:

1 - Quantum da indemnização arbitrada a título de dano morte/direito à vida. A este título os R.tes peticionavam a quantia de 150.000€, O Tribunal a quo condenou em 130.000€. O Tribunal da Relação do Porto reduziu para a quantia de 85.000€. Esta redução não é justa nem adequada à tragédia dos autos e à matéria de facto assente (conclusão 7ª)

2 - Quantum da indemnização arbitrada a título de dano moral da própria vítima - Os R.tes peticionavam a este título 50.000€. O Tribunal de 1ª instância condenou em 25.000€. O TRP decidiu reduzir para os 20.000€. Também aqui, tendo em consideração as graves lesões sofridas e o tempo que mediou entre a data do evento e a morte do EE, o montante fixado pela 1ª instância nos parece mais justo – veja-se, a este propósito, o Ac. do STJ5, de 22.02.2018, Proc. 33/12.4GTSTB.E1.S11 em que é Relator o Conselheiro Manuel Braz, e em que, numa situação de morte no próprio dia do evento atribuiu 30.000€ de indemnização (conclusão 10ª)

3 - Danos morais dos próprios AA. – A este título os R.tes peticionavam as seguintes quantias: 60.000€ para a viúva, 50.000€ para cada um dos filhos. A 1ª instância condenou em €40.000,00 (para a viúva), €30.000,00 (para cada um dos filhos) e €18.000,00 (para o enteado). O TRP reduziu para 30.000€ e 25.000€ (para cada um dos filhos) e excluiu o enteado (conclusão 11ª)

3.1. saber se os valores devidos aos 1ºs a 3º AA. foram correctamente decididos;

3.2. saber se o 4º A. tem direito a alguma indemnização;

4 - Quantum do Dano Patrimonial futuro - A este título os R.tes peticionavam a quantia de €717.673,10. O Tribunal de 1ª instância condenou na quantia de 580.000,00€. O TRP reduziu a indemnização para o montante de 389.000€. (conclusão 15ª)

5 - Condenação no dobro da taxa de juros - a condenação no dobro da taxa de juros consubstancia uma sanção pelo incumprimento dos deveres a que a R.da estava obrigada (conclusão 27ª)


13.3. As questões suscitadas no Recurso subordinado são as seguintes:

1 - Valor do dano pela perda do direito à vidadeve ser reduzido para 70.000;

2 - Valor do dano moral da própria vítima - Atento o facto de não ter resultado provado que o falecido EE teve consciência da gravidade das lesões sofridas no acidente, dos tratamentos ministrados, de que ia morrer ou, sequer, de se ter apercebido que corria risco de morrer implica a redução do valor arbitrado para a quantia de € 10.000,00, sob pena de violação do princípio da igualdade e da equidade

3 - Valores fixados a título de danos não patrimoniais próprios dos 1.ª, 2.º e 3.ª Autores - são, ainda, excessivos e desajustados, devendo haver a redução de tais valores ser para o montante de € 25.000,00 para a 1.ª Autora e de € 20.000,00 para cada um dos 2.º e 3.º Autores é, no caso em apreço, justo e equitativo.

4 - Dano patrimonial futuro – o valor fixado não obedeceu às regras legais e critérios habituais da jurisprudência, sendo excessivo, devendo fixar-se em 250.000,00 euros para todos.

13.4. Em síntese as questões a decidir na revista são as seguintes:

1. Quantum da indemnização arbitrada a título de dano morte/direito à vida, em que os AA. dizem ter sido fixado um valor baixo e a Ré um valor demasiado elevado;

2. Quantum da indemnização arbitrada a título de dano moral da própria vítima, em que os AA. dizem ter sido fixado um valor baixo e a Ré um valor demasiado elevado;

3. Quanto ao dano moral dos próprios AA., colocam-se duas questões:

3.1.   Se o enteado tem direito a alguma indemnização (perspectiva dos AA, com contraditório da Ré);

3.2.    Saber se os valores arbitrados pelo TR foram bem fixados (AA. entendem que são baixos, e ré entende que são altos), para além do direito do 4º A. (o enteado);

4. Quantum da indemnização arbitrada a título de dano patrimonial futuro (AA. entendem que valores fixados são baixos, e ré entende que são altos)

5. Condenação no dobro da taxa de juros – desde quando (sentença ou citação??)


14. antes de se iniciar a análise dos recursos façamos um ponto da situação comparativa entre os valores indemnizatórios encontrados na sentença e no acórdão recorrido, em especial evidenciando o quantum indemnizatório devido aos autores pelo dano perda do direito à vida do próprio falecido, danos morais próprios da vítima, danos morais próprios dos AA e perda da contribuição patrimonial do falecido para a continuidade da vida da família (viúva, filhas, enteado).

No caso em apreço, a ré seguradora aceitou que a responsabilidade pela produção do acidente que causou a morte do sinistrado EE se deveu, em exclusivo, à conduta da sua segurada, tendo o referido evento resultado do seu comportamento infractor.

E assim também o entendeu a decisão recorrida, nessa parte não contrariada pela recorrente, que, à excepção do autor FF (enteado), aceita o dever de indemnizar, apenas discordando dos valores indemnizatórios fixados, que reputa de excessivos.

Sobre os valores atribuídos a estes danos as instâncias apresentaram valores distintos, de que as partes discordam, pretendendo os AA. uma quantia superior e a Ré uma quantia inferior.

Os valores em causa foram os seguintes:

Tribunal de comarcaTribunal da relação
Perda do direito à vida vítima130.000, 85.000,
Danos morais próprios da vítima25.000, 20.000,
Dano moral próprio viúva40.000, 30.000,
Dano moral próprio 2ºA30.000 25.000,
Dano moral próprio 3ºA30.000 25.000,
Dano moral próprio enteado18.000 0.00
Perda contribuição patrimon. viuva390.000, 267.000,
Perda contribuição patrimon. 2ºA129.000 78.000,
Perda contribuição patrimon. 3ºA57.000 43.000,
Perda contribuição patrimon. enteado1.000, 0,00

Cerca de 850.000,00                                                 Cerca de 573.000,00


Do ponto de vista legal relevam, entre outras, as seguintes disposições legais.

Dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

O artigo 562.º do Código Civil, que consagra o princípio da reconstituição natural, preceitua que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

Não sendo possível a reconstituição natural, não reparando ela integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro.

Também nos termos do artigo 564º, n.º 2 do Código Civil, para além dos danos emergentes, deve atender-se aos danos futuros, desde que previsíveis.

Se não puder ser quantificado, em termos de exactidão, o montante desses danos, julgará o tribunal equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados, de acordo com o disposto no artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil.


15. Questão prévia

 Da admissibilidade do recurso subordinado da Ré e de parte do recurso principal dos AA.

15.1. Conforme se fez constar do relatório os AA. questionam a admissibilidade do recurso subordinado da Ré, com as questões supra indicadas, por entenderem que existe dupla-conformidade, impeditiva da revista, e pelo facto de não ter sido solicitada a admissão da revista subordinada a título excepcional – art.º 671.º, n.º1 e 3 e 672.º do CPC.

Citam a propósito da sua posição um acórdão relatado pela mesma relatora em que, a propósito de questão equivalente, o recurso não foi admitido – Ac. do STJ relativo ao processo 2908/18.8T8PNF.P1.S1, de 06-04-2021 (disponível em www.dgsi.pt) – onde se explicita que a dupla conformidade é aferida igualmente pelo benefício que a Ré obteve na apelação, em que viu a sua condenação ser confirmada mas em montante inferior ao da condenação que provinha da 1ª instância.

Mesmo admitindo-se que a solução propugnada pelos AA. é a mais conforme com a lei, porque as questões que são versadas pelo recurso subordinado (em que a Ré logrou obter um resultado mais favorável do que havia sido determinado na sentença) relativas aos montantes indemnizatórios devidos aos AA. não deixam de constituir um contraditório ao recurso principal dos ora AA. e também porque está pendente um recurso de uniformização sobre a possibilidade de dividir os segmentos decisórios nas acções de indemnização por acidente de viação (sem que se saiba qual o desfecho que virá a ter e o reflexo nos processos futuros – proc. 545/13.2TBLSD.P1.S1-A), não envolvendo o conhecimento do recurso subordinado nenhuma questão que não devesse ser analisada por via do recurso principal, entende-se dever tomar-se conhecimento do apelidado “recurso subordinado”, tratado como contraditório ao recurso principal (i.e., sua vertente de contraditório), porquanto a sua admissão autónoma “tout court” também poderia suscitar dúvidas de conformidade com o Acórdão de Uniformização de jurisprudência nº1/2020:

«O recurso subordinado de revista está sujeito ao nº 3 do artº 671º do Código de Processo Civil, a isso não obstando o nº 5 do artº 633º do mesmo Código

DR-21 SÉRIE I de 2020-01-30

15.2. Não tendo sido questionada a admissibilidade do recurso principal pela Ré, mas podendo o tribunal conhecer dessa questão oficiosamente, sempre se pode aqui suscitar a questão da não admissibilidade parcial do recurso dos AA. quanto à questão dos juros de mora devidos relativamente às indemnizações atribuídas, por também aqui ocorrer uma dupla conforme e não ter sido interposto recurso de revista a título principal pela via excepcional (art.º 671.º, n.º1 e 3 do CPC).

É que a decisão da primeira instância (São devidos juros sobre as quantias fixadas, ao dobro da taxa legal relativa aos juros das obrigações civis, a contar da data da presente decisão e até integral pagamento) foi confirmada pelo Tribunal da Relação, sem fundamentação essencialmente diversa e sem voto de vencido, conforme se atesta no segmento dispositivo do acórdão recorrido onde se disse:

Em tudo o mais, mantém-se a sentença, nomeadamente quanto aos juros, os quais passam a ser devidos a partir da data do presente acórdão.”

A questão dos juros foi, inclusive, suscitada na apelação pela Ré e não pela A., não se compreendendo que pretenda agora recorrer de uma decisão que não contestou na apelação e que não sofreu qualquer modificação, não colidindo esta situação com a ampliação do objecto do recurso de apelação que os AA. efectuaram na parte relativa à impugnação da matéria de facto e atento o teor do objecto da apelação assim delimitado pelo tribunal:

“B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se existe erro na apreciação da prova;

- valores indemnizatórios devidos para reparação dos danos sofridos em  consequência do acidente;

- juros sobre os valores fixados.”


Pelo exposto, não se admite o recurso principal dos AA. na parte relativa aos juros de mora.


16. Vejamos então a situação do quantum indemnizatório para cada ponto referenciado.


17. Entrando na análise da primeira questão objecto do recurso principal e igualmente suscitada no recurso subordinado/contraditório ao recurso principal – o quantum indemnizatório devido aos autores pelo dano perda do direito à vida do próprio falecido.

A posição dos AA. e da Ré afasta-se aqui sobretudo em termos de valor a arbitrar, defendendo os AA. que se mantenha o valor da sentença e a Ré que o valor se fixe em 70.000 euros.

Para defender a sua posição os AA. citam alguns acórdãos de Tribunais superiores onde os valores arbitrados se situaram entre os 150.000,00 euros (Tribunal da Relação) e os 120.000,00 euros (STJ), convocam a situação de Igor, ucraniano morto nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, para concluírem que o valor de 130.000,00 euros fixado na sentença era adequado.

O Tribunal da Relação no acórdão recorrido entendeu que 130.000,00 euros era um valor excessivo e reduziu o montante para 85.000,00 euros.

Para assim concluir usou os seguintes argumentos:

a) A compensação pelo dano morte é reconhecidamente pacífica no nosso ordenamento jurídico;

b) a vida humana não tem um verdadeiro preço, o que não significa que em caso da sua perda não se deva procurar encontrar um valor pecuniário para o bem supremo;

c) valor esse que só pode ser obtido através do recurso à equidade ponderando critérios de uniformidade na jurisprudência para situações similares, sem descurar, todavia, a especificidade do caso concreto;

d) para que a equidade não se traduza em critério subjectivo a jurisprudência tem procurado atribuir a este bem um valor que seja próximo dos fixados em casos similares, naturalmente considerando que há uma evolução legal e jurisprudencial, que acompanha a evolução social e por esta é exigida.

e) Isso mesmo foi decidido no acórdão recorrido ao procurar justificar o valor arbitrado de 85.000,00 com base em decisões judiciais – todas indicadas no aresto – e a apontar para valores entre os 80.000,00 e os 100.000,00.

f) Para a aferição exacta do montante essa jurisprudência deste tribunal tem atendido a factores de majoração/desvalorização, como sejam, a idade da vítima, a sua contribuição causal para o evento danoso;

E, em concretização dos argumentos indicados, no acórdão recorrido foi efectuado este percurso lógico, por referência à jurisprudência e com a consideração do caso concreto, onde se salientou:

“No caso em apreço, o acidente de viação, de que resultou a morte de EE 13 dias após aquele fatídico evento, ocorreu a 7.06.2020.

Tinha então a vítima 33 anos de idade. Era casado, tinha dois filhos menores.

Com ele, a esposa e os dois filhos de ambos, vivia ainda o enteado, filho apenas daquela, desde os dois anos daquele, que acarinhava e por quem era acarinhado como se fosse seu filho.

À data do sinistro o EE era normalmente saudável, alegre, desportista, comunicativo e muito bem disposto.

Era muito estimado por familiares, amigos e colegas de trabalho. E devotava à família grande estima, amizade e carinho.

Considerando este circunstancialismo fáctico, em especial a juventude da vítima e a sua considerável expectativa de vida, sendo pessoa saudável, dinâmica e trabalhadora, estando inserido em núcleo familiar unido por laços de afecto, avaliado este quadro factual e ponderando os valores fixados pela mais recente jurisprudência25 para situações similares, entendemos ser excessiva a indemnização fixada na sentença sob recurso para compensação da perda do direito à vida da vítima [€ 130.000,00], sendo mais equilibrada uma indemnização no valor de 85.000,00, pelo que se fixa nesse montante a correspondente indemnização.”


Os autores entendem que os modelos de indemnização devem ser outros, nomeadamente atendendo ao recente infortúnio do cidadão estrangeiro falecido no aeroporto, à guarda do SEF, mas a sua pretensão não merece acolhimento por estarmos a tratar de uma situação muitíssimo específica, cujos contornos de identidade não podem ser transportados para o caso dos autos.

A tomar-se por referência algum exemplo de situação específica seria, a nosso ver, a situação (e a solução encontrada) para as dos fogos de Pedrogão do ano de 2017, onde se recolhe que o valor de indemnização do dano morte se deve situar patamar dos 80.000,00 euros.

No entanto, não se tendo o tribunal recorrido afastado dos padrões gerais usados na jurisprudência dos tribunais para definir o valor deste dano, com recurso à equidade, de acordo com a jurisprudência deste STJ, não se vislumbram motivos para alterar o montante fixado de 85.000,00 euros, pois também não vem invocada a violação de nenhuma norma de direito estrito (uma vez que o STJ só conhece de questões de direito e estamos perante a fixação de um valor indemnizatório onde o recurso à equidade se desvia desse padrão) , nem ocorre iniquidade por comparação com casos paralelos, ainda que possam existir arestos que tenham atribuído valores superiores aos 85.000, 00 euros, assim como, certamente, haverá outros em que o valor foi inferior, como cita e defende a Ré.

O percurso lógico seguido pela 1ª instância e acompanhado na estrutura pelo TR, confirmam que a indemnização foi fixada conforme a lei indica, com recurso à equidade e ponderação da jurisprudência dos casos paralelos, a fim de evitar violações do princípio da igualdade e qualquer injustiça, sem prejuízo de não haver nenhuma obrigação legal de o valor arbitrado se fixar no mais alto valor já alguma vez atribuído pelo tribunais, ou no mais baixo.

É esta a orientação seguida no STJ, conforme se pode confirmar pelo teor do acórdão de  30/11/2021, proc. 117/18.5.TNLSB.L1.S1-A, disponível em www.dgsi.pt, onde se afirma:

“Recordemos, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2020 (proc. n.º 6295/15.8T8SNT.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt[2], em que termos se opera a intervenção deste Supremo Tribunal em matéria de fixação de indemnização por danos não patrimoniais:

«- A compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1, do Código Civil), não pode – por definição – ser feita através da fórmula da diferença consagrada no n.º 2 do art. 566.º do CC. Deve antes ser decidida pelo tribunal, segundo um juízo de equidade (art. 496.º, n.º 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art. 494.º, do CC;

- Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 06.04.2015, proc. n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28.10.2010, proc. n.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 05.11.2009, proc. n.º 381/2002.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), «a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma ‘questão de direito’»; se é chamado a pronunciar-se sobre «o cálculo da indemnização» que «haja assentado decisivamente em juízos de equidade», não lhe «compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto ‘sub iudicio’»;

- A sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 31.01.2012, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, «os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição». Exigência plasmada também no art. 8.º, n.º 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”»


Como situação com algum paralelismo com a dos autos, em que foi atribuído o valor de 85.000,00 euros pelo dano morte, cf. o ac. do STJ de 952/06.7TBMTA.L1.S1, de 7/5/2020 (disponível em www.dgsi.pt), em cujo sumário consta, nomeadamente:

I - ..

II - Atendendo às particularidades do caso, nomeadamente aos 29 anos de idade que a vítima tinha, à data da morte, à elevada expetativa de vida, considerando a esperança de vida dos homens em Portugal, o casamento contraído há cerca de dois anos antes da morte e ter sido pai também há cerca de um ano, afigura-se adequada a indemnização de € 85 000,00 pela a perda do direito à vida.”


Improcede o recurso principal e o subordinado/contraditório ao recurso principal nesta questão.


18. Dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o momento do acidente e o momento da morte.

Para compensação deste dano fixou o tribunal de primeira instância uma indemnização que quantificou em € 25.000,00, a atribuir aos três primeiros demandantes, valor que, no entender do Tribunal da Relação, foi reduzido para 20.000 euros, por se ter considerado que as circunstâncias do caso concreto assim o justificavam:

i) Não se logrou comprovar que o EE teve consciência da iminência da morte aquando do embate ou durante os 13 dias de internamento, antecipando a possibilidade de morrer e sofrendo com a separação da família;

ii) Apurou-se que, devido ao acidente, o EE ficou gravemente ferido e a sofrer no local. Foi assistido no local: ponto M.

- Algum tempo após o sinistro foi socorrido e transportado para o Centro Hospitalar ..., onde, após, 13 dias de tratamentos, acabou por falecer, sendo que a morte lhe adveio em consequência direta e necessária do evento acima descrito: ponto N.

- Após o acidente o EE ficou prostrado na estrada. Ao menos na ocasião do embate sofreu dor física brutal: ponto Z.

- Fez pelo menos 03 cirurgias, inúmeros exames e tratamentos: ponto AA.


18.1.  Os AA. defendem que o valor em causa devia voltar a ser fixado nos 25.000 euros e a Ré, que o valor devia baixar para 10.000,00, invocando esta a violação do princípio da igualdade e da equidade.

A 1ª instância encontrou o valor de 25.000 que justificou com o seguinte:

“Em síntese, no que respeita à dor sofrida pela vítima antes de morrer, tem-se entendido que tudo depende do sofrimento e da respectiva duração, da maior ou menor consciência da vítima sobre o seu estado e da aproximação da morte.

Quanto ao sofrimento pré-mortal, cabe atender à dor necessariamente sentida aquando das lesões que determinaram o decesso, tendo-se consequentemente por adequado o arbitramento da quantia de 25.000 EUR a esse título, quando se atente na extensão e gravidade destas lesões, como no período de tempo em que perdurou a vida, mediante a submissão a cirurgias e tratamentos, ainda quando não se tenha havido por demonstrada a percepção da eminência da morte.”

O TR entendeu que o valor era excessivo precisamente porque não se demonstrou que a vítima tivesse tido percepção da iminência da morte!

Considerando que o dano em causa procura valorar um sofrimento composto por várias sensações desagradáveis da vítima, de entre as quais é usual dar-se relevo ao sofrimento devido por a vítima se aperceber que a sua própria morte poderia estar iminente, e de ainda de atender à dor sofrida, ao tempo que medeia entre a lesão e a morte, não se identifica no raciocínio do tribunal recorrido nenhum erro jurídico de interpretação de disposição legal que impusesse outro resultado, nem nenhuma arbitrariedade na consideração do valor do dano em 20.000 euros, e não em 25.000, nem mesmo por consideração do conjunto da jurisprudência e dos casos paralelos, que possa justificar qualquer invocação de iniquidade, violação de princípio da igualdade ou afastamento dos critérios habitualmente seguidos pela jurisprudência, que conduzisse a uma intervenção do STJ na fixação (ou validação) do valor encontrado segundo critérios de equidade.

Mais se verifica que na jurisprudência recente do STJ o valor de 20.000 pelo sofrimento da vítima anterior à sua morte foi já considerado um montante adequado - cf. ac. STJ de 25/2/2021, proc. 4086/18.3T8FAR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt

Improcede o recurso principal e o subordinado/contraditório ao recurso principal nesta questão.


19. Entrando na análise da questão 3.1. do recurso principal dos AA., isto é saber se o enteado (4º A) tem direito a alguma indemnização (perspectiva dos AA, com contraditório da Ré).

A título de reparação pelos danos não patrimoniais próprios de cada um dos demandantes, por virtude da morte de EE, a sentença recorrida fixou os seguintes montantes: “...40.000 EUR à Autora viúva, 30.000 EUR, a cada um dos e AA., seus filhos e ao Autor, enteado da vítima, a quantia de 18.000 EUR”.

Para justificar a atribuição destes valores no que se reporta ao 4ºA, disse-se ainda:

“No que interessa à titularidade do direito à compensação, cujo regime está previsto no artigo 496º nº 2, existe desde logo uma divergência doutrinária, que tem, precisamente, por objeto a interpretação da referida norma. Discute-se se o elenco é ou não taxativo: se só os familiares indicados poderão peticionar uma indemnização ou se também terão legitimidade outras pessoas.

Assim, alguma doutrina afirma que a titularidade do direito de compensação pertence apenas às pessoas elencadas no art. 496º nº 2. De entre os autores que defendem que a enumeração é taxativa e, portanto, insuscetível de aplicação analógica, destacam-se JJ/KK (CC Anotado), que afirmam que “Pode naturalmente suceder que a morte da vítima cause ainda danos não patrimoniais a outras pessoas, não contempladas na graduação que faz o nº 2, tal como pode acontecer que esses danos afectem as pessoas abrangidas na disposição legal por uma forma diferente da ordem de precedências que o legislador estabeleceu. Mas este é um dos aspectos em que as excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito.”.

Defendendo esta taxatividade e, por isso, a insusceptibilidade de aplicação analógica, SINDE MONTEIRO (Dano Corporal (Um roteiro do direito português), in Revista de Direito e Economia, Ano XV, Universidade de Coimbra, 1989, p. 371), MENEZES LEITÃO (Direito das Obrigações, Volume I: Introdução. Da Constituição das obrigações, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 354) e ABRANTES GERALDES (Temas da Responsabilidade Civil - Indemnização dos Danos Reflexos, II volume, 2a edição revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 2007, p. 91), que acrescenta que esta solução é justificada, uma vez que são os familiares referidos no art. 496º nº 2 que suportam os encargos pessoais e os danos não patrimoniais mais relevantes. Também neste sentido, DARIO MARTINS DE ALMEIDA (Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 1987, p. 172); e AMÉRICO MARCELINO (Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 10ª edição revista e ampliada, Livraria Petrony, Lisboa, 2009, p. 391). A nível jurisprudencial destacam-se os acórdãos do STJ de 17/12/2015 e do TRP de 23/03/2006, acessíveis na base de dados da dgsi.

De entre os autores que defendem a não taxatividade do art. 496º nº 2 destaca-se MENEZES CORDEIRO (Tratado de Direito Civil Português, II – Direito das Obrigações – Tomo III – Gestão de Negócios, Enriquecimento sem causa, Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2010, p. 519), que, referindo-se ao mencionado preceito, afirma: “Não faz já muito sentido, para mais numa época em que a família perde terreno, quer na sociedade, quer na própria lei.”. Esta tese é também perfilhada por MAFALDA MIRANDA BARBOSA ((Im)pertinência da autonomização dos danos puramente morais? Considerações a propósito dos danos morais reflexos, in Cadernos de Direito Privado, nº 45, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, 2014, p. 16) que considera que “(...) sempre que esteja em causa um sujeito que esteja unido pelos laços do amor com o falecido, não obstante não seja seu familiar ou não o seja no grau mais próximo, então dever-se-á operar uma extensão teleológica da norma.”.

LUÍSA ALVOEIRO, na obra referida na resposta dos AA. (Dano Reflexo nos Acidentes de Viação, Relatório de atividade profissional elaborada no âmbito do Mestrado em Direito dos Contratos e da Empresa, sob a orientação do Professor Doutor Fernando de Gravato Morais, Escola de Direito da Universidade do Minho, 2015), salienta que o modelo de família tradicional existente à data de entrada em vigor do CC não é hoje o dominante. Na sociedade moderna, além da tradicional família biológica, existem vários tipos de famílias, como as famílias adotivas, as famílias recompostas, que surgem do desmembramento de outras famílias; existem os padrastos e as madrastas e os meios-irmãos. Por isso, o elenco de familiares referidos no art. 496º nº 2 encontra-se ultrapassado. O seguinte excerto da Autora é esclarecedor: “Não será de interpretar extensivamente o nº 2 do art. 496º quanto aos beneficiários dessa indemnização por ser a que melhor se coaduna com o conceito de família atual? (...) consideramos ser de admitir a possibilidade de indemnização de tais danos (...) nos casos em que (...) os companheiros da mãe, ou do pai, ou os tios, estão ligados ao menor sinistrado de maneira a constituírem os “pais” dele, verificando-se proximidade e comunhão afetiva em tudo semelhantes à da filiação (...)” .

Defendem ainda esta posição JOAQUIM CRISÓSTOMO (A indemnização de perdas e danos nos acidentes de automóvel, Pessoas que a ela têm direito e a fixação do seu quantitativo, Décimo Primeiro Volume, Terceira Parte, Imprensa Lucas & C.ª, Lisboa, 1936, p.32), para quem os laços familiares não devem servir de critério para aferir a titularidade da indemnização.

Também ÁLVARO DIAS (Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Almedina, Coimbra, 2004 (reimp.), p.352, nota nº 786, que questiona “(...) por que razão não há-de o menor que tenha sido alimentado pelo padrasto ou madrasta, após o falecimento do respectivo cônjuge, poder invocar em juízo o prejuízo moral que a morte do padrasto ou madrasta lhe causou.”.

O critério para determinar a titularidade da compensação dos danos não patrimoniais de outros lesados para além do teor literal da norma considerada pode operar por via da concretização do conceito de ilícito por referência ao direito geral de personalidade, como sugerido por MAFALDA MIRANDA BARBOSA (op. cit.) e RUTE TEIXEIRA PEDRO (Da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no direito português: a emergência de uma nova expressão compensatória da pessoa?: reflexão por ocasião do quinquagésimo aniversário do Código Civil, in Estudos Comemorativos dos 20 anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2017), que afirma que “(...) o reconhecimento autónomo desta vertente relacional e dinâmica da personalidade se manifesta logo no plano da ilicitude (...)”.

Para aferir, assim, se um sujeito concreto é titular do direito de indemnização, deve verificar-se se foi violada a sua personalidade, independentemente da existência de vínculos familiares entre o sujeito e a vítima. De forma a cumprir o espírito da norma acima referida, acresce a necessidade da existência de laços de afeição e a constatação da dor e sofrimento de particular gravidade do lesado. Assim, podem peticionar uma indemnização os cônjuges, os unidos de facto, os parentes, os afins ou outras pessoas que reúnam os requisitos necessários para a atribuição da compensação, anteriormente explicitados. O parentesco é um vínculo de raiz biológica. Conforme sublinhou o TC (Ac. nº 690/98 e ac. nº 282/04), a referência constitucional à família abrange, além do núcleo constituído por pais e filhos, os laços familiares de parentesco, pelo que não é só a designada família nuclear que é tutelada constitucionalmente, mas também a família alargada. É no seio dessa família alargada que cada um dos seus elementos desenvolve a sua personalidade, pelo que a lesão corporal de qualquer familiar pode originar a lesão daquela. Esta realidade é confirmada pelo próprio tribunal: “Se a família nuclear é o primeiro círculo social do indivíduo, é nas relações familiares, na descoberta da pertença a um grupo marcado ou definido pelos laços sanguíneos e de afinidade que o indivíduo prossegue o seu desenvolvimento humano e social, que estabelece as primeiras relações sociais, enfim, descobre a sua identidade e as suas raízes.”. Da mesma forma, também os padrastos ou madrastas, elementos de uma família, devem poder peticionar uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em caso de morte ou lesão corporal do descendente do seu companheiro, o mesmo ocorrendo no caso de ser o padrasto ou madrasta o sinistrado.

É o que se nos afigura suceder na situação decidenda, em que se provou que desde criança que o 4º A. viveu com a mãe e o padrasto, que reconhecia como pai, tal como este o reconhecia como filho. Existindo verdadeiros laços afetivos entre ambos, provando-se o desgosto sofrido pelo enteado, verifica-se a violação do direito geral de personalidade daquele. Também e directamente o nexo de causalidade.

Arbitra-se, pois, a este 18 mil EUR.”


Na apelação a Ré contestou o direito do 4º Autor a essa indemnização, sustentando não ser devida qualquer compensação a esse título ao 4.º autor, enteado da vítima mortal, defendendo ser taxativa, quanto aos titulares do direito de compensação, a enumeração constante do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil.

O Tribunal da Relação conheceu do problema e decidiu:

Reclamando o autor DD indemnização por danos não patrimoniais próprios como compensação pelo sofrimento resultante da perda do EE, seu padrasto, com quem vivia e com a sua mãe, a 1.ª autora, desde os dois anos de idade, o tribunal recorrido reconheceu-lhe o direito a tal indemnização, que fixou em € 18.000.00, socorrendo-se, para tanto, da aplicação analógica do artigo 496.º do Código Civil, arredando a sua natureza taxativa.

(…)

Se, como dá conta a sentença, na parte aqui transcrita, existe profunda cisão na doutrina quanto à interpretação do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, no que concerne à natureza taxativa ou não do normativo em causa, e, consequentemente, da possibilidade de ele poder ou não consentir uma interpretação analógica/extensiva, que permita reconhecer a outras pessoas, para além das aí enumeradas, o direito à indemnização nele prevista, a jurisprudência tem-se mantido uniforme quanto ao entendimento de que o preceito em causa, tendo natureza taxativa, não permite estender o direito indemnizatório a pessoas para além das nele elencadas.

Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.201534, “O Código Civil apenas prevê expressamente, no nº 2 do artigo 496º, que, em caso de morte da vítima, certos familiares tenham direito a ser indemnizados por danos que essa morte lhes tenha causado. Como desenvolvidamente se pode ver no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 16 de Janeiro de 2014, www.dgsi.pt, proc. nº 6430/07.0TBBRG.S1, Diário da República, I Série, de 22 de Maio de 2014, tem vindo a ser sustentado por parte da doutrina e da jurisprudência que o mesmo direito deve ser reconhecido em casos particularmente graves mas nos quais não ocorreu a morte da vítima; assim se decidiu, aliás, no referido Acórdão de Uniformização, que fixou jurisprudência no sentido de que “Os artigos 483.º, n.º1 e 496.º, n.º1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”.”

O mais recente acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 17.10.201935 é, quanto à discussão em causa, particularmente preciso e assertivo: “Abundante doutrina (que aqui não cabe reproduzir) tem debatido a questão da ressarcibilidade dos danos de terceiros, e um número significativo de opiniões têm propendido para a sua admissibilidade, escudadas em construções dogmáticas de maior ou menor elaboração técnica, mas nas quais se identifica uma ideia comum de que essa ampliação servirá um ideal de justiça para com os terceiros afetados.

À jurisprudência não cabe apoiar ou rebater construções doutrinais. Cabe-lhe fazer justiça, mas também ser prudente.

A ampliação do âmbito subjetivo dos terceiros beneficiários de compensação por danos morais decorrentes das consequências de um facto ilícito (ou de responsabilidade objetiva), sofridos por um familiar ou até por outra pessoa de grande proximidade afetiva, é uma tarefa que, pelas dificuldades próprias da delimitação das suas fronteiras, deve caber, em primeiro lugar, ao legislador.

Trata-se de uma matéria que não pode ser perspetivada apenas do ponto de vista da tutela dos lesados (diretos ou indiretos), mas também do ponto de vista de saber até onde se pretende levar a punição (em sentido amplo) dos lesantes.

Esta equação do equilíbrio dos fatores de tutela e de punição das relações em sociedade cabe, em primeiro lugar, ao legislador. Tal como deve caber ao legislador a definição dos mecanismos de compensação dos terceiros afetados: se a indemnização fica a cargo do património do lesante; se, e quando, é coberta por seguros; ou se deve existir um fundo nacional para prover a indemnização a esses terceiros”.

De acordo com o citado acórdão, "Caberá, em primeiro lugar, ao legislador a opção por ampliar o âmbito subjetivo de ressarcibilidade dos dados causados por atos ilícitos (e, nomeadamente, por acidentes de viação); tarefa que o legislador pós Código Civil ainda não reequacionou em termos amplos, embora tenha tido algumas intervenções pontuais, como, por exemplo, a recente intervenção no quadro da responsabilidade civil, acrescentando o art.493º-A ao Código Civil[...].

Comungando de tal entendimento, tendo por certo que o n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil contém uma enumeração taxativa das pessoas com direito a ser ressarcidas por danos não patrimoniais próprios resultantes da morte da vítima, não podendo, por isso, a ressarcibilidade ser estendida a outras pessoas para além das indicadas na norma em causa - ainda que estas pudessem ter uma apertada ligação emocional ou afectiva à vítima, como se admite no caso do autor FF em relação ao EE, seu padrasto, com quem viveu desde os seus dois anos de idade e que tinham entre si uma relação similar à da filiação biológica -, não se pode reconhecer ao autor DD qualquer direito a ser indemnizado por danos não patrimoniais decorrentes da perda, por morte, do seu padrasto e do sofrimento que a mesma lhe tenha causado.

Nessa parte procederá, consequentemente, o recurso da apelante.”


A questão vem suscitada pelos AA., novamente, na revista, com os argumentos seguintes (conclusões):

“13ª É importante constatar que o conceito de família tem vindo a sofrer alterações nos últimos anos. Não existe uma família, existem, isso sim, uma diversidade de tipos de famílias: adotivas; de acolhimento; step families (com padrasto ou madrasta e enteados), monoparentais, etc. Na sociedade atual há mais casais sem filhos, mais divórcios, mais agregados monoparentais, há os pais biológicos, os pais sociais, os novos meios-irmãos e os novos filhos que nascem do novo casal, constituindo as famílias recompostas que surgem com o desmembramento de outras famílias, do que resulta que o conceito tradicional de família está a mudar e já não temos o modelo de ideologia e de moral familiar existente à data de entrada em vigor do Código Civil vigente (1967).

14ª Tendo em consideração que o A. DD tinha uma relação com o EE igual à dos irmãos e que, na prática, perdeu o efetivo pai no acidente sub judice, será de extrema injustiça que não venha a ser indemnizado. Não temos quaisquer dúvidas que será essa a interpretação que se irá consolidar no futuro. A título meramente comparativo recordemos as divergências jurisprudenciais a propósito da possibilidade, ou não, da concorrência da culpa com o risco (responsabilidade objetiva). Hoje é pacificamente aceite a interpretação de que o art. 505º do CC permite tal concorrência.

Sem inovação, sem disrupção, estaríamos na idade da pedra…”


A recorrida mantém a sua posição no sentido de não poder ser acolhida a pretensão.


Vejamos.

Não há dúvida que a situação colocada pela presente acção é muito particular em face das situações que se conseguiram identificar na jurisprudência como casos diversos dos especificamente previsto no art.º 496.º do CC no que respeita ao titulares do direito a indemnização pelo sofrimento decorrente da morte de um ente querido, e que o enquadramento legal e doutrinal se encontra devidamente reproduzido, nomeadamente na sentença.

A história do preceito legal – e a posição do autor do projecto – estão também enquadradas.

Faltará apenas saber se o tribunal pode considerar que a norma comporta interpretação extensiva ou analógica, em alguma medida, e parece-nos que a resposta deve ser positiva, embora prudentemente aferida pelas situações específicas de cada caso concreto.

Para assim se avançar podemos desde logo argumentar nos seguintes moldes:

1 - A realidade familiar hodierna, ainda que não desconhecida ao tempo da feitura do CC, é diversa – pela maior regularidade sociológica da sua ocorrência – face ao tempo da feitura do CC. Na época da feitura do CC dominava a família nuclear constituída pelo casal e seus próprios filhos, enquanto os tempos modernos evidenciam uma padrão de divórcios muito superior – facto notório e reconhecido – conduzindo muitas famílias desfeitas a renovarem a sua vivência pela constituição de novos modelos, entretanto consolidados, quer decorrentes da constituição de uniões de facto, quer de novos casamentos, com a integração dos filhos de um dos membros na nova realidade, muitas vezes a par com o nascimento de novos filhos do “casal”, que vivem e convivem sem evidências de não constituírem uma família;

2 - Reconhecimento legal das novas famílias por via dos regimes de protecção da união de facto, com consagração legal, e alteração normativa do art.º 496.º, no sentido de abarcar essa mesma realidade no domínio da protecção ressarcitória;

3 - Criação de regime específicos de inserção de crianças em família, como seja o apadrinhamento civil (Lei n.º 103/2009 de 11 de Setembro), através do alargamento de regime de protecção como os que se evidenciam nos seguintes artigos:

Artigo 21.º Alimentos

1 — Os padrinhos consideram -se ascendentes em 1.º grau do afilhado para efeitos da obrigação de lhe prestar alimentos, mas são precedidos pelos pais deste em condições de satisfazer esse encargo.

2 — O afilhado considera -se descendente em 1.º grau dos padrinhos para o efeito da obrigação de lhes prestar alimentos, mas é precedido pelos filhos destes em condições de satisfazer este encargo.

Artigo 22.º Impedimento matrimonial e dispensa

 1 — O vínculo de apadrinhamento civil é impedimento impediente à celebração do casamento entre padrinhos e afilhados.

2 — O impedimento é susceptível de dispensa pelo conservador do registo civil, que a concede quando haja motivos sérios que justifiquem a celebração do casamento, ouvindo, sempre que possível, quando um dos nubentes for menor, os pais.

3 — A infracção do disposto no n.º 1 do presente artigo importa, para o padrinho ou madrinha, a incapacidade para receber do seu consorte qualquer benefício por doação ou testamento.

Artigo 23.º Direitos

1 — Os padrinhos e o afilhado têm direito a: a) Beneficiar do regime jurídico de faltas e licenças equiparado ao dos pais e dos filhos; b) Beneficiar de prestações sociais nos mesmos termos dos pais e dos filhos; c) Acompanhar -se reciprocamente na assistência na doença, como se fossem pais e filhos.

2 — Os padrinhos têm direito a: a) Considerar o afilhado como dependente para efeitos do disposto nos artigos 79.º, 82.º e 83.º do Código do IRS; b) Beneficiar do estatuto de dador de sangue.

3 — O afilhado beneficia das prestações de protecção nos encargos familiares e integra, para o efeito, o agregado familiar dos padrinhos.

4 - Reconhecimento social da necessidade de tutela de situações não especificamente enquadráveis numa leitura estrita do art.º 496.º do CC e com aplicação já efectivada na ordem jurídica portuguesa, seja pela via da jurisprudência, seja pela via extrajudicial da composição de litígios, reportando-nos, quanto a esta última situação, aos casos de indemnização pela morte das vítimas dos incêndios de Pedrógão (de 2017), conforme consta do Relatório do Conselho constituído para fixação dos critérios das indemnizações por morte das vítimas dos incêndios em Portugal, nos meses de junho e outubro de 2017”, in Diário da República, 2.ª série, de 30 de Novembro de 2017 — págs. 27202(4) a 27202 (7) – relatório onde se defendeu que a ordem de prioridades do art.º 496.º podia, em certas circunstâncias, ter uma leitura menos rígida, pois aí se escrevia (no confronto entre a primeira e segunda categoria de titulares): “em termos de equidade, […] o direito dos ascendentes em 1.º grau não deve ser afastado pelo cônjuge ou unido de facto e pelos filhos, como sucederia se fosse estritamente seguido o critério do agrupamento do art. 496.º, n.ºs 2 e 3” e que “não se crê sustentável que a dor dos pais seja menos digna de compensação que a dor dos filhos”.

No indicado relatório, a p. 141-142, também se diz (negrito nosso):

3.5. Danos próprios dos familiares das vítimas

 As circunstâncias em que as mortes se verificaram, o seu carácter imprevisto, a visibilidade e prolongada sobre-exposição mediáticas, as mudanças duradouras que os incêndios provocaram no ambiente natural e humano de vivência dos afetados, tudo se conjuga para gerar um luto de grande impacto traumático e de muito difícil superação. Tal deverá ser tido em conta na fixação do valor da compensação desta categoria de danos. Estando em causa o dano de apego - a dor e o desgosto de certos familiares das vítimas provocados pela morte destas -, no domínio estrito da responsabilidade civil seria determinante, na fixação dos montantes indemnizatórios, para além da fonte do elo familiar, o concreto grau de ligação afetiva existente entre os titulares da indemnização e aqueles cuja morte a ocasionou. Neste contexto de uma pluralidade de mais de uma centena de casos, unificados apenas pelo mesmo evento lesivo, está plenamente justificada a fixação, em abstrato, de valores ajustados às situações típicas decorrentes da natureza da relação familiar entre o titular e a vítima, mas sem excluir, dentro de cada grupo, alguma variação, tanto para mais como para menos, em função de dados concretos, assentes em índices objetivos. De entre estes, e no sentido de uma majoração, merecem especial relevo a circunstância de o titular, saindo com vida, ter estado, todavia, também ele diretamente exposto à ação lesiva que provocou a morte da vítima, com perceção clara de que esta iria ocorrer, bem como a coabitação duradoura do titular com a vítima, em comunidade de vida, à data do incêndio. Assim, respeitando a delimitação dos titulares com direito a indemnização e a ideia de chamamento sucessivo, formaram-se três escalões indemnizatórios, com montantes progressivamente menores. O primeiro, com direito aos montantes mais elevados, é constituído pelo cônjuge ou unido de facto, filhos (ou outros descendentes) e ascendentes em 1º grau. O segundo pelos ascendentes em 2:º grau, e pelos irmãos (quanto a estes, os que coabitassem com a vítima). O terceiro pelos irmãos e pelos sobrinhos (que os representem).

(…)

A solução desvia-se do agrupamento constante do artigo 496.º, na medida em que desdobra os ascendentes em duas categorias, situando os ascendentes em 1.º grau no primeiro grupo (e não no segundo) e os irmãos coabitantes no segundo (e não no terceiro). Entende-se que, nestas circunstâncias, em termos de equidade, e para efeito de uma compensação monetária com esta natureza extrajudicial, o direito dos ascendentes em 1.º grau não deve ser afastado pelo dos cônjuges ou unidos de facto e pelo dos filhos, como aconteceria se fosse estritamente seguido o critério de agrupamento do artigo 496.º, n.ºs 2 e 3. Sobretudo num quadro danoso desta natureza, não se crê sustentável admitir que a dor dos pais seja menos digna de compensação do que a dor dos filhos. De igual modo, o direito à reparação dos irmãos coabitantes não deve ser excluído pela anteposição do direito dos ascendentes (em 2.º grau). A transposição desta categoria de familiares para o segundo grupo garante que eles serão igualmente chamados, ainda que haja ascendentes em 2.º grau. Daí a reconfiguração dos dois primeiros grupos. A indemnização é atribuível por inteiro, a cada um dos titulares chamados. O decesso de mais do que uma vítima constitui um fator de multiplicação, em número correspondente.”

5 - Outros estudos jurídicos não citados na sentença e no acórdão referido apontam exemplos e colocam a questão da necessidade de adaptação da lei à realidade, como o estudo de Maria Gabriela Páris Fernandes, “A compensação dos danos não patrimoniais reflexos nos cinquenta anos de vigência do Código Civil português de 1967”, Elsa Vaz de Sequeira, Fernando Oliveira e Sá (coord.), Edição comemorativa do cinquentenário do Código Civil, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, p. 389 a 422, de onde parece resultar a ideia de expansão da norma.

6 - Na jurisprudência do STJ também se parece prefigurar uma abertura a uma leitura menos tradicional do art.º 496.º do CC, no aresto de 28-02-2019, Proc. 1940/14.5T8CSC.L1.S1, através da declaração do relator onde a defendeu que, para eventos posteriores a 1 de Maio de 2017, as categorias não seriam estanques.

Nesse processo estava em causa a indemnização por dano não patrimonial aos pais da vítima, tendo ela descendentes e vivendo em união de facto e o relator indicou que apenas aceitava a orientação tradicional por o acidente de viação ter ocorrido antes 1 de maio de 2017, altura em que o CC foi alterado e introduzido um regime de protecção dos animais (Lei n.º 8/2017, de 3 de Março, e que entrou em vigor a 1 de Maio) que, a seu ver, altera o quadro jurídico da interpretação imposta pelo art.º 496.º do CC .

De acordo com a Lei n.º 8/2017, de 3 de Março foi introduzido no CC o art.º 493.º-A, cujo n.º3 dispõe:

“No caso de lesão de animal de companhia de que tenha provindo a morte, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o seu proprietário tem direito, nos termos do n.º 1 do artigo 496.º, a indemnização adequada pelo desgosto ou sofrimento moral em que tenha incorrido, em montante a ser fixado equitativamente pelo tribunal”

Dessa norma o relator retirou a seguinte ilação:

O art. 493.º-A deverá hoje relacionar-se com o n.º 4 do art. 496.º do Código Civil, a fim de evitar contradições sistemáticas, teleológicas a valorativas, no quadro de um sistema de direito civil cujo fundamento histórico e ideológico é o personalismo ético.

Seria de todo em todo absurdo que se atribuísse uma compensação pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte de um animal de companhia e que se recusasse a compensação pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte de um filho, ou de um irmão.

Em diferentes palavras, ainda que insistindo em igual pensamento: Entendo que o art. 493.º-A reforça a representação da pessoa como ser em relação — e que, ao reforçá-la, sugere uma reinterpretação dos arts. 70.º, n.º 1, e 496.º, n.ºs 2 a 4, em termos de a compensação das pessoas compreendidas na primeira categoria do n.º 2 não excluir necessariamente a compensação das pessoas compreendidas na segunda, desde que demonstrem que a morte de um familiar lhes causou um dano não patrimonial particulamente grave.”

Na situação dos autos está em causa saber se o filho da primeira autora, esta casada com a vítima, mas sem que o falecido seja o pai do indicado sujeito, ainda que coabitasse com o casal e com os demais filhos do casamento, pode ter direito a ser indemnizado pelo sofrimento derivado da morte do falecido, ainda que não se integre em nenhuma das categorias indicadas no n.º2 do art.º 496.ºCC, por não ser legalmente filho do falecido.

Na verdade, não cremos que se justifique excluir este A. do direito à indemnização, para além das razões já indicadas da ideia de paridade de tratamento:

- quer por paridade com a interpretação, que se considera ajustada à nova redacção legal e aos tempos modernos, proposta na declaração do relator do acórdão citado;

- quer por paridade, ou até por maioria de razão, com a circunstância de a morte de um animal poder dar origem ao direito a ser indemnizado pelo sofrimento do proprietário.

O sentido valorativo que se pode extrair da disposição legal citada – 496.º - só pode conduzir a que se entenda que o A. aqui em causa é equiparado a filho, ou não o sendo, é uma das pessoas com quem o falecido tinha uma especial relação de proximidade – cf. factos provados – a justificar que o seu sofrimento seja valorado pelo Direito ao perder alguém que, para si, parecia representar a figura paterna.

Na situação dos autos, o 4º A., viveu com o falecido desde os 2 anos de idade, ainda que não fosse seu filho biológico. Nesta vivência comungou de todas as experiências que um filho experimenta em relação ao seu pai e os factos provados assim o atestam:

C) Além de marido e pai dos 1ºs três AA., o EE vivia ainda com o 4º A., apenas filho da A. - a quem, conjuntamente com a 1ª A., alimentava, vestia, calçava, suportava despesas escolares e outras, acarinhava e era acarinhado como se de um efetivo filho se tratasse, com quem, aliás, vivia desde os dois anos de idade.

 QQ) O 4º A./DD, no seu quotidiano, relacionava-se com o EE como se de seu pai tratasse – assumiam-se, de facto, nas brincadeiras entre ambos, nas conversas, nas ajudas recíprocas, como pai e filho; A relação deles era de grande proximidade e amizade filial.


Deve, assim, repristinar-se a decisão adoptada na sentença, atribuindo-se ao 4ºA o direito a uma indemnização pela morte do seu padrasto, cujo valor de 18.000 euros, se afigura justa e equitativa.

Procede, nesta questão, o recurso principal.


20.  Nos recursos – principal e subordinado/contraditório – também se discute se o valor indemnizatório atribuído aos 1º, 2º e 3º AA. a título de moral dos próprios AA foi correctamente decidido.

AA. entendem que os valores são baixos, e ré entende que são altos.

A título de reparação pelos danos não patrimoniais próprios de cada um dos demandantes, por virtude da morte de EE, a sentença recorrida fixou os seguintes montantes: “...40.000 EUR à Autora viúva, 30.000 EUR, a cada um dos e AA., seus filhos.

Por seu turno, o Tribunal da Relação baixou os valores em causa fixando: € 30.000 (trinta mil euros) à Autora viúva, € 25.000 (vinte e cinco mil euros) a cada um dos 2º e 3º autores, filhos da vítima.

E fê-lo com a seguinte justificação:

“Sendo pacífico, face ao teor literal no normativo em causa, que a viúva e os filhos da vítima têm direito a serem ressarcidos pelos danos não patrimoniais próprios sofridos com a morte do marido e do pai, importa, antes de mais, indagar se são excessivos, como alega a recorrente, os valores indemnizatórios fixados a esse título.

A determinação de tais valores será, uma vez mais, feita com recurso à equidade, ponderando a especificidade do caso concreto, nomeadamente os vínculos afectivos que ligavam os beneficiários da indemnização à vítima, tomando ainda por referência os valores adoptados pela jurisprudência para casos semelhantes.

No caso concreto, importa, assim, ponderar o seguinte circunstancialismo fáctico apurado:

- À data do sinistro o EE, marido da primeira autora e pai do segundo e terceiro autores, tinha 33 anos de idade;

- A essa data a autora AA tinha 35 anos de idade, e os filhos de ambos, BB e CC tinham, respectivamente, 4 e 13 anos de idade.

- À data do acidente o EE era pessoa alegre, comunicativo e bem disposto, devotando à família grande estima e carinho, sendo também estimado pelos familiares.

- Realizava com frequência convívios, piqueniques, passeios e actividades desportivas com a família; - A relação dele com a mulher e com os filhos era vista por toda a comunidade como um exemplo de família feliz; - O EE era um marido carinhoso e um bom pai, pelo que a sua morte causou e causa um sentimento de vazio imenso e deixa toda a família em profunda depressão.

- A relação com os seus filhos e mulher era de grande proximidade e cumplicidade.

- A autora AA sofreu ansiosamente durante os 13 dias que mediaram entre o sinistro e a morte.

- O momento em que comunicou a notícia da morte do EE aos seus filhos foi de grande sofrimento.

Ponderando os apontados critérios ter-se-ão de considerar exagerados os valores fixados na sentença recorrida, mostrando-se mais ajustadas à concreta situação aqui discutida e atendendo aos valores convocados pela jurisprudência para ressarcir danos similares as indemnizações de 30.000,00 para a viúva e de 25.000,00 para cada um dos filhos do falecido EE.”


E foi na nota 33 do acórdão recorrido que o tribunal deu conta da jurisprudência comparativa que considerou igualmente importante na fundamentação do valor apurado – citando arestos do STJ entre 2010 e 2018.

Contestando ambas as partes os valores encontrados, mas não se identificando na decisão judicial tomada segundo a equidade um desvio dos critérios habitualmente seguidos na jurisprudência, não se identifica nenhuma violação de princípios da igualdade ou qualquer iniquidade que o STJ possa corrigir, com utilização dos poderes que lhe são conferidos de apenas conhecer de questões de direito, nomeadamente de direito estrito.

Tomando também por referência jurisprudência recente do STJ já aqui referida – nomeadamente o ac. STJ de 25/2/2021, proc. 4086/18.3T8FAR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt – o valor apurado não se encontra fora dos padrões arbitrados em situações semelhantes, ainda que exista uma variação nos valores atribuídos, justificada pela diferente situação de cada processo e do juízo equitativo sobre a mesma formulado pelo tribunal.

Improcedem os recursos principal e o subordinado/contraditório.


21. Quantum da indemnização arbitrada a título de dano patrimonial futuro

Entrando na análise da questão da quantificação do dano patrimonial futuro, os AA. entendem que valores fixados são baixos, e ré entende que são altos.

Na sentença a solução encontrada foi a seguinte: “a título de indemnização pelo dano emergente da perda da contribuição patrimonial do falecido, 390.000 EUR à Autora; 4.000 EUR ao A., FF; 57.000 EUR ao Autor, CC e à Autora, BB, o montante de 129.000 EUR, tudo no montante global de 580.000 EUR”.

A justificação foi a seguinte:

Revertendo ao caso sub iudice, tendo em consideração os factos adquiridos, e que aqui nos dispensamos de reproduzir, e destacando que o montante indemnizatório a arbitrar, pela perda do contributo remuneratório, enquanto dano patrimonial pela frustração de alimentos, irá ser entregue de uma vez, dano que, em grande medida, é futuro, o que permitirá aos seus beneficiários rentabilizá-la, em termos financeiros, impõe-se considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa da responsável civil. Em Portugal, condizente a uma taxa de juro de 1%, julgada equitativa e ajustada, na linha do rendimento do capital, aplicado em produto sem risco, a reduzir ao montante do capital a atribuir aos Autores.

A esperança de vida à nascença em Portugal foi, pelo INE, em 2021, estimada em quase 81 anos (80,93), sendo 77,95 anos para os homens.

Reduzido em/de um terço o rendimento mensal da vítima a atender é o de aproximadamente 1.100 EUR. Ponderando-se ademais que após a emancipação dos filhos seria superior a contribuição alimentar com relação à mulher, considerada a redução quantificada, pela atribuição de uma vez da quantia, quanto à Autora viúva alcançamos um dano patrimonial de 390.000 EUR [275 EUR (1100:4) x 18 meses (entre 20.06.2020 e a data da audiência: 14.05.2021) + 367 EUR (1100:3) x 140 meses (14mesesx10 anos, entre 15.05.2021 e 20.04.2031, ocasião em que o A. CC atingiria os 22 anos e presumivelmente a sua inserção na vida profissional activa)+ 550 EUR (1100:2) x 80 meses (14x5anos +9 meses) entre 20.04.2031 e 05.01.2038, data da emancipação laboral da menor BB) + 750 EUR1 (1500:2) x 398 meses (28 anos x14 meses + 6 meses, entre 05.01.2038 até 20.06.2066 data do termo da esperança média de vida do sinistrado)], consignando-se que após o cálculo aritmético assim explicitado se fez incidir a ponderação emergente da antecipação, mas ainda a consideração de eventuais aumentos salariais, mas ainda a do previsível aumento das despesas próprias do sinistrado consigo mesmo à medida do envelhecimento, como anotado.

Ao Autor, FF, cabe o valor de 4.000 EUR [275 EUR (1100:4) x 18 meses (entre 20.06.2020 e a data da audiência: 14.05.2021)], interveniente aqui a ponderação da entrega imediata.

Ao Autor, CC, o valor de 57.000 EUR (367 EUR x 158 meses), aqui nos remetendo para as considerações anteriores.

À Autora, BB, o montante de 129.000 (550 EURx238 meses)”.


No acórdão recorrido, afirmando-se que o dano em causa se afere pelo direito a alimentos ou pelos alimentos prestados, veio a decidir-se que os valores apurados pela 1ª instância deviam ser reduzidos.


Na fixação do dano patrimonial futuro a sentença utilizou os seguintes critérios:

- Valor apurado reporta-se a dano futuro pela frustração de alimentos;

- Indemnização será paga toda de uma só vez, justificando-se um desconto pela antecipação na ordem de 1%, correspondente à taxa de juro vigente à data do apuramento realizado;

- Valor apurado em função dos rendimentos do falecido, homem, com esperança média de vida na ordem dos 77,95 anos (reportada ao ano do nascimento da vítima, conforme divulgação de 2021 do INE), ponderado pelo número de anos em que receberia esse rendimento;

- Valor dos rendimentos do falecido com ponderação da possível evolução ao longo dos anos

- Rendimento da vítima apenas considerado em 2/3 (no valor de 1.100 EUR/mensal), porque a mesma despenderia 1/3 consigo própria se não houvesse falecido;

- Consideração do número de membros do agregado familiar a alimentar, em função da idade dos filhos, que se fossem autonomizando em função da sua idade;

- Consideração de um possível aumento dos encargos com o próprio falecido pelo aumento da sua idade e necessidades inerentes dela resultantes, se não houvesse falecido;

E foi com a aplicação destes critérios que o tribunal definiu os valores de todos e cada um dos AA, concluindo que:

i) esposa – seriam devidos 390.000 EUR

ii) 4º A - 4.000 EUR

iii) 3º Autor - 57.000 EUR

iv) 2ª Autora - 129.000 EUR

Por sua vez o TR seguiu a mesma linha, com destaque para:

- A afirmação de que o prejuízo a reparar ao abrigo do citado artigo 595.º, n.º 3 é somente o que decorre da perda de alimentos que, por morte da vítima, esta deixou de poder prestar a quem dela os recebia ou teria direito a receber;

- Valor do rendimento do falecido (1.476,15, que difere do valor apurado na sentença - €1.539,45 - por ter havido modificação dos factos provados, no ponto RR), após o desconto de 1/3 do rendimento, que seria afecto ao seu próprio sustento - € 984,00 – ponto onde se afsta do valor de 1.100 euros considerados pela 1ª instância;

- Número de anos em que o falecido receberia esse rendimento e o afectaria a alimentos –

- Ponderação da “circunstância de o cônjuge da vítima, com direito a indemnização por perda do aludido contributo remuneratório, estar ele próprio obrigado a contribuir para as despesas do agregado familiar e a prestar alimentos aos filhos menores ou que, tendo atingido a maioridade, tenham ainda direito a eles por não terem ainda concluído a sua formação académica”;

- Ponderação da circunstância da morte do falecido dar origem ao “recebimento de pensão de sobrevivência por morte do cônjuge ou ascendente que, em vida, contribuía com parte dos rendimentos do seu trabalho para as despesas da esposa e dos descendentes, com direito a alimentos”

E por isso os valores apurados e tidos por correctos seriam os seguintes:

-  Para a autora AA (viúva): a quantia de € 267.000,00;

- Para o autor CC (filho mais velho): a quantia de € 43.000,00;

- Para a autora BB (filha mais nova): a quantia de € 78.000,00;

- Para o 4ºA - 1.000,00.


Para suportar a ideia de que os valores são baixos dizem os AA:

- Seria preciso considerar os valores dos trabalhos extra obtidos pelo falecido;

- Estamos perante uma família numerosa (indica serem 5 pessoas, ainda que aqui esteja a contabilizar o próprio falecido), dependentes do rendimento do falecido;

- O subsídio de desemprego da 1ªA ter carácter temporário;

- Dever-se considerar a futura progressão na carreira do falecido;

- Ter uma esperança de vida até aos 79 anos, e 33 à data do acidente;

- Dever ter-se em consideração a situação especial do Ucraniano morto nas instalações do SEF e a solução que o Estado Português encontrou para indemnizar a família;

- O valor arbitrado pelo tribunal recorrido conduzir a um valor mensal inferior ao actual salário mínimo, com que os membros da família teriam de viver.


Para suportar a ideia de que o valor é elevado diz a Ré, nomeadamente, que os AA. ficam numa situação injustificadamente favorável face ao falecimento da vítima, que os filhos vão crescendo e passam a ganhar autonomia, inclusive patrimonial, que a indemnização é recebida toda de uma vez e pode ser rentabilizada.

Que dizer?

Tudo visto e ponderado, não se identificou na decisão do tribunal recorrido nenhum motivo de especial censura no raciocínio envolvido na alteração da decisão adoptada pela 1ª instância, nomeadamente quando estão em causa danos cujo apuramento não é estritamente objectivo e foram seguidos os critérios habituais da jurisprudência para casos idênticos.

É este o entendimento do STJ, conforme foi já expresso em inúmeros arestos, dos quais se cita apenas o Ac. do STJ relativo ao processo 465/11.5TBAMR,G1.S1, de 11-4-2019, em cujo sumário se diz:

I. É reconhecido o melindre da fixação do valor indemnizatório pelos prejuízos decorrentes da perda do contributo remuneratório, dado pelo falecido, para as despesas do seu agregado familiar, na medida em que se funda em parâmetros de incerteza, nomeadamente, quer quanto ao tempo de vida do lesado, quer quanto à própria evolução salarial que a vítima teria ao longo da sua vida, evolução que hoje, mais do que nunca, é de uma imprevisibilidade evidente, inclusive, a própria manutenção do emprego, cada vez mais incerta, outrossim, os próprios índices de inflação, entre outros.

II. Não podendo ser quantificado, em termos de exactidão, o prejuízo decorrente da perda do contributo remuneratório, dado pelo falecido, para as despesas do seu agregado familiar, impondo-se ao Tribunal que julga equitativamente, este não poderá esquecer, critérios objectivadores, aferidores e orientadores, ou seja, não poderá deixar de considerar que a arbitrada indemnização pela frustração dos alimentos deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não receberá do falecido e que se extingue, no caso do cônjuge, no termo do período que, provavelmente viveria, não fora o acidente que o vitimou, e quanto ao descendente, no momento em que este, previsivelmente, irá concluir a sua formação académica; sabendo que as tabelas matemáticas, por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carácter meramente indicativo, não substituindo, de modo algum a ponderação judicial com base na equidade; que no cômputo de indemnização, deve ser proporcionalmente deduzida, a importância que o próprio falecido gastaria consigo mesmo ao longo da vida (em média, para despesas de sobrevivência, um terço dos proventos auferidos); sem deixar de considerar a natural evolução dos salários; ponderando, outrossim, o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, importando introduzir um desconto no valor achado, condizente ao rendimento de uma aplicação financeira sem risco; tudo isto sem deixar de atender à esperança média de vida do falecido.

III. Na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações, a par de um outro factor que contende com a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, ou da previsível actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado, encontrando, assim, uma orientação para o cálculo do montante indemnizatório pela reparação da perda da capacidade aquisitiva futura, a aferir segundo um juízo de equidade, tomando em consideração critérios objectivadores, aferidores e orientadores seguidos pela jurisprudência, enunciados na precedente alínea.

IV. A vida não tem um preço, não fazendo sentido, equacionar a valoração, para mais ou menos, da vida de uma pessoa à de qualquer outra, temos de admitir que, em razão da necessidade de atribuir uma indemnização pela sua perda, temos que aceitar que a vida, não só tem um valor de natureza - igual para toda a gente - mas também um valor social, uma vez que o homem é um ser em situação, levando-nos a encarar o valor da vida em termos muito relativos.

V. Tratando-se de uma indemnização fixada segundo a equidade, mais do que discutir a aplicação de puros juízos de equidade que, em rigor, não se traduzem na resolução de uma “questão de direito”, importa, essencialmente, num recurso de revista, verificar se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados e se se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis.


Adicionalmente.

O facto de existirem arestos em que não se operou o desconto por antecipação não invalida que o mesmo (desconto) não deva ser efectuado no momento actual, em que as taxas de juros (e a inflação) estão de novo em trajectória ascendente, chegando esta última já aos 9% (2022, mês de julho).

O facto de no aresto recorrido se ter descontado 1/3 do valor do rendimento do falecido com a referência a gastos consigo próprio não é descabida, mesmo na situação concreta dos presentes autos e perante os factos provados – SS) Para além da retribuição líquida, a sua entidade patronal suportava ainda todas as despesas consequentes da sua estada profissional em ..., designadamente com alimentação, alojamento e deslocações/transporte nomeadamente para Portugal – por também ser devida a consideração dos factos não provados, nomeadamente os indicados sob o ponto 7. e 11. (7. O EE não gastava um cêntimo que fosse no estrangeiro, pelo que todo o dinheiro que ganhava era para a família;11. Dado o seu profissionalismo, competência e ambição, o EE em poucos anos tornar-se-ia encarregado o que iria permitir que viesse a auferir salário próximo dos €2.500, líquidos.)

Improcedem os recursos principal e subordinado/contraditório.


III. Decisão

Pelo exposto,

1. não se admite o recurso principal dos AA. na parte relativa aos juros de mora;

2. Procede parcialmente o recurso principal dos AA. e improcede na totalidade o recurso subordinado/contraditório da Ré;

3. Confirma-se a decisão recorrida, na parte não revista.


As custas do recurso principal são da responsabilidade dos AA. e da Ré, na proporção do decaimento.


Lisboa, 15 de Setembro de 2022


Fátima Gomes(Relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira