Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
613/95.0TBFUN-A.L1-C.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
IDENTIDADE DE FACTOS
ESCUSA
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I - A afirmação da irrecorribilidade da decisão do pedido de escusa tem em vista a interposição de recursos ordinários, não vedando o recurso de constitucionalidade, nem o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. O âmbito de previsão e aplicação da norma é restrito aos recursos ordinários. Relativamente à admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência valem as regras ou princípios gerais e as normas específicas desse recurso.

II - O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, de carácter normativo, destina-se a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei.

Decisão Texto Integral:


Processo n. º 613/95.0TBFUN-A.L1-C.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I.

1. AA, interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 06.06.2019, por se encontrar em oposição com o acórdão proferido pelo Supremo tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 49/00.3JABRG.G1 de 11.11.2010.

2. Apresenta as seguintes conclusões (transcrição):

a) O presente recurso por "Oposição de Acórdãos" é, demonstradamente, tempestivo, observando o disposto no art° 438° do CPPenal.

b) Em ambos os Acórdãos se decidiu a mesma questão fundamental de direito - a verificação, ou não, da existência de motivo "grave e sério" que justifique o deferimento excepcional de pedido de escusa de Magistrado Julgador em processo penal, nos termos do n° 1., do art° 43° do CPPenal, sem violação do n° 9., do art° 32° da CRP quer confere ao arguido a garantia do Juiz natural.

c) O Acórdão recorrido considerou que uma mera relação de arrendamento - Juiz arrendatário e arguido senhorio - constituía, nos termos do n° 1., do art° 43° do CPPenal, motivo "grave e sério" para justificar o deferimento do pedido de escusa da Meritíssima Juíza julgadora e o excepcional afastamento do juiz natural que integra as garantias constitucionais do arguido, asseguradas, neste caso, pelo citado n° 9., do art° 32° da CRP.

d) O Acórdão fundamento, perante motivo bem mais relevante, a todos os títulos - a proximidade decorrente de relação profissional e pessoal, de funcionário judiciário - arguido - e Juíza julgadora - não constituía motivo suficientemente sério e grave conforme o exigido no n° 1., do art° 43° do CPPenal, sob pena de ofensa do n° 9., do art° 32° da CRP.

e) Há, pois, manifesta oposição entre os dois julgados, no domínio da mesma legislação - n° 1., do art° 43° do CPPenal e n° 9., do art° 32° da CRP - sobre a mesma questão fundamental de direito - o que se deve entender por motivo suficientemente "grave e sério" que justifique, para que se assegure a necessária isenção e imparcialidade do julgador, o afastamento excepcional do juiz natural, por via de incidente de escusa.

f) Deve, pois, ser proferido Acórdão relativamente à questão fundamental de direito contraditoriamente tratada pelos dois acórdãos - o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento - no seguinte sentido: Não integra motivo sério e grave bastante e suficientemente relevante para provocar suspeita e gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, que justifique a escusa do juiz natural, a relação de arrendatário por parte do julgador, por um lado, e do arguido, por outro, como senhorio.

Porque está em tempo e existe manifesta oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação, requer a V. Exa. que, admitido o recurso, se sigam os demais termos até final.

3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa respondeu sustentando em conclusão:

«1. O Recorrente não identificou, como lhe era exigível, os aspectos de identidade que alegadamente determinam a contradição invocada entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento.

2. O Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento não se pronunciam sobre a exacta situação de facto, e como tal, não estamos perante dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas expressas.

3. A duas decisões apresentam distintos enquadramentos jurídicos à luz dos contornos da factualidade nelas apreciadas, pelo que, e de acordo com a nossa Jurisprudência mais conceituada, o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento não decidem em termos opostos sobre a mesma questão de direito.

4. Não se verifica, pois, a oposição de julgados pretendida pelo Recorrente.

5. Termos em que se tem de concluir pela não verificação dos requisitos legais previstos no artigo 437. ° do Código de Processo Penal, por não estarmos perante dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas expressas.

6. O que constitui causa de rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos artigos 414. ° n.° 2 e 420.° n.° 1 al. b), do C. de Processo Penal.

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça a Exma. Procuradora-Geral Adjunta sustentou «(…) não estar preenchido o pressuposto de natureza substantiva, a que alude o art. 437º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, para que o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência possa ser aceite, pelo que (…) o mesmo deverá ser rejeitado, por não se verificar uma oposição de julgados, nos termos dos arts. 440º, nº 3, e nº 4 e 441 °, n° 1, ambos do Cod. Proc. Penal».

5. O recorrente reiterou a sua posição.

6. Colhidos os vistos e após conferência cumpre decidir, decisão que na fase preliminar do recurso se circunscreve a aquilatar da sua admissibilidade ou rejeição (art. 441.º, CPP).

II.

1. Os arts. 437.º/1/2/3 e 438.º/1/2, CPP, assim como a jurisprudência pacífica deste STJ (PEREIRA MADEIRA, Código de Processo Penal, Comentado, 2021, p. 1402), fazem depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dos seguintes pressupostos:

a) Formais:

1. Legitimidade do recorrente;

2. Interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido;

3. Identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se publicação houver;

4. Trânsito em julgado do acórdão fundamento.

b) – Substanciais:

1. Que os acórdãos respeitem à mesma questão de direito;

2. Sejam proferidos no domínio da mesma legislação;

3. Assentem em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto;

4. Que as decisões em oposição sejam expressas.

2. Quanto a estes dois últimos requisitos - soluções opostas a partir de idêntica situação de facto; decisões em oposição expressas -, constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1 – 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).

3. Em tema de legitimidade para recorrer dispõe o artigo 401.º/1/b, CPP, que tem legitimidade para recorrer o arguido de decisão contra ele proferida; acresce à legitimidade a exigência de interesse em agir, pois não pode recorrer quem o não tiver (art. 401.º/2, CPP). O interesse em agir afere-se pela verificação que da procedência do recurso advém utilidade para o sujeito processual, e tem de ser concretizável no sentido de da procedência do recurso poder derivar para o recorrente um concreto benefício; o interesse em agir consiste na necessidade de usar o recurso para fazer valer ou garantir um qualquer interesse legítimo do recorrente carecido ou digno de tutela, e que o recurso vise acautelar (art. 401.º/2, CPP).

4. A decisão do TRL sobre o pedido de escusa é irrecorrível (art. 45.º/6, CPP), mas a afirmação da irrecorribilidade tem unicamente em vista a interposição de recursos ordinários, não vedando o recurso de constitucionalidade, nem o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. O âmbito de previsão e aplicação da norma é restrito aos recursos ordinários. Relativamente à admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência valem as regras ou princípios gerais (art. 401.º, CPP) e as normas específicas (arts. 437.º e 440.º, CPP).

5. No caso, verifica-se a interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido; foi identificado o acórdão com o qual o acórdão recorrido, na perspetiva do recorrente, se encontra em oposição (o acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, sendo certo que o acórdão fundamento transitou em julgado.

6. A decisão recorrida foi proferida pelo TRL e deferiu um pedido de escusa da juíza a quem o processo foi distribuído. Como é obvio, essa decisão não foi proferida contra o arguido. Daqui resulta que não se descortina de imediato a sua legitimidade para interpor o presente recurso. Mas vamos admitir que a decisão recorrida, ao deferir o pedido de escusa poderá contender com a garantia do juiz natural o que se reconduz à tutela das garantias processuais do arguido (art. 32.º/1/9, CRP). Acresce, porém, à legitimidade o interesse em agir (art. 401.º/2, CPP). Como já disse este STJ (ac. 30-05.2019, Sumários 2019), também no recurso para fixação de jurisprudência é exigível o interesse em agir do recorrente, ou interesse processual, o interesse em lançar mão deste meio de impugnação para defender um seu direito. E esse interesse tem de ser concretizável no sentido de ser um interesse com um concreto benefício que a decisão possa trazer para o recorrente. A proceder a pretensão do recorrente de ser fixada jurisprudência no sentido que propõe, essa decisão pode não trazer de volta um juiz que que em dado momento histórico foi o juiz natural, mas que, entretanto, pode ter deixado de o ser, mas essa eventualidade não obsta a que se admita o interesse em agir, desde que a decisão aporte ao recorrente um concreto e legítimo benefício…vamos também admitir que sim.

7. Importa indagar se as decisões respeitam à mesma questão de direito e se assentam em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto. Vejamos:

7.1. O acórdão fundamento (ac. deste STJ de 11.11.2010) apreciou pedido de escusa de uma juíza desembargadora do TRG que intervinha como adjunta na decisão de um recurso no processo nº 49/00.3JABBRG aí pendente, pois enquanto relatora tinha para decidir o processo nº 211/04.0TAFLG e na sua ótica «entre os dois identificados processos “existe, indubitavelmente, um pano de fundo comum, toda uma ambiência alegadamente constituída por ligações, interferências e cumplicidades em que as acções se desenvolvem, inclusive nas relações entre a Câmara Municipal ... e o Futebol Clube ...”, sendo que o processo nº 211/04.0TAFLG resultou de uma certidão extraída do processo nº 49/00.3JABBRG. Deste modo, a sua intervenção, como juíza-adjunta, no processo nº 49/00.3JABBRG é objectivamente idónea a suscitar desconfiança sobre a sua imparcialidade quanto à decisão que vier a ser tomada, podendo legitimamente fazer colocar a questão de saber até que ponto a decisão a proferir nesse processo não surge influenciada por juízos formulados no processo nº 211/04.0TAFLG».

7.2. No acórdão recorrido, a juíza titular do juízo criminal competente para realizar o julgamento em tribunal singular, formulou pedido de escusa alegando ter «outorgado um contrato de arrendamento onde figuram como primeiros outorgantes e senhorios o ora arguido e seu filho; não obstante considerar que tem a serenidade e o distanciamento exigíveis para apreciar a questão submetida a julgamento, afigura-se à requerente que, objetivamente, a repercussão pública dos factos descritos, compromete a imagem pública da imparcialidade e confiança na administração da Justiça. Sendo a imparcialidade a "pedra toque" do poder judicial, tudo aquilo que a possa pôr em risco perante o público, deve, em seu entender, ser imediatamente afastado, pois o ato de julgar tem uma dignidade própria que não pode ser posta em causa».

8. No acórdão recorrido foi alegado como motivo sério e grave o facto a juíza ser arrendatária de imóvel pertencente ao arguido (art. 43.º/1, CPP). No acórdão fundamento, a causa invocada como motivo sério e grave é «a intervenção do juiz noutro processo» conexo (art. 43.º/2, CPP). Enquanto no acórdão recorrido está em questão a intervenção da juíza que preside ao julgamento em primeira instância, no acórdão fundamento apreciou-se se a intervenção de uma juíza desembargadora como adjunta no julgamento de um recurso quando tinha em mãos como relatora outro processo conexo. Num caso intervém uma juíza singularmente; no outro uma formação colegial. Estando em causa, em ambos os casos, a existência ou não de motivo sério e grave, a semelhança da dimensão normativa fica por aqui, pois no acórdão recorrido está em causa saber se a situação de facto se ajusta à previsão do art. 43.º/1, CPP, enquanto no acórdão fundamento, diversamente, a questão está em saber se a situação de facto é subsumível na cláusula descrita no art. 43.º/2, CPP.

9. Recordemos quanto aos requisitos - soluções opostas a partir de idêntica situação de facto; decisões em oposição expressas -, que constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1 – 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).

10. Do exposto (cf. 7.1. e 7.2) resulta evidente que não há identidade de situações de facto nos dois acórdãos pois é diversa a situação de facto, não tendo pontos de contato. Do cotejo entre os acórdãos em questão retira-se a conclusão de que foi a diversidade de situações da vida real que ditou a diversidade de soluções jurídicas.

11. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, de carácter normativo, destina-se a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei. Colocados lado a lado os dois acórdãos, o seu percurso argumentativo e decisório, conclui-se que não há oposição ou contradição entre os dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, pois não há identidade, mas diversidade nas situações de facto nos dois acórdãos, razão pela qual não foi a mesma a questão de direito decidida.

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III.

Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto por AA.

Custas pelo recorrente com a taxa de justiça de 4 UC.

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Supremo Tribunal de Justiça, 21 de outubro de 2021.

António Gama (Relator)

Orlando Gonçalves