Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
613/08.2TBSSB.E1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: DANO CAUSADO POR ANIMAL
DEVER DE VIGILÂNCIA
SEGURO OBRIGATÓRIO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
OPONIBILIDADE
SEGURO AUTOMÓVEL
ANALOGIA
RISCO
TOMADOR
CULPA GRAVE
Data do Acordão: 05/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 518.º, 519.º.
LEI DO CONTRATO DE SEGURO (APROVADA PELO DL N.º 72/2008, DE 16-04): - ARTIGOS 146.º, N.º1, 147.º
PORTARIA N.º 422/2004, DE 24-04.
PORTARIA N.º 585/2004, DE 29-05: - ARTIGOS 7.º, AL. G), 14.º.
D.L. N.º 312/2003, DE 17-12: - ARTIGOS 6.º, 7.º, 13.º.
D.L. N.º 522/85, DE 31-12: - ARTIGO 29.º.
Sumário : I - No âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por detenção de animal perigoso ou potencialmente perigoso (previsto no art. 13.º do DL n.º 312/2003, de 17-12 – então vigente – e regulamentado pela Portaria n.º 585/2004, de 29-05; constando os cães de raça “rottweiller” da lista anexa à Portaria n.º 422/2004, de 24-04), a cláusula segundo a qual aquele não abrange as reclamações por “danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia” é oponível a terceiro, não tendo cabimento a aplicação analógica do regime do seguro de responsabilidade civil automóvel, pois, como decorre do art. 147.º da Lei do Contrato de Seguro (aprovada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04), o legislador repeliu claramente uma solução oposta.

II - A cláusula mencionada em I não pode ser interpretada de forma estrita, sob pena de se pôr em causa o próprio risco que é essencial ao contrato de seguro. Na verdade, se a cobertura do seguro dependesse da observância de todas as disposições que regulamentam a detenção de animais perigosos, só em circunstâncias excepcionais ocorreria o evento futuro e incerto, o que significa que o seguro não teria interesse para o seu tomador ou utilidade para o lesado.

III - Há, pois, que atender ao fim prosseguido pelo contrato e ao seu efeito útil, motivo pelo qual só devem ter-se por excluídos os danos decorrentes da inobservância com, pelo menos, culpa grave, dos deveres de vigilância e de segurança (previstos nos arts. 6.º e 7.º do DL n.º 312/2003) por parte do tomador do seguro.

IV - Tendo o sinistro ocorrido no logradouro da casa dos detentores de um cão de raça “rottweiller” (onde estava o seu alojamento) e sendo a vítima uma pessoa que lhe era familiar, é de considerar que não se verificou qualquer infracção, com culpa grave, ao dever de vigilância ou às medidas de segurança aplicáveis (pois, naquele contexto, não era exigível àqueles que o animal fosse mantido preso e confinado ao alojamento), sem prejuízo de se reconhecer que o réu é responsável por se ter ausentado de casa quando o canídeo estava solto.

V - Não sendo de convocar o regime do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel e tratando-se de obrigações solidárias, a lesada pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores (demandando-os, como fez, em litisconsórcio voluntário), sendo que a seguradora apenas responderá até ao limite do seguro.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA, menor, representada pelos seus progenitores, BB e CC, moveu acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra DD – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., EE e mulher FF.

Pediu a condenação solidária dos réus no pagamento de €1.060,30 a título de indemnização por danos patrimoniais e € 60.000,00 por danos não patrimoniais.

Como fundamento, alegou que os 2.ºs réus são donos de um cão, que mordeu a autora, causando-lhe ferimentos no corpo que resultaram em dores para a menor, cicatrizes permanentes, medo persistente de animais e vergonha de mostrar o seu corpo perante terceiros.

A responsabilidade por danos causados por animais foi transferida para a 1.ª ré.

A 1.ª ré contestou por excepção, alegando que não foram observadas as normas de segurança vigentes para animais de companhia, pelo que a situação em apreço cai em cláusula de exclusão contratada com os primeiros réus.

A autora replicou, alegando que tal cláusula não lhe é oponível, por o seguro de animais perigosos ser obrigatório.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou solidariamente os RR a pagarem à autora:

- a quantia de € 100,00 a titulo de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data de citação, à taxa de 4%, até integral e efectivo pagamento;

- a quantia de € 45.000,00 a titulo de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida dos juros vincendos, contados da data de notificação da presente decisão, à taxa legal de 4%, até integral e efectivo pagamento.

Inconformados com esta decisão, os RR. interpuseram recurso, tendo a Relação:

- julgado procedente a apelação dos RR EE e FF, absolvendo-os do pedido;

- julgado improcedente a apelação da R. "DD", confirmando, nesta parte, a decisão recorrida.

 

Discordando desta decisão, a R. "DD" vem pedir revista, apresentando as seguintes conclusões:

(…)

E) Decidiu-se no douto acórdão recorrido que da factualidade que está provada não pode concluir-se pela imputação aos réus, pessoas singulares, de qualquer responsabilidade, quer a título de culpa, quer por violação de um qualquer dever geral de cuidado, quer por violação das normas legais constantes do Decreto-Lei n° 312/2003, de 17 de Dezembro, isto porque tais normas, em especial as contidas nos artigos 7.° e 8.° têm um âmbito de aplicação dirigido a uma realidade factual que não é a dos autos.

F) Decidiu-se no douto acórdão recorrido que as referidas normas legais impõem especiais deveres aos detentores de animais perigosos ou potencialmente perigosos no contacto com a via pública ou com lugares públicos, quer impondo a utilização de meios de contenção quer impondo especiais cautelas para evitar a fuga dos alojamentos e que, tendo os factos em causa nos autos ocorrido no logradouro da habitação dos 2ºs RR quando a A. ali brincava na companhia de uma prima com quinze anos de idade, as normas legais em causa não se lhes aplicam, nem tão pouco, naquelas circunstâncias, eram exigíveis aos réus outros comportamentos destinados ao cabal cumprimento do dever de vigilância.

G) Ora, é com este enquadramento jurídico, com esta subsunção dos factos ao direito, que não se pode conformar a recorrente e é dela que pede revista.

H) O contrato de seguro celebrado entre a 1ª ré e o 2° réu, titulado pela apólice n° 003381092, dispõe no nº 6 da Condição Especial da Apólice n° 020, que "Além das exclusões contidas nas Condições Gerais, esta apólice não abrange as reclamações por danos: (...) h) Causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia";

I) O cão de nome "Fred" que mordeu a autora, é propriedade dos 2°s réus e é da raça rottweiller, sendo classificado um animal potencialmente perigoso, na lista anexa à portaria n° 422/2004, de 24/04.

J) A data do evento em causa nos autos - 09 de Novembro de 2005 - estava em vigor o Decreto-Lei n° 312/2003, de 17 de Dezembro, em cujo preâmbulo se podia ler que "Os casos de ataques de animais, nomeadamente cães, a pessoas, causando-lhes ofensas à integridade física graves, quando não mesmo a morte, vieram alertar para a urgente necessidade de rever aquele diploma [o D.L.276/2001, de 17/10], e de regulamentar, em normativo específico, a detenção de animais de companhia perigosos e potencialmente perigosos, com estabelecimento de regras claras e precisas para a sua detenção, criação e reprodução. A convicção de que a perigosidade canina, mais que aquela que seja eventualmente inerente à sua raça ou cruzamento de raças, se prende com factores muitas vezes relacionados com o tipo de treino que lhes é ministrado e com a ausência de socialização a que os mesmos são sujeitos, leva que se legisle no sentido de que a estes animais sejam proporcionados os meios de alojamento e maneio adequados, de forma a evitar-se, tanto quanto possível, a ocorrência de situações de perigo não desejáveis. Para além disso estabelecem-se algumas obrigações para os detentores de animais de companhia perigosos ou potencialmente perigosos (...), que possam garantir o cumprimento das normas de bem-estar dos animais e de segurança de pessoas e bens".

K) Deste exórdio não resulta, de todo, que a intenção do legislador fosse a de regular a detenção e utilização de animais perigosos ou especialmente perigosos apenas no contacto com a via pública ou com lugares públicos. A preocupação do legislador mostra-se, claramente, dirigida para a segurança de pessoas e com o objetivo, expresso, de estabelecer regras claras e precisas para a detenção, criação e reprodução daqueles animais.

L) Neste contexto e com este objetivo dispunha o Artigo 6° do Decreto-Lei n° 312/2003, sob a epígrafe Dever especial de vigilância que "Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade tisica de outras pessoas e animais" , enquanto que o Artigo 7° do mesmo diploma, sob a epígrafe Medidas de segurança especiais nos alojamentos, dispunha que "1 - O detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado a manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente nos alojamentos, os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança de pessoas, outros animais e bens (...)"

M) E, não obstante o acidente ter ocorrido no logradouro da casa dos 2°s. réus, importa não esquecer que nos termos do Artigo 8° do diploma "1 - Os animais a que se refere este diploma não podem circular sozinhos na via pública ou em lugares públicos, devendo sempre ser conduzidos por detentor maior de 16 anos. 2 - Sempre que o detentor necessite de circular na via pública ou em lugares públicos com os animais a que se refere este diploma, deve fazê-lo com meios de contenção adequados à espécie e à raça ou cruzamento de raças, nomeadamente caixas, jaulas ou gaiolas, ou açaimo funcional que não permita comer nem morder e, neste caso, devidamente seguro com trela curta até 1m de comprimento, que deve estar fixa a coleira ou peitoral".

N) Ora, ao contrário do decidido no douto acórdão recorrido, não é pelo facto de o ataque do cão à autora ter ocorrido no logradouro da casa dos réus FF e EE que não se aplica ao caso o disposto nos Artigos 6° e 7° do Decreto-Lei n° 312/2003 e, cremos, mesmo o disposto no Artigo 8° desse diploma!

O) As regras constantes dos Artigos 6° e 7° do Decreto-Lei n° 312/2003, de 17/12, destinando-se a evitar situações de perigo não desejáveis, impõem-se aos detentores dos animais perigosos ou potencialmente perigosos, onde quer que os mesmos se encontrem, em lugares públicos ou em lugares privados.

P) E se é certo que o n° 1 do Artigo 7º do D.L. 312/2003 impõe ao detentor do animal a obrigação de manter medidas de segurança reforçadas nos alojamentos, tal obrigação, como decorre expressamente do texto da lei - ao usar a expressão «nomeadamente» - não se aplica apenas aos alojamentos, uma vez que, repete-se, o fim último da lei é o de acautelar de forma eficaz a segurança de pessoas, outros animais e bens.

Q) No caso dos autos, como vem provado, o réu EE saiu da residência deixando o cão de sua propriedade de nome "Fred", de raça rottweiller, solto no logradouro da parte da frente da sua casa, local onde se encontrava a autora, sua sobrinha, então com 5 anos de idade, bem como a filha do réu, GG, então com 15 anos de idade, e onde também estava uma bola do cão "Fred", não o tendo prendido no seu alojamento, que era situado no logradouro das traseiras da habitação, não tendo colocado um açaime ao animal, nem o tendo prendido com trela num local resguardado das menores. Quando as menores AA e GG brincavam com a bola do cão "Fred", quando a menor AA corria com a bola escondida na barriga, debaixo das suas roupas, o cão "Fred" derrubou a AA, após a ter mordido na coxa, abocanhou-lhe o crânio, atingindo o couro cabeludo na região occipital e na zona dos pavilhões auriculares, arrastando a AA pelo pavimento.

R) Naquelas circunstâncias, em que ambas as meninas brincavam com uma bola que era do cão, era exigível ao réu que previsse que deixando o animal solto, sem qualquer açaime ou contenção, e sem a presença de qualquer adulto no local, o cão poderia causar lesões às menores, como efetivamente veio a acontecer.

S) Verifica-se, pois, que os danos sofridos pela autora, a menor AA, foram causados pela inobservância das mais elementares regras de segurança por parte do réu EE, o qual, em violação clara do disposto nos Artigos 6° e 7° do Dec. Lei n° 312/2003, incumpriu grosseiramente o especial dever de vigilância que sobre ele impendia e não adotou qualquer medida com vista a acautelar a segurança da autora, e foi por isso que o acidente aconteceu.

T) Razão pela qual, por força do que dispõe a Condição Especial da Apólice 020 no seu n° 6 h), os danos sofridos pela autora estão excluídos das coberturas conferidas pela apólice n° 003381092.

U) Ao decidir de modo diverso, o douto acórdão recorrido não fez uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas, tendo violado, nomeadamente, o disposto no nº 6 h) da Condição Especial 020 da Apólice n° 003381092, ex vi do que dispõem os Arts. 6° e 7° n° 1 do Decreto-Lei n° 312/2003, de 17/12, bem como violou o disposto no Art° 607° n° 3 do CPC, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que absolva a ré seguradora do pedido e condene os réus FF e EE no pagamento da indemnização já fixada nos autos.

Os demais réus e a autora contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Se se verifica e é oponível à lesada a causa de exclusão do seguro invocada pela ré;

- Condenação solidária dos 2ºs. réus.

III.

Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. A autora, AA nasceu em 26-01-2000, sendo filha de BB e de CC;

2. Os réus EE e FF são donos do cão de nome “Fred”, da raça rottweiler, tendo adquirido esse animal na constância do seu casamento;

3. Na tarde do dia 09-11-2005, a menor AA, de 5 anos de idade, encontrava-se no logradouro da parte da frente da casa de morada de família dos réus EE e FF:

4. Nesse logradouro estava também o cão da raça rottweiler, de 18 meses, propriedade dos réus EE e FF, de nome “Fred”;

5. O réu EE deixou o cão “Fred” solto no logradouro onde se encontrava a AA, sua sobrinha e onde também estava uma bola, não tendo colocado um açaime ao animal, nem o tendo prendido com trela num local resguardado da menor; 

6. O réu EE saiu da residência, deixando o cão “Fred” solto no logradouro.

7. Na tarde do dia 09-11-2005, a menor AA encontrava-se no logradouro da parte da frente da casa de morada de família dos réus EE e FF na companhia da filha deste, sua prima, GG, com 15 anos de idade.

8. AA e GG brincavam com uma bola do cão Fred.

9. O cão “Fred” tinha o seu alojamento no logradouro das traseiras da habitação.

10. O cão “Fred” derrubou AA, após a ter mordido na coxa, quando esta corria com a bola escondida na zona da barriga, debaixo das suas roupas.

11. O cão “Fred” abocanhou o crânio de AA, atingindo o couro cabeludo na região occipital e na zona dos pavilhões auriculares.

12. O cão “Fred” arrastou AA pelo pavimento.

13. O cão “Fred” desferiu mordeduras no braço e na axila direita e, a seguir, na coxa esquerda de AA, apertando fortemente as mandíbulas e rasgando os tecidos musculares.

14. Tais mordeduras provocaram feridas e perfurações com perda de sangue da menor AA, bem como dores à mesma.

15. A avó da AA não conseguiu afastar o cão desta, o qual a continuava a arrastar pelo pavimento.

16. Nem GG conseguiu afastar o cão “Fred” de AA.

17. A vizinha da casa apercebeu-se dos gritos, saiu da sua casa até à da vizinha e vendo que nem HH, nem GG conseguiam afastar o cão da autora, correu ao seu quintal e atirou uma mangueira de rega para o logradouro.

18. O cão “Fred” virou o seu ataque contra essa mangueira.

19. Nesse momento, HH conseguiu recolher a AA para dentro de casa.

20. A qual estava em pânico, chorava e gritava de dor.

21. O cão “Fred” agrediu a menor AA, tendo-lhe causado lesões, sendo que as pessoas presentes junto desta nesse dia 09-11-2005, de imediato, chamaram uma ambulância ao local, que a transportou ao Hospital Garcia de Orta, EPE;

22. No Hospital Garcia de Orta, a ora autora, AA, foi encaminhada para o serviço de Urgência Pediátrica e depois de observada, constatou-se, como consequência directa e necessária do ataque do animal, que apresentava várias feridas, por mordeduras de dia, sangrantes em ambos os pavilhões auriculares, na face e no Couro cabeludo (região occipital), ombro direito e esfacelo profundo da face anterior e posterior da coxa direita, conforme relatório de fls. 40 e 41, que se dá aqui por integralmente reproduzido;

23. No Hospital Garcia de Orta, a ora autora, AA, recebeu os primeiros tratamentos, nomeadamente a saturação sob sedação e anestesia local das feridas e perfurações pelo especialista de cirurgia plástica, conforme documento de fls. 42 e 43, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

24. AA foi submetida a tratamentos em regime ambulatório no Hospital Garcia de Orta nos dias 14, 16, 21 e 25 de Novembro de 2005, data em que atingiu a cicatrização de todas as feridas;

25. Após 25-11-2005, AA manteve-se em seguimento em Consulta Externa de Cirurgia Pediátrica por cicatrização hipertrófica da região da coxa, conforme documento de fls. 50, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

26. Como consequência directa e necessária do ataque do cão Fred, para além do referido no artigo 22°, AA ficou rasgada e mordida, com pedaços de carne, músculo e tecido arrancados e perfurações várias.

27. Como consequência directa e necessária do ataque do cão Fred, para além do referido no artigo 22° dos factos assentes, AA veio a apresentar esfacelo da coxa direita em dois locais, cicatrizes em ambas as orelhas, com cerca 1,5 cm de comprimento; no braço direito, com as dimensões entre 1,5 e 3 cm de comprimento; e ainda na face anterior e posterior da coxa direita variável entre os 3 e os 7 cm de comprimento.

28. Em 9-11-2005, a ré DD tinha assumido a responsabilidade civil dos réus EE e FF, enquanto donos do animal de raça rottweiller de nome “Fred”, mediante contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil Familiar, titulado pela apólice …092, o qual vigorava com o capital seguro de € 50.000 e uma franquia a cargo do segurado de € 100;

29. Tal contrato de seguro mencionado na anterior alínea estava subordinado às Condições Gerais, Particulares e Especiais da respectiva apólice, nomeadamente a Condição Especial 020, denominada «Animais Perigosos e Potencialmente Perigosos»

30. Dispõe a Condição Especial da Apólice 020 – Animais Perigosos e Potencialmente Perigosos no seu numero 6., alínea h), sob a epigrafe “Exclusões”, que: “Além das exclusões contidas nas Condições Gerais, esta apólice não abrange as reclamações por danos: (…) h) Causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia;”.

31. Nos dias seguintes ao ataque a menor apresentava-se como consta das fotografias de fls. 47 a 49.

32. A autora andou, logo após o ataque, de cadeira de rodas.

33. A autora sofreu de défice funcional temporário parcial entre 9-11-2005 e 14-05-2008 (918 dias).

34. Em virtude das lesões com que ficou, AA sofreu dores de grau 4.

35. Entre 09-11-2005 e 25-11-2005, AA foi submetida aos vários tratamentos mencionados nos documentos de fls. 44 a 46, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

36. Após 25-11-2005, AA passou a ser assistida em consulta de psicologia na Unidade de Pedopsiquiatria do Hospital Garcia de Orta.

37. AA passou a apresentar sintomas de tristeza e vergonha, irrequietude, birras e instabilidade do sono, que se manifestaram no quadro de perturbação pós stress traumático, que a autora padeceu durante 1 ano após o ataque.

38. Foi constatado, após várias consultas de psicologia, que AA sofre de perturbação pós stress traumático em virtude de não conseguir lidar com o trauma vivido, necessitando de acompanhamento psicológico, durante 1 ano após o ataque.

39. Antes do ataque do cão “Fred”, AA não tinha problemas físicos.

40. Antes do ataque do cão “Fred”, AA era uma criança activa, extrovertida, alegre e saudável.

41. Depois do ataque em questão AA passou a apresentar-se com um carácter inibido e uma expressão triste.

42. Tendo sentimentos de angústia e tristeza em virtude do ataque sofrido.

43. AA passou a ter baixa auto-estima (sentimento de diminuição) e debilidades nos relacionamentos com os outros.

44. AA sente-se envergonhada em virtude das cicatrizes de que é portadora na perna, braço direito e ambas as orelhas, ao ponto de não aceitar vestir saias ou calções curtos, camisas ou vestidos de manga cava.

45. AA não aceita andar com o cabelo apanhado, por vergonha das cicatrizes.

46. AA sofre de défice funcional permanente da integridade física e psíquica fixada em quatro pontos e dano estético permanente quantificado no grau 5.

47. Em virtude do ataque do cão, AA ficou com a roupa que vestia destruída.

48. A mãe da menor AA teve que suspender a sua actividade profissional como escriturária na empresa II - limpezas Unipessoal, Lda., para lhe prestar assistência.

49. AA mantém a necessidade de acompanhamento psicológico e as cicatrizes não podem ser eliminadas, apenas reduzidas na sua espessura.

IV.

1. Concluiu-se no acórdão recorrido, acompanhando a fundamentação da sentença da 1ª instância, que o dano (real) sofrido pela autora decorreu do perigo específico da utilização do cão, da raça "rottweiller", que é pertença dos 2ºs. réus, verificando-se, em relação a estes, os pressupostos da responsabilidade objectiva estabelecida no art. 502º do CC.

Esta conclusão não foi posta em causa por qualquer das partes.

Divergiram as anteriores decisões no que respeita à aplicação da cláusula de exclusão constante do contrato de seguro celebrado entre os réus, invocada nos autos pela ré seguradora e quanto à condenação dos 2ºs. réus.

Para a sentença da 1ª instância, por estarmos em presença de um seguro obrigatório, a exclusão da responsabilidade da seguradora opera no estrito âmbito da relação contratual com o tomador do seguro e não tem a virtualidade de desproteger a vítima, que é terceira a tal relação contratual. Tal cláusula de exclusão seria, por isso, inoponível à autora lesada e, assim, seriam responsáveis todos os réus, que foram condenados solidariamente.

No acórdão recorrido admitiu-se a oponibilidade da cláusula, entendendo-se, porém, que, no caso dos autos, não ficou demonstrado que os réus tenham violado qualquer dever de vigilância ou que tenham agido em desconformidade com as normas legais; não ficou assim preenchida a exclusão excepcionada pela ré seguradora.

Por outro lado, tratando-se de um seguro obrigatório, a seguradora deve responder em primeiro lugar, até ao limite do montante do capital segurado; os demais réus só responderiam pelo excedente não coberto pelo contrato de seguro celebrado entre as partes. Daí que, por o quantum indemnizatório se conter naquele montante, estes réus tenham sido absolvidos.

2. Um cão da raça "rottweiller" é considerado um animal potencialmente perigoso (lista anexa à Portaria 422/2004, de 24/4)

No que respeita à detenção destes animais, dispunha o DL 312/2003, de 17/12 (em vigor à data do acidente):

- Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais – art. 6º.

- O detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado a manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente nos alojamentos, os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança de pessoas, outros animais e bens – art. 7º, nº 1.

Ainda segundo o art. 13º do mesmo diploma, o detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado a possuir um seguro de responsabilidade civil em relação aos mesmos.

O capital mínimo desse seguro e outros critérios qualitativos foram definidos na Portaria 585/2004, de 29/5, estabelecendo-se aí, no que respeita a exclusões, que o contrato de seguro pode excluir os danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia [art. 7º, al. g)].

Pois bem, no caso, os réus celebraram entre si um contrato de seguro que contempla os riscos derivados da detenção de um cão da raça "rottweiller", estabelecendo-se nas Condições Especiais uma cláusula de exclusão de teor idêntico à exclusão acima referida, ou seja, que esse seguro não abrange as reclamações por danos "causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia [020-nº 6, h)].

As questões que aqui se discutem, como decorre do que se referiu, consistem em saber se esta cláusula é oponível à autora, tendo em conta que se trata de um seguro obrigatório. E, na afirmativa, se, perante a factualidade provada, essa cláusula deve considerar-se preenchida.

A resposta à primeira questão, em contrário do que se decidiu na 1ª instância, parece dever ser afirmativa (como, de passagem, se decidiu no acórdão recorrido).

Pese embora a coerência e razoabilidade da argumentação invocada na sentença, a aplicação analógica do regime dos acidentes de viação (previsto no art. 14º do DL 522/85, de 31/12, e mantido no art. 22º do DL 291/2007, de 21/8) não parece viável.

Este regime poderia servir de paradigma dos demais seguros obrigatórios de responsabilidade civil[2] e isso mesmo foi admitido implicitamente pelo legislador ao instituir o novo regime do contrato de seguro (DL 72/2008, de 16/4)[3]. Acabou, porém, por ser consagrado um regime bem distinto, como decorre do disposto no art. 147º da LCS (em que são oponíveis, "nomeadamente", "a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato"), mais adequado ao seguro facultativo[4].

Neste quadro não parece possível suprir uma aparente falha e incoerência do sistema com uma solução que o próprio legislador veio claramente a repelir.

Sendo, assim, de admitir a oponibilidade da aludida cláusula de exclusão, cumpre verificar se a mesma se mostra preenchida no caso.

Essa cláusula reproduz integralmente uma causa de exclusão permitida por norma legal relativa a este seguro, pelo que a sua inclusão no contrato de seguro não pode deixar de considerar-se legítima.

Por outro lado, a exclusão respeita a danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais.

Já acima referimos as normas dos arts. 6º e 7º do DL 312/2003:

- o detentor do animal tem o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais;

- o detentor do animal potencialmente perigoso fica obrigado a manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente nos alojamentos (os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança das pessoas, outros animais e bens).

No caso, não parece que esteja em causa qualquer medida específica respeitante ao alojamento do cão: não ocorreu a fuga deste, nem o sinistro resultou de qualquer falha ou falta de condições de segurança do referido alojamento.

A questão tem mais a ver com o incumprimento dos deveres de vigilância e de segurança que as normas legais impõem ao detentor do animal potencialmente perigoso, como era o referido cão da raça "rottweiller".

A este respeito, porém, importa, por um lado, ter em atenção e ponderar, no circunstancialismo concreto provado, o (grau de) incumprimento dos referidos deveres imputado ao dono do cão, tendo em conta as características deste.

Mas, por outro lado, não pode deixar de ser considerado e correlacionado o âmbito de previsão da mencionada cláusula de exclusão, que se limita a indicar uma genérica inobservância das disposições legais que regulamentam a detenção.

Tendo em conta esse cariz amplo e genérico, a cláusula não pode ser interpretada e aplicada de forma literal e estrita, sob pena, desde logo, de se pôr em causa o próprio risco que é essencial à existência do contrato de seguro[5]. Na verdade, fazendo-se depender a cobertura do seguro da observância, pelo detentor do animal, de todas as disposições que regulamentam essa detenção, só em circunstâncias excepcionais, ocorreria o evento futuro e incerto (sinistro) que se pretende prevenir e segurar. Este seguro, assim considerado, poderia ser rentável para a seguradora (a obrigatoriedade redundaria sobretudo em benefício desta), mas não teria grande justificação e utilidade para o tomador do seguro (nem interesse e utilidade para o eventual lesado)[6].

Assim, interpretada literalmente a referida cláusula, o contrato de seguro, apesar de obrigatório, dificilmente funcionaria. Deve, pois, ter-se em conta a natureza, o fim prosseguido pelo contrato e o seu efeito útil[7], só podendo ser excluídos da cobertura os danos que decorram de violação com, pelo menos, culpa grave dos deveres de vigilância e de segurança por parte do tomador do seguro, detentor do cão. Assim se entendia antes da actual LCS[8],[9].

No caso, o sinistro ocorreu no logradouro da casa dos réus, onde a autora, de 5 anos de idade, sobrinha destes, e uma sua prima, de 15 anos de idade, filha daqueles, brincavam com uma bola.

Era aí, nesse logradouro, nas traseiras da casa, que se situava o alojamento do cão e onde este foi deixado solto pelo réu.

Foi assim no ambiente privado da propriedade dos réus que ocorreu o acidente, não num espaço público exterior, onde, como é reconhecido[10], mais pode sobressair a perigosidade potencial do cão da referida raça.

Ora, na situação descrita não ficou demonstrada a violação subjectiva, com negligência grave, do dever de vigilância que incumbia ao detentor do cão, nem qualquer violação das condições materiais de segurança em que deveria ser detido o animal (ou do seu reforço, neste caso específico de animal potencialmente perigoso), por forma a evitar a fuga do animal e que este pudesse confrontar-se, sem qualquer controle, com pessoas estranhas, fora do ambiente que lhe é familiar.

É certo que o réu, entretanto, se ausentou da casa, deixando o cão solto no logradouro, fora do seu controle. Por isso, é, sem qualquer dúvida, responsável pelo que veio a suceder, como foi reconhecido.

Mas esse incumprimento subjectivo do dever de vigilância, no referido circunstancialismo, não consubstancia a culpa grave exigível, sendo certo também que não ocorre violação das condições objectivas de segurança da detenção do cão. O acidente ocorreu no interior do logradouro da casa dos réus, em ambiente que não é estranho ao cão e na presença de pessoas que também não lhe eram estranhas. Neste espaço privado a que o cão estava habituado e perante pessoas com quem estava familiarizado não seria exigível que o cão fosse mantido permanentemente preso e limitado ao seu alojamento.

Assim, apesar de oponível, entende-se que não opera, no caso, a referida causa de exclusão, nada obstando, por conseguinte, à responsabilidade da seguradora decorrente do contrato de seguro, como foi decidido.

3. Concluiu-se no acórdão recorrido que "em face de um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório, deve em primeiro lugar e sempre dentro do montante do capital segurado, responder a Companhia de Seguros, para quem os Réus EE e FF transferiram a responsabilidade civil por danos causados pelo animal agressor, até ao limite do montante do capital segurado, apenas pelo excedente não coberto pelo contrato de seguro celebrado entre as partes, responderiam os segundos RR."

Crê-se que não se decidiu bem.

O regime aplicado é o previsto para o caso específico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por força do disposto no art. 29º do DL 522/85, de 31/12 (e actualmente pelo art. 64º do DL 291/2007, de 21/8).

Estamos fora desta situação. Tratando-se de obrigações solidárias[11], o lesado pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores (cfr. arts. 518º e 519º do CC, mas à seguradora apenas no limite do seguro), propondo a acção contra o segurado ou contra a seguradora, ou contra ambos em simultâneo, como ocorreu no caso, em litisconsórcio voluntário.

E continua a ser essa a solução, como tem sido entendido, mesmo após a consagração legal da possibilidade de acção directa do lesado contra a seguradora (art. 146º, nº 1, da LCS)[12].

V.

Em face do exposto, concede-se em parte a revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que absolveu os 2ºs. réus do pedido, repristinando-se a decisão da sentença da 1ª instância de condenação solidária dos réus.

Custas: da apelação, a cargo dos respectivos apelantes; da revista, a cargo da 1ª ré e dos 2ºs. réus em partes iguais.

                                    Lisboa, 03 de maio de 2016        

   

Pinto de Almeida (Relator)

Júlio Gomes

José Raínho

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[1] Proc. nº 613/08.2TBSSB.E1.S1
F. Pinto de Almeida
Cons. Júlio Gomes; Cons. José Rainho
[2] Cfr. Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, 684.
[3] Como se refere no Preâmbulo deste diploma, "relativamente a meios de defesa, como regime geral dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, é introduzida uma solução similar à constante do art. 22º do Decreto-Lei nº 291/2007, relativo ao seguro automóvel, sob a epígrafe «oponibilidade de excepções aos lesados»" (sublinhado nosso).
[4] A solução corresponde realmente à encontrada nos sistemas de outros países, mas para os seguros facultativos. Neste sentido, sublinhando a incoerência do legislador, Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro – Estudos, 28 e 29.
[5] Cfr. José Vasques, Contrato de seguro, 127; Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 481 e segs.
[6] Como refere Moitinho de Almeida – Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 105 – "uma limitação tão ampla dos riscos cobertos tornava o seguro praticamente sem interesse em certos ramos, como o da responsabilidade civil, em que a maior parte dos sinistros são devidos a facto do segurado, mais ou menos culposo".

[7] Cfr. Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro - Estudos, 126 e segs.
[8] Neste sentido, Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 108; também Ana Prata, Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, 171.
[9] No domínio da actual LCS até os actos ou omissões dolosas podem ser abrangidos pela cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade, desde que o regime legal a tal não obste – art. 148º.
[10] Cfr. Acórdão do STJ de 24.05.2011, em www.dgsi.pt.
[11] Conforme entendimento tradicional - cfr. Vaz Serra, RLJ 99-55; Leite de Campos, Seguro da Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação, 84 e segs. Como refere este Autor (pg. 90), não se trata de uma solidariedade perfeita "por, nas relações internas, não recair qualquer responsabilidade sobre o segurado perante a seguradora, e pela circunstância de a dívida do segurado ter a sua fonte na responsabilidade civil, enquanto a da seguradora é de origem contratual".
[12] Neste sentido, Margarida Lima Rego, Ob. Cit., 686; José Vasques, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 415.