Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | ||||||||||||||||||||||||||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | |||||||||||||||||||||||||
Relator: | TERESA DE ALMEIDA | |||||||||||||||||||||||||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM CÚMULO JURÍDICO PENA PARCELAR MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA ÚNICA | |||||||||||||||||||||||||
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Data do Acordão: | 06/29/2023 | |||||||||||||||||||||||||
Votação: | UNANIMIDADE | |||||||||||||||||||||||||
Texto Integral: | S | |||||||||||||||||||||||||
Privacidade: | 1 | |||||||||||||||||||||||||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | |||||||||||||||||||||||||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | |||||||||||||||||||||||||
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Sumário : | I. Na determinação da pena única, o acórdão cumulatório fundou-se no exame do crime, considerado globalmente: num percurso de persistência no desvio prevaricador, ao longo de quase 4 anos (2016/finais de 2019), com ofensa de bens jurídicos diversos (crimes de tráfico de estupefacientes, contra o património, contra a autodeterminação sexual, contra a liberdade sexual, este último, numa ação de violência), sem recuo na perseverança ilícita, mesmo perante a reação penal. II. Não se trata da prática avulsa de crimes, mas de uma continuidade caraterizadora da sua vida. III. O elevado grau de ilicitude da generalidade das condutas descritas, a intensidade do dolo e as elevadas necessidades de prevenção geral, pelo impacto na comunidade que os atos criminosos geram (considerado, em primeira linha, pelas molduras penais previstas para os ilícitos mais graves que praticou), mostram-se desvelados na fundamentação da decisão recorrida, atestando a sua adequação e proporcionalidade. | |||||||||||||||||||||||||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório 1. AA, de 25 anos, identificado nos autos, não se conformando com o acórdão cumulatório, de 13 de abril de 2023, proferido pelo Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., veio do mesmo interpor recurso. O acórdão condenou o arguido nas seguintes penas únicas, a cumprir sucessivamente: 1.1 - 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelos crimes pelos quais foi condenado no processo n.º 65/16.... (um crime de furto qualificado cometido em 22.03.2016) e no processo n.º 39/18.... (um crime de abuso sexual de criança cometido em 12.01.2018, e um outro crime de abuso sexual de criança, este cometido em 28.02.2018); 1.2 – 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelos crimes pelos quais foi condenado no processo n.º 1/19.5PBPTM, nos presentes autos (um crime de tráfico de estupefacientes cometido entre o Verão de 2018 e Dezembro de 2019, e um crime de condução sem habilitação legal, este cometido em 03.12.2019) e no já processo n.º 39/18.... (um crime de violação agravada, cometido em 10.06.2018). 2. Formulou as seguintes conclusões (transcrição): “1. Decidiu o Tribunal a quo aplicar as penas únicas de 6 anos e 6 meses de prisão (no primeiro concurso) e 8 anos e 6 meses de prisão (no segundo concurso). 2. As penas únicas aplicadas pelo Tribunal recorrido são excessivas, e não dão primazia à reinserção do recorrente, pecam por excessivas e desproporcionais em face da situação pessoal e personalidade do recorrente não obstante a gravidade dos factos praticados pelo condenado. 3. Em obediências aos critérios fixados nos n.ºs 2 e 3 do art.º 77.º do Código Penal, as molduras abstratas das penas únicas dos concursos de penas, no 1.º concurso é de 4 anos e 6 meses de prisão a 10 anos e 7 meses de prisão; no 2,º concurso é de 6 anos e 6 meses de prisão a 11 anos e 6 meses de prisão. 4. Na realização do cúmulo jurídico é necessário ter em consideração para além dos factos a personalidade do agente, conforme estabelecido no art.º 77.° n.° 1 do Código Penal. 5. Na determinação concreta das penas a aplicar ao recorrente o Tribunal a quo descurou, o meio socioeconómico em que este cresceu, as situações traumáticas que vivenciou, espelhadas no seu relatório social, no qual refere o douto acórdão ter-se baseado para apurar a matéria de facto provada, - efetivamente tais circunstâncias de vida do recorrente constam da matéria de facto provada, porém em nada pesaram a favor do arguido/condenado, o que não se pode aceitar. 6. O recorrente cresceu sem referências de um pai e de uma mãe, sem condições habitacionais; 7. A família alargada à qual ficou à guarda falhou na educação do recorrente, na transmissão dos valores essenciais a uma sã vivencia em sociedade. 8. Todas as falhas no percurso educativo do recorrente, de formação da sua personalidade conduziram-no aos trilhos da criminalidade. E, 9. Taís circunstâncias não foram (erradamente) tidas em consideração pelo Tribunal recorrido, embora constem do relatório social o qual está transcrito na decisão recorrida. 10. Os crimes pelos quais o recorrente foi condenado são graves e não se ignora a ilicitude dos mesmos e que a sua conduta é reprovável, porém, as circunstância em que o recorrente foi criado, a sua tenra idade à data da prática dos factos, (18 anos quando praticou o crime de furto qualificado, 20 anos quando praticou os crimes de natureza sexual, 20/21 anos quanto praticou os crimes de tráfico de estupefacientes e de condução sem habilitação legal) são fatores relevante para a determinação das penas únicas a aplicar. 11. A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente, englobando uma série, mais ou menos extensa, com uma amplitude, de maior ou menor grau, de várias condenações, por diversas condutas, por vezes, homótropas, como reveste-se de uma especificidade própria. Trata-se, com efeito, de uma nova pena, uma pena final, de síntese, correspondente a uma resposta/definição a/de um novo ilícito (agora global), e a uma nova culpa (agora outra culpa, ponderada pelos factos conjuntos, em relação), uma necessária outra específica fundamentação, que acresce à decorrente do art. 71.º do CP. 12. Da análise conjunta dos factos praticados pelo recorrente, da sua personalidade(a qual está influenciada pela vivência de situações traumáticas, perda dos pais, formação da personalidade sem referências, fraca educação no geral, e dependência do álcool (fator que o Tribunal a quo ignorou, ainda que afirme ter sustentado a decisão com base no relatório social), a ponderação das penas únicas a aplicar ao arguido/ deveria ter sido outra. 13. O relatório social é bem claro quando refere – “a avaliação remete para a existência de um percurso de vida associados a factores desestruturantes aos níveis familiar, afetivo e educativo, que contribuíram para o acentuar de vulnerabilidades pessoais condicionadoras da estabilidade pessoal e social do arguido”. “avalia-se como imprescindível que o arguido adira a acompanhamento direcionado para a problemática alcoólica…” 14. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele. (art.71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal), as circunstâncias pessoais do recorrente, espelhadas no relatório social explicam em muito o caminho da delinquência percorrido pelo recorrente, e não são penas de prisão elevadas que potenciam a ressocialização, a reinserção do agente, que vão reinserir o recorrente nem reabilitá-lo a viver em sociedade. São penas de prisão por períodos aceitáveis para que o recorrente frequente terapia, trate a dependência do álcool tal como proposto no relatório social e possa voltar à sociedade. 15. Visando a aplicação das penas a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40.º nº 1 do CP) e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.º 40.º nº 2 do CP), deverá a pena aplicada ao recorrente ser reduzida no 1.º concurso para pena única nunca superior a 4 anos e 6 meses de prisão, e no 2.º concurso para pena única nunca superior a 6 anos e 6 meses de prisão, que ainda satisfazem as exigências preventivas e não excede a medida da culpa. 16. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos, art.º 40.º, 70.º e 71.º, 77.º e 78.º todos do Código Penal. Termos em que, se requer a V. Exas., Colendos Conselheiros, a reparação da douta decisão de acordo com as premissas modestamente supra expostas, fazendo-se assim a habitual, sã e serena Justiça.” 3. O Ministério Público, na 1.ª Instância e neste Tribunal, defendeu a improcedência do recurso, destacando-se o seguinte excerto do parecer do Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto: “É, assim, de entender que as penas únicas aplicadas, de 6 anos e 6 meses de prisão, e 8 anos e 6 meses de prisão – bem mais próxima, qualquer delas, do limite mínimo do que do limite máximo respectivo, em qualquer dos casos em medida que fica aquém do ponto médio da penalidade a considerar – respeitam os parâmetros decorrentes dos critérios legais fixados nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal, sendo, por conseguinte, justas, por adequadas e proporcionais à gravidade dos factos e à perigosidade do agente, não se descortinando fundamento para que as mesmas sejam reduzidas.” Foi cumprido o disposto no art.º 417º n. 2 do CPP. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigo 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida e a nulidades não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2 e 3, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995). Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir: - a questão de saber se as penas únicas, resultantes dos cúmulos jurídicos, se mostram excessivas e se, sendo o caso, devem ser fixadas, no 1.º concurso, em “pena única nunca superior a 4 anos e 6 meses de prisão” e, no 2.º concurso, em “pena única nunca superior a 6 anos e 6 meses de prisão”, como pretende o recorrente. Cumpre decidir. II. Fundamentação 1. os factos: O Acórdão de cúmulo recorrido deu como provados os seguintes factos: 1. O Arguido AA sofreu as seguintes condenações:
2. No Processo nº 65/16...., resultou provado, no essencial, que: - Entre a noite de 21.03.2016 e a madrugada do dia 22.03.2016, o Arguido AA, juntamente com os Arguidos BB e CC subtraíram o veículo de marca BMW, de matrícula ..-HA-.., propriedade de DD, com o valor de € 25.000,00; - Pelas 14 horas do dia 22.03.2016, o Arguido AA conduziu o veículo ..-HA-.. pela Rotunda ..., em ..., sem ser titular de carta de condução ou qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir aquele ipo de veículos na via pública; - No interior do identificado veículo encontrava-se a respectiva chave, o certificado de matrícula e uma bolsa em pele, contendo: dois conjuntos de chaves de duas residências, um telecomando de portão, duas carteiras de plástico com talões do euromilhões, livrete e título de registo de propriedade do veículo de matrícula ..-..-TU, um cartão da Repsol, um cartão bancário do Banif, uma carta de condução em nome de EE, quatro cheques do Millennium BCP emitidos em nome de EE, uma agenda e uma carteira em pele contendo um BI, um cartão de contribuinte e um cartão de utente em nome de EE; - O Arguido AA agiu em comunhão de vontades e de esforços com BB e CC, querendo fazer seus, como fizeram, o veículo ..-HA-.. e os objectos supra referidos. 3. No Processo nº 39/18...., resultou que - No dia 12 de Janeiro de 2018, cerca das 14 horas, o Arguido encontrou-se com a menor FF (nascida no dia .../.../2005) e subiram para um quarto da Pensão Miradouro pago pelo Arguido; - De seguida, o Arguido beijou a menor na boca, deitaram-se ambos na cama, começando o Arguido a despir-se e a tirar a roupa a FF, colocando-se, de seguida, em cima da menor e introduziu-lhe o pénis erecto na vagina, submetendo-a prática de cópula, sem recurso a preservativo; - A menor foi virgem até esse momento, tendo a penetração peniana lhe provocado dor e sangramento; - No dia 18 de Fevereiro de 2018, o Arguido insistiu com a menor para estarem juntos, tendo-a levado para um quarto numa casa; - O Arguido despiu a menor, despiu-se de seguida, deitou-se em cima de FF e introduziu-lhe o pénis erecto na vagina, submetendo-a à prática de cópula, sem recurso a preservativo; - O Arguido tinha conhecimento da idade da menor, agindo sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de praticar os supra referidos actos sexuais de cópula vaginal com aquela menor de 12/13 anos com a intenção de, por meio do corpo da menor, se satisfazer sexualmente, comprometendo, dessa forma, o livre desenvolvimento e formação da personalidade da menor na esfera sexual, limitava a sua liberdade de autodeterminação sexual, em função da sua pouca idade e, no entanto, quis agir do modo descrito; - No dia 10 de Junho de 2018, o Arguido pagou uma bebida a GG (nascida a .../.../2003), conversara e dançaram no bar, tendo trocado um beijo já no exterior, tendo a menor dito que não pretendia ter relações sexuais; - A dado momento da noite, a menor dirigiu-se à praia para urinar, tendo o Arguido acompanhado a mesma; - O Arguido disse à menor que tinha perdido o telemóvel, tendo a menor se deslocado de novo para o local onde tinham estado para procurar o telemóvel e, sem que a menor contasse, o Arguido surgiu de repente, tendo GG corrido, sendo seguida pelo Arguido que a apanhou e atirou contra a areia, colocando-se em cima desta e apertando-lhe o pescoço com a mão, fazendo força dizendo à menor para não sair dali senão que a atirava ao mar; - O Arguido, sempre com a mão no pescoço da menor, dizia-lhe repetidamente para abrir as pernas que se não que a atirava ao mar e a deixava lá, forçando-as até as conseguir abrir, enquanto GG lhe dizia que não queria ter relações sexuais, que era virgem e tentava libertar-se e impedir que o mesmo a penetrasse; - Ao que o Arguido permaneceu indiferente fazendo uso da sua superioridade física, introduziu à força o seu pénis erecto na vagina de GG, friccionando, forçando-a à prática de cópula, contra a sua vontade e sem recurso a preservativo; - Sabia o Arguido que, com o seu comportamento, actuava contra a vontade da Ofendida e que a compelia a sofrer, no seu corpo, actos que lesavam a sua liberdade sexual. 4. No Processo nº 1/19.5PBPTM, provou-se, em súmula, que: - Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos no período temporal compreendido entre o Verão de 2018 e Dezembro de 2019 que o Arguido AA procedeu à compra, detenção e posterior cedência a troco de dinheiro, de produto estupefaciente, designadamente canábis, cocaína e heroína, a pessoas que para esse efeito o contactava, designadamente, a HH, a II (a quem entregou quantidades não apuradas de heroína destinadas a JJ) e KK; - No dia 03.12.2019, pelas 15:20 horas, o Arguido AA, deslocou-se perto da residência de II a conduzir o veículo automóvel de marca Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-OV e retirou da bagageira algo volumoso entrando de seguida na residência deste, onde se encontrava-se na cozinha a dividir um produto que sujeito a teste rápido resultou ser heroína; - Na mesa, encontravam-se vários recortes de plástico dispostos no tampo de forma a serem preenchidos com produto estupefaciente, sendo que num destes já havia sido colocada uma pequena porção de produto estupefaciente e junto aos recortes encontrava-se uma embalagem, vulgo bola, contendo 24,542 gramas de Heroína, um cartão, um telemóvel de marca F2, uma balança de precisão, um saco de plástico de cor preto rasgado, contendo duas embalagens, vulgo bolas, contendo 50 embalagens de Cocaína com o peso de 13,109 gramas, duas embalagens de REDRATE já abertas, uma tesoura e outros recortes de plástico; - O Arguido AA encontrava-se a conduzir na via pública veículo automóvel nas circunstâncias acima descritas sem que para o efeito estivesse legalmente habilitado, actuando livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; - No dia 18.02.2019, o Arguido AA, encontrava-se na posse do veículo automóvel de matrícula ..-..-HC, onde transportava: a) em cima do banco do passageiro da frente: - uma caixa com 20 carteiras de uma substância farmacêutica denominada de "REDRATE" habitualmente adquirida e utilizada para o corte de substâncias estupefacientes; - um telemóvel da marca Apple, modelo iphone, com o IMEI ...09, com o PIN427586; b) num compartimento aberto por baixo do auto-rádio um embrulho com 10,655 gramas de cocaína e duas embalagens plásticas, uma com 59 gramas paracetamol/cafeína e a outra com 30,070 gramas de heroína; c) E no bolso das calças € 210 em notas; - Com a conduta descrita, o Arguido AA quis deter, vender, ceder, distribuir haxixe, cocaína e heroína, bem sabendo a qualidade, quantidade e as características estupefacientes dos produtos que possuíam, intentos que logrou alcançar. 5. As penas de multa aplicadas nos Processos nºs 65/16.... e 1678/18.... encontram-se extintas pelo cumprimento da prisão subsidiária. 5. Por decisão transitada em julgado em 11.11.2022, foi revogada a suspensão da execução da pena de 1 ano e 7 meses de prisão aplicada ao Arguido no Processo nº 65/16..... Mais se apurou que 6. AA nasceu em .... Viveu durante alguns anos na sua infância em ... num contexto habitacional degradado, tendo regressado com os pais a .... A mãe do Arguido faleceu quando este tinha 8 anos e o pai aos seus 13 anos, situação que implicou o seu regresso a Portugal, tendo fixado residência na ... onde tinha alguns familiares (irmãos e tios/as). A tia, LL (paterna), no contexto pessoal e social surge como a figura de referência para AA até à idade adulta. 7. A exposição a contextos familiares relacionais afectivos e educativos pouco gratificantes, associados também a condutas pró-criminais, implicaram a interiorização incipiente de valores e normas básicas de convivência social por parte de AA, vindo em fase precoce do seu desenvolvimento a adotar comportamentos de risco e condutas agressivas. 8. Ao nível escolar, regista o 3.º ciclo. Frequentou curso de dupla certificação de Nível Secundário (NS) na área da pastelaria/cozinha. Todavia, desistiu pouco antes de ser detido para cumprimento de pena efectiva de prisão. 9. Em termos profissionais aferem-se experiências de curta duração como indiferenciado em múltiplas áreas, sem regularidade e de forma precária, não atingindo estabilidade a este nível. A par e em contexto de diversão, tocava acordeão. 10. No início da adolescência associou-se a contextos grupais com características pró-criminais, tendo como hábito regular o consumo de álcool em excesso em contexto de diversão noturna, constituindo-se os principais fatores criminógenos no percurso de AA. 11. Os primeiros contactos com o Sistema da Justiça remontam aos 19 anos de idade, ocorrendo a primeira experiência penitenciária em 2020. AA encontra-se a cumprir a primeira pena de prisão, situação decorrente da baixa responsividade pessoal à intervenção da justiça, sem mudanças atitudinais e comportamentais e com manutenção da tendência para actuar de forma desfavorável às convenções sociais. 12. No lapso temporal que constitui referência à factualidade considerada para efeitos do presente cúmulo jurídico, AA encontrava-se a residir alternadamente entre ... (dias de semana) e ... (fins de semana), onde a namorada, MM, residia. 13. O Arguido não mantém contacto próximo com os seus irmãos, um dos quais em cumprimento de pena de prisão no E. P. .... Apesar de a tia paterna, LL, ter assumido desde a morte dos seus pais uma função de suporte afectivo, afere-se, actualmente, afastamento relacional, avaliando-se a situação do Arguido como de tendencial isolamento sociofamiliar. 14. Apesar de AA conseguir reflectir sobre o seu percurso de inadaptação social, o seu discurso remete para lacunas ao nível do raciocínio crítico, pensamento consequencial e capacidade de resolução de problemas, com tendência a agir preferencialmente em função das suas necessidades e interesses pessoais, o que tem potenciado o desajustamento, défices que não estão minimizados nesta fase de execução da pena privativa. 15. O seu projecto de vida futuro dependerá essencialmente das suas capacidades para minorar as suas fragilidades pessoais, tentando adaptar-se ao esperado e desejável, aspectos que são avaliados nesta fase de forma muito reservada, atendendo à falta de suporte consistente em meio livre, aos hábitos de trabalho abreviados, às baixas competências pessoais para uma vivência socialmente responsável, bem como à aparente problemática alcoólica, desvalorizada pelo Arguido, permanecendo por autenticar capacidades que lhe permitam realizar positivamente alguma mudança atitudinal e comportamental. 16. Relativamente às reacções penais aplicadas, o Arguido assume uma postura pouco crítica e fraca consciência quanto às consequências da sua conduta, em especial quanto aos crimes de natureza sexual, minimizando a sua responsabilidade. Constata-se distanciamento quando aos danos causados às vítimas e impacto na sociedade em geral, bem como dificuldades em reconhecer os bens jurídicos protegidos, apesar de possuir competências para destrinçar condutas associais e pró-sociais. 17. Ao nível pessoal o seu trajecto aponta para a persistência de fragilidades emocionais, imaturidade e baixa capacidade de responsabilização, bem como tendência para ceder a pressões externas, com comprometimento da adaptabilidade social e individual, défices ainda não suficientemente minorados para sustentar uma prognose positiva no que concerne ao seu processo de ressocialização. 18. Em termos familiares refere dispor de apoio da cunhada, NN (companheira do irmão em cumprimento no E. P. ...), ao nível logístico. Contudo, apesar desta referência de suporte em meio livre, prevê-se baixa ascendência sobre as suas tomadas de decisão e reorientação do seu comportamento, atendendo ao historial relacional distante anterior. A relação que mantinha com a namorada, MM, residente na ..., terminou recentemente. 19. Em termos laborais, o Arguido referiu possibilidade de inserção no mercado de trabalho no sector da construção civil, contando com o apoio dos tios e irmãos, não especificando se em Portugal se na Suíça, país onde refere ter estado emigrado alguns meses a trabalhar no referido sector, o que é avaliado com algumas reservas, atendendo aos parcos hábitos e à baixa responsabilidade pessoal para estabelecer rotinas laborais. 20. No que respeita à reclusão actual, afere-se, no global, um percurso prisional regular, averbando uma medida disciplinar no estabelecimento prisional precedente (...) em Maio de 2020 (1 dia de permanência obrigatória no alojamento). Desde que afecto ao Estabelecimento Prisional ..., não regista qualquer sanção pendente ou averbada em termos disciplinares. 21. O Arguido encontra-se inactivo, embora já tenha formalizado pedido de colocação laboral. Pretende no início do próximo ano letivo terminar o 12.º ano. 22. AA permanece em regime comum e ainda não iniciou o processo de reaproximação ao meio livre através das medidas de flexibilização da pena. 23. Atendendo ao seu estilo de vida anterior e relação intrafamiliar, a situação jurídico-penitenciária actual não tem impactos nos familiares. b. O direito 1. Dispõem os n.ºs 1 e 2 dos art. 77.º e. 78.º do CPP: «Artigo 77.º 1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Artigo 78.º 1 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes. 2 - O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.» O sistema vigente é o da pena conjunta: a pena aplicável ao concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas aos vários crimes e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando‑se de pena de prisão e 900 dias tratando‑se de pena de multa artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal. O legislador penal português adotou um modelo em que o agente é condenado numa pena única em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Como se tem afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente. A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda ao critério da consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua, no caso, reavaliada à luz do conhecimento superveniente dos novos factos (citado art. 77º, no 1, do CP). A pena única do concurso, formada no sistema da pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (princípio da acumulação), deve ser fixada, dentro da moldura do cúmulo estabelecida pelo art. 78.º do CP. Afirmou-se no acórdão deste Tribunal de 17.06.2015 (proc. 488/11.4GALNH – 3.ª Secção): “como é sabido, a punição do concurso superveniente não constitui uma operação aritmética ou automática, antes exige um julgamento (art. 472.º, n.º 1, do CPP), destinado a avaliar, em conjunto, os factos, na sua globalidade, e a personalidade do agente, conforme dispõe o art. 77.º, n.º 1, do CP. O que vale por dizer, pois, que o julgamento do concurso de crimes constitui um novo julgamento, destinado a habilitar o tribunal a produzir um juízo autónomo relativamente aos produzidos nos julgamentos dos crimes singulares: agora aprecia-se a globalidade da conduta do agente. Esse juízo global exige uma fundamentação própria, quer em termos de direito, quer de facto. Daí que a sentença de um concurso de crimes não possa deixar de conter uma referência aos factos cometidos pelo agente, tanto no que diz respeito à necessidade de citação dos tipos penais cometidos, quanto também no que concerne à descrição dos próprios factos efetivamente praticados pelo agente, na sua singularidade circunstancial, pois só ela, dando os contornos de cada crime integrante do concurso, pode informar sobre a ilicitude concreta dos crimes praticados (que a mera indicação dos dispositivos legais não revela), a homogeneidade da atuação do agente, a eventual interligação entre as diversas condutas, enfim, a forma como a personalidade deste se manifesta nas condutas praticadas” (no mesmo sentido se pronunciam os acórdãos de 15.05.2013, no proc. nº 125/07.1SAFRD.S1, e de 06.02.2014, no proc. nº 627/07.PAESP.P2.S1). O art. 78.º e o art. 77.ºº, por remissão, estabelecem, ainda, os pressupostos processuais do concurso de crimes por conhecimento superveniente: a prática de vários crimes, antes de ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles; o trânsito da primeira condenação relevante, em cada caso, para fixar os limites temporais para o passado; o conhecimento posterior do concurso; a desconsideração das penas respeitantes a crimes do concurso que se encontrarem cumpridas, prescritas ou extintas. 2. No caso, considerou, bem, o tribunal de condenação que “a) A primeira condenação que transitou em julgado foi a proferida no Processo nº 65/16...., o que ocorreu em 05.03.2018, encontrando-se os crimes pelos quais o Arguido foi condenado nesses autos em concurso jurídico com - o crime de Abuso Sexual de Criança praticado em 12.01.2018 e - o crime de Abuso Sexual de Criança praticado em 28.02.2018 pelos quais foi condenado no Processo nº 39/18..... b) A segunda condenação sofrida pelo Arguido cujo trânsito é relevante para aferir da relação de concurso jurídico é a do Processo nº 1678/18...., que ocorreu em 20.11.2020, encontrando-se os crimes pelos quais o Arguido foi condenado nesses autos em concurso jurídico com: - o crime de Violação Agravada praticado em 10.06.2018 (pelo qual foi condenado no Processo nº 39/18.... e - os crimes pelos quais foi condenado no Processo nº 1/19.5PBPTM. Assim e não sendo admissível o “cúmulo por arrastamento” conforme já acima referido, importará proceder a dois cúmulos jurídicos autónomos, fixando duas penas conjuntas, a cumprir sucessivamente.” A decisão, não questionada pelo recorrente, corresponde à correta interpretação das normas legais aplicáveis. 3. Fundamenta o Acórdão recorrido, nos seguintes termos, a determinação das penas únicas: “Assim e quanto aos factos subjacentes às penas a cumular são da mais variada natureza (mormente, crimes de Furto Qualificado, de Abusos Sexuais de Criança, Violação e Tráfico de Estupefacientes), revelando elevada propensão para a prática de factos ilícitos. De igual modo, o grau de ilicitude é elevado, atendendo à energia criminosa revelada, designadamente, pela intensidade com que o Arguido as desenvolveu (especialmente no que tange aos crimes de natureza sexual e ao Tráfico de Estupefacientes), reflectindo uma personalidade antijurídica e com forte inclinação criminosa. Veja-se que, apesar de jovem, o Arguido conta já com um rol considerável de condenações, entre as quais, pela prática de crimes graves, revelando pouca crítica e fraca consciência quanto às consequências da sua conduta, em especial quanto aos crimes de natureza sexual, minimizando a sua responsabilidade. Ao nível pessoal, o Arguido apresenta de um percurso de vida associado a factores desestruturantes aos níveis familiar, afectivo e educativo, que contribuíram para o acentuar de vulnerabilidades pessoais condicionadoras da sua estabilidade pessoal e social e desenvolvimento da problemática de alcoólica (desvalorizada) que contribuiu também para o acentuar do processo de inadaptação e de desajustamento comportamental. O enquadramento sociofamiliar que apresenta surge como pouco protector e contentor de futuros desajustamentos e as medidas penais aplicadas não permitiram capacitar o Arguido da necessidade de alteração do estilo de vida desajustado. Não obstante o tempo de reclusão já sofrido, o Arguido continua a manifestar imaturidade e relutância/baixa consciencialização para assumir de forma autónoma e responsável maior capacidade reflexiva sobre a sua conduta criminal. São, pois, gritantes as necessidades de prevenção especial que se fazem sentir no caso concreto.” 4. Alega o arguido que não foram devidamente atendidas as suas circunstâncias pessoais: a idade, a sua condição social, económica e cultural, a sua modesta formação e fracos recursos económicos, designadamente: - a “vivência de situações traumáticas, perda dos pais quando era muito jovem, formação da personalidade sem referências, fraca educação no geral, e dependência do álcool”; - que tinha “18 anos quando praticou o crime de furto qualificado, 20 anos quando praticou os crimes de natureza sexual, 20/21 anos quanto praticou os crimes de tráfico de estupefacientes e de condução sem habilitação legal.” Pretende que lhe sejam aplicadas as penas únicas, no 1.º concurso, nunca superior a 4 anos e 6 meses de prisão e, no 2.º concurso, nunca superior a 6 anos e 6 meses de prisão. 5. A moldura penal do primeiro concurso é de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão a 10 (dez) anos e 7 (sete) meses de prisão; e a moldura penal do segundo concurso é de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão a 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão. O arguido pretende, pois, que as penas únicas correspondam às penas parcelares mais elevadas por que foi condenado em cada concurso, como se: - relativamente ao 1.º concurso, apenas tivesse praticado 1 crime de abuso sexual de menor e a este não acrescesse um outro de igual natureza e um crime de furto qualificado; - relativamente ao 2.º concurso, não tivesse sido condenado pelos crimes de tráfico de estupefacientes e de condução sem habilitação legal, além do crime de violação agravada. Pretensão que, manifestamente, não pode proceder. O acórdão recorrido entendeu situar ambas as penas em patamar claramente inferior a metade do intervalo das molduras cumulatórias. A decisão fundou-se no exame do crime, considerado globalmente: num percurso de persistência no desvio prevaricador, ao longo de quase 4 anos (2016/finais de 2019), com ofensa de bens jurídicos diversos (crimes de tráfico de estupefacientes, contra o património, contra a autodeterminação sexual, contra a liberdade sexual, este último, numa ação de violência), sem recuo na perseverança ilícita, mesmo perante a reação penal. E na prossecução constante do arguido, jovem de 25 anos, desde, pelo menos, os 19 anos de idade, de atividade criminosa. Não se trata da prática avulsa de crimes, mas de uma continuidade caraterizadora da sua vida. A natureza dos crimes em concurso, por conhecimento superveniente, encontra-se associada a um estilo de vida do arguido, de consumo de álcool, de comportamentos de risco, de dinheiro fácil, sem respeito pelo outro, que podendo encontrar base nas condições precárias em que foi criado, particularmente, na sua orfandade, se colou à personalidade do arguido. Com efeito, do Relatório Social, extrai-se que “relativamente às reacções penais aplicadas, o Arguido assume uma postura pouco crítica e fraca consciência quanto às consequências da sua conduta, em especial quanto aos crimes de natureza sexual, minimizando a sua responsabilidade. Constata-se distanciamento quando aos danos causados às vítimas e impacto na sociedade em geral, bem como dificuldades em reconhecer os bens jurídicos protegidos, apesar de possuir competências para destrinçar condutas associais e pró-sociais.” Constando, igualmente, do acórdão recorrido que: “No início da adolescência associou-se a contextos grupais com características pró-criminais, tendo como hábito regular o consumo de álcool em excesso em contexto de diversão noturna, constituindo-se os principais fatores criminógenos no percurso de AA” Tudo de modo a qualificar, como bem se diz no acórdão cumulatório, as necessidades de prevenção especial como muito elevadas. Como vimos, com a fixação da pena única, pretende-se sancionar o agente pelo conjunto dos factos integradores dos crimes em concurso, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento, ponderando a relação entre eles, a janela temporal da sua prática, a diversidade de bens jurídicos violados, o grau de ilicitude e a medida da culpa. Do acórdão recorrido flui que esse exame, sopesado conjuntamente com a personalidade do agente, referenciada aos factos descritos, permite concluir que o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente. O elevado grau de ilicitude da generalidade das condutas descritas, a intensidade do dolo e as elevadas necessidades de prevenção geral, pelo impacto na comunidade que os atos criminosos geram (considerado, em primeira linha, pelas molduras penais previstas para os ilícitos mais graves que praticou), mostram-se desvelados na fundamentação da decisão recorrida, atestando a sua adequação e proporcionalidade. Por todo o exposto, entende-se não merecerem censura as penas únicas aplicadas, por se revelarem adequadas e proporcionais à realizada avaliação conjunta do crime global e da personalidade do agente. III. Decisão Acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em: Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se o decidido no acórdão recorrido. Custas pelo recorrente – art.º 513º n.º 1 do CPP – fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs (art. 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais). Supremo Tribunal de Justiça, 29.06.2023 Teresa de Almeida (Relatora) Sénio Alves (1.º Adjunto) Maria do Carmo Silva Dias (2.º Adjunto) |