Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
376/04.0TBVPA.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: BALDIOS
ÁREA FLORESTAL
DIREITO REAL
ESTADO
GESTÃO PÚBLICA
DIREITO DE PROPRIEDADE
DESAFECTAÇÃO
DESAFETAÇÃO
UTILIDADE PÚBLICA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
RECURSO DE REVISTA
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 10/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / DEFESA DA PROPRIEDADE / ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO.
Doutrina:
- José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, p. 485;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2.ª Edição revista e ampliada, III Volume, p. 113.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1 E 1311.º.
DL N.º 39/76, DE 19-01.
LEI N.º 1971, DE 15-06-1938 (LEI DO POVOAMENTO FLORESTAL).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 15-09-2011, PROCESSO N.º 243/08.9TBPTL.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – Implicando a ação de reivindicação que nela se exija, não só o reconhecimento do direito de propriedade, mas também a consequente restituição da coisa que é seu objeto, e não contendo o pedido formulado pelo autor esta segunda pretensão, está-se perante uma ação de simples apreciação.

II – Neste tipo de ação também cabe ao autor o ónus de alegar e provar os factos que podem dar bom fundamento ao direito invocado.

III – Sustentando o autor que, submetido um baldio ao regime florestal, a parcela de terreno onde se encontra implantada uma casa florestal teria ficado indissociavelmente ligada ao interesse público prosseguido por aquela submissão, por isso não sendo abrangida pela restituição dos baldios levada a cabo pelo DL nº 39/76, de 19.1, está suficientemente caraterizada uma aquisição originária do direito do Estado.

IV – O regime constante da Lei nº 1971, de 15.6.1938 (Lei do Povoamento Florestal), permite que se configure, na titularidade do Estado, um direito real, submetido a um regime de direito público, sobre os baldios sujeitos ao regime florestal funcionalmente dotado de grande estabilidade e de vincadas características de exclusividade e oponibilidade a terceiros, cujo conteúdo se aproxima, quando não se identifica, em certos dos seus vectores, com o complexo de poderes e direitos próprios do titular da propriedade.

V – A devolução dos baldios submetidos ao regime florestal, operada pelo DL nº 39/76, de 19.1, não implicava o afastamento do Estado da respetiva gestão, pois esse regime florestal era mantido, embora com mecanismos que garantiam que os compartes aproveitassem dos resultados da sua exploração.

VI – Não tendo a ré invocado ao longo do processo a desafetação de uma casa florestal – desaparecimento da utilidade pública que a mesmo prestava –, improcede a alegação da sua verificação em sede de recurso de revista, fundada em factos que não foram trazidos aos autos pelas partes nem se encontram demonstrados.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




I - Em representação do Estado, o Ministério Público propôs contra a Assembleia de Compartes de AA, representada pelo Conselho Diretivo dos Baldios de AA, uma ação declarativa, onde pede que se declare que a parcela onde se encontra implantada a casa florestal nº B-95 é propriedade do Estado Português, condenando-se a ré a reconhecer esse direito de propriedade.

     Alegou, em síntese nossa, que:

 - na freguesia de …, concelho de Vila Pouca de Aguiar, há uma área florestal de baldio, gerida em regime de associação pelo Estado/Direção Regional de Agricultura de Trás-os-Montes e por aquele Conselho Diretivo;

- nesse baldio foi construída pelo Estado em data anterior a 1958 e está implantada a casa florestal nº B-95, com anexos e logradouro, inscrita a favor do Estado na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art. 824;

- destinava-se esta casa a servir de habitação aos guardas florestais, que tinham a missão de fazer serviço de polícia nas matas do Estado, vigiando a área florestal a seu cargo, tendo por esses guardas sido habitada, conservada e limpa desde 1958, pelo menos, até 1997;

- estando na titularidade do Estado, aquela casa não foi abrangida pela devolução de baldios estabelecida no art. 3º do DL nº 40/76, de 19.1, tendo ficado afetada a fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.


A ré contestou, pedindo a absolvição do pedido e defendendo, em resumo, que:

a) apesar de serem administrados pelo Estado, os baldios sujeitos ao regime florestal a que se refere a Lei nº 1971, de 16.6.38 continuaram a pertencer aos povos a que estavam afetos;

b) o Estado realizou no mencionado baldio um projeto de arborização, cujos lucros líquidos foram divididos entre ele, a Câmara Municipal de V…, sem prejuízo de os povos titulares do baldio exercerem sobre o mesmo atos de aproveitamento, nomeadamente quanto a algumas lenhas, pastos, limpeza e águas;

c) após a devolução a que procedeu o DL nº 39/76, os compartes do mesmo baldio deliberaram a instituição do regime de associação com o Estado, sendo os resultados da exploração repartidos na proporção de 40% para o Estado e de 60% para os compartes.


Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, fixando a matéria de facto provada, julgou a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido.


Apelou o Estado, tendo a Relação de … proferido acórdão que, revogando a sentença, reconheceu o direito de propriedade do Estado Português sobre a parcela de terreno onde está implantada a casa florestal nº B-95.


Agora inconformada, a ré interpôs recurso de revista, pedindo a revogação daquele aresto e a improcedência do pedido do autor, formulando, para tanto, as conclusões que passamos a transcrever:

1ª – O pedido, formulado pelo Autor, de declaração e reconhecimento, pela Ré, do direito de propriedade do Estado da parcela de terreno baldio, onde se encontra implantada a casa florestal B-95, enquadra-se no âmbito da acção de reivindicação de direitos reais, nomeadamente no âmbito da acção de reivindicação do direito propriedade, sobre bem imóvel.

2ª – Aquele que reivindica o direito de propriedade, de um bem, tem que alegar, e provar, factos que consubstanciem e demonstrem a aquisição do referido direito de propriedade, por uma das formas previstas na lei, competindo-lhe, deste modo, o ónus da prova. (artigo 342º CC).

3ª – Na presente acção o Estado Português vem reivindicar o direito de propriedade da parcela de terreno baldio, onde se encontra implantada a casa florestal B-95, e alega, como causa de pedir, que a referida parcela de terreno baldio, onde se encontra implantada a casa florestal B-95, é uma parcela de baldio submetido ao regime florestal do perímetro do Alvão – por força do disposto no Diário do Governo nº 07, II série, de 14 de Outubro de 1944 – situada na freguesia de …, concelho de Vila Pouca de Aguiar, gerido pelo estado Português em associação com o Conselho Directivo dos Baldios de AA.

(artigos 1º, 3º, 4º e 8º da pi)

4ª – Que a referida casa foi construída pelo Estado Português, em data anterior a 1958, e que se destinava a servir de habitação aos guardas florestais, que diligenciavam pela sua conservação e limpeza, que tinham como missão fazer serviço de polícia nas matas do Estado e vigiar de dia e de noite a área florestal a seu cargo, e que foi habitada desde pelo menos 1958 até 1997.

(artigos 7º, 9º, 10º, 11º e 12º da pi)

5ª Ora a causa de pedir, constante da petição inicial, é manifestamente insuficiente, para que possa ser reconhecido ao Estado o direito de propriedade da parcela de terreno baldio objecto dos autos, quer por via da aquisição originária, vulgo, usucapião, que aliás nem sequer foi invocada, quer por via da acessão industrial imobiliária, que também não se mostra invocada na petição inicial.

6ª – O douto acórdão recorrido viola os artigos 342º e 1316º do Código Civil.

7ª – Resta assim, saber se a referida parcela de terreno baldio, onde foi implantada a casa florestal B-95, bem como o respectivo logradouro, ficou exceptuada da devolução do restante baldio ao uso e fruição da Ré.

8ª – É verdade que sobre esta questão a jurisprudência se tem dividido.

- No sentido de que a parcela de terreno baldio onde foi construída uma casa florestal não passa a pertencer ao estado, o AC. RP de 23/3/06, www.dgsi.pt/jtrp, processo nº 0630356; o AC., do Tribunal da Relação de …, nº 2068/07-2 de 29/11/07.

- Em sentido contrário, o AC. da RP de 22/2/05, www.dgsi.pt/jtrp, processo nº 0426749, o Ac. do STJ de 15-09-2011.

9ª – A Lei do povoamento florestal, Lei nº 1971 de 15/6/38, nomeadamente:

- A Base I, estabelece que os baldios reconhecidos como mais próprios para a cultura florestal do que para qualquer outro fim, seriam arborizados pelos corpos administrativos ou pelo estado.

- A Base VI, refere que os terrenos baldios, depois de submetidos ao regime florestal, entram na posse dos serviços à medida que forem arborizados ou a contar da respectiva notificação.

- A Base VII, refere que os trabalhos construções e outras obras, serão executadas pelo Estado, se os corpos administrativos não possuírem recursos para isso, nem comparticiparem nas despesas, em conformidade com os projectos definitivos.

10ª – “A construção das casas florestais e dos postos de vigia inseria-se no projecto de florestação, como parte de um todo não cindível, tendo em vista o objectivo visado, a arborização do baldio e providenciar a guarda e vigia das florestas.

11ª – O Estado ao intervir nos baldios, tendo em vista o florestamento, assumiu para si, em atenção a tal fim, o ónus de por si proceder às construções necessárias ao florestamento, em que as casas se inserem, como consta da Base VII e VIII da supra citada Lei.

12ª – Fê-lo contudo sem transferência de propriedade, como resulta da Base VI, reservando-se tão somente a posse dos terrenos, através dos correspondentes serviços, o que constitui aliás a essência do regime florestal parcial, mantendo-se os terrenos na “titularidade” dos respectivos “donos” – municípios, freguesias, associações, estabelecimentos pios, particulares, etc.

“O Decreto que submeteu o baldio ao regime florestal parcial não constitui qualquer acto de alienação do direito de propriedade respectivo a favor do Estado” Ac. RP de 23/3/06, www.dgsi.pt/jtrp, processo nº 0630356.

13ª – Tanto assim é que o § único do artigo 403º do Cod. Adm. garante aos compartes determinados aproveitamentos.

As Bases IV e XVI da lei nº 1971 mandam ter em atenção determinados interesses dos povos do concelho ou freguesia a que pertencem os baldios.

As Bases X e XI da citada Lei estabelecem o modo de dividir os rendimentos das matas e florestas, assentando o critério no pressuposto da manutenção do direito de propriedade no originário detentor.

O Estado baseia o seu pedido na Base VI, mas esta não atribui qualquer direito de propriedade.

14ª – A posse que a Base VI implica, em função do interesse público associado à florestação, não pode ver-se como “afectação do baldio à utilidade pública”, enquanto forma de aquisição do domínio, pois tal circunstância é contrariado por todo o regime traçado na lei.

Por outro lado, o que se declara de interesse público é o “regime florestal” e não o solo do baldio.

Mas, ainda que se concluísse de tal modo, sempre teria ocorrido desafectação.

15ª – A propósito o AC., do Tribunal da Relação de ...., nº 2068/07-2 de 29/11/07, onde se refere:

“… Sucede que, mesmo que a referida Base VI da Lei nº 1971 possa conduzir à tal “afectação” enquanto meio administrativo de aquisição da dominialidade pública – o que nem sequer se concede – o facto é que, tal como a administração tem o poder de “afectar”, também tem o poder de “desafectar”.

16ª – Diz a respeito da “desafectação”, Marcello Caetano, obra citada, p 956: “A dominialidade cessa por virtude do desaparecimento da coisa, ou em consequência do desaparecimento da utilidade pública que as coisas prestavam, ou de surgir um fim de interesse geral que seja mais convenientemente preenchido noutro regime”.

17ª – O Estado invoca sobre a parcela um direito de propriedade de natureza privada. O direito do Estado não se configura no entanto com as características plasmadas no artigo 1305º do CC, nos termos do qual o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas – Dominium est jus utendi fruendo et abutendi re sua quatenus júris ratio patitur -, nem em qualquer figura de domínio público, cabendo-lhe apenas a posse e posse limitada aos fins exclusivos para a qual foi concedido conforme Lei nº 1971 e Dec. de 12/5/44.

18ª – Repare-se que ao longo do tempo, divergindo-se embora na doutrina e na jurisprudência quanto à natureza do “direito de propriedade” alusivo ao baldio, e quanto à sua titularidade, certo é que nunca a propriedade desta foi atribuída ao Estado “central”.

19ª – Devolvidos os baldios, cessa a justificação de tal direito real atribuído ao Estado (posse atribuída pela Base VI), cessando o mesmo.

20ª – Não se vê razão para não se considerar a parcela abrangida na devolução a que o nº 3 do D.L. 39/76 de 19/1, se reporta, pois tal parcela não foi expressamente excluída e não descortinamos outro título que justifique a manutenção da parcela na esfera do estado.

21ª – A propriedade sobre a casa não autoriza a conclusão da transferência da propriedade do terreno.

22ª – O argumento que subjaz à aquele entendimento justificaria então, porque similares são as situações, que toda a área do baldio que tivesse sido objecto de construções e mesmo a área arborizada passasse para as mãos do Estado (por virtude da propriedade deste sobre a floresta implantada).”

*(1) Acórdão do TRG 14/01/2008, Proc. 2071/07-1 em www.dgsi.pt

23ª – No caso em apreço, é manifesto que a casa florestal objecto dos autos, não se encontra actualmente afecta a qualquer fim de interesse público de molde a justificar a concomitante afectação da parcela de terreno baldio onde foi implantada.

24ª – Na verdade, encontra-se desabitada, pelo menos, desde 1997, e dos documentos juntos aos autos pela Direcção Geral do Património, (a fls…) resulta que o Estado pretende atribuir outro destino à casa florestal e concomitantemente ao terreno baldio de 145 m2 onde a mesma foi implantada e ao logradouro de 1875 m2 – que foi acrescentado, pelo ofício nº 4901 de 28/04/03 da D. G. Património, à descrição da matriz predial urbana do prédio nº 824 –

(cópia da matriz junto à pi sob o documento nº 2).

25ª – Documentos estes inequivocamente reveladores da desafectação, quer da casa, quer da parcela de terreno baldio onde a mesma foi implantada, a qualquer fim de interesse público.

        

Nas contra-alegações apresentadas defendeu-se a improcedência do recurso, com a formulação das seguintes conclusões:

I - No caso em apreço está em causa determinar a quem pertence a parcela de terreno melhor descrita nos autos, onde está implantada a casa florestal do Estado Português, parcela essa inserida no baldio descrito nos autos, que o Autor considera ser propriedade do Estado Português e defende não estar abrangida na devolução aos compartes do baldio a que alude a Lei 39/76 de 19/1.

- Tal pretensão, fez vencimento no Acórdão recorrido, que julgou procedente a apelação interposta pelo Autor, condenando a Ré Assembleia de Compartes dos Baldios de AA a reconhecer o direito de propriedade do Estado Português sobre a parcela de terreno onde se encontra implantada a casa florestal n.° B-95.

II - Resulta da matéria provada que:

- Na matriz predial urbana, sob o art.° 824 da freguesia de …, está em nome da Fazenda Nacional uma casa de habitação, composta de rés-do-chão, com 8 divisões, destinada a casa florestal, escritório e arrecadação, a confrontar de todos os lados com mata nacional, com a área coberta de 145m2, anexo 15m2 e logradouro 1875 m2. Tal casa florestal, foi construída pelo Estado Português em data não concretamente apurada, mas anterior a 1958 e destinava-se a servir de habitação aos guardas florestais, os quais tinham como missão fazer serviço de Polícia nas matas do Estado e vigiar de dia e de noite a área florestal a seu cargo. Tal casa, foi habitada por guardas florestais, desde pelo menos, o ano de 1958 até 1997, os quais diligenciavam pela sua limpeza. Mais se provou que após o ano de 1944, o Estado procedeu no referido baldio à realização do projecto de arborização, efectuando todos os trabalhos necessários à realização do fim em vista, nomeadamente preparando os terrenos, procedendo ao plantio de árvores, rasgando caminhos e aceios; Os moradores compartes dos baldios das povoações de AA encontram-se constituídos em assembleia de compartes.

- Na área desta comarca, freguesia de …, Concelho de Vila Pouca de Aguiar, existe uma área de terreno comunitário submetido a regime florestal de perímetro do … e que numa parcela do mencionado terreno baldio está implantada a referida casa florestal com a área de 145 m2,anexos com a área de 15m2 e logradouro com 1875 m2, a qual confronta a Norte, Sul, Poente e Nascente com mata.

- Os lucros líquidos retirados da referida parcela de baldio sujeita ao regime florestal, antes da devolução do referido baldio aos compartes moradores em AA, eram divididos entre o Estado e a Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, ficando os povos com as lenhas até 0,06 de diâmetro, com a apascentação dos gados, com a roça dos matos, com a exploração de pedra e saibro, com os despojos das primeiras limpezas, com o aproveitamento das águas para abastecimento, com os direitos sobre pesquisas e exploração de minérios, com a manutenção das serventias indispensáveis para o trânsito das pessoas, veículos e gado.

- Após a devolução dos baldios em 1976, os compartes dos baldios de AA deliberaram em assembleia de compartes passar o baldio de AA, sujeito ao regime florestal, a ser administrado em regime de associação entre os compartes e o Estado, através de um conselho directivo e e um representante do Ministério da Agricultura e Pescas;

- As receitas retiradas da venda dos produtos da exploração florestal do baldio passaram a ser divididas entre o Estado e os compartes dos baldios de AA, na proporção de 40% para o Estado e 60% para os referidos compartes.

- Em Assembleia de Compartes dos baldios de AA de 27 de Outubro de 2003, foi deliberada a mudança de modalidade de administração em associação com o Estado, para a administração exclusiva dos compartes.

IV   - O Acórdão recorrido alicerçou-se na tese acolhida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, relator Granja da Fonseca, com a qual concordamos, para quem o Estado se tornou titular de um direito real" sujeito à disciplina do direito público" sobre os baldios sujeitos ao regime florestal, com afloração na Base VI da Lei 1971 e que "As parcelas de terreno (...)) em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente partícipes de destinação pública a que estas fora afectadas mercê da qual (...) ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes(...).

V     - Ora decorre da factualidade que resultou provada, que a mesma, em nada contraria esta conclusão, antes a corrobora.

VI    - Na realidade o Estado Português implantou numa parcela de baldio a casa florestal, destinou tal imóvel e terreno adjacente à habitação de guardas florestais, a quem incumbiu de vigiar as matas, proceder à limpeza do imóvel etc.

VII   - Daqui se conclui que tanto a casa como a parcela de terreno onde a mesma se insere estavam afectadas a fins de utilidade e interesse público, implicados no regime florestal

VIII  - Verifíca-se que a recorrente erroneamente, na sua análise sobre interesse público dissocia o interesse público ligado ao regime florestal, das casas de guarda florestais e parcelas de terreno onde o Estado prossegue tais fins de interesse público.

IX  - Ora desde logo demonstrado está que mesmo depois da entrega do baldio, não só não foi abandonada pelo Estado a casa florestal e parcela de terreno, como nela se manteve por mais 21 anos, o que elucida o seu propósito de agir como proprietário e desiderato que sempre levou a cabo: exercer a vigilância das matas e florestas, o mesmo é dizer prosseguir um fim de interesse público, que se mantém com grande acuidade, e não se demonstrou ter sido substituído por outro mais conveniente.

X   - Por conseguinte, carece a recorrente de razão quando defende a desafectação da parcela de terreno a qualquer fim de interesse público.

XI - Assim é forçoso concluir que sopesando os diplomas de Povoamento Florestal, com a finalidade subjacente à entrega dos baldios às populações e finalidade prosseguida pelo Estado Português - de interesse e utilidade pública - na vigilância das florestas e matas, as casas de guarda e terrenos onde estão implantadas, tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas.

XII - Ora atento tal fim específico, e atentando no fim que preside à entrega dos baldios às populações, decorre que os objectivos e finalidade não coincidem e não interferem uma com a outra.

XIII  - Na verdade o uso e fruição pelos compartes, não resulta afectado pela manutenção do imóvel na propriedade do Estado, já que para o alcance dos mesmos, não necessitam do imóvel do Estado, com uma finalidade muito específica, e que por mor do uso que lhe tem sido dado, como refere o Acórdão recorrido já não mantém as mesmas características (o uso que ancestralmente as populações davam aos terrenos comunais, para retirarem dele as vantagens destinadas à satisfação de necessidades diárias da comunidade, apascentando os animais, procedendo ao corte de lenha, recolha de caruma, folhas de árvores etc) actividades estas que não se coadunam com as finalidades da parcela de terreno onde se insere a casa florestal.

XIV - Por conseguinte, como refere o Acórdão recorrido, alicerçando-se no Parecer da Procuradoria-Geral da República n.° 6/99 de 24/06/1999 publicado no DR, II Série, n.° 274 de 24/11/1999, o Estado é titular de um direito real cujo conteúdo configura "complexo de poderes e direitos próprios do titular da propriedade" e pelas razões expostas, a parcela de terreno, fica exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes nos termos do art.° 3.° do Decreto-Lein.°39/76 de 19/01, em conformidade aliás com o Parecer da Procuradoria Geral da República n.° 6/99 de 24/06/1999 publicado no DR, II Série, n.° 274 de 24/11/1999.

XV   - O Acórdão recorrido fez correcta interpretação dos diplomas e normas em causa, que, face à matéria provada, levaram a que declarasse o direito de propriedade do Estado Português sobre a parcela de terreno onde se encontra a casa florestal, condenando a Ré a reconhecê-lo.

XVI - Deve manter-se o julgado e improceder o recurso interposto pela Ré.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


    II - Vêm dados como provados os seguintes factos:

1 - Na matriz predial urbana, sob o artigo 824, da freguesia de …, está descrito em nome da Fazenda Nacional uma casa de habitação composta de rés-do-chão com 8 divisões destinada a casa de guarda florestal, escritório e arrecadação, a confrontar de todos os lados com mata nacional, com a área coberta de 145 m2, anexo 15m2 e logradouro de 1875 m2;

2 - Os moradores compartes dos baldios das povoações de AA, encontram-se constituídos em assembleia de compartes;

3 - Na área desta comarca, freguesia de …, Concelho de Vila Pouca de Aguiar, existe uma área de terreno comunitário submetido ao regime florestal do perímetro do …;

4 - Numa parcela do mencionado terreno baldio está implantada a casa florestal B-95, com a área de 145 m2, anexos com a área de 15 m2, e logradouro com 1.875 m2, a qual confronta a Norte, Sul, Poente e Nascente com mata;

5 - A referida casa florestal foi construída pelo Estado Português em data não concretamente apurada, mas anterior a 1958 e destinava-se a servir de habitação aos guardas florestais, os quais tinham como missão fazer serviço de Polícia nas matas do Estado e vigiar de dia e de noite a área florestal a seu cargo;

6 - A casa foi habitada por guardas florestais desde, pelo menos, o ano de 1958 até 1997, os quais diligenciavam pela sua limpeza;

7 - Sendo que desde tempos imemoriais há mais de 200 anos, nos limites das povoações de AA, freguesia de …, concelho de Vila Pouca de Aguiar, desde a fundação das referidas povoações, na área citada em 3), que os referidos compartes aí moradores, por si e antecessores vêm aí roçando o mato, cortando lenhas, apascentando gados, elegendo os órgãos de gestão do baldio, deliberando o regime de gestão do mesmo, recebendo as receitas da venda dos produtos de exploração florestal provenientes de povoamentos instalados pelo Estado, nos referidos baldios, sem qualquer interrupção, e frente a todas as pessoas do lugar, mormente do Estado;

8 - Após o ano de 1944, o Estado procedeu no referido baldio à realização do projecto de arborização, efectuando todos os trabalhos necessários à realização do fim em vista, nomeadamente preparando os terrenos, procedendo ao plantio de árvores, rasgando caminhos e aceios;

9 - Os lucros líquidos retirados da referida parcela de baldio sujeita ao regime florestal, antes da devolução do referido baldio aos compartes moradores em AA, eram divididos entre o Estado e a Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, ficando os povos com as lenhas até 0,06 de diâmetro, com a apascentação dos gados, com a roça dos matos, com a exploração de pedra e saibro, com os despojos das primeiras limpezas, com o aproveitamento das águas para abastecimento, com os direitos sobre pesquisas e exploração de minérios, com a manutenção das serventias indispensáveis para o trânsito das pessoas, veículos e gado;

10 - Após a devolução dos baldios em 1976, os compartes dos baldios de AA deliberaram em assembleia de compartes passar o baldio de AA, sujeito ao regime florestal, a ser administrado em regime de associação entre os compartes e o Estado, através de um conselho directivo e um representante do Ministério da Agricultura e Pescas;

11 - As receitas retiradas da venda dos produtos da exploração florestal do referido baldio passaram a ser divididos entre o Estado e os compartes dos baldios de AA, na proporção de 40% para o Estado e 60% para os referidos compartes;

12 - Em Assembleia de Compartes dos baldios de AA de 27 de Outubro de 2003, foi deliberada a mudança de modalidade de administração em associação com o Estado, para a administração exclusiva dos compartes.


     III – É agora altura de abordar as questões suscitadas.

        

Da insuficiência da causa de pedir:

Pugna a recorrente, ao longo das conclusões 1ª a 6ª, pela improcedência da pretensão formulada, na medida em que, tratando-se de uma ação de reivindicação, se verifica insuficiência da causa de pedir invocada, por não vir caraterizada uma aquisição originária – nomeadamente por usucapião ou acessão – que possa fundar o direito invocado pelo Estado.

     Importa esclarecer, desde já, que não estamos perante uma ação de reivindicação.

Implicando a ação desta natureza, como flui do art. 1311º do CC, que nela se exija, não só o reconhecimento do direito de propriedade, mas também a consequente restituição da coisa que é seu objeto, torna-se evidente que o pedido formulado pelo autor não encerra esta segunda pretensão.

       Estamos, ao invés, perante uma ação de simples apreciação.

É, como a primeira, uma ação real, pois o pedido formulado consiste no reconhecimento de que o autor é titular do direito de propriedade sobre a parcela onde se encontra implantada a casa florestal nº B-95[1]; mas nela não se invoca violação desse direito que se traduza na ilegítima detenção da coisa pelo réu, nem, consequentemente, se pede a restituição dela a quem é seu dono.

Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[2], não “há (…) acção de reivindicação, que é uma acção condenatória e não de simples apreciação ou declaração, se o autor, estando (…) na posse da coisa, se limita a pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade, tornando duvidoso por qualquer circunstância.

    Sendo, em todo o caso, de conceder que neste tipo de ação também cabe ao autor o ónus de alegar e provar os factos que podem dar bom fundamento ao direito invocado – art. 342º, nº 1 do C. Civil -, não há dúvidas, a nosso ver, de que a petição inicial contém factos que em abstrato são, na tese do autor, suficientes para a investidura do Estado na titularidade do direito que invoca.

     E isto porque - como resulta do que mais detalhadamente abaixo de exporá -, a parcela de terreno onde se encontra implantada a casa florestal B-95, vista a submissão do baldio ao regime florestal, teria ficado indissociavelmente ligada ao interesse público prosseguido por aquela submissão; daí que não tivesse sido abrangida pela restituição dos baldios levada a cabo pelo DL nº 39/76, de 19.1.

      Assim mostra-se suficientemente caraterizada uma aquisição originária do direito do Estado, soçobrando o argumento em apreço.


      Dos efeitos da submissão de áreas de baldio ao regime florestal e da devolução operada pelo Dec. Lei nº 39/76:


Nas conclusões 7ª a 14ª a recorrente defende que a submissão de áreas integradas em baldios ao regime florestal regido pela Lei nº 1971, de 15.6.1938 (Lei do Povoamento Florestal), apenas conferiu ao Estado a posse desses mesmos terrenos, sem lhe atribuir poderes de domínio, já que a respetiva titularidade se mantinha na esfera jurídica das entidades que até então os detinham.

E, por isso, a parcela onde foi implantada a casa florestal B-95 teria sido abrangida pela devolução dos baldios, operada pelo citado DL nº 39/76.

      Esta questão leva-nos a relembrar o enquadramento jurídico a que os baldios têm vindo a estar sujeitos.

“A origem dos baldios acha-se na necessidade que os povoadores livres de uma aldeia rural, vivendo da exploração familiar da pequena propriedade, tinham de dispor de vastos espaços incultos, onde pudessem encontrar as actividades complementares da actividade agrária.

«Foram, assim, concedidos aos povoadores logradouros para "os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras" (Ordenações Manuelinas, L.º. IV, Títº. LXVII, 8, e Ordenações Filipinas, L.º. IV, Títº. XLIII, 9).

(...)
«Os baldios não se confundiam com os bens próprios da freguesia ou do concelho, tendo antes o carácter de bens em comunidade ou de propriedade comunal.

«Todos os vizinhos de determinado lugar tinham sobre eles, indivisivelmente, direito e posse, sem possibilidade de determinação de quota ideal. A propriedade pertencia à colectividade não personalizada, todos os que nela ingressavam adquiriam gratuitamente direito à fruição, que aquele que dela saísse perdia sem indemnização. Eram bens inalienáveis, cuja administração cabia, primitivamente, a toda a comunidade reunida em assembleias… esta forma de comunhão, na qual as partes dos diversos proprietários se encontram por tal forma embrechadas, por tal forma fundidas na comunhão que todos têm direito sobre o todo sem todavia nenhum deles o ter sobre qualquer quota-parte, é que caracteriza a propriedade em mão comum ou zu Gesamter Hand".

«O Código Civil de Seabra recolheu esta tradição, distinguindo claramente o domínio público, o domínio privado e o domínio comum, compreendendo este último, além de certas águas, os terrenos baldios (artigos 379º e 381º).

«Não obstante esta classificação tripartida, na vigência desse Código muitos autores sustentaram que os baldios eram propriedade (pública ou privada) das autarquias locais (-), enquanto outros defenderam que constituíam propriedade comunal dos vizinhos de certa circunscrição ou de parte dela (-).”[3]

      Foi neste enquadramento jurídico que ocorreu a publicação da Lei nº 1971, que na sua Base I promoveu a arborização, pelos corpos administrativos ou pelo Estado, dos terrenos baldios reconhecidos pelos serviços do Ministério da Agricultura como mais próprios para cultura florestal do que para qualquer outra; esta arborização podia ser acompanhada da construção de caminhos florestais, casas – nomeadamente casas de guarda – e postos de vigia, bem como da montagem de redes telefónicas e de obras de correção torrencial e outras inerentes ao povoamento florestal.

      Proceder-se-ia, por acordo ou por via judicial, à demarcação dos terrenos baldios em causa face aos proprietários confinantes – cfr. Base III.

Realizar-se-iam inquéritos sobre os usos, costumes e regalias dos povos quanto a atividades a desenvolver nos baldios, servindo as respetivas conclusões, uma vez aprovadas pelo Ministério da Agricultura, de base ao decreto de submissão dos mesmos ao regime florestal, com a possível conciliação dos interesses dos povos com o interesse geral da arborização – cfr. Bases IV e V.

Depois os baldios em causa entrariam na posse dos serviços – cfr. Base VI – e o rendimento líquido das matas e florestas seria repartido entre o Estado e os corpos administrativos – cfr. Base X;

A arborização de terrenos particulares incluídos nos perímetros em causa estava sujeita aos projetos dos serviços florestais, podendo a inobservância destes conduzir à sua aquisição ou expropriação pelo Estado – cfr. Base XII

Previa-se também, na Base XIII, que quanto a terrenos particulares, incluídos ou não nos perímetros, a sua arborização fosse feita pelos proprietários de acordo com instruções dos serviços florestais, podendo igualmente ocorrer a sua aquisição ou expropriação pelo Estado.

      Este regime dá apoio ao entendimento, sufragado pelo Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República[4], segundo o qual se configurava, na titularidade do Estado, um direito real, submetido a um regime de direito público, “(…) sobre os baldios sujeitos ao regime florestal funcionalmente dotado de grande estabilidade e de vincadas características de exclusividade e oponibilidade a terceiros, cujo conteúdo se aproxima, quando não se identifica, em certos dos seus vectores, com o complexo de poderes e direitos próprios do titular da propriedade.

Determinadas coisas, inclusive, aí existentes, encontram-se inequivocamente no domínio (privado) do Estado; a floresta, plantada pelos serviços florestais (); as construções de várias espécies aí edificadas e custeadas pelos serviços estaduais, com relevo para as casas de guarda, cuja propriedade não suscita na consulta sombra de dúvida de que se encontra na titularidade do Estado.

Sucede, ademais, neste caso que o direito real do Estado sobre o baldio, considerado estritamente como objectivado na parcela de terreno em que a casa está implantada, se revela particularmente intenso nos apontados caracteres da exclusividade e da oponibilidade, fruto, assim pensamos, da afectação ou destinação da casa aos fins de utilidade e interesse público implicados no regime florestal, de que a parcela se tornara, por natureza, indissociavelmente partícipe. (…) (sublinhado nosso)


     Para assegurar os objetivos do povoamento florestal, estava cometida aos guardas florestais a polícia das matas do Estado e a vigilância da área a seu cargo, com a obrigação de permanência constante na mesma – cfr. art. 305º, nºs 1 e 4, do Regulamento para a Execução do Regime Florestal conforme o decreto de 24 de dezembro de 1901, aprovado em 24 de Dezembro de 1903 -, para o que lhe era facultada casa na sua área construída, indiscutivelmente propriedade do Estado, como se diz no citado parecer, e, repete-se, afetada ou destinada àqueles fins de utilidade e interesse público implicados no regime florestal.

        

Importa então saber em que medida o citado DL nº 39/76 interferiu com este regime.

Deste diploma são de destacar os seus arts. 1º, 2º, 3º, 9º e 15º.

- Art. 1º: “Dizem-se baldios os terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas.”

- Art. 2º - “Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião.

- Art. 3º - “São devolvidos ao uso, fruição e administração dos respectivos compartes, nos termos do presente diploma, por cujas disposições passam a reger-se, os baldios submetidos ao regime florestal e os reservados ao abrigo do Nº 4 do artigo 173º do Decreto-Lei Nº 27207/1936, de 16 de Novembro, aos quais a Junta de Colonização Interna não tenha dado destino ou aproveitamento.

- Art. 9º - “Os terrenos baldios podem ser administrados por uma das seguintes formas, a escolher pela assembleia de compartes:

a) Exclusivamente pelos compartes, através de um conselho directivo composto por cinco compartes eleitos pela assembleia;

b) Em regime de associação entre os compartes e o Estado, através de um conselho directivo composto por quatro compartes eleitos pela assembleia e um representante do Ministério da Agricultura e Pescas.

- Art. 15º - “A compensação dos encargos suportados pelo Estado na arborização e na gestão do património florestal far-se-á pela forma estabelecida nas alíneas seguintes:

a) Nos casos em que for escolhida pela assembleia de compartes a modalidade de administração prevista na alínea a) do artigo 8º[5], o conselho directivo depositará à ordem do Estado 30% de todas as receitas brutas obtidas na venda de material lenhoso proveniente de cortes realizados em povoamentos instalados pelo Estado;

b) Nos casos em que for escolhida pela assembleia de compartes a modalidade prevista na alínea b) do artigo 9º, o Estado arrecadará 40% das receitas brutas obtidas na venda de material lenhoso proveniente de cortes realizados em povoamentos por si instalados e 20% das receitas brutas obtidas na venda de material lenhoso proveniente de cortes realizados em povoamentos de regeneração natural ou já existentes à data da submissão ao regime florestal, sendo o remanescente colocado à disposição do conselho directivo;

c) Nos casos em que for escolhida pela assembleia de compartes a modalidade prevista na alínea b) do artigo 9º, o sistema de repartição estabelecido na alínea anterior poderá ser substituído, se a assembleia assim o deliberar, por uma renda anual a acordar com o Estado e que este colocará à disposição do conselho directivo um ano após o início da arborização;

d) Sempre que nos baldios existam terrenos classificados como zonas de reserva, protecção ou predominantemente produtores de serviços de interesse colectivo, qualquer que seja a modalidade de administração escolhida, será paga pelo Estado uma renda anual a acordar com as assembleias de compartes interessadas, que será posta à disposição dos respectivos conselhos directivos.

        

Destas normas, nomeadamente dos arts. 3º e 15º, flui que a devolução dos baldios submetidos ao regime florestal não implicava o afastamento do Estado da respetiva gestão, pois esse regime florestal era mantido, embora com mecanismos que garantiam que os compartes aproveitassem dos resultados da sua exploração.

    Em caso factualmente semelhante ao que aqui versamos foi seguido por este STJ[6] o entendimento que, merecendo a nossa adesão, passamos a transcrever:

“IV.

O douto acórdão recorrido considerou que a casa do guarda-florestal, a parcela onde a mesma se encontrava implantada e o respectivo logradouro eram propriedade do Estado, em essência, com dois fundamentos:

A - Tomou em consideração os fundamentos do Parecer 6/99 do Conselho Consultivo da Procuradoria da República, onde se formularam, entre outras, as seguintes conclusões:

1ª - O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos a regime florestal, com afloração na base VI da Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938, que lhe confere a posse de imóveis correspondentes a esse direito.

2ª – As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios, e propriedade deste, ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.

3ª – As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual, e por força do direito real público acima aludido, ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do artigo 3º do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro.

(…)

Vejamos:

A – Se a casa de guarda, o terreno onde a mesma se encontra implantada e o respectivo logradouro ficaram ou não abrangidos na devolução ao uso, fruição e administração dos compartes do baldio da …, em conformidade com o artigo 3º do DL 39/76, de 19 de Janeiro.

Os baldios são terrenos não individualmente apropriados, que, desde tempos imemoriais, servem de logradouro comum dos vizinhos de uma povoação, ou de um grupo de povoações, com vista à satisfação de certas necessidades individuais, por exemplo, apascentação do gado, a monte ou pastoreado, recolha de matos e lenhas, apanha de estrume, fabrico de carvão de sobro, extracção de barro ou outras fruições de natureza agrícola, silvícola, silvo – pastoril, proveitos análogos [1 Entre outros, Acórdãos do STJ de 16/06/2009, Processo 47/2000.S1, de 10/12/2009, Processo 313/04.2TBMIR.C1.S1. e de 25/02/2010, Processo 782/2001.S1].

Ao longo dos tempos, o regime jurídico dos baldios sofreu consideráveis mudanças, sendo tais terrenos considerados como bens colectivos (propriedade comunal ou comunitária) desde a Idade Média, mas variando a sua consideração como sendo de domínio público ou privado, não obstante, sempre de direito colectivo [2 Vide Acórdão do STJ de 25/02/2010, atrás referido].

O Código de Seabra recolheu esta tradição, qualificando as coisas, relativamente à titularidade do respectivo direito de propriedade, como públicas, comuns ou particulares (artigo 379º), distinguindo, claramente, o domínio público, o domínio privado e o domínio comum, compreendendo este último, além de certas águas, os terrenos baldios (artigos 379º e 381º).

“Não obstante esta classificação tripartida, na vigência desse Código, muitos autores sustentaram que os baldios eram propriedade (pública ou privada) das autarquias locais, enquanto outros defenderam que constituíam propriedade comunal dos vizinhos de certa circunscrição ou parte dela [3 Parecer PGR, de 24/06/99, citado]”.

Entretanto o Código Administrativo veio consagrar expressamente, no parágrafo único do seu artigo 388º, a prescritibilidade dos baldios, com a consequente admissibilidade de aquisição do respectivo domínio por usucapião, em termos que configuram uma verdadeira interpretação autêntica do direito anterior, considerando-se, por isso, de aplicação retroactiva, nos termos do artigo 8º do Código Civil de Seabra [4 Ac. STJ de 16/06/2009, de 10/12/2009, citados].

Ainda antes disso, no domínio do Código de Seabra, cada vez, um maior número de vozes autorizadas, nomeadamente o insigne Dr. Cunha Gonçalves [5 Tratado de Direito Civil, Volume III, página 145], se inclinavam, no sentido de considerar que os baldios também podiam ser adquiridos, mediante a prescrição aquisitiva ou positiva que era regulada nos artigos 517º e seguintes desse diploma legal, «para favorecer o incremento da produção agrícola».

Neste quadro é publicada a Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938 – Lei do povoamento florestal – que sujeitou especificamente determinados baldios ao regime florestal.

A Base VII dessa Lei alude às casas de guarda, ao estipular que dos projectos definitivos, além da «área a arborizar e a reservar para pastagens, viveiros e culturas», conste, entre outros aspectos, a «construção de caminhos, sedes de administração, casas de guarda, postos de vigia, montagem de rede telefónica», podendo as construções «que tenham de preceder os trabalhos de urbanização constar de projectos especiais.

Por sua vez, considerava a Base VI que os terrenos baldios, depois de submetidos ao regime florestal, entram na posse dos serviços à medida que forem arborizadas ou a contar da respectiva notificação.

(…)

No domínio do actual Código Civil, foi suprimida a categoria legal de coisas comuns, pelo que se passou a entender genericamente que os baldios devem ser concebidos como coisas particulares, pertencentes ao património das autarquias, pelo que tais bens eram susceptíveis de apropriação e de usucapião (antiga prescrição aquisitiva).

Isto até à entrada em vigor do DL n.º 39/76, que se propôs proceder à entrega dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossadas, em cujo artigo 2º se declarou que os terrenos baldios se encontram fora do comércio jurídico [6 O Código Civil de 1966, referindo-se às coisas fora do comércio, caracteriza-as como aquelas que não podem ser objecto de direitos privados (artigo 202º)], não podendo, no todo, ou, em parte, ser objecto de apropriação privada, incluída a usucapião.

Salientava-se, porém, neste diploma que ficavam, no entanto, por resolver as numerosas questões decorrentes da apropriação de terrenos baldios por parte dos particulares.

Mas nada disse o citado DL 39/76 quanto às casas dos guardas florestais, postos de vigia e outras instalações, apesar dos guardas florestais continuarem no exercício das suas funções, usando a casa de função que o Estado mandara construir, muito para além da entrada em vigor desse diploma, como sucedeu com a casa aqui em causa que assim permaneceu até 1994.

Porém, competindo aos guardas florestais fazer o serviço de polícia das matas e vigiando, de dia e de noite, a área florestal a seu cargo, o Estado proporcionava-lhes as denominadas casas florestais, pelo que, como todas elas estavam adstritas ao fim público de vigilância e preservação das florestas, poder-se-á concluir que o legislador pretendeu que continuassem afectas a essas finalidades, mantendo-se na posse e propriedade do Estado.

Como se considerou no acórdão recorrido, a prossecução das finalidades intencionadas com a devolução dos baldios não exigia a entrega de tais casas ou instalações. Com efeito, a tão vastas áreas de terrenos baldios não adiantam, nem atrasam superfícies da ordem dos 300 m.2. Mais, não se vislumbra que uso iriam os compartes dar a essas instalações, designadamente aos postos de vigia.

Como se referiu, porque com o DL 39/76, ficavam por resolver as numerosas questões decorrentes da apropriação de terrenos baldios por parte dos particulares, assistiu-se, nesta intencionalidade, à publicação do DL n.º 40/76, mediante o qual se declararam “anuláveis a todo o tempo” os actos ou negócios jurídicos que tenham como objecto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por particulares, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, nos termos de direito (artigo 1º, n.º 1), pelo que o regime por ele instituído não é aplicável às casas dos guardas florestais, respectivos assentos e logradouros.

Também a disposição transitória do artigo 39º da Lei 68/93, de 4 de Setembro, (Lei dos Baldios), com a redacção introduzida pela Lei 89/97, de 30 de Junho, teve em vista regularizar e legalizar construções e empreendimentos privados ilegais, em face dos DL n.os 39/76 e 40/76, sendo, portanto, igualmente inaplicável às casas de guardas florestais, às parcelas de terrenos em que foram edificadas e aos respectivos logradouros.

Pelo que se deixa exposto, o legislador, com a devolução dos baldios, visou permitir às populações darem o uso que ancestralmente davam aos terrenos comunais, ou seja, retirarem deles as vantagens destinadas à satisfação das necessidades diárias da comunidade, designadamente ali apascentarem animais, procederem ao corte de lenha, ao roço de mato e à recolha de caruma e folhas das árvores.

Para tanto, os compartes não carecem das casas florestais, nem dos seus logradouros, pois o uso e fruição dos baldios não passam pela utilização de tais casa e logradouro.

Acresce que, não tendo o Estado querido abandonar as áreas florestadas, não integradas nos baldios, pretendeu também manter as casas dos guardas florestais, dado que as áreas florestadas, sob vigilância desses guardas, não se confundiam com as áreas dos baldios.

Tal como se sustenta, no citado Parecer da Procuradoria da República n.º 6/99, de 24/06/1999, publicado no DR, II Série, n.º 274, de 24/11/1999, poder-se-á concluir:

O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos ao regime florestal.

E as casas de guardas florestais edificadas pelo Estado, nesses baldios, são de sua propriedade, ficando afectas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.

Por sua vez, as parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas tais casas ficaram indissociavelmente ligadas à destinação pública a que estas ficaram adstritas. E, por isso, devem considerar-se exceptuadas da devolução dos baldios ao uso, fruição e administração dos compartes, determinada pelo artigo 3º do DL nº 39/76, de 19 de Janeiro.

Reportando-nos ao caso sub judice, o prédio em causa foi construído pelo Estado Português, tendo a sua construção terminado em 1952.

Na altura, o terreno, onde foi construído, encontrava-se submetido ao Regime Florestal e integrado no Perímetro Florestal de Entre Lima e Neiva, por força de acto legislativo publicado no Diário do Governo, II Série, de 10 de Maio de 1945.

Esta casa foi construída, nomeadamente, para albergar os guardas florestais que ali prestavam serviço, bem como as respectivas famílias.

Assim, tendo esta casa sido construída pelo Estado a expensas suas, visando alojar os guardas florestais e a suas famílias, com o desiderato de manter uma permanente vigilância da respectiva área florestada, a mesma é propriedade do Estado, ficando a parcela em que a mesma foi implantada indissociavelmente ligada à destinação pública a que a casa ficou adstrita.

Por isso mesmo, encontrando-se o baldio da Facha, submetido ao regime florestal, não ficaram a aludida casa do guarda-florestal, a parcela em que se encontra implantada e respectivo logradouro abrangidos na devolução, ao uso, fruição e administração dos compartes do baldio da Facha.

Tanto basta para que se tenha de considerar a procedência do douto acórdão recorrido, ainda que o 2º [aquisição da parcela do terreno e do respectivo logradouro por usucapião] dos fundamentos em que se escudou o acórdão recorrido possa improceder.

(…)” (sublinhado nosso)



    Adotando também nós este entendimento – como acima adiantámos já -, o acórdão recorrido merece confirmação, sendo esta a posição também acolhida no recente acórdão deste STJ de 13.09.2018, proferido no processo nº 512/13.6TBMNC.G1.S1.[7]


      Da desafectação da casa de guarda B-95 a qualquer fim de utilidade púbica:

Argumenta ainda a recorrente, ao longo das conclusões 15ª e seguintes que, não estando a casa de guarda B-95 actualmente afecta a qualquer fim de interesse público de molde a justificar a concomitante afectação da parcela de terreno baldio onde foi implantada, deve entender-se que esta parcela foi abrangida pela restituição operada pelo DL nº 39/76.

      A agora alegada desafetação daquele bem imóvel – desaparecimento da utilidade pública que o mesmo prestava – nunca antes fora invocada pela ré, além de que se funda em factos – conclusão XXIVª – que não foram trazidos aos autos pelas partes nem se encontram demonstrados.

Daí que, sem necessidade de outras considerações e tendo em conta o que acima expusemos quanto à exclusão da casa de guarda em apreço da devolução dos baldios, operada pelo art. 3º do Dec. Lei nº DL nº 39/76, de 19 de janeiro, esta argumentação esteja necessariamente votada ao insucesso.


Assim, a revista improcede.


    IV - Pelo exposto, negando-se a revista, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.


Lisboa, 4.10.2019


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relator)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pág. 485
[2] Código Civil Anotado, 2ª edição revista e ampliada, III volume, pág. 113
[3] Transcrição de passagens constantes do Parecer da PGR nº 166/92, publicado no D Rep, II Série, de 29.6.83
[4] Cfr. Parecer nº 6/99 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, publicado no DRep, II Série, de 24.11.99
[5] É manifesto o lapso constante desta norma, já que só faz sentido a remissão para a al. a) do art. 9º, como se faz na subsequente al. b).
[6] Cfr. acórdão de 15.9.2011, proc. 243/08.9TBPTL.G1.S1, relator Conselheiro Granja da Fonseca, acessível em www.dgsi.pt
[7] Relatora Conselheira Maria da Graça Trigo e em que a ora relatora interveio como adjunta.