Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6844/03.4TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO DE CULPA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACTIVIDADES PERIGOSAS
ATIVIDADES PERIGOSAS
Data do Acordão: 04/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BIOMÉDICO - RESPONSABILIDADE MÉDICA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / CONSENTIMENTO DO LESADO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8.ª ed., 495, 529.
- André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 756.
- Carla Gonçalves, A Responsabilidade Civil Médica, 41.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. I, 4.ª ed., 495.
- Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, 100.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.º1, 340.º, 1, 493.º, 798.º, 799.º, N.º1, 1154.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 5.º, N.º3.
Referências Internacionais:
CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA: - ARTIGO 3.º, N.º2.
CEDHBIOMED: - ARTIGO 5.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 15/11/2012;
-DE 17/01/2013;
-DE 02/06/2015, DE 28/01/2016, E DE 22/09/2011.
Sumário :
I - A responsabilidade civil médica tem natureza contratual quando assenta num contrato de prestação de serviços.

II - Configura um contrato de prestação de serviços o acordo pelo qual o réu médico se obrigou a realizar uma intervenção cirúrgica, que consistiu numa artroplastia com prótese total da anca de longa duração, a que a autora decidiu sujeitar-se.

III - Embora no contrato de prestação de serviços definido no art. 1154.º do CC se consagre a obrigação de uma das partes proporcionar à outra certo resultado, no contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos com colocação de prótese, o médico assume uma obrigação de resultado quanto à elaboração da prótese adequada à anatomia do paciente, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da mesma no organismo do paciente segundo as leges artis.

IV - O médico não responde pela falta de obtenção do resultado visada com a cirurgia, cura ou melhoramento do estado de saúde, visto que a aceitação ou rejeição pelo organismo daquele corpo estranho escapa ao seu controlo.

V - Por consequência, o que legitima o recurso à presunção de culpa no incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato, prevista no art. 798.º do CC, é a prática de algum erro no que respeita aos meios e técnicas de tratamento adotados de harmonia com as leges artis.

VI - Considerando a obrigação do médico uma obrigação de meios, sobre ele recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, e portanto sem culpa, se se quiser eximir à sua responsabilidade decorrente de incumprimento.

VII - Tal pressupõe que se demonstre, previamente, o incumprimento ou cumprimento defeituoso.

VIII - Provado que a intervenção cirúrgica implicou a colocação de uma haste metálica no interior do fémur e um acetábulo junto à anca e, após, ficou a padecer de estiramento do nervo ciático, mas não provado, como alegado pela autora, que tal se deveu ao comprimento excessivo da referida haste, fica por determinar a sua causa, tanto mais que a operação comporta alguns riscos e a lesão do nervo ciático podia ter resultado de hematoma nas proximidades, de origem também não apurada.

IX - Donde, o réu não pode ser responsabilizado civilmente com base em incumprimento contratual ou cumprimento contratual defeituoso.

X - O regime da responsabilidade contratual, aplicável à invocação da violação de uma obrigação contratual de que resultam danos para as partes, é globalmente mais favorável ao lesado e conforme ao princípio da autonomia privada, pelo que consome o regime da responsabilidade extracontratual, incluindo o invocado art. 493.º do CC.

XI - A cirurgia em questão não tem, pela sua natureza ou pela natureza dos meios empregues, a perigosidade especial necessária à aplicação do art. 493.º do CC.
Decisão Texto Integral:

              Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

             Em 11 de Setembro de 2003, AA, casada, aposentada, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra BB, médico, e CC– Clínica ..., S.A., pedindo que os RR. sejam condenados a pagar, solidariamente, à Autora, a quantia de €183.076,55 (cento e oitenta e três mil e setenta e seis euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescida de juros à taxa legal supletiva contados desde a citação e até integral e efetivo pagamento, bem como as despesas futuras que esta tiver de realizar em consequência dos danos sofridos nomeadamente consultas médicas, tratamentos, internamentos, operações cirúrgicas e medicamentos.

              Invoca, para tanto e em síntese:

              - A Autora acordou com a 2ª ré, que se dedica á prestação de serviços de saúde, que esta lhe prestaria serviços médicos e outros cuidados de saúde, mediante o pagamento de uma retribuição, tendo o 1º réu, médico, atuado como auxiliar daquela na execução desse acordo.

              - Entre fins de Abril e princípios de Maio de 2001, a Autora dirigiu-se à consulta externa de ortopedia da 2ª Ré, onde foi observada pelo 1º Réu, e este prescreveu à Autora a realização de uma intervenção cirúrgica para colocação de uma prótese total da anca de longa duração.

              - A Autora acordou com a 2ª ré que, contra o pagamento de retribuição, esta a receberia nas suas instalações para a operação, a realizar pelo 1º Réu, e lhe prestaria os demais cuidados de saúde necessários.

              - O Réu realizou a operação em 15 de Maio de 2001.

              - No mesmo dia, porque sofria dores muito intensas, a Autora chamou o 1º R., que considerou que a dor se mantinha no limiar normal.

              - No dia 16 de Maio, novamente chamado, o 1º Réu admitiu ter ocorrido uma anomalia durante a operação, porque a prótese que lhe foi colocada tinha uma haste metálica mais longa do que deveria ser, o que lhe causou paresia do nervo grande ciático direito.

              - Por decisão do 1º réu, este operou novamente a autora no dia 17 de Maio, para encurtar a dimensão da prótese e explorar o nervo ciático, o que forçou à reabertura e alargamento, para o dobro, da costura da primeira operação.

              - Foi-lhe dada alta em 20 de Maio de 2001 e mandada para casa, só voltando a ser observada pelo Réu 15 dias após a alta.

              - Esteve imobilizada durante cinco semanas após a operação e fez fisioterapia durante cerca de dez meses, afirmando-lhe sempre o Réu que as lesões eram recuperáveis embora houvesse que aguardar pelo período de um ano.

             - Para conseguir essa recuperação, a autora, além da fisioterapia diária, fez diversas radiografias e medicação variada e intensa, nomeadamente com injeções epidurais de alto risco, também com corticóides, ministradas em sala operatória.

              - Apesar dos tratamentos, a autora perdeu a sensibilidade no pé direito, tem a perna direita mais fina que a esquerda, claudicação acentuada na marcha e dores permanentes, mesmo estando sentada ou deitada, nem com canadianas se podendo movimentar durante cerca de oito a nove meses, estando totalmente dependente do auxílio de terceiros para esse efeito.   

              - O 1º Réu veio a reconhecer que a situação clínica da Autora é irreversível e resultou do estiramento do nervo ciático causado pelo excesso de comprimento da haste metálica colocada na primeira intervenção cirúrgica de 15 de Maio de 2001.

              - Só por descuido e imponderação do 1º Réu foi colocada uma haste de comprimento superior ao devido, o que consubstancia a violação das regras da arte médica.

             - Não são conhecidos casos de estiramento do ciático na sequência de intervenções cirúrgicas com os fins realizados pela Autora.

             - A operação a que a Autora foi submetida corresponde a um tipo de operação realizada com frequência e não envolve especial complexidade do foro ortopédico, pelo que sempre lhe foi dito pelos Réus que não era previsível qualquer complicação posterior.

          - Porque era de presumir aquando da segunda cirurgia a existência de danos no nervo ciático, a segunda operação deveria ser acompanhada por um neurocirurgião, o que não sucedeu.

             - As lesões de que a autora agora sofre são consequência direta do mencionado estiramento do nervo ciático e só poderiam ter sido solucionadas durante os três meses seguintes à operação, pelo que o 1º réu enganou a autora quando, durante um ano, lhe foi afirmando que a sua situação clínica era recuperável.

              - Foi dada alta à Autora dois dias depois da segunda cirurgia, o que agravou o risco de lesão por a Autora não dispor de acompanhamento médico durante o período de imobilização, que deveria ter sido feito no próprio hospital.

             - Como consequências do estiramento do nervo ciático sofreu as seguintes lesões: perdeu a sensibilidade no pé direito, tem a perna direita mais fina do que a esquerda, claudica acentuadamente na marcha e apresenta dores permanentes mesmo estando sentada ou deitada; sofreu lesão axonal severa (paresia) do nervo grande ciático direito, interessando os dois ramos terminais, mais grave no ciático poptileu interno, e perda de segmentos com aplicação de endoprotese com diminuição da força na perna e pé direitos, provocando-lhe uma IPP na ordem dos 61-65%.

             - O que a impediu de continuar a sua atividade profissional de telefonista no Hospital ..., ou qualquer outra, obrigando-a a reformar-se em Dezembro de 2002, pelo que, tendo ela então 48 anos, sofreu uma perda de ganhos pelo período de 17 anos, que estima em 65.000,00 €.

             - Ficou com o seu futuro pessoal, familiar, profissional e social posto em causa, visto que, sendo antes da operação uma pessoa alegre, feliz e ativa, se sente angustiada e deprimida, tem dores intensas e permanentes, lesões na visão por tomar diariamente oito ou nove comprimidos para combater a dor, dificuldade em conciliar o sono, em fazer esforços físicos, passou a ter vergonha da sua perna direita, sentindo-se diminuída, tem graves limitações na movimentação, só se podendo deslocar com o apoio de uma ou duas canadianas, pelo que peticiona a quantia de 75.000,00€ pelos danos não patrimoniais causados pela operação cirúrgica.

             - Foi obrigada a contratar uma empregada doméstica, despendendo € 4.620,00 anuais, prevendo-se que necessite dos serviços desta por mais 27 anos, perfazendo 40.000,00€.

             - Em transportes e despesas médicas a que foi obrigada em virtude das lesões despendeu a autora o montante global de € 3.076,55.

              - Terá ainda que sofrer, no futuro, mais tratamentos em virtude das lesões, consultas médicas, internamentos, operações cirúrgicas e despesas médico - medicamentosas.

   ***                                        ***                                        ***        

              A Ré CC– Clínica ..., SA, contestou, invocando em síntese:

             - É parte ilegítima no contrato, porquanto a Autora não contratou consigo a prestação da consulta médica e a realização da operação cirúrgica: aquela dirigiu-se às suas instalações para ser especificamente consultada pelo Réu e com este a Ré não celebrou qualquer contrato de trabalho ou outro, mas tão só acordo no que concerne à realização de consultas.

             - A Ré apenas se obrigou a prestar à Autora serviços de acompanhamento na operação cirúrgica e cuidados pré e pós operatórios, aluguer do bloco, alojamento, alimentação e enfermagem, tendo cumprido tudo aquilo a que se obrigou.

             - Mesmo que fosse aplicável o disposto no artigo 800º, n.º 1, do CC (o que não concede), porque se não prova a culpa do Réu, também a Ré não pode ser responsabilizada.

              - De mais relevante para afastar a culpa, impugna que a prótese tenha estado comprida demais; invoca que é corrente existirem fortes dores e o uso de petidinas após este tipo de operações, as quais são das mais complexas do foro ortopédico, que a Autora foi esclarecida das complicações possíveis, sendo as dores e lesões de que padece consequência natural das intervenções a que se quis submeter, além do que já padecia de lesões que, pela sua extensão e gravidade, acabariam por conduzir, no curto prazo, se não tivesse sido operada, a consequências ainda mais graves do que aquelas que diz sofrer.

              Deduz ainda o incidente de intervenção principal provocada da Companhia DD, com quem celebrou contrato de seguro visando a Responsabilidade Civil na Exploração da sua atividade na clínica.

              Pede a sua absolvição da instância, ou, quando não, do pedido.

         ***                                        ***                                        ***

              O Réu BB também deduziu contestação, alegando, em súmula:

             - Salienta a sua competência e que a Autora se encontra em erro, pois não procedeu a qualquer encurtamento da haste na segunda operação, mas apenas na redução em 2 milímetros da extensão da prótese por via de novo encaixe da haste femural, que se manteve de 11 cm, mas com menos 2 mm de largura, a que procedeu de acordo com a "ars medica", nas 48 horas que se seguiram à primeira operação, apenas para alívio do nervo.

             - Não ocorreu qualquer erro médico e a prótese colocada na primeira cirurgia era a adequada.

              - Os compromissos neurológicos (ao nível do nervo ciático) são registados em 32% dos pacientes submetidos a intervenção cirúrgica como a da autora (artroplastia da anca).

              - O simples facto da intervenção cirúrgica e das manobras a ela inerentes pode ter como consequência e risco o aparecimento das dores e da parésia, causadas por lesões encobertas ou mascaradas pela demais sintomatologia.

             - Existem outras causas possíveis do estado da Autora: a intervenção cirúrgica em causa é muito complexa e tem riscos associados, podendo ainda a patologia da Autora ter sido causada por outras razões associadas à sua doença.

             - A cicatriz da segunda intervenção constitui um pequeno prolongamento da primeira (cerca de 8 cm mais, sobre cerca de 12 cm), é muito fina e em zona do corpo coberta pela roupa interior.

             - Sempre acompanhou de perto a Autora, dando-lhe toda a atenção profissional, esclarecendo-a sobre a cirurgia, riscos, possíveis complicações e circunstâncias em que era recomendada.

             - Cumpriu as regras da arte; a Autora já em data anterior à cirurgia tinha dificuldade em dormir e tomava ansiolíticos.

              Deduz ainda o incidente de intervenção principal provocada da Companhia EE, S.A., com quem celebrou contrato de seguro de responsabilidade civil profissional.

              Pede a sua absolvição do pedido.     

         ***                                        ***                                        *** 

              A Autora replicou, em resumo, defendendo a legitimidade da 2ª R., e impugnou os factos novos trazidos pelos Réus.

             Mais veio alterar a causa de pedir e pedido, na sequência do alegado pela 2ª Ré, e por ficar com dúvidas quanto à titularidade da relação material controvertida, formulando o pedido apenas contra o 1º R., caso nunca tenha existido qualquer relação contratual de prestação de serviços cirúrgicos pelo 1º réu nas instalações da 2ª ré, caso em que afirma a título subsidiário que então entre os réus existia uma relação contratual que abrangia apenas a realização de consultas e que ela autora contratou com o réu a realização da operação em causa.

             O Réu treplicou defendendo a inadmissibilidade da réplica e da alteração da causa de pedir e pedido.

            A Autora, a tanto convidada, pronunciou-se sobre os requeridos chamamentos, defendendo que estes deveriam ser admitidos no âmbito da intervenção acessória passiva, por se basearem em potencial acção de regresso e não na contitularidade de direitos. 

             A Ré defendeu que à Autora estava vedada a tomada de posição sobre o incidente adequado ao caso.

             Foi admitida a intervenção acessória provocada das Companhias de Seguros indicadas pelos Réus. Deste despacho a 2ª Ré interpôs recurso de agravo pelo qual pretendia a alteração da qualificação dos incidentes para intervenção principal provocada, ao qual veio a aderir o 1º Réu, tendo sido admitido o agravo, com subida diferida e mero efeito devolutivo.

             A chamada EE. SA., apresentou contestação, aceitando a celebração do contrato de seguro e dando como reproduzida a contestação do 1º Réu.

             A chamada Companhia DD, S.A. também apresentou contestação, na qual aceita a celebração do contrato de seguro, apontando que a situação em causa está excluída do âmbito desse seguro, porquanto consta da apólice como causa de exclusão do âmbito "Responsabilidade civil profissional de médicos não estando ao serviço do Hospital, o utilizem a título de clínica privada". A 2ª Ré, sua segurada, na contestação invocou ter ocorrido esta situação. Defende que tal determina a sua ilegitimidade processual e dá como reproduzida a contestação que a Ré apresentou, invocando ainda a existência de franquia no valor mínimo de 498,80 euros.

             Proferido despacho saneador que decidiu que não fora, em substância, apresentada qualquer alteração do pedido, pelo que indeferiu o requerimento a esse respeito apresentado pelo réu na tréplica, e que inexistiam exceções dilatórias e nulidades secundárias, foram selecionados os factos desde logo dados por assentes e elaborada a base instrutória.

             A autora interpôs recurso de agravo de um despacho que admitira o depoimento de parte do réu.

              Oportunamente teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto ainda controvertida e, de seguida, foi proferida em 31/01/2014 sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os Réus do pedido.

             Da sentença a A. recorreu, impugnando as respostas dadas a diversos pontos da matéria de facto e pedindo a procedência da ação, com a condenação de ambos os réus nos termos inicialmente pedidos, tendo a Relação, em 27/10/2015, proferido acórdão que, depois de julgar improcedente a impugnação da matéria de facto, negou provimento à apelação, confirmando a sentença ali recorrida e não conhecendo, por isso, dos agravos.

             Desse acórdão interpôs a autora a presente revista, formulando, em alegações, as seguintes conclusões:

             1ª - Vem o presente recurso de revista interposto da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que absolveu os réus BB, médico - cirurgião ortopedista, e CC- CLÍNICA ..., S.A.

             2ª - A ora recorrente pugnou pela condenação dos réus no valor de € 183.076,55 (cento e oitenta e três mil e setenta e seis euros e cinquenta e cinco cêntimos) acrescido de juros à taxa legal supletiva contados desde a citação e até integral e efetivo pagamento, bem como as despesas futuras que a recorrente tenha que realizar em decorrência dos danos sofridos, danos patrimoniais e não patrimoniais consequência de cirurgia ortopédica negligente efetuada pelo ora recorrido nas instalações da recorrida.

           3ª - O argumentário da recorrente não mereceu acolhimento quer junto da 1ª instância, quer junto do Tribunal ora recorrido.

             4ª - Ao longo do presente exórdio, procurar-se-á demonstrar que sem razão assim sucedeu, fundando-se o presente esforço recursório na manifesta violação de lei substantiva por via do preterimento do preceituado nos artigos 799° e 493°/2 do Código Civil, bem como a incorreta interpretação do disposto no artigo 563° do mesmo código.

             5ª - O Tribunal a quo considerou que a responsabilidade civil médica apresenta, no caso em apreço, natureza contratual, porquanto assente na existência de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a ora recorrente e o Réu.

             6ª - O Tribunal recorrido não lançou mão, como deveria, do preceituado no artigo 799° do Código Civil, nos temos do qual incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso não resulta de culpa sua.

             7ª - E deveria tê-lo feito porque, conforme já decidiu este Supremo Tribunal, se depois de uma intervenção cirúrgica as condições do paciente são piores que as anteriores, presume-se que houve terapia inadequada ou negligente execução profissional.

             8ª - Na verdade, impende sobre o prestador de serviços médicos uma presunção de culpa, que lhe cumpre elidir, se pretender furtar-se à obrigação de indemnizar, por falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso.

            9ª - Acontece que o tribunal recorrido parece pretender que não haja lugar a presunções de culpa quando a intervenção configure, juridicamente, apenas uma obrigação de meios, e não uma obrigação de resultado.

             10ª - A presunção de culpa não depende da natureza da obrigação.

              11ª - Mesmo que se admita que a presunção de culpa só opera perante uma obrigação de resultado, ainda assim, a intervenção a que o médico recorrido se obrigou a fazer tinha por objetivo tratar a coxartrose da recorrente e eliminar as dores daí decorrentes, através da colocação de prótese integral, nisso consistindo, precisamente, a obrigação de um resultado - que não logrou obter.

              12ª - A aplicação das presunções de culpa previstas na lei civil, é independentemente da natureza da obrigação: se de meios, se de resultado.

              13ª - Será sempre vantajoso para a justeza do processo judicial que se faça operar as referidas presunções de culpa mesmo em caso de mera obrigação de meios, porque a relação jurídico - processual é muito desequilibrada, sendo o lesado, habitualmente, um leigo nos detalhes técnicos da matéria.

              14ª - A maioria dos Autores defende que, muito embora caiba ao demandante o ónus da prova da violação das leges artis (ilicitude), no tocante à culpa, deve a mesma presumir-se, nos termos do art.º 799°, cabendo ao médico o ónus da prova da falta de culpa, isto é, a prova de que, naquelas circunstâncias, não podia e não devia ter agido de maneira diferente.

             15ª - O ónus da prova incide, também nas obrigações de meios, sobre o devedor inadimplente.

             16ª - A inversão do ónus da prova da culpa - para além do argumento literal e dogmático - pode ser justificada pelos seguintes motivos: a especial dignidade dos interesses afetados pelo (in)cumprimento, o desequilíbrio estrutural da relação estabelecida entre o médico e o doente e a particular dificuldade da tutela dos interesses do doente, à luz das preocupações crescentes do legislador de favorecimento dos lesados, enquanto parte contratual mais fraca.

              17ª - Acresce que o tribunal recorrido não apresentou nenhum argumento para considerar que esta cirurgia, em concreto, consubstancia uma obrigação de meios.

             18ª - Assim, a questão de saber se nos encontramos, no presente caso, perante uma obrigação de meios ou de resultado por parte do médico, é perfeitamente irrelevante.

             19ª - Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que a distinção é perfeitamente estéril no âmbito do direito médico.

             20ª - O contrato de prestação de serviços tipifica-se, precisamente, em função da obrigação de proporcionar determinado resultado.

             21ª - A cirurgia pode aproximar-se, «mutatis mutandis», à realização de uma empreitada.

             22ª - O resultado não se refere à cura do doente, mas sim ao objetivo concreto que se pretende atingir com a intervenção ou ato médico.

              23ª - E, assim, o recorrido médico malogrou totalmente obter o objetivo a que se propôs, não tendo melhorado as condições de saúde e de vida da recorrente, e tendo mesmo piorado tais condições, como se encontra cabalmente provado nos autos.

             24ª - De resto, a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça decidiu também já, em diversas ocasiões, pela qualificação do ato médico como uma obrigação de resultado.

             25ª - E os argumentos jurisprudenciais para considerar um ato médico como uma obrigação de resultado têm sido estes: estamos perante uma obrigação de resultado por parte do médico quando o grau de especialização técnica deste seja muito alto e/ou os procedimentos sejam comuns, de modo a que a margem de incerteza quanto ao resultado a obter seja baixa.

              26ª - Ora, no caso sub judice foi largamente dado por provado que: o médico recorrido tem muita experiência neste tipo de cirurgia; o médico recorrido é reconhecido por muitas pessoas como um profissional recomendado para a realização deste tipo de cirurgia; a operação a que a ora recorrente foi submetida é realizada na grande maioria dos casos sem complicações.

             27ª - Foi, inclusivamente, aventado pelo próprio médico réu que já teria levado a cabo, ao longo da sua vida profissional, "mais de uma centena" de cirurgias iguais àquela que vitimou a autora.

              28ª - Então, será justo considerar-se que a este médico, que é um especialista referenciado, reconhecido como «expert» em cirurgias do tipo daquela que realizou na recorrente, será justo considerar que a este profissional se exige tão só o que se exige de um médico ortopedista médio, sem experiência, de jovem carreira ou não reconhecido?

             29ª - Podemos colocá-lo no mesmo patamar de exigência quanto ao cumprimento das «leges artis» e ao conseguimento das intervenções em que colocamos qualquer outro médico que nunca tivesse realizado semelhante intervenção cirúrgica? Tê-lo-ia contratado a recorrente se não fosse na expectativa de se tratar de um dos melhores? Com certeza que não!

             30ª - A um médico excecional - como a qualquer outro profissional especialista - é exigível uma conduta excecional, uma excecional competência e uma excecional antecipação e resolução dos problemas. E tudo o menos do que isso não pede deixar de considerar-se incúria. Há, pois, que colocar o problema no patamar do «real» e reconhecer que este médico não cumpriu, nem sequer minimamente, aquilo a que se obrigou perante a recorrente, que em caso algum teria consentido na possibilidade de semelhante insucesso se em algum momento tal possibilidade lhe tivesse sido informada!

           31ª - Ademais, os danos que sobrevieram são excecionais no seu âmbito, o que, nessa medida, faz sempre presumir a culpa do causador do dano.

             32ª - Trata-se de uma facilitação da prova, denominada como «prova de primeira aparência», já aceite, quanto à negligência médica, pelo próprio Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão datado de 11-09-2007 (relatora Rosa Ribeiro Coelho).

             33ª - Acresce que, in casu, não pode olvidar-se que os presentes autos se revestem de uma particularidade de não escassa importância: a colocação de prótese.

              34ª - Na verdade, na medida em que, de uma banda, se trata o Réu de um médico especialista e que, de outra banda, se vincula à (sã) colocação de uma prótese, ressumbra evidente que este estava vinculado à produção de um resultado: a correta colocação do referido instrumento médico. Essa ausência de resultado ou a persistência de um resultado inteiramente desajustado são a evidência de um incumprimento ou de um cumprimento defeituoso da prestação por parte do médico devedor.

              35ª - Ao médico não basta, para cumprir esse ónus, a prova de que o tipo de intervenção efetuada importa um determinado risco (eventualmente aceite pelo paciente); é necessário fazer a prova de que a sua conduta profissional, o seu rigoroso cumprimento das "leges artis", foi de molde a poder colocar-se o concreto resultado dentro da margem de risco considerada e não dentro da percentagem em que normalmente a intervenção teria êxito - o que não sucedeu.

             36ª - Era ao médico recorrido, e não à recorrente, a quem cabia alegar e provar que a sua conduta tinha sido a adequada e não tinha originado os danos que sobrevieram.

              37ª - O que não aconteceu.

              38ª - Assim, o acórdão recorrido violou claramente o disposto no artigo 799° do Código Civil, razão pela qual deve ser revogado e substituído por outro que dê guarida ao ora arrazoado, havendo de considerar-se como não elidida a presunção de culpa que sobre o Réu impende.

         39ª - Ainda no que atine às regras de distribuição do ónus da prova, há, nesta sede, que carrear à colação o disposto no n.º 1 do artigo 493°, CC.

              40ª - A norma tem por estribo o manuseamento de coisa móvel – a prótese colocada na recorrente, assim considerada no termos do artigo 204°, Cód. Civil.

              41ª - O manuseamento de coisas móveis é fonte de suficientes riscos, aptos a legitimar a assinalada inversão. Tanto mais quanto estamos no âmbito de uma atividade especialmente perigosa: o manuseamento de material hospitalar e, em concreto, os dispositivos médicos.

             42ª - Assim, o preceito dá guarida a uma presunção de culpa, cabendo ao demandado fazer prova de que empregou todas as medidas exigidas pelas circunstâncias a fim de prevenir todos os danos causados.

              43ª - Na verdade, a presunção recai sobre a pessoa que detém a coisa porque a responsabilidade assenta sobre a ideia de que não foram tomadas as medidas de precaução necessárias para evitar o dano.

             44ª - Andou mal o Tribunal Recorrido ao onerar a recorrente com a prova que não lhe cabia, razão pela qual deve soçobrar a argumentação aí aduzida e ser substituída por outra que dê guarida ao entendimento ora propugnado.

             45ª - Por outro lado, o Tribunal recorrido parece olvidar que não é, hoje, pacífico, configurar a presente situação como de natureza puramente contratual, excluindo, «tout court», a possibilidade de concurso com a responsabilidade extracontratual ou aquiliana.

             46ª - No âmbito da responsabilidade médica é de aceitar o «cúmulo de responsabilidades», pois o facto de as partes terem concluído um contrato em nada faz presumir que tenham com isso querido renunciar à proteção geral que lhes é conferida pela lei.

              47ª - Nesta sede, é paradigmático o disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-06-2011, segundo o qual "há concurso de pretensões, por cumulação de responsabilidades".

              48ª - Esta é a tese sufragada, nomeadamente, por Vaz Serra, por Jorge Sinde Monteiro, por Paulo Mota Pinto e por André Dias.

            49ª - É, pois, de aceitar que a referida cirurgia operada na recorrente, que lesou severamente a sua integridade física, seja perspetivada não apenas pela vertente da contratualidade, mas também na perspetiva da lesão de direitos absolutos.                     

              50ª - E cabia ao tribunal recorrido, no âmbito do cumprimento dos deveres processuais que lhe incumbem, ter verificado devidamente a presente questão, não podendo aceitar-se que, sem qualquer fundamentação jurídica, o acórdão recorrido se limite a declarar que "a responsabilidade civil médica apresenta natureza contratual quando assenta na existência de um contrato de prestação de serviço" - afirmação esta que é, a todos os títulos, e ressalvado o devido respeito, criticável.

              51ª - Uma adequada arrumação jurídica do presente caso teria permitido colocar em jogo um outro operador jurídico, destinado precisamente à proteção do doente enquanto parte mais vulnerável (e por isso deliberadamente preferido no espírito legislativo hodierno).

              52ª - Trata-se do instituto contemplado no n.º 2 do artigo 493° do Código Civil, concernente à presunção resultante da prática de uma atividade perigosa.

             53ª - São cada vez mais, e mais profundos, os arestos jurisprudenciais que se pronunciam no sentido de trazer à colação esta norma devido, precisamente, à relação de patente desigualdade entre o médico e o paciente, especialmente no que respeita à produção de prova no domínio do respeito pelas «leges artis», relativamente à qual o doente é um leigo e se vê absolutamente desprovido de ferramentas intelectuais e gnosiológicas, o que aliás é bem patente no domínio factual deste caso, onde os argumentos da autora são permanentemente dominados e aniquilados por terminologia técnica, que nenhum homem médio pode compreender e, empiricamente, comprovar.

             54ª - No âmbito de aplicação do disposto no artigo 493º/2, não se presume apenas a culpa, mas também a ilicitude.

             55ª - Prestando a devida vénia aos tribunais superiores e, em particular, ao Supremo Tribunal de Justiça, é pois de admitir que, para se fazer justiça, se tivesse lançado mão deste preceito legal.

              56ª - Nestes autos discute-se, para o que aqui importa, a lesão de nervo ciático em consequência de cirurgia de colocação de prótese, devidamente autorizada.

              57ª - Como vai configurada, trata-se, sempre, de uma lesão do direito à integridade física da recorrente, direito esse cuja proteção não pode deixar de configurar-se no âmbito e proteção de um contrato de prestação de serviços médicos. Lesão essa que, por assim ser, não pode deixar de considerar-se ilícita.

     58ª - Tal circunstancialismo não foi, outrossim, acolhido pelo Tribunal recorrido, o que não pode deixar de censurar-se, tanto mais sendo este um profissional de saúde, um profissional reputado, de garbo e craveira.

              59ª - Sabe-se que, na hodierna realidade que medeia o binómio médico - paciente, se assiste a uma renovação  do estatuto do paciente, assumindo este último o papel de verdadeiro parceiro visível, afirmativo, livre e consciente.

              60ª - No que atine à concreta questão em análise, amiúde se reconhece ao médico um duplo dever: o do esclarecimento e o da ulterior recolha do consentimento informado.

             61ª - Quanto ao primeiro dever (o dever de esclarecer) concretiza-se no direito do paciente de ser informado - rectius de ser esclarecido - esclarecimento esse que se assoma como pressuposto básico de um consentimento validamente prestado. Assim o afirma a Jurisprudência, na senda da Doutrina de maior craveira (mormente Guilherme de Oliveira e André Dias Pereira), e nos termos da qual «a necessidade de obter o consentimento informado assenta na proteção dos direitos à integridade física e moral do doente» e «embora possa variar a estrutura jurídica em que se executa o ato médico, essa diversidade não tem qualquer influência na necessidade de obter um consentimento informado do doente, antes da intervenção concreta».

              62ª - "A informação deverá ser 'suficiente' para que o doente se possa considerar esclarecido. Deste modo, os «elementos relevantes serão, pelo menos, aqueles que uma pessoa média, no quadro clínico que o paciente apresenta, julgaria necessários para tomar uma decisão (o chamado padrão do doente médio). Por exemplo, um risco desprezível para os especialistas pode ser relevante para a informação dos pacientes...»", realce da autoria da signatária.

              63ª - Quanto ao segundo (o dever de obter o consentimento livre e esclarecido), diga-se que a "informação suficiente é um requisito da validade do consentimento. Provado que não foi prestada informação ou que ela foi insuficiente para sustentar um consentimento esclarecido, o consentimento obtido é anulado e o ato médico passa a ser tratado como um ato não autorizado".

              64ª - Nesta linha, também o Supremo Tribunal de Justiça teve já ensejo de pronunciar-se, admitindo que "o consentimento do paciente é um dos requisitos da licitude da atividade médica (artigos 5° da CEDHBioMed e 3°, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e tem que ser livre e esclarecido para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada" - vide, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 02-06-2015 e relatado por Maria Clara Sottomayor.

             65ª - Pois bem, se quanto à primeira cirurgia nada pode apontar-se, já não assim quanto à segunda realizada na pessoa da recorrente, o mesmo não pode aventar-se.

             66ª - Na verdade, não houve lugar ao (imperativo) esclarecimento e à (imperativa) recolha do consentimento.

              67ª - Não pode, sequer, dizer-se que se trata de consentimento hipotético na medida em que este obedece a certos requisitos que o Réu não logrou provar:" 1) que tenha sido fornecida ao paciente um mínimo de informação; 2) que haja a fundada presunção de que o paciente não teria recusado a intervenção se tivesse sido devidamente informado; 3) que a intervenção fosse: i) medicamente indicada; ii) conduzisse a uma melhoria da saúde do paciente; iii) visasse afastar um perigo grave; 4) a recusa do paciente não fosse objetivamente irrazoável, de acordo com o critério do paciente concreto" - ibidem.

             68ª - Assim, faltando aqueles requisitos do consentimento hipotético, em relação a intervenções cirúrgicas suscetíveis de causar riscos graves, como dores intensas e incapacidade para manter relações sexuais, andar e trabalhar, tendo de se concluir que a autora, se soubesse dos riscos da mesma, teria recusado o consentimento.

             69ª - Note-se que, em jeito de remate, a omissão da recolha do consentimento redunda na violação de um bem jurídico - a liberdade, de respaldo penal e até constitucional - bem como na violação do bem jurídico integridade física. Comportamento que, naturalmente, se assoma inequivocamente ilícito.

             70ª - Analisados que estão os pressupostos da culpa e da ilicitude, é tempo de analisar o nexo causal.

             71ª - O nexo de causalidade é comummente apreciado nas suas vertentes fáctica e jurídica.

              72ª - Na primeira vertente cumpre apreciar o denominado nexo naturalístico, vale dizer, analisar a relação causal entre o dano e o facto - se o dano se teria ou não verificado se não fosse aquela conduta factual. Na segunda vertente, é efetuado um juízo de adequação, ou seja, verificar se o facto pode ser, em abstrato, causa adequada dos danos sofridos.

              73ª - É aquele juízo jurídico de adequação que podemos nesta sede discutir - e aquele que a este Supremo Tribunal cabe apreciar.

             74ª - Ora, a obrigação de indemnizar existe relativamente àqueles danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão.

             75ª - É o que dispõe o preceito legal contido na norma do artigo 563° do Código Civil.

             76ª - Verifica-se um largo consenso no sentido de afirmar que aqui se encontra estatuída a doutrina da causalidade adequada.

             77ª - E não por acaso, mas precisamente porque se tem verificado que é um juízo de probabilidade o que melhor satisfaz as exigências de justiça específicas que operam na responsabilidade civil.

             78ª - Na verdade, importa indagar na formulação negativa desta teoria se "a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excecionais ou extraordinárias.

             79ª - Prosseguindo esta linha de argumentação, "o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis".

             80ª - Mais ainda, o sobredito preceito legal ínsito no artigo 563° do Código Civil, na medida em que consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata, admite não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não; como ainda a causalidade indireta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano.

        81ª - Ora, o tribunal recorrido atribui o dano concreto - o estiramento do nervo   ciático   -   não   à   cirurgia,   mas   "possivelmente a um hematoma...". Não sem pasmo, haverá que sublinhar-se que o que causou o hematoma foi, justamente... a cirurgia!

             82ª - A cirurgia operada pelo médico réu adequada a causar o dano é causa adequada do dano.

              83ª - O dano não é normal nem pode considerar-se típico neste tipo de intervenção.

              84ª - A recorrente nunca teria sofrido tal dano se não fosse a cirurgia.

              85ª - Estando cabalmente provado, como está nos presentes autos, que o objetivo da intervenção cirúrgica operada pelo médico recorrido não se cumpriu, e estando cabalmente provado e assente, como também está, que os danos sobrevindos não eram espectáveis e não foram tidos em conta, ao Tribunal recorrido cabia concluir pela procedência do nexo causal.

              86ª - O Tribunal recorrido não poderia deixar de atribuir à cirurgia o hematoma que redundou na circunstância danosa para a recorrente.

              87ª - O tribunal recorrido parece admitir a dificuldade de prova no que atine às complicações pós-operatórias, podendo, de resto, ler-se no aresto em crise que, e cita-se: "foram, provavelmente, complicações pós-operatórias, eventualmente um hematoma, que gerou o estiramento do nervo ciático" - realces da autoria do signatário.

              88ª - Pois bem, a dúvida que assalta o julgador não pode, de todo, ser resolvida por meio do mero indeferimento do peticionado pela Autora, ora Recorrente. Tal não só se assoma materialmente injusto como legalmente injustificado.

              89ª - De facto, nos termos do n.º 3 do artigo 342°, CC, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.

              90ª - Destarte, dúvidas não podem sobejar de que, havendo como há, dúvidas sobre o direito a constituir, ele sempre se haveria de resolver em favor da recorrente.

              91ª - Em jeito de síntese, cabe à recorrente que se encontram reunidos todos os requisitos inerentes à responsabilidade civil. Assim sendo e sem necessidade de ulteriores e mais demoradas conclusões, deve este Tribunal dar respaldo a tal entendimento, condenando o Réu em conformidade.

              Termina pedindo a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida.

***                                        ***                                        ***

              Em contra alegações, o réu pugnou pela negação da revista ***                                          ***                                        ***

              Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos dados por assentes pelas instâncias são os seguintes:    

              1. O primeiro Réu é médico ortopedista e exerce clínica no Hospital …, como chefe de Equipa de Ortopedia, assim como na Clínica ... (alínea G) da matéria de facto assente).

              2. A segunda Ré é um estabelecimento privado que tem por objecto a prestação de serviços na área dos cuidados de saúde e meios de diagnóstico, colocando à disposição dos utentes que delas se pretendem fazer valer os seus equipamentos e as suas instalações, bem como o seu pessoal (resposta ao artigo 78º da BI/base instrutória).

              3. A segunda Ré é uma sociedade que presta serviços de saúde e outros cuidados médicos convencionados pelo Serviço Nacional de Saúde (alínea A) da matéria de facto assente).

             4. O réu tem larga experiência em intervenções cirúrgicas como a dos autos (resposta aos artigos 86º e 103º da BI).

              5. O réu era reconhecido por muitas pessoas para a realização de intervenções cirúrgicas como a dos autos (resposta ao artigo 102º da BI).

              6. Entre fins de Abril e princípios de Maio de 2001 a Autora dirigiu-se à consulta externa de ortopedia da segunda ré, na respectiva sede na Amadora, onde foi observada pelo 1º R., devido a uma coxartrose bilateral com acentuação na anca direita (resposta ao artigo 71º da BI).

             7. A Autora dirigiu-se às instalações da Ré sitas na ..., especificamente para ir à consulta do primeiro R., que presta tal serviço também na segunda Ré (resposta ao artigo 70º da BI).

              8. O seu objetivo era ouvir a opinião daquele médico, cujo nome lhe tinha sido expressamente recomendado, quanto a uma eventual intervenção cirúrgica à anca direita (resposta ao artigo 71º da BI).

             9. A 2ª Ré nunca celebrou com o médico co-Réu qualquer contrato de trabalho, ou de prestação de serviços visando intervenções cirúrgicas na área de especialidade do mesmo (ortopedia) (resposta ao artigo 79° da BI)

             10. Entre os Réus existe uma relação contratual que apenas abrange a realização de consultas (resposta ao artigo 80º da BI).

             11. A 2ª Ré nunca com ele estabeleceu qualquer vínculo, designadamente, que determinasse a obrigatoriedade do mesmo prestar serviços nas suas instalações (resposta ao artigo 81º da BI).

             12. A segunda Ré não interfere, nem nada tem a ver, com a relação contratual que se estabelece entre os médicos e doentes, designadamente, de foro cirúrgico (resposta ao artigo 83º da BI).

             13. A competência, técnica e científica, e o poder de recomendar aos doentes que procuram a segunda Ré as intervenções cirúrgicas que entendam por bem, pertence, exclusivamente, ao médico (resposta ao artigo 84º da BI).

              14. Como lhe pertence, com o doente, a escolha do tempo e local da sua realização (resposta ao artigo 85º da BI).

              15. A segunda Ré não contratou com a Autora a realização das intervenções cirúrgicas a que foi sujeita nas suas instalações (resposta ao artigo 73º da BI).

              16. Os únicos acordos que estabeleceu com a Autora foram os inerentes à sua actividade social, ou seja, comprometeu-se com ela a prestar-lhe acompanhamento e de cuidados pré e pós operatórios, de aluguer do bloco operatório, de alojamento, de alimentação, de enfermagem, e mesmo outros que são necessários em consequência de intervenções cirúrgicas que se realizem na Clínica (resposta ao artigo 74º da BI).

              17. A Clínica prestou esses serviços (resposta ao artigo 75º da BI).

             18. Realizada a primeira consulta, foi entendido pelo Dr. BB que a doente efectuasse alguns exames complementares de diagnóstico e fosse avaliada em nova consulta (resposta ao artigo 72º da BI).

             19. Após duas consultas e a realização de exames complementares pedidos pelo 1º réu, este prescreveu à Autora a realização de uma intervenção cirúrgica para colocação de uma prótese total da anca de longa duração (alínea C) da matéria de facto assente).

              20. Quando a Autora consultou o primeiro Réu trazia consigo exames médicos realizados sob as ordens de outro médico e a indicação para ser feita a artropatia da anca com colocação de prótese integral (alínea H) da matéria de facto assente).

              21. Por outro lado, logo na 1ª consulta, em 17-04-01, o Réu médico diagnosticou à Autora a dor muito intensa para a coxartrose e uma cistialgia crónica à direita (resposta ao artigo 137º da BI).

              22. A coxartrose que motivou a intervenção cirúrgica evolutiva com limitação progressiva da anca, indo até à anquilose, associada a subjetivos dolorosos de intensidade moderada ou intensa; o que acarreta cada vez menor autonomia podendo ir até à dependência total de terceira pessoa. (resposta ao artigo 100º da BI).

             23. Em face das explicações do réu e de outro médico que tinha consultado, a Autora pretendeu que ele lhe realizasse a operação, tendo assinado a declaração de consentimento junta aos autos (resposta ao artigo 127º da BI).

             24. Foi directamente com o médico co-Réu que a relação contratual se estabeleceu no que diz respeito à intervenção cirúrgica (resposta ao artigo 76° da BI).

             25. A Autora entrou nos serviços da segunda Ré no dia 14-5-2001 e foi operada pelo primeiro Réu no dia 15-5-2001 (alínea D) da matéria de facto assente).

             26. A operação consistiu numa artroplastia com prótese total da anca que implicou a colocação de uma haste metálica no interior do fémur e um acetábulo junto à anca e consistiu, entre o mais, na colocação de uma prótese metálica composta de um acetábulo, implantado no ilíaco, na zona da cápsula que recebe a cabeça do fémur, e na colocação do componente femoral que inclui a prótese substitutiva da cabeça do fémur, que vai encaixar no dito acetábulo, e numa haste metálica que suporta aquela e se insere no fémur (alínea D) da matéria de facto assente e resposta ao artigo 106º da BI).

              27.     A operação a que a Autora foi submetida é realizada na grande maioria dos casos sem complicações, mas comporta alguns riscos, cujas causas são múltiplas e muitas vezes difíceis de identificar, entre os quais o de lesão de nervo ciático (resposta ao artigo 19º da BI).

             28. Nem carecia, nem é normal nestas intervenções acompanhamento de neurocirurgião; pois o Réu está perfeitamente habilitado para fazer aquelas intervenções cirúrgicas (resposta ao artigo 132º da BI).

             29. É desta haste metálica que a Autora fala, como indevidamente colocada, primeiro, uma mais longa (em 2 cm) e que, por isso, teria, causado o estiramento do nervo ciático (resposta ao artigo 107º da BI).

             30.     Algum período de internamento, incómodos, dores e utilização de canadianas, sempre andam associados a este tipo de cirurgias (resposta ao artigo 101º da BI).

             31. A recuperação da Autora não exigia internamento hospitalar, mas sim, de vigilância regular em consulta externa (resposta ao artigo 94º da BI).

              32. No período pós-operatório a Autora tinha muitas dores e foi medicada com petidinas, sucedâneo de morfina (resposta ao artigo 2º da BI).

              33. A petidina é um opiáceo que se aplica diluída para evitar efeitos acessórios prejudiciais (resposta ao artigo 136° da BI).

             34.     As dores pós operatórias neste tipo de intervenção cirúrgica são frequentemente intensas e é prática corrente recorrer ao uso de petidinas (resposta ao artigo 87° da BI).

              35. O réu colocou a hipótese de a lesão do nervo ciático ter resultado de hematoma (sangue acumulado nas proximidades), de origem não apurada (resposta ao artigo 4° da BI).

              36. O réu recomendou à Autora repouso e que não devia fazer esforços (resposta ao artigo 134° da BI).

             37. O réu médico medicou a Autora com as terapêuticas: anti-coagulantes, os anti-inflamatórios, a petidina e outros (resposta ao artigo 135º da BI).

              38. O réu acompanhou a Autora e fez-lhe várias indicações médicas (resposta ao artigo 119º da BI).

              39. O réu visitou a Autora no pós-operatório e nesse período observou-a (resposta aos artigos 121° e 3º da BI).

              40. Perante a manutenção das dores, durante esse período o réu veio a suspeitar existir lesão do nervo ciático e a considerar que era necessária nova intervenção cirúrgica (resposta ao artigo 4º da BI).

              41. Quando a Autora foi submetida à segunda cirurgia já era de presumir, por um médico actuando com diligência média, a existência de risco sério de danos ao nível do nervo ciático (resposta ao artigo 24º da BI).

              42. É recomendada a segunda intervenção cirúrgica dentro do mais curto espaço de tempo, logo que as queixas da paciente façam suspeitar de lesão do nervo ciático (resposta ao artigo 110º da BI).

              43. A segunda intervenção, realizada em 17/5, destinava-se a explorar o nervo ciático para verificação da lesão, sua eventual reparação e tentativa de mais rápida recuperação do nervo (resposta ao artigo 89° da BI).

              44. Apenas depois de se ter colocado a hipótese de se tratar de um estiramento do nervo ciático se procedeu à redução da pressão de estiramento através da redução da prótese (resposta ao artigo 90º da BI).

              45. Este era o procedimento adequado em tais circunstâncias (resposta ao artigo 90º da BI).

              46. Nestes casos, a prática recomendada sugere uma redução da pressão da prótese, mudando a haste femoral, o que foi feito pelo primeiro Réu na tentativa de resolução da complicação que se lhe deparou e após verificar que não havia lesão visível de continuidade no nervo ciático e que a paresia poderia ter sido causada por estiramento (resposta ao artigo 91º da BI).

             47. O componente femoral nunca foi encurtado em dois centímetros em comprimento (resposta ao artigo 92º da BI).

              48. O diâmetro da haste femoral foi reduzido em cerca de 2mm (resposta ao artigo 93° da BI).

              49. A segunda intervenção foi realizada sob anestesia e levou à substituição da haste femoral (resposta ao artigo 9º da BI).

              50.     Esta passou para o tamanho 09 em lugar do tamanho 11 (sendo a diferença de cerca de 2 mm), inicialmente colocado, para permitir menor pressão no nervo ciático (resposta ao artigo 8º da BI).

             51. Na segunda intervenção cirúrgica não foram detectadas lesões do nervo ciático poptileu externo (resposta ao artigo 140º da BI).

             52. Nessa intervenção, o réu detectou a existência de hematoma da glútea que comprimia o nervo, tendo procedido à sua drenagem (resposta ao artigo 141º da BI).

             53. A existência desse hematoma é uma causa possível do ocorrido (resposta ao artigo 142° da BI).

              54. No dia 20 de Maio foi-lhe dada alta (resposta ao artigo 9º da BI).

             55. Na sequência da situação descrita, a Autora esteve acamada durante cerca de um mês (resposta ao artigo 10º da BI).

             56. Para retirar os pontos e ser observada, a Autora deslocou-se á Clínica, conforme lhe foi indicado, cerca de duas semanas após a alta (resposta ao artigo 11º da BI).

             57. Após o que, durante algum tempo, contactou o réu por vezes telefonicamente (resposta ao artigo 12º da BI).

             58. Ao fim de três meses fazia marcha com canadianas (resposta ao artigo 131º da BI).

             59. Na sequência da intervenção mencionada, a A. veio a sofrer estiramento do nervo ciático direito (resposta ao artigo 5º da BI).

             60. De seguida, a Autora fez fisioterapia durante um período próximo do aqui indicado (10 meses), com regularidade que foi diária durante vários meses (resposta ao artigo 13º da BI).

              61. O réu dizia à Autora que não estava ultrapassado o período em que as lesões podiam ser reversíveis (resposta ao artigo 14º da BI).

             62. Para tentar debelar a situação, a Autora fez várias radiografias e tomou várias injecções epidurais (resposta ao artigo 15º da BI).

             63. Apesar dos tratamentos efetuados a Autora perdeu a sensibilidade no pé direito, tem a perna direita mais fina do que a esquerda, claudicação acentuada na marcha e dores permanentes mesmo estando sentada ou deitada; as dores têm diminuído de intensidade (resposta ao artigo 16º da BI).

              64. À data da intervenção cirúrgica a Autora tinha 48 anos de idade (alínea F) da matéria de facto assente).

              65. As lesões de que a Autora agora sofre são consequência direta do mencionado estiramento do nervo ciático (resposta ao artigo 26º da BI).

             66. Como sequelas da intervenção cirúrgica em causa resultaram para a Autora lesão axonal severa (paresia) do nervo grande ciático direito, interessando os dois ramos terminais, mais grave no ciático poptileu interno, e perda de segmentos com aplicação de endoprótese com diminuição da força e dor na perna e pé direitos e claudicação na marcha (resposta ao artigo 31º da BI).

        67. A Autora ficou com as sequelas e efeitos permanentes descritos na perícia (resposta ao artigo 32º da BI).

             68. O que a impediu de continuar a exercer a sua anterior atividade profissional bem como qualquer outra profissão ou atividade lucrativa (resposta ao artigo 33° da BI).

              69. Foi a dezenas de consultas, sujeitou-se a muitos exames de diagnóstico e tomou uma grande quantidade de medicamentos (resposta ao artigo 57° da BI).

             70. Antes da reforma, sujeitou-se a diversas juntas médicas (resposta ao artigo 58° da BI).

              71. Por efeito das lesões a Autora foi forçada a reformar-se em Dezembro de 2002, com referência aos documentos 23 e 24 da petição inicial (resposta ao artigo 34º da BI).

      72. A Autora exercia à data das operações a profissão de telefonista no Hospital … (actualmente Centro Hospitalar ...), em relação a ordenado da ordem do que consta nos documentos nºs 25 e 26 da petição inicial; até à reforma lhe foi pago o ordenado (resposta ao artigo 35º da BI).

              73. Antes da operação, a Autora era mais alegre, cuidava da família e da casa e acompanhava mais o marido (resposta ao artigo 40º da BI).

             74. Toma muitos comprimidos para as dores (resposta ao artigo 43º da BI).

             75. Apresenta diminuição da força na perna direita, que está mais estreita do que a esquerda, perda completa de sensibilidade do pé direito que ficou pendente, no qual tem sensação de pé frio, o que lhe determina graves limitações na movimentação claudicação na marcha e dor (resposta ao artigo 44° da BI).

             76. A Autora apenas se consegue deslocar com o apoio de uma ou duas canadianas, por não poder marchar sobre o calcanhar e a ponta do pé direito, e mesmo assim por pequenos períodos de tempo e em espaços curtos (resposta ao artigo 45º da BI).

              77. Tem dificuldade em conciliar o sono (resposta ao artigo 48º da BI).

              78. Não consegue fazer esforços físicos, como carregar pesos e tem dificuldade em permanecer de pé ou sentada por períodos mais prolongados (resposta ao artigo 45º da BI).

              79. A dificuldade em fazer os trabalhos domésticos levou-a a contratar uma empregada doméstica, que vai a sua casa alguns dias por semana em número de horas não apurado (resposta ao artigo 50° da BI).

              80. A Autora tem uma cicatriz na anca direita, derivada das operações da ordem dos 30 cm, cicatriz que seria menor se apenas tivesse sido sujeita a uma operação (resposta ao artigo 56° da BI).

              81. A Autora não tem ido à praia por se sentir envergonhada em virtude das mesmas sequelas (resposta ao artigo 52º da BI).

              82. A cicatriz com que a Autora ficou é fina e localiza-se numa zona anatómica habitualmente coberta por roupa, exceptuando os banhos de praia em bikini; não apresenta sinais inflamatórios ou dimensões alargadas que constituam uma cicatriz cirúrgica inestética (resposta ao artigo 149° da BI).

             83. Em virtude das mesmas sequelas sente-se desgostosa, angustiada e triste (resposta ao artigo 54º da BI).

             84. Embora o 1º réu não tenha cobrado honorários pela realização da segunda operação, a Autora pagou as restantes despesas relativas à mesma (resposta ao artigo 62º da BI).

             85. No que despendeu Pte. 32.994$00, quantia correspondente a €164,57 (resposta ao artigo 63º da BI).

              86. Nas deslocações à fisioterapia, nas proximidades da sua residência, a Autora teve gastos com transportes (resposta ao artigo 64° da BI).

              87. Suportou outras despesas médicas, nomeadamente, médico fisiatra, no montante de €7,93 (Pte. 1.600,00) (resposta ao artigo 65° da BI).

             88. Terá de continuar a fazer tratamentos médicos com o objetivo de procurar recuperar, ao menos parcialmente, o movimento, a sensibilidade e a força no pé e na perna direitas e para atenuar as dores que sente (resposta ao artigo 67° da BI).

             89. A operação a que a Autora foi sujeita é considerada complexa (resposta ao artigo 97º da BI).

             90. Antes das intervenções cirúrgicas, por vezes, a Autora tomava ansiolíticos (resposta ao artº143º da BI).

              91. Tal como já tinha dores na anca (resposta ao artigo 144° da BI).

              92. Entre a interveniente EE, S.A. e o 1º Réu, em 29 de Abril de 1992, foi celebrado um contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil Profissional - Médicos, titulado pela apólice n.º …, com as seguintes coberturas: danos corporais - 124.699,48 euros; danos materiais - 37.409,84 euros e Defesa e Recurso - 2.493,84 euros (alínea I) da matéria de facto assente).

              93. Entre a interveniente Tranquilidade e a Ré, foi celebrado um contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, tendo sido clausulada por sinistro a franquia de 10%, com o mínimo de 100.000$00 (498,80 euros), seguro que se encontrava em vigor à data dos factos descritos na p.i. (alínea J) da matéria de facto assente).

              94. Do clausulado da apólice deste último contrato de seguro está excluída da cobertura do seguro: a "responsabilidade civil profissional de médicos que não estando ao serviço do Hospital, o utilizem a título de clínica privada" (alínea L) da matéria de facto assente).

      ***                                        ***                                        *** 

              Como, além do mais, resulta claramente do teor da conclusão 91ª, a autora, pela presente revista, apenas pretende a condenação do réu, o que implica que não esteja já em causa a situação da ré, nessa medida tendo de se considerar que a autora restringiu o âmbito do recurso à apreciação da eventual responsabilidade daquele e tornando por essa via a absolvição da ré do pedido definitiva, com trânsito em julgado do acórdão recorrido quanto a esta.           

              No que ao réu se refere, baseia a autora a responsabilidade que atribui a este em contrato de prestação de serviços médicos por ele deficientemente cumprido, daí resultando para ela danos, patrimoniais e não patrimoniais, pelos quais pretende ser indemnizada.

              Nas conclusões das suas alegações da presente revista sustenta a autora, desde logo, ter o acórdão recorrido cometido violação do disposto no art.º 799º, n.º 1, do Cód. Civil, uma vez que, tendo a Relação entendido que a responsabilidade civil médica apresentava, no caso em apreço, natureza contratual, devia ter atentado na presunção de culpa que aquele dispositivo faz recair sobre o devedor, ou seja, na hipótese dos autos, o médico réu.

              A responsabilidade contratual provém da falta de cumprimento ou do cumprimento defeituoso das obrigações emergentes dos contratos ou de negócios unilaterais e pressupõe um facto voluntário, ou omissão, do agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade. E, no que se refere à responsabilidade civil médica, tem ela natureza contratual quando assenta num contrato de prestação de serviços, como o que a autora invoca.

             Nos termos do art.º 1154º do Cód. Civil, contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição. 

             Aí se fala, pois, em “resultado”. Em matéria de contrato de prestação de serviços médicos, porém, o “resultado” não é, por norma, a cura em si, mas os próprios cuidados de saúde, ainda que aquela não seja alcançada. O resultado do trabalho médico consiste, em princípio, nos próprios meios utilizados, nas tarefas executadas, com o intuito de alcançar certo efeito final, mesmo que este não seja atingido. Ora, sendo a obrigação principal assumida pelo médico a de tratamento, é a mesma de qualificar, em geral, como obrigação de meios, e não de resultado, por não se ter ele vinculado a obter a cura do paciente, mas apenas a tentá-la por meio do tratamento que os seus específicos conhecimentos científicos e técnicos lhe apontem como adequado, como se explica, entre outros, no Ac. deste Supremo Tribunal de 17/01/2013 (relatora Ana Paula Boularot).

              Em matéria de aplicação de próteses, no entanto, como explica Rute Teixeira Pedro in “A responsabilidade civil do médico”, pág. 100, existe uma especificidade que leva a que, em regra, seja apresentada como exemplo de uma intervenção em que o médico se vincula à consecução de um resultado. Trata-se, porém, de uma atividade complexa, em que o profissional médico assume obrigações de vária natureza, sendo necessário fazer uma distinção entre a atividade de elaboração da prótese e a de aplicação da mesma no organismo do paciente. No que se refere à primeira, o médico compromete-se a elaborar um dispositivo que se adeqúe à anatomia do concreto doente, de acordo com regras técnicas precisas, assumindo nessa medida uma obrigação de resultado. Mas no que respeita à segunda, na medida em que a aceitação ou rejeição de um corpo estranho pelo organismo depende de um conjunto de fatores que o profissional não consegue controlar, a obrigação assumida deverá qualificar-se como obrigação de meios.      

             Ou seja, no contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos, com exceção da elaboração de prótese ou de outros casos restritos como a cirurgia plástica, o cirurgião assume, em geral, uma obrigação de meios, ficando sujeito à obrigação de aplicar, em todas as fases da sua intervenção, as leges artis adequadas. E, considerando-se a obrigação do médico uma obrigação de meios, não se pode afirmar que tenha deixado de cumprir o contrato se não logrou atingir a finalidade de cura, ainda que entendida esta como a eliminação ou diminuição do sofrimento do paciente mantendo este, ou melhorando, as suas anteriores capacidades, visada por meio do tratamento adotado.

             Daí que, no domínio da responsabilidade contratual, a menos que a obrigação assumida pelo médico seja precisamente de resultado, não seja a falta de obtenção do resultado – cura ou melhoramento do estado de saúde – pretendido que significa incumprimento e determina o recurso à presunção de culpa acima aludida. O que legitima o recurso a essa presunção é, antes, a prática de algum erro no que respeita aos meios e técnicas de tratamento adotados, o qual se verifica quando ocorra uma falha profissional, não intencional, no que se refere aos instrumentos ou técnicas de intervenção utilizados, por não se encontrarem de acordo com as leges artis. Ou seja, considerando-se a obrigação do médico uma obrigação de meios, sobre ele recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, e portanto sem culpa, se se quiser eximir à sua responsabilidade decorrente de incumprimento, o que pressupõe que se demonstre que, previamente ao funcionamento da presunção, tenha havido e ficado provado o incumprimento.  

             A responsabilidade no âmbito do contrato de prestação de serviços depende da prova duma situação que traduza incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. E, tratando-se, como é o caso, de prestação de serviços médicos, a responsabilidade médica, por negligência, por violação das leges artis, tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir: a violação do dever de cuidado pelo médico traduz-se precisamente na preterição das leges artis em matéria de execução da sua intervenção.

              Na sua maioria, os contratos de prestação de serviços médicos integram, como se referiu, uma obrigação de meios, não implicando, assim, a não obtenção do resultado final visado com os tratamentos e intervenções, a inadimplência contratual, cabendo por isso ao paciente provar a falta de diligência do médico, a falta de utilização de meios adequados de harmonia com as leges artis, o defeito do cumprimento, ou que o médico não praticou todos os atos normalmente considerados necessários para alcançar a finalidade desejada: é essa falta que integra erro médico e constitui incumprimento ou cumprimento defeituoso. E só depois dessa prova funcionará, no domínio da responsabilidade contratual, a dita presunção de culpa.             

              Está efetivamente provado que a autora celebrou com o réu um contrato de prestação de serviços médicos, mediante o qual este se obrigou a realizar uma intervenção cirúrgica, a que a autora decidiu sujeitar-se, que consistiu numa artroplastia para colocação de uma prótese total da anca de longa duração, a qual implicou a colocação de uma haste metálica no interior do fémur e um acetábulo junto à anca; consistiu, entre o mais, na colocação de uma prótese metálica composta de um acetábulo, implantado no ilíaco, na zona da cápsula que recebe a cabeça do fémur, e na colocação do componente femoral que inclui a prótese substitutiva da cabeça do fémur, que vai encaixar no dito acetábulo, e numa haste metálica que suporta aquela e se insere no fémur. 

              É no que respeita à elaboração ou escolha desta haste metálica que a autora imputa ao réu a prática de erro médico, afirmando que ele lhe implantou uma haste metálica mais longa, em 2 cm, do que devia ser, causando dessa forma o estiramento do nervo ciático. Por isso, acrescenta, ficou a padecer de dores intensas, cuja permanência levou o réu a suspeitar da existência de lesão do nervo ciático e a concluir pela necessidade de nova intervenção cirúrgica, a que procedeu para explorar o nervo ciático a fim de verificar se efetivamente tal lesão existia e proceder, nesse caso, à sua reparação e conseguir uma mais rápida recuperação do nervo. Depois de ter verificado que não havia lesão visível de continuidade no nervo ciático e que se podia tratar de estiramento deste, procedeu à redução da pressão de estiramento através da redução da prótese, substituindo a haste femoral, não encurtando o componente femoral em 2 cm ao contrário do que a autora sustentava, mas reduzindo o diâmetro da haste femoral em cerca de 2 mm, passando do tamanho 11 para o 09, para permitir menor pressão no nervo.

              Provado ficou também que as lesões de que a autora ficou a sofrer são consequência direta do estiramento do nervo ciático, pelo que importa saber se tal estiramento resultou de negligência do réu, nomeadamente de algum ato médico deste desconforme com as leges artis.

              Imputa a autora esse estiramento ao comprimento excessivo, em 2 cm, da aludida haste metálica.

             Só que, como também ficou assente, esse excesso de comprimento inexistia, pelo que não conseguiu a autora fazer a prova, que lhe competia, da inadequada conduta que imputa ao réu e que integra a causa de pedir. Sendo a dita haste metálica elemento integrante ou pelo menos de suporte da prótese, a elaboração da mesma, no caso concreto da autora, se tivesse sido feita ou escolhida com os por ela invocados 2 cm de comprimento a mais, constituiria violação de uma obrigação de resultado, o que efetivamente implicaria o recurso à presunção de culpa consagrada no art.º 799º, n.º 1, do Cód. Civil. Não tendo, porém, ficado assente esse excesso de comprimento, não pode, nesta parte, considerar-se haver incumprimento ou cumprimento defeituoso, nem, em consequência, admitir-se o recurso a tal presunção.

              Fica assim por se determinar a causa concreta do estiramento do nervo ciático, tanto mais que a operação em questão, como se provou, comporta alguns riscos, cujas causas são múltiplas e muitas vezes difíceis de identificar, entre os quais, precisamente, o de lesão do nervo ciático, a qual podia ter resultado de hematoma (sangue acumulado nas proximidades) de origem não apurada, que o réu, na segunda intervenção, detetou existir na glútea, comprimindo o nervo, tendo procedido à sua drenagem e sendo a existência desse hematoma uma causa possível do ocorrido.

             Importa, pois, determinar a causa do aparecimento desse hematoma, isto é, saber se resultou de negligência do réu no decurso da primeira intervenção, como a autora sustenta nas suas alegações, ou se houve alguma outra circunstância determinante do estiramento do nervo ciático.

             Sobre isto, porém, nada ficou apurado. Por um lado, a autora, nos seus articulados, apenas refere, como facto constitutivo de cumprimento defeituoso pelo réu, que este lhe colocou no interior do fémur uma haste metálica, como a operação implicava, mas mais longa em 2 cm do que deveria ser, o que causou a paresia do nervo grande ciático direito, vindo ele, em 2ª intervenção, a encurtar a dimensão da prótese reduzindo a peça metálica de 11 para 9 centímetros. Segundo ela, é a colocação da haste metálica de comprimento superior ao devido que consubstancia a violação das regras da arte médica, apenas tendo sido resultado de descuido e imponderação do réu, que, além disso, deu alta à autora dois dias depois da segunda intervenção, o que constituiu fator de agravamento do risco de lesão por ela não ter disposto de acompanhamento médico durante o período de imobilização. Por outro lado, porém, como se vê da descrição dos factos assentes, não ficou provado o dito excesso de comprimento da haste metálica, nem que a alta dada à autora fosse fator de agravamento do risco de lesão, nem que tivesse ficado sem acompanhamento médico.

              Daí que não se tenha apurado a origem do aludido hematoma, que não pode, em consequência, atribuir-se, ao contrário do que sustenta a autora nas suas alegações, à cirurgia, à forma como o réu executou a intervenção, visto poder ter outra causa, - nomeadamente um problema pós-operatório, que o acórdão recorrido considerou assente ter ocorrido e que determinou a realização quase imediata da segunda cirurgia -, nem qualquer outra possível causa do estiramento do nervo ciático, pelo que a autora não conseguiu demonstrar qualquer facto ou omissão do réu que integre violação contratual. E, como se diz entre outros no acórdão deste Supremo Tribunal de 15/11/12 (relator Abrantes Geraldes), a responsabilidade no âmbito do contrato de prestação de serviços depende da prova duma situação que traduza o incumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação.

             Não pode, assim, o réu ser responsabilizado civilmente com base em incumprimento contratual ou em cumprimento contratual defeituoso, uma vez que, no que respeita à obrigação de resultado, não ficou assente que o resultado pretendido de elaboração da prótese não tenha sido alcançado, e, quanto à obrigação de meios, não invocou a autora nos seus articulados, nem ficou provada, qualquer outra forma de conduta ou omissão do réu violadora das leges artis, ou que denotasse da sua parte negligência, inconsideração, ou até incompetência, suscetíveis de determinar a produção dos danos por ela sofridos, o que conduz à mesma conclusão de, no âmbito de eventual responsabilidade contratual, não se ter demonstrado incumprimento, nem poder, por isso, recorrer-se à apontada presunção.

              Sustenta, porém, a recorrente, dever o réu, em tal hipótese, ser responsabilizado com base em responsabilidade extracontratual, pelo que, como a prótese em causa era uma coisa móvel a cargo do réu, este se encontrava onerado desde logo com a presunção do n.º 1 do art.º 493º do Cód. Civil, e, sendo a atividade médica uma atividade perigosa, devia ter sido aplicada a presunção consagrada nesse art.º 493º, n.º 2.

             A este respeito, é de entender que a responsabilidade proveniente de erro na prestação de atos médicos acordados de que decorra ofensa de integridade física do paciente, é, simultaneamente, contratual (por incumprimento ou cumprimento defeituoso de obrigações contratuais), e extracontratual, por violação de um direito absoluto, - a vida ou a integridade física -, pondo-se então a questão de saber se poderá haver concurso na aplicação de ambos os regimes dessas duas formas de responsabilidade.

             Ora, as poucas especificidades de cada um desses regimes, nomeadamente no que se refere ao apuramento do montante dos danos e até à determinação da existência de danos não patrimoniais, que também pode ter lugar no domínio da responsabilidade contratual, permitem concluir que a disciplina desta última, globalmente considerada, confere maior proteção ao lesado. Por outro lado, encontrando-nos no domínio do direito das obrigações, em que impera o princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às partes fixar a disciplina que deve reger as suas relações, com ressalva dos preceitos imperativos, é de entender que, perante uma situação concreta, em que as partes tenham optado pela celebração de um contrato, sendo aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil, de harmonia com o aludido princípio, o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual, consumindo o regime da responsabilidade contratual o da extracontratual (Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 8ª ed., pág. 495).

             Daí que se entenda que, se vem invocada violação de uma obrigação contratual de que resultam danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual, com exclusão, face a um princípio da consunção, das da extracontratual, inclusive do disposto no art.º 493º, citado, que nesta se integra, aplicando-se o regime da primeira por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, o regime globalmente mais favorável ao lesado. Como resulta, entre outros, dos acórdãos deste Supremo Tribunal de 02/06/2015 (relatora Maria Clara Sottomayor), de 28/01/2016 (relatora Maria da Graça Trigo), e de 22/09/2011 (relator Betencourt Faria), como a responsabilidade contratual é mais favorável ao lesado e a solução a que conduz é a mais conforme ao princípio da autonomia da vontade, em matéria de responsabilidade médica deve aplicar-se o regime da responsabilidade contratual, por aplicação do dito princípio da consunção.

             Não obstante, pode entender-se que, embora evidentemente não possa haver lugar a cumulação de indemnizações (uma por responsabilidade contratual e outra por responsabilidade extracontratual) com base nos mesmos factos e pelos mesmos danos, um princípio de economia processual pode aconselhar a que, inexistindo a primeira, se possa recorrer no mesmo processo à segunda desde que os factos a possam inculcar, dado que o Juiz, embora sujeito aos factos invocados pelas partes, lhes poderá atribuir qualificação jurídica diversa (atual art.º 5º, n.º 3, do CPC, idêntico ao anterior art.º 664º).

            Por isso, sempre se dirá que esse dispositivo (art.º 493º), mesmo recorrendo ao regime da responsabilidade extracontratual, não teria aplicação na hipótese dos autos.

              Com efeito, este artigo, como referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 495), é relativo às atividades perigosas em geral.

              Ora, no que toca ao seu n.º 1, a coisa móvel aqui em causa é uma prótese, que, por si, não representa qualquer perigo, pelo menos enquanto se encontre na detenção do réu, como aconteceria com uma caldeira, um artigo de pirotecnia, uma arma, uma substância radioativa, um instrumento cortante. É a coisas que, por si, sejam perigosas por poderem produzir consequências graves que esse n.º 1 se refere.

              Ou seja, trata-se de hipótese que se encontra fora da previsão desse n.º 1. 

             Já quanto ao n.º 2, nele se dispõe que quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

              Limitou-se aqui o legislador a fornecer ao intérprete uma diretriz genérica para identificação das atividades que considera perigosas para efeito deste dispositivo, sem indicar sequer um critério sobre qual o tipo de perigo a considerar. Pois qualquer atividade pode ser considerada perigosa, mesmo que se trate simplesmente de contração de um empréstimo para compra de habitação que depois não se possa pagar, como a recente crise económica demonstrou, ou de passar algum tempo a jogar num casino e perder todo o dinheiro, ou de descer uma escada com perigo de tropeçar e cair. E tais formas de atividade não são consideradas perigosas para efeitos deste artigo.

              Como exemplos de atividade perigosa por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados têm sido apontadas, embora nalguns casos sem acordo unânime, a hipótese de transporte de algodão, pelo perigo de combustão espontânea, a circulação ferroviária, a monda química por meios aéreos, a colocação numa pedreira de detritos inflamáveis e explosivos provenientes de uma fábrica de produtos químicos, a realização de uma queimada pelo perigo de incêndio, a demolição de um prédio, o uso de explosivos para proceder ao rebentamento de rochas, a produção de pasta de papel com utilização de substâncias sulfurosas altamente corrosivas, a navegação marítima ou aérea, o fabrico de explosivos, o comércio de substâncias ou materiais inflamáveis. Tudo situações em que da atividade em si mesma resulta especial perigosidade a requerer medidas especiais de prevenção por tal atividade implicar a possibilidade de as suas consequências fugirem ao controle do seu autor, tendo ínsita ou envolvendo uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral (Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 8ª ed., 529).

             Assim, há que averiguar se a atividade médica deve ser considerada perigosa, quer pela sua natureza, quer pela natureza dos meios utilizados, por revestir aquelas caraterísticas.

             E entende-se que, em geral, não o é, não se encontrando assente que o exercício da medicina seja forçosamente considerado como atividade anormalmente perigosa. Nem toda a atividade médica é perigosa, nem mesmo toda a atividade cirúrgica, impondo-se, para o efeito de determinar quando deve ser considerada como tal, a adoção de critérios mais rigorosos do que os critérios vagos que a lei fornece.

             Pelo contrário, a natureza da atividade médica exclui mesmo, em princípio, a sua periculosidade, visto que se destina, isso sim, a afastar o perigo maior já existente em qualquer paciente de prolongamento ou agravamento do seu mau estado de saúde ou até de morte. Ou seja, o perigo que, à partida, se pode considerar existir na atividade médica, é o de não ter sucesso, por não conseguir atingir o seu objetivo de cura ou de melhoria do estado de saúde do paciente, mas tal não integra verdadeiro perigo de produção de um resultado prejudicial, que já resultava em princípio do estado de saúde anterior do próprio doente, – caso contrário não necessitava de recorrer a serviços médicos -, antes constituindo incapacidade, por vários motivos plausíveis que poderão até nada ter a ver com a competência médica, de obtenção do resultado visado. Pelo que, como refere André Gonçalo Dias Pereira, in “Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica”, pág. 756, em regra esta norma não é aplicada no âmbito da responsabilidade médica.

             Tal não obsta, certamente, a que haja atos médicos que possam, pela sua natureza ou pela dos meios utilizados, ser considerados perigosos para os fins deste dispositivo, o que terá de ser determinado em cada caso concreto face às consequências que previsivelmente poderá provocar e ao respetivo grau de periculosidade. São apontadas como tais as hipóteses de emprego de um bisturi elétrico, que envolve, em virtude da sua alimentação com energia elétrica, uma série de perigos, a de danos decorrentes da utilização de uma incubadora com termóstato estabilizador da temperatura, a de danos derivados de tratamento médico com ondas curtas ou raios X, ou de um tratamento dentário com broca, ou de uso de aparelhos de ressonância magnética, de anestesia, de hemodiálise. Tudo situações em que a especial perigosidade resulta da natureza dos meios utilizados, a elas se podendo acrescentar a transfusão de sangue, caso em que a especial perigosidade também se encontra ligada à própria natureza da atividade.

             Outras situações de especial perigosidade, relacionada com a natureza do ato, vêm indicados por Carla Gonçalves, in “A Responsabilidade Civil Médica”, pág. 41: opção por determinado tratamento, perfeitamente possível perante os ditames da ciência, mas que resulte desastroso para o paciente em concreto; má interpretação de determinado exame laboratorial, muito embora os sintomas do doente levassem a crer que outro não pudesse ter sido o diagnóstico; o risco de o resultado do exame laboratorial não ser um resultado fiel do estado de saúde do paciente; ou o risco de, internando um paciente, ele contrair uma infeção hospitalar.    

             O que se nota haver de comum em todos esses casos é que neles se verifica um elevado grau de perigosidade na medida em que, podendo fugir ao controle do profissional de saúde, são suscetíveis de originar consequências da maior gravidade para o paciente, fazendo com que, por força da atividade médica, fique em muito pior situação do que aquela em que se encontrava e que determinou a prestação dos serviços médicos. Há, assim, que apurar em cada caso, segundo as circunstâncias, se tal perigosidade se verifica (Pires de Lima e Antunes Varela, local citado), o que se entende ter de ser em grau que justifique a aplicação da presunção em causa. Pois toda a atuação médica comporta uma certa margem de risco, mas não é qualquer grau de risco que conduz à classificação dessa forma de atividade médica como perigosa pela sua natureza: há sempre que ter em conta as concretas circunstâncias objetivas que levarão a concluir pela maior ou menor possibilidade de o profissional de saúde controlar todo o processo, desde o diagnóstico até ao fim do tratamento.

             Ora, tem de se ter em conta que, em matéria de intervenções cirúrgicas, a prática frequente de determinada intervenção contribui para a aquisição de maior experiência e diminuição do risco, como acontece por exemplo com operações ao apêndice, que hoje em dia se considera não padecerem de grave risco, graças à obtenção de novos conhecimentos sobre as técnicas mais seguras a utilizar, afastando a especial periculosidade resultante do caráter inovador ou experimental que inicialmente tinha, ou da pouca prática do profissional de saúde, o que não era o caso do réu, que, como ficou provado, se encontrava perfeitamente habilitado para a execução de intervenções cirúrgicas como a dos autos, tendo larga experiência nessa realização, o que diminuía a margem de incerteza quanto ao resultado a obter. E isso mesmo ficou demonstrado na hipótese dos autos, pois, apesar de a operação em causa ser complexa e com riscos, estes não atingem um nível elevado de probabilidade de concretização, a ponto de (facto assente n.º 27) na grande maioria dos casos ser realizada sem complicações.                       

              Ou seja, na hipótese dos autos é de se concluir que a atividade médica exercida não tinha, por sua natureza nem pela natureza dos meios utilizados, uma perigosidade de tal ordem que, mesmo entendendo-se que nos encontrávamos no âmbito da responsabilidade extracontratual, justificasse a aplicação da presunção prevista no n.º 2 do mencionado art.º 493º, mantendo-se, em consequência, o ónus da autora de provar o incumprimento ou o cumprimento defeituoso das obrigações médicas do réu, por não lhe terem sido prestados os melhores cuidados possíveis, o que não conseguiu fazer.

             De todo o modo, se bem que aquela presunção entre no domínio da ilicitude na medida em que, para ser elidida, a lei imponha ao praticante da atividade que mostre que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, só a ilicitude, além da culpa, se poderá considerar abrangida pela presunção. Já não o incumprimento ou o defeito do cumprimento, ou a conduta violadora de direito absoluto, cujo ónus da prova sempre impende, no caso presente, sobre a autora; só depois de esta ter satisfeito esse ónus é que poderia haver lugar à aplicação da presunção. Sucede, porém, que os únicos defeitos na conduta do réu em que a autora se baseia são a utilização de uma haste metálica de comprimento superior ao adequado e falta de acompanhamento médico, o que não demonstrou, antes tendo o réu conseguido provar o contrário.    

              Donde que não se possa reconhecer razão à recorrente quanto à sua pretensão de que seja aplicada a dita presunção, pelo que o réu também não pode ser civilmente responsabilizado com base em responsabilidade extracontratual.

             Invoca ainda a recorrente, nas suas alegações, a falta de consentimento para a segunda intervenção.

             O consentimento do lesado é causa de exclusão de ilicitude, como resulta do disposto no art.º 340º, n.º 1, do Cód. Civil, sendo mesmo um dos requisitos da licitude da atividade médica, face ao disposto nos artigos 5º da CEDHBioMed e 3º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União europeia. Por outro lado, tem de ser livre e esclarecido para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada (Ac. do STJ de 02/06/2015, citado).

              Ora, da matéria de facto provada resulta que a Autora sofria de doença evolutiva com limitação progressiva da anca, indo até à anquilose, quando, em face das explicações do réu e de outro médico que já havia consultado, a Autora pretendeu que o réu lhe realizasse a operação, o que este realizou, tendo para o efeito a Autora assinado uma declaração de consentimento. Ou seja, em face das explicações prestadas, não só pelo Réu, mas também por outro médico, ela pretendeu que o réu lhe realizasse a operação, assinando para o efeito a declaração de consentimento junta aos autos a fls. 501. Tendo em conta a doença com que a Autora se apresentava e os exames realizados sob a orientação de outro médico e indicação para a realização desta cirurgia, que lhe foram dadas explicações, quer por esse médico, quer pelo Réu, que a levaram a pretender a operação, e que se não demonstrou que esta não era a necessária neste caso, nem que foi escamoteado à Autora algum dos seus riscos, não se vê que tenha havido qualquer dever de informação violado, desde logo quanto à primeira operação.

             Mas demonstrou-se ainda que se as queixas do paciente fizerem suspeitar de lesão do nervo ciático se deve realizar uma segunda operação no mais curto espaço de tempo, e que, na sequência da manutenção das dores intensas de que a autora se queixava, o Réu suspeitou dessa lesão, por isso a submetendo à nova cirurgia após ter decorrido um dia, por já ser de presumir, por um médico atuando com diligência média, a existência de risco sério de danos ao nível do nervo ciático.

             Assim, como a doença que motivou a intervenção cirúrgica é evolutiva com limitação progressiva da anca, indo até à anquilose, associada a subjetivos dolorosos de intensidade moderada ou intensa, o que acarreta cada vez menor autonomia podendo ir até à dependência total de terceira pessoa, havia urgência na realização da segunda intervenção, que era imposta por uma necessidade evidente ou por um perigo imediato, e que, se não fosse realizada o mais rapidamente possível, poderia ter consequências mais graves, determinando, isso sim, violação de deveres de diligência do réu e das leges artis. Tal tornava até objetivamente irrazoável qualquer oposição da autora à sua realização, a fim de explorar o nervo ciático para verificação da lesão, sua eventual reparação e tentativa de mais rápida recuperação do nervo, o que, visando o mesmo efeito pretendido embora sem sucesso com a primeira operação, implica que a declaração da autora incluída na declaração de consentimento seja interpretada como abrangendo a segunda se necessária, visto esta ser apenas a imediata – embora com o intervalo de um dia - continuação do tratamento a que a autora, para melhoria do seu descrito estado de saúde, tinha de ser sujeita, o que dispensava a obtenção de nova declaração de consentimento. E pode este Supremo proceder a essa interpretação da declaração de consentimento da autora, precisamente por se tratar de interpretação de uma declaração negocial, sendo o sentido que se considera nela dessa forma consagrado coincidente com o sentido apreensível pelo declaratário normal (art.º 236º, n.º 1, do Cód. Civil).

             Pelo que se conclui pela existência de efetivo consentimento para todo o tratamento que era necessário efetuar à autora, incluindo para a segunda intervenção, o que impede que também a este respeito se reconheça razão à recorrente.

              Do exposto, por não provados o ato ilícito e a culpa do réu, resulta a improcedência do presente recurso, o que prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas.

            ***                                        ***                                        ***

              Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

              Custas pela recorrente.

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  Lisboa, 26 de Abril de 2016

                                  Silva Salazar (Relator)

                                  Nuno Cameira

                                   Salreta Pereira