Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P1779
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: SENTENÇA CRIMINAL
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PERIGOSIDADE CRIMINAL
Nº do Documento: SJ200710030017793
Data do Acordão: 10/03/2007
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ORDENADO O REENVIO DO PROCESSO
Sumário :

I- A fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
II- A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
III- A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.
IV- A decisão sobre a suficiência da fundamentação no que respeita ao “exame crítico” das provas não integra os poderes de cognição do Supremo Tribunal, tal como definidos no artigo 434º do CPP, salvo quando tenha que (deva) decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP.
V- O conceito de perigosidade criminal, para efeitos de aplicação do artigo 91º do CP, tem como conteúdo normativo a possibilidade ou a probabilidade de que o autor de um facto típico repita a sua conduta típica e ilícita, pondo em perigo bens jurídicos, e a probabilidade, tem de resultar de juízos objectivos e relacionais que permitam afirmar a perigosidade de modo processualmente válido, e que supõem a existência de fundado receio de que o agente possa vir a praticar factos da mesma espécie de ilícito típico.
VI- O juízo sobre a probabilidade que permita concluir pela perigosidade é um juízo de prognose, cuja comprovação final não é possível, mas cuja correcção enquanto juízo ex ante deve ser avaliada face aos dados disponíveis em que se fundamenta no momento em que é formulado; o juízo de prognose deve ser razoável e fundado em sérias razões pelo cruzamento entre modelos clínicos e estatísticos, circunstâncias individuais do agente e ambientais do meio em que se insere.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. No processo comum nº 239/04, do 2º Juízo de Águeda, foi aplicada ao arguido AA a medida de segurança de internamento, em consequência de ter praticado factos integráveis nos elementos objectivos do crime de incêndio p. no artigo 272º, nº 1 do Código Penal.
O tribunal decidiu que o internamento seria efectivo «durante a época normal dos fogos», sendo a execução suspensa, com sujeição a tratamento, exames e observações determinadas pelo IRS durante o restante período do ano.

2. O arguido recorreu para o tribunal da Relação, que confirmou integralmente o acórdão recorrido.

3. Não se conformando, o arguido recorre para o Supremo Tribunal, com os fundamentos na motivação que apresenta e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
Primeira
O Acórdão proferido pela lª Instância limita-se a elencar os factos provado e não
provados (identificando-os pelos números e/ ou letras correspondentes) e, à frente cada um dos grupos, referir quais os meios de prova que permitiram que os mesmos fossem dados como provados.
Segunda
Para decidir da matéria de facto tal como o fez, o Acórdão proferido pela lª Instância limitou-se a identificar quais os meios de prova em que se baseou, não referindo, sequer em resumo (para não dizer telegraficamente), o que disseram os depoentes em sede de audiência de discussão e julgamento.
Terceira
O Acórdão proferido pela lª Instância não toma qualquer tipo de posição relativamente aos depoimentos produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento (e que foram muitos), e que conduziriam a uma decisão diametralmente oposta no que concerne àqueles factos dados como provados e/ou como não provados.
Quarta
Não há qualquer crítica aos depoimentos e meios de prova fundamentação, nem é referido o porquê de estes terem sido valorados e sede probatória, nem em que medida é que o foram, não referindo o Acórdão proferido pela lª Instância porque é que apenas valorou os depoimentos das testemunhas de acusação exacta medida em que eram desfavoráveis ao arguido, fazendo tábua rasa de todo o demais.
Quinta
Assim sendo, o Acórdão proferido pela lª Instância não realizou um verdadeiro concreto e incisivo exame crítico das provas produzidas em julgamento, violando, assim, o preceituado no artigo 374°, nº 2, do C.P.Penal, encontrando-se, por isso, ferido de nulidade, nos termos do artigo 379°, nº 1, alínea a), do C.P.Penal.
Sexta
Ao julgar improcedente a invocada nulidade do Acórdão proferido pela lª Instância, viola o Acórdão recorrido o já citado artigo 374°, n° 2 do Código de Processo Penal, pelo que deve o mesmo ser revogado e substituído por outro a emanar de e que decrete a nulidade daquele primeiro Acórdão, por falta de um verdadeiro exame crítico das provas, tal como exige o artigo 374°, n°.2, do Código de Processo Penal, nulidade essa cominada no artigo 379°, nº l, alínea a), do mesmo Código
Sétima
Incorre o Acórdão proferido pela 1ª Instância nos vícios de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova (vide artigo 410°, nº 2, b) e c), do C.P.Penal), uma vez que (entre outros motivos profusamente dissecados na fundamentação do presente Recurso - que aqui se dá por reproduzida, para os devidos legais efeitos) deu como provados e como não provados exactamente os mesmos factos e/ou deu como provados factos intrinsecamente incompatíveis entre si.
Oitava
O Tribunal a quo confirmou esses mesmos factos.
Nona
Ao decidir pela não verificação no Acórdão proferido em lª Instância dos vícios acima referidos na sétima conclusão, o Tribunal a quo violou igualmente o disposto no artigo 410°, n° 2, alíneas b) e c), do C. P. Penal.
Décima
Tais vícios, a terem-se por verificados, implicam o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426°, do C.P.Penal.
Décima-Primeira
Assim, e nos termos do artigo 4260, do C.P.Penal, deverá o processo ser reeviado para novo julgamento.
Décima-Segunda
Violou, ainda, o Acórdão recorrido o artigo 91º, do Código Penal, assim como os princípios da necessidade, adequação, da proporcional idade e o princípio da menor intervenção possível.
Décima-Terceira
Na verdade, baseou-se o Acórdão recorrido para confirmar a medida de internamento do arguido decretada pela lª Instância em presunções de carácter genérico abstracto e meramente académico, quando todos os elementos concretos apontam no sentido da não perigosidade do arguido.
Décima-Quarta
Ademais, e de acordo com todos os elementos probatórios constantes dos autos, em especial, os depoimentos das testemunhas de acusação, assim como do elenco com dos factos dados como provados, para além de não se poder concluir pela perigosidade do arguido, terá, necessariamente que se concluir que a sua libertação em nada se incompatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
Décima-Quinta
Destarte, deverá a medida de internamento imposta ao arguido ser revogada com todas as devidas e legais consequências.
Décima-Sexta
Mesmo que assim não se entenda, e em face de tudo o alegado na motivação do presente Recurso, sempre se considerará ter o Acórdão recorrido, ao não suspender, sem mais, a medida de internamento imposta ao arguido, violado o artigo 98°, do Código Penal.
Décima-Sétima
De facto, a pretendida suspensão (ainda que acompanhada de tratamento e de cura ambulatórios e demais regras de conduta tidas por necessárias) realiza de forma cabal as finalidades do internamento e é absolutamente compatível, no caso concreto , com a defesa da ordem jurídica e com a paz social, potenciando, ainda (e ao contrário fará a reclusão do arguido em estabelecimento de segurança), a cura do arguido.
Décima-Oitava
A pretendida suspensão é, assim, perfeitamente adequada e proporcional, respeitando, ainda, os princípios da necessidade e da menor intervenção possível.
Pede, em consequência, o provimento do recurso.
O magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu á motivação, considerando que o recurso não merece provimento.

4. No Supremo Tribunal, O Exmº Procurador-Geral Adjunto teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, pronunciando-se no sentido de que a invocação de nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação é manifestamente improcedente, e que as questões suscitadas relativas a vícios das alíneas b) e c) do artigo 410º, nº 2 do CPP estão definitivamente resolvidas pela Relação, não cabendo nos poderes de cognição do Supremo Tribunal.

5. Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo decidir.

6. As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
1) No dia 14/7/2004, pouco antes das 16h, o arguido dirigiu-se à estrada marginal que liga o Vale da Vergada ao Lavadouro do Muro, lugar dos Covos, freguesia de Fermentelos, que é ladeada por uma área arborizada de pinheiros e eucaliptos.
2) Chegado a esse local, o arguido munido de uma caixa de fósforos acendeu alguns deles e lançou fogo à vegetação aí existente.
3) Dado que a temperatura do ar se situava entre 250C e 300C, o fogo propagou-se a vários terrenos onde se encontravam plantados pinheiros e eucaliptos, tendo consumido uma área total arborizada de cerca de 7.000 m2 , causado um prejuízo aos proprietários de tais terrenos de cerca de €1600.
4) Na proximidade da área arborizada encontram-se edificadas diversas habitações, onde residiam várias famílias.
5) A fim de combater o fogo, os Bombeiros Voluntários de Águeda fizeram deslocar para o local três viaturas e dez elementos desse corpo, tendo logrado circunscrever o fogo cerca das 18h30 e extingui-lo cerca das 19h35.
6) Não fora tal intervenção por parte dos Bombeiros, o fogo poderia ter-se alastrado a outros terrenos vizinhos, bem como às habitações que ficavam próximas da área atingida.
7) O arguido bem sabia que ao acender fósforos e ao lançar fogo a uma área coberta de vegetação e localizada próximo de habitações criava perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado e para a vida e integridade física das pessoas que residiam no local, resultado este que o arguido previu como possível e com o qual se conformou.
8) O arguido agiu de forma livre.
9) O arguido tem um quociente de inteligência verbal de 50 e um quociente de inteligência de realização de 42 na Escala de Inteligência de Weschler (WAIS) para adultos. Tais valores correspondem a um quociente de inteligência, na escala completa, de 43 ( uma deficiência mental moderada).
10) Dada a deficiência mental de que padece, o arguido não é capaz de avaliar a ilicitude e as consequências dos seus actos ilícitos, tendo tendência para a repetição destes mesmos actos, manifestando uma não aprendizagem pelos erros.
11) Há o perigo de que o arguido venha a cometer outros actos da mesma espécie.
12) O arguido não tem antecedentes criminais.
13) O arguido tem 9 irmãos, 7 deles já dispõem de agregado familiar autónomo e os outros dois, um de 25 anos e outro de 42 anos, ambos ainda solteiros, ainda residem, tal como o arguido, em casa dos pais.
14) Os pais, de 68 e 67 anos de idade, reformados, têm uma casa antiga de tipologia rural, com as condições indispensáveis em termos de higiene e conforto.
15) A família cultiva ainda um quintal bem como outras parcelas de terreno, a que juntam os valores das suas reformas (+/- 400E), tendo o apoio dos filhos que com eles residem e se encontram desempregados.
16) Também criam algum gado.
17) O arguido dedica-se, irregularmente, à pesca na Pateira de Fermentelos e ajuda os pais na lida doméstica e com a respectiva receita apoia nas despesas familiares para além de a pesca servir também para consumo doméstico.
18) São os pais, com estas ajudas quem suporta os encargos com a satisfação das necessidades básicas do arguido.
19) O pai do arguido tem graves problemas de saúde (hemodiálise 3 vezes por semana) e despende muitos recursos económicos em viagens e medicamentos.
20) O arguido não conseguiu ir para além do 1º ano de escolaridade, passando logo após o tempo da escolaridade obrigatória, a trabalhar na construção civil como servente, altura em que completava os 12 anos de idade.
21) Tem perturbações ao nível da memória e problemas de saúde.
22) Foi acompanhado pelo Hospital de S. Bernardo, em Aveiro, tendo as respectivas consultas cessado há muitos anos, aquando do encerramento daquele Serviço.
23) O arguido, por vezes, é bastante influenciável, agindo de forma impulsiva e sem pensar nas consequências. Nos momentos de maior lucidez, toma-se um homem calmo, compreensivo e afectivo.
24) Depois do arguido ter sido preso preventivamente por causa destes factos, a família uniu-se em torno desta situação que considera gravosa.
25) Todos os irmãos visitaram o arguido, bem como a mãe, mantendo-se a reserva do pai em estar perante o filho na presente situação. mas nunca se demitindo de o apoiar no exterior, o que de resto, também acontece com toda a família.
26) No meio social, a família é referenciada como pouco regular em termos laborais, sendo ainda caracterizada pela existência de conflitos internos frequentes.
27) No local onde o arguido vive, as pessoas referem que a família negligenciou a partir de certa altura o tratamento do estado de saúde do arguido.
28) O arguido é pessoa respeitadora e integrada no meio social envolvente.
29) É colaborador assíduo do Sporting Clube de Fermentelos há já largos anos, dedicando-se nomeadamente ás marcações do seu campo de jogos.
30) Apesar dos factos em causa nos autos, não são conhecidos fenómenos de rejeição no meio social envolvente.
31) O arguido não sabe ler nem escrever.
32) Desde que foi restituído à liberdade em 15/10/2004 (foi detido no dia dos factos e colocado em prisão preventiva ate àquela data). não lhe são conhecidos outros factos da mesma natureza da dos autos.
33) Houve muitos incêndios no pais e no concelho de Águeda durante o Verão de 2005.
E não provados os seguintes factos:
i. A área ardida fosse de cerca de 12.400 m2 e o valor não inferior a €5.850
ii. O arguido não tenha capacidade para ter consciência da prática dos seus actos ou que não tenha essa consciência.
iii. Seja pessoa pacifica e ordeira.
iv. A sua restituição e manutenção em liberdade não tenham provocado qualquer alarme social.
v. Desde que foi restituído à liberdade, tenha mantido um comportamento exemplar.
vi. O arguido se mostre agora bem reinserido socialmente

7. Nas conclusões da motivação, o recorrente delimita o objecto do recurso submetendo ao conhecimento do Supremo Tribunal as seguintes questões:
(i)- Nulidade do acórdão recorrido por não indicar a razão por que decidiu julgar improcedente a nulidade do acórdão da 1ª instância por falta de exame critico das provas (conclusões 1ª a 6ª).
(ii)- Contradição na matéria de facto entre os factos provados e não provados e erro notório na apreciação da prova (conclusões 7ª a 11ª).
(iii)- Violação dos artigos 91º e 98º do Código Penal por não estar provada a perigosidade do recorrente que permita a aplicação da medida de segurança de internamento, com afectação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade (conclusões 12ª a 18ª).

8. O artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe sobre os “requisitos da sentença” (relatório – nº1; fundamentação – nº 2; e dispositivo ou decisão stricto sensu), indica no nº 2 os elementos que têm de integrar a fundamentação, da qual deve constar uma «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de processo penal”, III, pág. 289).
A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32).
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.
Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do nº 2 do artigo 374º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei nº 58/98, de 25 de Agosto), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção.
O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.
Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).
No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a que se refere especificamente a exigência da parte final do artigo 374º, nº 2 do CPP, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410º, nº 2 do CPP; o n° 2 do artigo 374° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cfr., nesta perspectiva, o acórdão do Tribunal Constitucional, de 2 de Dezembro de 1998).
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” através dos elementos que lhes permitem dar sentido e funcionalidade intraprocessual conduz, porém, a que a dimensão a que se acolhem não se reduza à (ou sequer consista na) interpretação de princípios jurídicos ou de normas como operação prévia à respectiva aplicação a uma dada situação de facto preconstituída, mas, em diverso, envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.
Mas, sendo assim, a vocação de tais critérios e elementos de ponderação para avaliar se foi adequadamente efectuado o exame crítico das provas no âmbito das exigências da lei, retira o plano da decisão do espaço de intervenção dos juízos de eleição, interpretação e aplicação de um princípio ou norma legal, subtraindo-o, consequentemente, do âmbito da matéria de direito.
Se é certo que no momento final está em questão a aplicação de uma norma processual (integração de uma nulidade da sentença – artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP), tal questão tem como base e pressuposto, a montante, a verificação sobre a suficiência dos módulos da expressão do”exame crítico” para satisfazer as condições e exigências da categoria da lei, que se não acolhe a critérios normativos, mas antes a juízos próprios da ponderação prudencial que intercede através de elementos retirados da experiência da vida e das coisas, excluídos da noção e do conteúdo da matéria de direito.
Deste modo, a decisão sobre a suficiência da fundamentação na referência ao “exame crítico” das provas não integra os poderes de cognição do Supremo Tribunal, tal como definidos no artigo 434º do CPP, salvo quando tenha que (deva) decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP.
Esta conclusão, tirada em perspectiva e construção conceptual, é confirmada por outro modelo de compreensão, da ordem das necessárias congruências sistémicas.
A exigência de exame crítico das provas, como momento essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto (exigência específica introduzida, como se salientou, pela Reforma de 1998) tem como finalidade processual permitir, no âmbito do recurso em matéria de facto, a reponderação pelo tribunal de recurso dos critérios usados na decisão recorrida para formar a convicção sobre os factos, ou, mais directamente, decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, permitindo determinar se os procedimentos de apreciação das provas, tal como constam da decisão, encerram alguma incongruência que possa integrar os vícios em matéria de facto, nomeadamente o enunciado na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP.
A questão só poderia ser colocada no âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal, e na perspectiva em que vem suscitada, se, de todo, faltasse ou tivesse sido omitida a fundamentação ou o exame crítico das provas.
Não é esta, porém, a posição em que se coloca o recorrente. Não invoca, na verdade, falta de exame crítico, mas apenas, segundo a leitura que faz, «que o acórdão da 1ª instância não realizou um verdadeiro, concreto e incisivo exame crítico das provas produzidas em julgamento».
Nesta perspectiva, a avaliação dos critérios sobre a suficiência do exame crítico não cabe, como se referiu, nos poderes de cognição do Supremo Tribunal.
O recurso é, assim, nesta parte, destituído de fundamento.

9. O recorrente, em outro modo de fundamentação do recurso, insiste na invocação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal – contradição insanável na fundamentação e erro notório na apreciação da prova.
A contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito.
A contradição e a não conciliabilidade tem, pois, de se referir aos factos, entre si ou enquanto fundamentos, mas não a uma qualquer disfunção ou distonia que se situe unicamente no plano da argumentação ou da compreensão adjuvante ou adjacente dos factos.
Por seu lado, o recorrente invoca também a existência de erro notório na apreciação da prova.
O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.
Na dimensão valorativa das “regras da experiência comum” situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.
Em síntese de definição, estes são os elementos que hão-de conformar a apreciação, em cada caso, sobre a ocorrência do mencionado vício (cfr., v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, no BMJ n°s. 476, pág. 82; 477, pág, 338; 478, pág. 113; 479, pág. 439,494, pág. 207 e 496, pág. 169).
O vício tem de resultar, como se referiu, do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a declarações ou a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo ou até da audiência.
Não basta, porém, que numa dada situação se verifique que os factos, considerados na singularidade das suas correlações imediatamente físicas e naturais, e no domínio da possibilidade material ou das projecções de vontade, não suscitem reparos.
Esta verificação não é bastante para afirmar a integridade do processo racional e lógico de formação da convicção sobre os factos e, por conseguinte, também da inexistência de «erro» na apreciação da prova.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). – cfr., v. g., o acórdão deste STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc. 3213/03.
Perante o sentido relevante das categorias processuais referidas, alguns dos factos provados e não provados apresentam, efectivamente, dificuldades de leitura coordenada e congruente.
A dificuldade maior no teste de congruência factual está no modo de formulação (pela negativa) dos factos não provados, que pela menor clareza, incerteza ou mesmo ambiguidade potencia a descoordenação factual com a consequente distonia, real ou aparente, no interior do complexo da matéria de facto e dos factos relevantes para a decisão.
Nas circunstâncias do caso, a dificuldade toma ainda outra (maior) dimensão perante a relevância das inferências para a determinação e delimitação da capacidade de compreensão do agente sobre os factos e sobre a sua liberdade de determinação.
De todo o modo, e não obstante a dificuldade de coordenação de alguns factos provados com os não provados, importa desconstruir as (meras) aparências de leitura incongruente dos factos que se não apresente patente ou evidente de modo a traduzir contradição.
Com efeito, em matéria de relevância maior no contexto, os factos provados sob os pontos 9 e 10 podem sugerir, na aparência, desconformidade com o facto não provado (ii). Mas, quando se atente na essência das formulações, a incongruência não é evidente; a neutralidade da prova negativa da incapacidade «para ter consciência da prática dos seus actos» é compatível com a prova de «incapacidade para avaliar a ilicitude e as consequências da ilicitude dos [seus] actos», «dada a deficiência mental de que [o recorrente] padece», uma vez que, no rigor, se trata de planos de avaliação diversos.
No que respeita, porém, à relação entre os factos provados descritos nos nºs 28 e 30 e os factos não provados (iii) e (iv), a relação apresenta espaços de confronto.
Há, na verdade, um afastamento lógico e alguma margem de incompatibilidade, que traduz uma contradição, entre a prova de que o recorrente «é pessoa respeitadora e integrada no meio social envolvente», e de que «apesar dos factos em causa» «não [serem] conhecidos fenómenos de rejeição no meio social envolvente» e a circunstância de não estar provado que «a sua restituição e manutenção em liberdade não tenham provocado qualquer alarme social».
A certeza e a não contradição relativamente a estes elementos é relevante, dada a importância que os factos revestem para a determinação da medida e da necessidade da medida a aplicar.
A anulação da certeza sobre factos relevantes para a decisão sobre a questão essencial da determinação da medida a aplicar, acrescenta à contradição a insuficiência da matéria de facto para a decisão, integrando os vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e b) do CPP.

10. O recorrente invoca como fundamento do recurso a violação do artigo 91º do Código Penal, porque a medida de internamento decretada baseou-se «em presunções de carácter genérico abstracto e meramente académico», já que não existem elementos que permitam concluir pela perigosidade do recorrente, e «todos os elementos concretos apontam no sentido da não perigosidade» - conclusões 12ª a 14ª.
Delimitada nestes termos, a questão não se situa, porém, no círculo de intervenção do artigo 91º do Código Penal, mas, ainda, no plano da matéria de facto e da prova, da suficiência da prova e das exigências de demonstração da perigosidade do agente inimputável como pressuposto da aplicação de uma medida de segurança.
No rigor das coisas, ainda no âmbito de conformação de vício da matéria de facto, seja de insuficiência ou de erro notório.
O conceito de perigosidade criminal tem como conteúdo normativo a possibilidade ou a probabilidade de que o autor de um facto típico repita a sua conduta típica e ilícita, pondo em perigo bens jurídicos.
A perigosidade, que acompanha o agente e é, nesta perspectiva, subjectiva, deve manifestar-se em permanência no tempo; por isso que o bem jurídico afectado continua em perigo enquanto durar o estado de perigosidade.
A probabilidade, que tem de resultar de juízos objectivos e relacionais, e que permita afirmar a perigosidade de modo processualmente válido, existe quando se verifique fundado receio de que o agente possa vir a praticar factos da mesma espécie de ilícito típico.
Na apreciação da perigosidade subjectiva – um juízo relacional entre o agente e a inimputabilidade verificada e certos tipos, espécies ou categorias de factos que colocam em perigo bens jurídicos valiosos – o juiz há-se «perscrutar o futuro, projectando a personalidade do agente no horizonte do que ainda não ocorreu, avaliando a eventualidade de poder vir a estar na origem de novos factos ilícitos-típicos» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, “Perigosidade de inimputáveis e ‘in dubio pro reo’”, Studia Iuridica, nº 24, p. 90-91).
Para avaliar da existência ou inexistência de perigo deverá ser formulado um juízo de previsão ou prognose para a medida da probabilidade da ocorrência de um dano, mas que não pode ser apenas subjectivo, mas apoiado em «regras da experiência e em factos comprováveis».
A perigosidade subjectiva do agente tem de ser aferida por um juízo e prognose simples «na intervenção conformadora da noção de probabilidade na definição do perigo subjectivo» (cfr. loc. cit.).
A probabilidade é um conceito que, embora partindo da incerteza de acontecimentos futuros, realiza um juízo de certeza sobre a constante frequência desses mesmos acontecimentos (cfr. Faria Costa, “O Perigo em direito penal”, 1992, p. 480, nota (25)).
A perigosidade subjectiva só pode, pois, ser revelada por meio de um feixe concordante de elementos que permitam a obtenção de uma «verdade provável» ou de uma certeza sobre a probabilidade – a probabilidade da ocorrência (da prática pelo agente) de factos futuros.
O juízo sobre a probabilidade é um juízo de prognose, cuja comprovação final não é possível, mas cuja correcção enquanto juízo ex ante deve ser avaliada face aos dados disponíveis em que se fundamenta no momento em que é formulado; o juízo de prognose deve ser razoável e fundado em sérias razões, certamente pelo cruzamento entre modelos clínicos e estatísticos, circunstâncias individuais do agente e ambientais do meio em que se insere.
Mas, necessariamente, partindo sempre do facto que se revela e explica em função da anomalia psíquica do agente, e indagando, com o auxílio de todos os elementos envolventes, se persiste, e em que condições ou grau de intensidade, a potencialidade para a prática de novos factos.
Deve reconhecer-se, porém, que «o juízo sobre a perigosidade criminal do agente — o juízo sobre a probabilidade de o agente voltar a praticar outros factos que a lei penal considera crime - é, por sua própria natureza, um juízo difícil, pelas margens inevitáveis de incerteza que lhe são conaturais»; «ao facto praticado pelo agente caberá reduzir estas mesmas margens de incerteza», reforçando o «prognóstico de perigosidade», ao comprovar que a anomalia psíquica do agente já o determinou, no passado, à prática de um facto tipificado na lei penal». Mas não lhe cabe qualquer outro papel em que se destaque autonomamente (cfr. Maria João Antunes, “O Passado, o presente e o futuro do internamento de inimputável em razão de anomalia psíquica”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13º, nº 3. p. 347 ss.).
O juízo de prognose sobre a perigosidade não poderá ser exclusiva ou excessivamente intuitivo.
Mas também importa a avaliação sobre os elementos que permitam adequar a defesa da sociedade à potencialidade dos efeitos da perigosidade, como «correctores» ou limites normativos da perigosidade (cfr. Cristina Líbano Monteiro, op. cit. p. 167).
Nesta aspecto, que constitui verdadeiramente a essência do problema da perigosidade do agente inimputável (rectius, da prova jurídico-processual dos elementos da perigosidade normativa) para efeito de aplicação do artigo 91º do Código Penal, os factos relevantes são apenas os que constam da matéria de facto sob os pontos 10 e 11.
Pela verificação revelada pela referência factual, o recorrente «padece» de «deficiência mental» [«deficiência mental moderada», como é referido no ponto 9], e por causa da deficiência «não é capaz de avaliar a ilicitude e as consequências dos seus actos ilícitos», «tendo tendência para a repetição destes mesmos actos».
Esta construção suscita algumas questões no plano da congruência relacional dos factos.
Na verdade, a verificação de que o recorrente «não é capaz de avaliar a ilicitude e as consequências dos seus actos ilícitos» não se coordena, nas relações de congruência lógica, com a afirmação (ponto 7 da matéria da facto) de que «bem sabia» que «ao lançar fogo a uma área coberta de vegetação e localizada próximo de habitações criava perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado e para a vida e integridade física das pessoas que residiam no local», e que «previu como possível» este resultado, «com o qual se conformou».
Além disso, a prova da perigosidade supõe, como se referiu, que se parta do facto e da deficiência da agente para determinar as condições ou o grau de intensidade em que se manifesta a potencialidade para a prática de novos factos.
Porém, em matéria que é verdadeiramente a essência de toda a decisão, a simples afirmação da «tendência» para a repetição juntamente com a afirmação pura de que existe «perigo de que [o recorrente] venha a cometer outros actos da mesma espécie», não permitem, por um lado, confrontar as condições, os elementos e o grau de intensidade da potencialidade para a prática de novos factos, e, por outro, acompanhar, através dos feixes concordantes de elementos de que a tribunal do julgamento se tenha servido, o processo lógico de formação da convicção a este respeito.
Os espaços de confronto na lógica interna de decisão sobre os factos nos segmentos referidos, bem como a ausência, nos factos provados, de suporte bastante para a conclusão sobre a perigosidade normativa, que constitui o pressuposto da aplicação de uma medida de segurança, integram os vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, impondo, nessa parte, o reenvio do processo nos termos do artigo 426º do mesmo diploma.

11. Nestes termos, de acordo com o artigo 426º do Código de Processo Penal, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à questão da perigosidade.

Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Outubro de 2007

Henriques Gaspar (relator)
Soreto de Barros
Santos Monteiro
Santos Cabral , com declaração de voto*
* «Confirmaria a decisão recorrida».