Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
120564/17.2YIPRT.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ASSISTÊNCIA E SALVAÇÃO DE NAVIO
ACIDENTE MARÍTIMO
SEGURADORA
CONTRATO DE SEGURO
SUB-ROGAÇÃO LEGAL
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PRESUNÇÃO DE CULPA
CAPITÃO DE NAVIO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 01/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (MARÍTIMO)
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – O que define a salvação marítima é a noção de “perigo no mar” e a identificação desse perigo, de acordo com o enunciado do art.º 1.º n.º1 al.a) D-L n.º 203/98 de 23 de Julho, remetendo a norma para uma análise casuística, que afasta a salvação marítima quando o tema da acção resulta da colisão ou choque entre dois navios, na origem da prestação de serviços invocada na acção.

II – As consequências do abalroamento entre navios, regulado nos art.ºs 664.º a 675.º do Código Comercial, afastam o regime jurídico especial da salvação marítima.

III – Se a relação contratual que esteve na base da acção, por via da prestação de serviços efectuada a solicitação da Ré segurada, constituiu um contrato a favor de terceiro, verifica-se, quanto à responsabilidade da seguradora, uma situação de sub-rogação legal da Autora/promitente, decorrente da operação de reflutuação do navio, nos termos do disposto no art.º 592.º n.º1 CCiv, sendo a responsabilidade da seguradora decorrente do seguro firmado e da responsabilidade civil do segurado/promissário.

IV – Verifica-se a presunção de culpa na abalroação, do art.º 669.º CCom, face à infracção ao Regulamento Geral das Capitanias, art.º 174.º n.º3, e à obrigação do capitão zelar pelo bom estado de funcionamento do navio e pela ausência de avarias – art.º 6.º al.n) D-L n.º 384/99 de 23/9.

V - Se a Recorrente satisfez a indemnização à proprietária do navio abalroado, assumindo assim perante esta a responsabilidade indemnizatória por força do contrato de seguro celebrado, e mais considerou, perante a segurada, como adequado, determinado preço para a prestação de serviços, inferior ao peticionado na acção, constitui-se em comportamento contraditório relevante e inaceitável, por venire contra factum proprium, modalidade do abuso de direito (art.º 334.º CCiv), quando recusa o direito da Autora, ficando vinculada ao pagamento demonstrado da prestação de serviços.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Notícia Explicativa

Pinguim Sub – Comércio de Material de Mergulho, Soc. Unipessoal, Ld.ª, intentou procedimento de injunção contra Fadáriopesca – Indústria de Pesca, Ld.ª, invocando ser credora da requerida pela quantia de € 42.004,60, acrescida de juros de mora vencidos, no valor de € 2.231,423.

Alegou que, no âmbito da sua actividade, prestou serviços à requerida, contratados por esta, nomeadamente uma operação de mergulho e reflutuação de um navio, seguida da sua remoção para cais, guarda do mesmo durante a estadia no cais, e posterior transporte do mesmo para estaleiro.

Pelos serviços prestados foi emitida e apresentada uma factura no apontado valor de € 42.004,60, com data de vencimento em 04.03.2017, aceite, mas não paga.

A Ré sustentou que a embarcação “A...”, de que ela Ré é proprietária, abalroou a embarcação “M...”, propriedade de Companhia Pescarias do Algarve, e o Capitão do Porto e o representante da D..., perguntaram ao Mestre do “A...” se conhecia equipa apta a colocar um sistema de flutuação ao “M...”, procurando precaver o afundamento total da embarcação embatida também por questões de segurança da navegação na doca.

O representante legal da Ré sugeriu que tal procedimento fosse levado a cabo pela empresa autora, pelo que a equipa de mergulhadores da autora terminou de colocar um sistema que permitiu que o “M...” ficasse a flutuar.

Depois de colocado o “M...” a flutuar, o Capitão do Porto pediu à Ré que indicasse alguém para rebocar aquela embarcação para local mais apropriado, vindo a embarcação a ser rebocada para a rampa dos estaleiros navais de ..., e comunicou o sucedido à sua seguradora, que a instruiu a enviar a factura referente aos serviços da Autora, tendo procedido a esse envio.

Não aceitou a factura apresentada pela Autora.

A sua seguradora prontificou-se a indemnizar a autora em € 29.093,00.

No articulado de oposição, a Ré requereu a intervenção principal da “Mútua dos Pescadores, Mútua de Seguros, CRL”, com quem havia celebrado um contrato de seguro relativo ao navio “A...”.

Concluiu pela absolvição do pedido e pela condenação da “Mútua dos Pescadores, Mútua de Seguros, CRL”.

A Ré/Interveniente Mútua dos Pescadores sustentou, em síntese, que a colisão entre o “A...” e o “M...” não se deveu a dolo ou negligência por parte dos tripulantes do primeiro; que indemnizou a proprietária do “M...” (Companhia de Pescarias do Algarve, S.A.) pelos danos sofridos por esta embarcação ao abrigo da cobertura de responsabilidade civil da apólice de seguro contratada com a Ré, sem ter qualquer obrigação legal ou contratual de o fazer; a Autora foi contratada pela ré, não tendo tido a Mútua dos Pescadores qualquer intervenção nessa escolha ou aprovado previamente os trabalhos ou serviços alegadamente prestados pela autora, que nunca aceitou; informou a Ré Fadáriopesca, Lda que não tinha contratado a autora e que a factura de eventuais serviços que lhe tivessem sido prestados pela Autora deveria ser emitida em nome daquela; a factura emitida pela Autora à Ré Fadáriopesca, Lda nunca foi por si aceite, porque apenas apresentava um valor total sem que fosse possível estabelecer a sua correspondência com os serviços prestados por aquela a esta, tornando impossível comparar esses valores com os valores praticados no mercado para idênticos serviços.

Concluiu pugnando pela improcedência da ação e a pela sua absolvição do pedido.


As Decisões Judiciais

Na sentença proferida na Comarca, foi julgado o pedido formulado na acção parcialmente procedente e condenada a Ré Fadáriopesca - Indústria de Pesca, Ld.ª, a pagar à Autora Pinguim Sub - Comércio de Material de Mergulho, Sociedade Unipessoal, Ld.ª, a quantia de € 42.004,60 (quarenta e dois mil e quatro euros e sessenta cêntimos), acrescida dos respectivos juros de mora, no valor de € 2.231,42 (dois mil e duzentos e trinta e um euros e quarenta e dois cêntimos); mais se decidiu absolver a Interveniente principal, "Mútua dos Pescadores, Mútua de Seguros, CRL", do pedido formulado pela Autora, Pinguim Sub - Comércio de Material de Mergulho, Sociedade Unipessoal, Ld.ª”.

Tendo a Ré Fadáriopesca recorrido de apelação, o acórdão proferido alterou a sentença, julgando a acção procedente e condenando a Ré Fadáriopesca, Lda e a Ré/Interveniente Mútua dos Pescadores, CRL, solidariamente, a pagar à autora a quantia de € 42.004,60 (quarenta e dois mil e quatro euros e sessenta cêntimos), acrescida de juros de mora, no valor de € 2.231,42 (dois mil, duzentos e trinta e um euros e quarenta e dois cêntimos).


Inconformada agora a Ré/Interveniente Mútua dos Pescadores, CRL, recorre a mesma de revista, para o que formula as seguintes conclusões:

1. Ao caso são aplicáveis as regras do regime jurídico da salvação marítima, previsto no DL n.º 203/98, de 10/7.

2. Atenta a matéria de facto julgada provada, a A. praticou actos adequados a remover o perigo de afundamento da embarcação “M...” na doca de pesca de ..., em águas marítimas, tendo exercido uma actividade de salvação marítima, nos termos do art.º 1º, n.º 1, al. a) do referido DL n.º 203/98.

3. A actividade de salvação marítima consta do objecto social da A., que sempre qualificou a sua actuação como sendo de salvação marítima, conforme decorre do requerimento de injunção (a fls..), da folha de obra (ponto 35. dos factos provados) e da factura emitida à R. Fadáriopesca (ponto 61. dos factos provados).

4. Os serviços de salvação marítima podem ou não ser prestados a coberto de um contrato. In casu, os serviços de salvação prestados pela A. não foram prestados ao abrigo de um contrato.

5. Com efeito, dos pontos 17., 18., 19., 20. e 21. dos factos provados não se retira que tivesse existido qualquer declaração negocial por parte da R. Fadáriopesca que, nos termos do art.º 217º do CCiv., de forma expressa ou tácita, manifestasse a existência de vontade de celebrar um contrato de salvação marítima, sendo que um dos elementos essenciais desse contrato é o pagamento de um salário de salvação marítima sobre o qual nada foi dito, não se podendo ter o contrato por celebrado (art.º 232º do CCiv).

6. Ao contrário do referido na douta decisão recorrida, a factura dos serviços prestados pela A. foi emitida e enviada à R. Fadáriopesca apenas em 04.03.2017, ou seja, cerca de 5 meses após a conclusão da prestação dos serviços pela A., não podendo a aceitação desta factura corresponder a qualquer aceitação do pagamento do valor que dela consta, motivo pelo qual a R. nunca procedeu ao seu pagamento.

7. Tendo logrado obter resultado útil com a sua actividade de salvação marítima, a A. (o salvador) tem direito a receber o salário de salvação marítima (art.º 5º, n.º 1), a pagar pelo salvado (o proprietário ou armador da embarcação salva - art.º 1º, n.º 1, al. c)), nos termos do art.º 7º, o qual é fixado de acordo com o art.º 6º, todos do DL n.º 203/98.

8. Todavia, a A. não demandou o salvado na presente acção e a R. Fadáriopesca não é responsável pelo pagamento da remuneração da A., à qual nunca se vinculou, motivo pelo qual deve a acção improceder.

9. Ainda que tivesse sido celebrado um contrato entre A. e R., o regime do contrato de prestação de serviços (art.º 1154º do CCiv.), não é aplicável ao caso, nomeadamente o art.º 1158º do CCiv., porquanto o art.º 1156º do CCiv., que tacitamente para ele remete, exclui da extensão do regime do contrato de mandato as modalidades do contrato de prestação de serviços que a lei regule especialmente, como é o caso do contrato de salvação marítima.

10. Ao assim não ter entendido, o tribunal a quo violou a lei substantiva, nomeadamente os art.ºs 1154º, 1156º e 1158º, 217º e 232º do CCiv. Por erro de aplicação e violou também o art.º 1º, al. a), art.º 5º, art.º 6º, art.º 7º e art.º 8º do DL n.º 203/98 por manifesto erro de determinação das normas aplicáveis ao caso.

11. Caso tivesse sido celebrado um contrato entre a A. e a R. Fadáriopesca, o que não se admite, esse contrato teria de ser um contrato de salvação marítima (art.º 2º, n.º 1 do DL n.º 203/98). Todavia, por não observar a forma escrita exigida pelo art.º 2º, n.º 2 do DL n.º 203/98, tal contrato sempre seria nulo ao abrigo do art.º 220º do CCiv., vício que é insanável e de conhecimento oficioso pelo tribunal, nos termos do art.º 286º do CCiv.; não obstante, por mera cautela de patrocínio, para o caso de se concluir pela existência de um contrato validamente celebrado entre A. e R., hipótese que se admite sem conceder, a Recorrente acrescenta ainda os seguintes fundamentos ao seu recurso:

12. A responsabilidade das RR. apenas pode ser solidária relativamente ao terceiro lesado – a proprietária da “M...” - e não relativamente à A., que nem sequer é titular de qualquer crédito indemnizatório emergente da responsabilidade civil, mas de um crédito emergente de um contrato, tendo a decisão recorrida violado os art.ºs 513º e 497º do CCiv., por erro de interpretação e de aplicação;

13. A remuneração da A. não está coberta pelo contrato de seguro celebrado entre as RR. Não se trata de um dano sofrido por terceiro na acepção da Cláusula 47 das Condições Especiais da apólice, mas antes, na óptica da douta decisão recorrida, de uma prestação contratual que a R. Fadáriopesca não cumpriu. Ora, o contrato de seguro em causa não cobre a responsabilidade contratual da R. Fadáriopesca nem esta poderia reclamar da Recorrente o reembolso de qualquer quantia que tivesse pago à A., o que sequer aconteceu.

14. A discussão sobre se o abalroamento foi fortuito ou culposo apenas releva para a discussão da responsabilidade das RR. perante o lesado (o proprietário da embarcação “M...”) e não assume, portanto, qualquer relevância no que toca à A. e à sua pretensão.

15. Ainda assim sempre se dirá que o abalroamento é fortuito e não culposo pelos motivos expressos no corpo da alegação para a qual se remete. Ao ter entendido diferentemente, a decisão recorrida violou as normas dos art.ºs 664º e 669º do CCom. e o art.º 342º, n.º 1 do CCiv., por erro de interpretação e de aplicação, bem como o art.º 15º, n.º 7 do 384/99, de 23/9, por erro na correcta determinação das normas aplicáveis.

16. Por fim, o conceito de barataria contemplado no art.º 604º §1º do CCom., compreende, à luz da interpretação dada pelo tribunal ad quem, para além dos actos dolosos ou fraudulentos do capitão e da tripulação, também os comportamentos negligentes. Ao ter entendido diferentemente, a decisão recorrida violou a norma legal em causa, por erro de interpretação, sendo de excluir, neste caso, a cobertura do contrato de seguro e, logicamente, a responsabilidade da Recorrente.

Factos Apurados

1. A Autora é uma empresa que se dedica a atividades turísticas, atividades marítimo turísticas e organização de atividades de animação turística, ações de formação relacionadas com atividades desportivas, náutica, aquáticas e subaquáticas; aluguer de artigos e acessórios recreativos, desportivos, técnicos, profissionais, náuticos, embarcações, motores, atrelados, assistência técnica; aluguer, comercialização e manutenção de embarcações com e sem motor; comercialização de material de mergulho, recreativo e profissional; centro e escola de mergulho profissional e amador; comércio de gases; equipamentos, acessórios, analisadores e células de gases; comércio de vestuário e acessórios, calçado, malas, e outros bens similares; comércio de aprestos marítimos produtos alimentícios; corte ultratérmico e soldadura submarina; consultadoria de mergulho; demolição com uso de explosivos; escola de navegação de recreio; equipamentos de som e vídeo terreste e subaquática; equipamentos de comunicação terreste e subaquática; equipamento fotográfico e de filmar terreste e subaquática; informática e acessórios, equipamentos eletrónicos artigos para decoração, utilidades para o lar, artigos desportivos; instrução e fabrico certificado de misturas gasosas, trimix , heliox, nitrox , O2 , hipoxias e hiperoxias para o mergulho amador, técnico e profissional; mergulho profissional; mergulho amador; mergulho técnico; material de pesca desportiva; mecânica naval e atividades auxiliares dos transportes por água; organização e prestação de serviços relacionados com atividades lúdicas, culturais, de lazer, desportivas, náuticas e subaquáticas, nomeadamente, viagens, eventos recreativos de aventura, eventos desportivos, mergulho subaquático, educação física; prestação de serviços de manutenção de artigos e equipamentos recreativos e profissionais, desportivos, náuticos, aquáticos e subaquáticos; peritagem marítima e subaquática; peritagem aos equipamentos de mergulho recreativo, desportivo , técnico e profissional; salvação marítima; socorro naval e marítimo; reboques terrestes e náuticos, reflutuação e transporte de equipamentos e outros navais; resgate aquático, náutico e subaquático; representação, comercialização, importação e exportação, produtos, equipamentos recreativos e profissionais, desportivos, náuticos, aquático e subaquáticos; bem como outdoor.

2. Em 22 de Setembro de 2016, pelas 23 horas e 20 minutos, a embarcação "A..." embateu na embarcação "M...", propriedade de Companhia Pescarias d.....

3. A embarcação “A...” regressava da faina da pesca, e, ao fazer a manobra de acostagem ao cais de combustível da doca de pesca de ..., o comando da embraiagem elétrico não correspondeu à ordem de marcha à ré.

4. O que levou a que o A... fosse embater na ré de estibordo do catamarã denominado “M...”, de casco em fibra de vidro, que aí se encontrava acostado.

5. Não se encontrava ninguém a bordo da embarcação “M...”.

6. O abalroamento deveu-se a uma falha nos comandos da caixa redutora do “A...”, não tendo o sistema propulsor da embarcação engrenado a ré, apesar de acionado o comando para tal.

7. Ao embater no “M...”, o “A...” desviou-se para o largo da doca e o Mestre dirigiu a embarcação para a saída da doca, para evitar mais acidentes.

8. E, em simultâneo, ordenou ao motorista, por meio do intercomunicador, que verificasse o que se passava.

9. O motorista atuou de imediato e conseguiu fazer o "reset" do "MicroCommander", executando a manobra de restabelecer novamente a energia ("reset") do "MicroCommander", e foi desta forma restabelecida a operacionalidade dos comandos da caixa redutora.

10. Após este "reset" foi possível manobrar normalmente a embarcação, pelo que a mesma não chegou a deixar a doca.

11. Em ato contínuo, o "A..." atracou ao "M..." para abraçar este àquele.

12. Esta manobra de "abraço" foi feita mediante cabos de massa e cabos de aço, por parte da tripulação do "A...", para evitar o afundamento total da embarcação embatida, o que foi conseguido.

13. Terminadas de abraçar as duas embarcações, o sócio gerente da Ré, AA, cerca das 23 horas e 42 minutos, telefonou para o seu interlocutor habitual da Mútua Seguradora (delegação em ...) e empregado desta.

14. Pretendia o auxílio da sua seguradora e instruções sobre como proceder, mas aquele, Sr. BB, não atendeu a chamada, feita para o telefone ...72.

15. Voltou a telefonar-lhe pelas 8 horas e 9 minutos da manhã do dia seguinte, sem resposta, e enviou-lhe SMS pelas 8 horas e 15 minutos, tendo, a esta mensagem, aquele respondido de imediato com uma chamada telefónica, pedindo desculpa por não ter ouvido as chamadas anteriores.

16. Os bombeiros não conseguiram bombear a água que havia inundado o flutuador de estibordo da embarcação “M...”.

17. O Capitão do Porto e o representante da D... queriam evitar o afundamento total da embarcação embatida também por questões de segurança da navegação na doca.

18. O proprietário do “M...” e a respetiva seguradora não indicaram quem o fizesse.

19. Um dos representantes legais da Ré contactou a Autora, de modo a que esta interviesse e evitasse o afundamento da embarcação “M...”.

20. A Autora recebeu da Ré Fadáriopesca, Indústria de Pesca, Lda uma chamada para auxílio da embarcação "M...", às 00h20 do dia 23 de setembro de 2016.

21. As duas embarcações ficaram abraçadas para evitar o afundamento total do “M...” até cerca das 16.30 horas de 23 de setembro de 2016.

22. Por esta hora a equipa de mergulhadores da autora terminou de colocar um sistema que permitiu que o “M...” ficasse a flutuar.

23. Esta operação tinha tido início pelas 2 horas de 23 de setembro de 2016.

24. A operação de reflutuação/mergulho teve a duração de cerca de 19h e a mesma incluiu a retirada de aguas residuais de todos os compartimentos da embarcação, limpeza da mesma, realização das respetivas seguranças da embarcação, assistência e orientação dos trabalhos de manutenção realizados aos motores e eletricista naval, formalidades com as autoridades competentes, preparação da embarcação para reboque, tratamento e assistência em todas as vistorias necessárias e exigidas pelas autoridades, transporte da lancha tal como exigido pelas autoridades para assistir e rebocar a embarcação para os estaleiros de ..., inclusive reunião de tripulação credenciada para levar a embarcação sinistrada para o estaleiro.

25. Nesta operação foram também utilizados, constantemente, geradores e bombas submersíveis, que fizeram parte do plano de segurança exigido pela Autoridade Marítima, também para a realização do reboque.

26. Esta embarcação foi removida do cais onde estava atracada aquando do acidente, por haver perigo de se voltar a afundar e causar danos à navegação e à entrada do porto de pesca de ....

27. Por sugestão da Ré veio a embarcação "Ad..." (propriedade de um primo dos sócios da Ré) fazer o reboque, primeiro até à rampa dos estaleiros navais de ..., e, depois, com a preia-mar, e com ajuda dos mergulhadores da Autora, mais para cima, na mesma rampa, para maior segurança.

28. Foi colocada na única rampa existente no porto de ..., para ficar em segurança, sendo esta uma zona semi deserta e onde ocorrem roubos.

29. Por este motivo, a Autora colocou um elemento da sua equipa de serviço permanente de guarda à embarcação sinistrada, 24h sobre 24h.

30. Este serviço de guarda à embarcação pela Autora teve a duração de 12 dias, e teve início em 23.09.2016, sexta feira, cerca das 20h00 da noite, após o término dos trabalhos de reflutuação.

31. O serviço de guarda teve o seu termo no dia 06.10.2016, quinta feira às 8h00 da manhã, aquando da deslocação do reboque/transporte da embarcação de ... para ....

32. O elemento da equipa da Autora que ficou de guarda, de dia também trabalhou na limpeza, manutenção e preparação da embarcação para ser levada para o estaleiro da N... em ... onde seria reparada (por exigência da sua proprietária e sem oposição da interveniente).

33. Existiram 18 deslocações de mais dois elementos da equipa da Autora de ... para ... e de ... para ..., em viatura própria da Autora.

34. No serviço de reboque que foi efetuado de ... para ... estão incluídas todas as despesas, desde deslocações de viaturas e transporte de lancha de ... para ... e de ... para ... e regresso a ..., combustíveis, pessoal, utilização de gruas para colocar e retirar a embarcação da Autora na água.

35. Todos os serviços prestados estão elencados e discriminados na “Folha de Obra Salvação Marítima Sinistro M...”.

36. Pelos serviços prestados foi emitida pela Autora e apresentada à Ré a Fatura n.º ...09, datada de 04.03.2017 e com a mesma data de vencimento, que foi aceite pela Ré.

37. A Ré foi interpelada para efetuar o pagamento do valor faturado, mas nada liquidou à Autora.

38. A Ré dedica-se à indústria da pesca.

39. A Ré é a dona e possuidora da embarcação de pesca denominada "A...", matriculada com o número O-...-C.

40. A Ré contratou seguro de ramo marítimo/casco relativamente a tal embarcação, titulado pela apólice ..., com a Mútua dos Pescadores, até ao limite de 1.200.000,00 euros, que cobre, entre outros, responsabilidade civil por danos patrimoniais causados a terceiros e é regulado pelas condições gerais, cláusulas particulares e condições particulares que constam dos documentos juntos a fls. 62v/81v que se dão por reproduzidos, com início de vigência em 2 de agosto de 2016.

41. A este contrato de seguro respeita a "ata adicional" junta a fls. 82/82v que se dá por reproduzida.

42. A embarcação "A..." foi inspecionada por ordem da Capitania do Porto de O... tendo sido elaborado relatório dessa perícia e respetivas recomendações, datado de 26 de setembro de 2016.

43. A Capitania declarou que a embarcação A... estava em condições de retomar a sua atividade normal.

44. A Ré determinou suspender a sua faina com a embarcação "A..." a partir de 27 de setembro de 2016, o que comunicou à Mútua Seguradora.

45. Permaneceu acostada, para serem observadas todas as recomendações de verificação do sistema de comando e controlo da caixa redutora que figuram no relatório da vistoria ordenada pela Capitania.

46. A Ré decidiu mudar o sistema de comando.

47. A avaria não foi prevista e nem era esperada.

48. A Ré efetuou a participação do acidente à Mútua Seguradora e fez um aditamento a essa participação inicial, com data de 28 de setembro de 2016, nos termos constantes do documento junto a fls. 83/88 e que se dá por reproduzido, em que solicitou também indicações quanto ao modo de proceder para que a autora fosse paga pelos serviços que prestou, diretamente pela seguradora.

49. Por carta datada de 26 de outubro de 2016, a Ré comunicou à sua seguradora que instalou na embarcação segurada novo sistema de comandos, nos termos constantes do documento junto a fls. 88v/ 89 e que se dá por reproduzido.

50. Com data de 9 de novembro de 2016, a Ré expediu uma carta para a sua seguradora, nos termos constantes do documento junto a fls. 89v/ 90v e que se dá por reproduzido, solicitando-lhe instruções sobre como deveria a Autora Pinguim Sub proceder perante a mesma Mútua a fim de ser paga pelos serviços prestados.

51. A Mútua Seguradora não respondeu e, com data de 5 de janeiro de 2017, a Ré enviou-lhe uma carta, nos termos constantes do documento junto a fls. 91 / 92v e que se dá por reproduzido, solicitando que lhe fosse indicado o que estava em falta, para que fosse feito o pagamento aos lesados pelo acidente o mais rápido possível.

52. Por carta datada de 6 de janeiro de 2017, nos termos constantes do documento junto a fls. 93/95v e que se dá por reproduzido, a Ré pediu à Mútua Seguradora que esclarecesse se a afirmação da mesma, via email do dia anterior, de que os serviços (da autora) "devem ser faturados ao armador porque foi este que os solicitou" equivalia a uma rejeição da responsabilidade pelo pagamento dos mesmos.

53. A Mútua Seguradora, em resposta às referidas cartas da Ré, de 5 e 6 de Janeiro de 2017, e à de 9 de Novembro de 2016, respondeu que a factura a emitir pelos lesados deveria ser "endereçada à entidade que contratou o serviço prestado", que "acresce uma razão adicional relativa ao código do IVA", que não havia qualquer desresponsabilização da sua parte e que "a decisão final de regularização deste processo está assim dependente da apresentação da fatura da Pinguim Sub" e das conclusões do processo instaurado pela Autoridade Marítima, nos termos constantes do documento junto a fls. 96 e que se dá por reproduzido.

54. Por carta datada de 1 de Fevereiro de 2017, a Ré enviou à Mútua Seguradora a notificação das referidas conclusões da Autoridade Marítima, que refere ter-se tratado de um acidente, inexistindo negligência da tripulação, nos termos constantes do documento junto a fls. 96v/101 e que se dá por reproduzido.

55. Nessa carta a Ré questionou a Mútua Seguradora se a Pinguim Sub podia emitir a fatura à Mútua dos Pescadores, pedindo indicação sobre o número de contribuinte desta, ou, caso entendesse ser de faturar à Ré, que confirmasse que se responsabilizaria pelo pagamento.

56. Por carta de 7 de fevereiro de 2017, a Mútua comunicou que a fatura da Pinguim Sub deveria ser endereçada à entidade que contratou o serviço prestado, acrescentando que aguardava a fatura da Pinguim Sub para análise e decisão final, nos termos constantes do documento junto a fls. 101v e que se dá por reproduzido.

57. Por carta datada de 13 de fevereiro de 2017, a Ré questionou a Mútua sobre se, partindo do princípio que aceitaria assumir a responsabilidade pelo pagamento à Pinguim Sub (ora autora), a Mútua faria a esta o pagamento diretamente ou se seria outro o procedimento, e qual, nos termos constantes do documento junto a fls. 102/103 e que se dá por reproduzido.

58. Por carta datada de 9 de março de 2017, a Ré enviou à Mútua a certidão do processo da Capitania/Autoridade Marítima, nos termos constantes do documento junto a fls. 103v/108 e que se dá por reproduzido.

59. A Ré foi dando conhecimento ao representante legal da Autora, CC, de todas estas respostas e posições da sua seguradora, quando este o questionava quando a Mútua iria pagar os serviços da autora.

60. O representante legal da autora também manteve contactos o perito da Mútua Seguradora, Eng. DD, tendo enviado a este, a pedido da Mútua, em 28 de outubro de 2016, uma discriminação dos trabalhos e o preço dos mesmos, que coincide com o valor faturado.

61. Por carta de 4 de março de 2017, a Autora enviou à Ré a fatura com a identificação “...” no valor de 42.004,60 euros, que tem escrito, “Equipa de Resgate Salvação Marítima - Mergulho Profissional”, sem IVA, nos termos constantes do documento junto a fls. 108v/109 e que se dá por reproduzido.

62. Por carta datada de 7 de março de 2017 a Ré, frisando fazê-lo de acordo com as instruções da Mútua Seguradora, enviou esta fatura à sua seguradora e pediu que o pagamento fosse feito com a brevidade possível, diretamente para a conta a Autora, cujos detalhes forneceu, nos termos constantes do documento junto a fls. 109v/111 e que se dá por reproduzido.

63. A Mútua, através de EE, enviou um email à Ré acusou a receção da fatura e comunicou que a iria reencaminhar para a peritagem, nos termos constantes do documento junto a fls. 111v/112 e que se dá por reproduzido.

64. A Mútua Seguradora, por carta datada de 26 de maio de 2017, comunicou à Ré que, apesar das insistências do seu perito, a Autora não lhe tinha apresentado justificação de trabalhos que importassem, no total, em 42.004,60 euros, prontificando-se a indemnizar a Ré em 29.093,00 euros e enviando o recibo desta indemnização, nos termos constantes do documento junto a fls. 112v/113 e que se dá por reproduzido.

65. A Mútua Seguradora emitiu recibo de indemnização de 55.383,13 euros à proprietária da embarcação embatida, em virtude de despesas com a reparação dos danos materiais causados à mesma pela colisão.

66. Por carta datada de 22 de junho de 2017, a Ré comunicou à Mútua, sua seguradora, que a Autora lhe comunicara que nenhum perito havia feito qualquer averiguação junto da mesma quanto à extinção ou valor dos trabalhos efetuados, nos termos constantes do documento junto a fls. 113v/115 e que se dá por reproduzido.

67. A Mútua respondeu à ré por carta datada de 20 de julho de 2017, comunicando que indemnizará na totalidade o montante que for acordado entre as partes, ou, na falta de acordo, pelo montante a fixar pelo Tribunal, nos termos constantes do documento junto a fls. 115v e que se dá por reproduzido.

68. Por carta datada de 12 de julho de 2017, a Mútua de Pescadores declarou à ré a agravação do prémio do seguro, atribuindo à carteira de seguros da ré o apelido de “problemática”, nos termos constantes do documento junto a fls. 116 e que se dá por reproduzido.

69. A Autora e a Ré não submeteram à aprovação prévia da Interveniente a contratação da Autora e nem qualquer dos trabalhos ou serviços prestados pela Autora.

70. A embarcação “A...” e a respetiva tripulação procederam a trabalhos de salvação e colaboraram na reflutuação da embarcação “MM....

71. A Interveniente nunca propôs pagar qualquer quantia à Autora.


Factos Não Provados

a) O Capitão do Porto e o representante da D... perguntaram ao Mestre do "A..." se conhecia equipa apta a colocar um sistema de flutuação ao "MM....

b) O representante legal da Ré apenas sugeriu a empresa da Autora.

c) A equipa de mergulhadores profissionais da autora "Pinguim Sub", de ..., foi sugerida pela Ré, a pedido do Capitão do Porto e do representante da D....

d) Depois de colocado o "M..." a flutuar, o Capitão do Porto pediu ainda à Ré que indicasse alguém para rebocar aquela embarcação para local mais apropriado, em vista da segurança da navegação.

e) A Ré requisitou os serviços de reboque para a rampa da doca dos estaleiros navais por ordem do Capitão do Porto.

f) A Ré chamou a Autora a pedido do Capitão do Porto e do representante da D....

g) A Mútua Seguradora aceitou o evento como acidente, coberto pela apólice de seguro acima mencionada.

h) O representante legal da autora também manteve contactos com a Mútua Seguradora.

i) A Ré nunca aceitou pagar os serviços prestados pela Autora destinados a colocar a embarcação "M..." a flutuar, evitando o seu completo afundamento, e de auxiliar a deslocá-la para a rampa dos estaleiros navais e daí para ..., sempre tendo remetido tal pagamento para a Mútua.

j) A Mútua Seguradora, por carta datada de 26 de maio de 2017, prontificou se a indemnizar a Autora em 29.093,00 euros.

k) Não foi efetuado qualquer serviço de reboque da embarcação "M..." pela Autora.

l) A fatura emitida pela Autora à Ré apresentava um valor total sem que fosse possível estabelecer a sua correspondência com os serviços alegadamente prestados pela Autora à Ré, tornando impossível comparar esses valores com os valores praticados no mercado para idênticos serviços.

m) O documento referido em 35 foi remetido à ré Fadáriopesca, Ld.ª.

Conhecendo:



I


Começa por invocar a Recorrente que, vista a matéria de facto provada, a Autora demonstra ter praticado actos de salvação marítima – ao remover o perigo de afundamento da embarcação M... – tendo exercido uma actividade de salvação marítima, definida no art.º 1º n.º 1 al. a) D-L n.º 203/98 de 23/7, e regulada nesse mesmo diploma.

Como resultado da actividade de salvação marítima, a Autora (salvadora) teria direito a receber o respectivo salário de salvação (art.º 6.º D-L n.º 203/98), da responsabilidade do salvado, proprietário da embarcação M....

Pois bem, não foi esse o entendimento das instâncias, que explicitaram que em causa não estava o regime jurídico especial da salvação marítima, mas antes a jusdefinição de abalroamento, regulada nos art.ºs 664.º a 675.º do Código Comercial.

Na verdade, o que define sobre o mais a salvação marítima é a noção de “perigo no mar” e a identificação desse perigo, de acordo com o enunciado do art.º 1.º n.º 1 al. a) D-L n.º 203/98 – neste sentido, M. Januário da Costa Gomes, Estudos em Memória do Prof. Dr. Marques dos Santos, I, pgs. 1068ss., cit. in Ac.S.T.J. 15/1/2009 Col.I/58.

É certo que a norma em causa não fornece conceito preciso de perigo no mar, remetendo para uma análise casuística, mas factos indiciários podem provar a situação de perigo (p.e., os sinais de perigo feitos por um navio) – cf. Ac.S.T.J. 5/6/03 Col.II/98.

Ora, da análise factual, o que se verificou, relevantemente, foi a colisão ou choque entre dois navios, ocorrência essa na origem da prestação de serviços invocada na acção, e ocorrência que, no seu regime legal, engloba as embarcações atracadas (assim, M. Januário da Costa Gomes, Direito Marítimo, IV, 2008, pgs. 151ss. – o art.º 664.º CCom não exige a navegação dos navios).



II


Igualmente não ofereceu dúvidas nas instâncias a existência de uma relação contratual de prestação de serviços, celebrada entre a Autora, enquanto prestadora, e a Ré segurada.

Como se assinalou, e aqui corroboramos, resulta provado que, por solicitação expressa da segurada da ora Recorrente (a também Ré Fadáriopesca, Ld.ª), a Autora executou os trabalhos necessários à manutenção das condições de flutuação do navio M....

O preço dos serviços, fixado por acordo entre a Autora e a Ré Fadáriopesca, foram os peticionados € 42.004,60.

Tais serviços visaram evitar o afundamento e perda total do navio colidido, face à incapacidade dos bombeiros de retirar a água que tinha inundado o flutuador de estibordo (facto 16), tendo a Ré segurada agido também por indicação do Capitão do Porto e da D... – implicaram uma actuação de reflutuação/mergulho, que teve a duração de cerca de 19 horas.

Note-se que é competência da Capitania do Porto ordenar a remoção dos destroços de navio afundado, nos termos do disposto nos art.ºs 1.º e 2.º n.º1 do D-L n.º 64/2005 de 15 de Março, sendo o proprietário e/ou o armador solidariamente responsáveis pelas despesas causadas pela remoção (art.º 9.º n.ºs 1 e 2 D-L n.º64/2005).

Restaria saber se tal preço se encontrava coberto pelo seguro de responsabilidade civil celebrado entre as Rés Fadáriopesca (segurada e proprietária do navio que colidiu com o M...) e a Recorrente seguradora.

Tratava-se de um contrato de seguro que cobria a responsabilidade civil da Fadáriopesca, enquanto proprietária do navio A..., e cobrindo, entre o mais, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, com o limite de € 1 200 000,00, como se colhe das respectivas condições gerais, especiais e particulares, juntas aos autos, contrato esse cuja interpretação, enquanto tal, não vem impugnada.

A demanda da Autora não colhe, a esse nível, quaisquer dúvidas sobre a respectiva legitimidade substantiva, posto que se verifica uma situação de sub-rogação legal da Autora nos direitos da lesada, proprietária do M..., face ao cumprimento pela mesma Autora da obrigação de ressarcimento da proprietária, decorrente da operação de reflutuação do navio, nos termos do disposto no art.º 592.º n.º1 CCiv.

A sub-rogação ocorre quando o sub-rogado que satisfez a obrigação, “por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito”, no caso, do crédito indemnizatório sobre a seguradora.

Quanto à relação contratual que esteve na base da acção, por via da prestação de serviços efectuada a solicitação da Ré segurada constituiu apenas um contrato a favor de terceiro (meio que o promissário, a segurada, utilizou para efectuar uma atribuição patrimonial indirecta em benefício do terceiro, indirecta porque atribuição foi obtida através de prestação do promitente, no caso, a ora Autora – cf., para o conceito, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 2ª ed., pgs. 289ss., e Ac.S.T.J. 21/6/97 Bol.468/393).

Conclui-se assim que a responsabilidade da Ré Fadáriopesca e, por consequência, da seguradora ora Recorrente, não radica originariamente na prestação de serviços acordada com a Ré, mas antes na responsabilidade civil por eventual acto ilícito, inscrito na esfera jurídica dessa mesma Ré.



III


O abalroamento verificado é fortuito ou culposo?

Na verdade, a abalroação por acidente puramente fortuito ou devido a força maior não confere direito a indemnização – art.º 664.º CCom.

O art.º 669.º CCom rege presumir-se a abalroação fortuita, salvo quando não tiverem sido observados os regulamentos gerais de navegação e os especiais do porto – como assim, encontramo-nos perante uma presunção de abalroação fortuita e uma presunção de culpa.

O regime das presunções legais decorre do art.º 350.º CCiv – quem tem a seu favor a presunção escusa de provar o facto a que ela conduz (n.º 1), todavia podendo dar-se a ilisão da presunção mediante prova do contrário, excepto quando a lei o proíba (n.º 2). Desta forma, a parte que beneficia da presunção deve apenas provar o facto base, cumprindo à contraparte fazer a prova do contrário (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 216).

E assim, pela primeira presunção enunciada, à Ré incumbiria apenas a prova do facto base (a abalroação), cabendo à Autora fazer a prova do contrário, v.g., que a abalroação resultou de a Ré não ter observado os regulamentos gerais de navegação e os especiais do porto.

Por força da segunda presunção, tendo a Autora feito a prova que lhe incumbia na primeira presunção, a Ré incumbiria a prova do contrário, i.e., que a abalroação se não ficou a dever a culpa sua.

Tudo visto, sobreleva no disposto no art.º 669.º CCom a presunção de culpa na abalroação (assim, Ac.S.T.J. 27/10/94 Col.III/109 – Miranda Gusmão).

Concretizando, não há dúvida de que o Mestre da embarcação A... se houve em infracção ao Regulamento Geral das Capitanias, que rege que (art.º 174.º n.º3: As embarcações que entrarem em portos nacionais devem estacionar por forma a não prejudicarem a segurança do porto e cumprir as instruções que, para este fim, lhes sejam dadas pela autoridade marítima); além disso, é obrigação do capitão zelar pelo bom estado de funcionamento do navio e pela ausência de avarias – art.º 6.º al. n) D-L n.º 384/99 de 23/9.

Numa manobra de atracação, dotada de especial cuidado, não se concebe a abalroação de um outro navio amarrado e atracado sem que se hajam violado as citadas obrigações legais genéricas de segurança que se impõem ao navio em movimento.

Quanto ao juízo de censura, na culpa, decorrerá da conclusão de que o agente poderia e deveria ter agido de outro modo, que lhe teria sido possível, com o cuidado exigível, a diligência devida ou boa vontade comportar-se em termos convenientes – o grau de diligência relevante é a do homem medianamente sagaz, prudente, avisado e cauteloso (o “bom cidadão”, do art.º 487.º n.º2 CCiv e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª ed., pgs. 451 e 452).

O comandante medianamente sagaz não poderia ter prevenido a avaria?

Pensamos que nada afasta o juízo, em concreto, de que deveria o Mestre da embarcação ter-se certificado previamente, relativamente ao comando da embraiagem, de que obedecia à ordem de marcha à ré, o que aliás se teria obtido de forma aparentemente fácil, com um simples restabelecimento de energia nos comandos.

Aliás, o facto de outros danos terem sido prevenidos pela manobra de saída da doca, mostra que, tivessem as manobras do A... (designadamente, a marcha à ré) sido efectuadas com a antecedência necessária, em face dos demais navios fundeados, teriam sido prevenidos os danos.

Estamos conscientes do teor das conclusões da Autoridade Marítima no sentido de a ocorrência-abalroação ter-se tratado de um acidente, “não se afigurando negligência da tripulação” e que “a colisão se deveu a uma falha no quadro do Micro Commander”; acompanhamos porém o acórdão recorrido nesta matéria – tal facto (falha no quadro) não demonstra que tivessem sido observadas todas as regras de cuidado na abordagem da atracação, nem o dever de manutenção do navio abalroante.

Portanto, os RR. na acção não fizeram prova de que a abalroação se não deveu a culpa do mestre do A..., ficando estabelecida a responsabilidade da Ré/Recorrente, por via de responsabilidade civil extracontratual, em face da Autora.



IV


Nos termos do disposto no art.º 604.º § 1.º CCom, a barataria do capitão institui-se como cláusula de exclusão da responsabilidade do segurador.

A doutrina, em maioria, e a mais recente, engloba no conceito de barataria tanto as faltas graves como as faltas ligeiras, as faltas graves tanto como as faltas meramente culposas.

Também a jurisprudência assim o tem entendido unanimemente, permitindo-nos remeter para as recensões jurisprudenciais constantes do acórdão recorrido (publicado na base de dados oficial, p.º 120564/17.2YIPRT.L1), e outras (e pese embora que os arestos se pronunciam em matéria de danos próprios da embarcação propriedade do segurado, embarcação essa cujos danos sofridos eram abrangidos pelo seguro): S.T.J. 5/1/68, p.º 061978 (Ludovico da Costa); S.T.J. 6/12/74, p.º 065286 (Acácio Carvalho); S.T.J. 7/7/99, p.º 99B557 (Quirino Soares); S.T.J. 27/5/04, p.º 03A2827 (Nuno Cameira); S.T.J. 29/1/08, p.º 07B4805 (Nuno Cameira); S.T.J. 5/1/09, p.º 08B3326 (Serra Baptista).

A este entendimento se opõe Vaz Serra, cit. in Azevedo Matos, Princípios de Direito Marítimo, IV, 1955, pg. 287 (cf. acórdão recorrido), com argumentos relevantes.

Porém, mesmo que optando pelo conceito restrito de “barataria” (abrangendo apenas o comportamento doloso do capitão), nunca se poderia superar o facto de a própria norma do art.º 604.º §1.º CCom, não deixar de ressalvar a possibilidade de convenção em contrário, no seguro, no que a citada norma se vem a traduzir na ausência de carácter imperativo, devendo observar-se sobre o mais, em matéria de seguro, a convenção das partes.

Não se tratando de seguro obrigatório, são as próprias cláusulas gerais do contrato de seguro dos autos que aparentemente afastam os factos cometidos com infracção ou inobservância dos regulamentos gerais de navegação e especiais dos portos que, na economia da decisão recorrida, são demonstrados pelo próprio facto de um navio em movimento de atracação ter abalroado um navio atracado e amarrado.

É certo que não existe uma necessária coincidência entre os dois conceitos, no acórdão recorrido, isto é, considerou-se que “um abalroamento causado por um navio em movimento que vai embater num navio amarrado e sem qualquer tripulação, e devido a avaria no navio abalroante”, não se enquadra na figura do abalroamento fortuito e a presunção do art.º 669.º CCom é de considerar elidida.

Mas constituiria iniludível contradictio in terminis dizer que a culpa se provou positivamente, mas, ao mesmo tempo, desconsiderar a exclusão da garantia do seguro, no caso dos danos ocorridos, directa ou indirectamente, por via de “quaisquer factos resultantes da infracção ou inobservância dos regulamentos gerais de navegação e especiais dos portos, capitanias ou outras autoridades marítimas ou de quaisquer outras disposições legais nacionais e internacionais” (cf. a al.d), do n.º 1, da cláusula 6.ª, das condições gerais do contrato de seguro que responsabiliza a Recorrente).

Há que não esquecer, porém, a prova de dois factos fulcrais:

“64. A Mútua Seguradora, por carta datada de 26 de maio de 2017, comunicou à Ré que, apesar das insistências do seu perito, a Autora não lhe tinha apresentado justificação de trabalhos que importassem, no total, em 42.004,60 euros, prontificando-se a indemnizar a Ré em 29.093,00 euros e enviando o recibo desta indemnização, nos termos constantes do documento junto a fls. 112v/113 e que se dá por reproduzido.”

“65. A Mútua Seguradora emitiu recibo de indemnização de 55.383,13 euros à proprietária da embarcação embatida, em virtude de despesas com a reparação dos danos materiais causados à mesma pela colisão.”

Ou seja: a Recorrente, não apenas satisfez a indemnização à proprietária do M..., pela reparação de danos causados pela colisão ou choque, como inclusivamente, em momento anterior à acção, se prontificou a indemnizar a segurada, quanto ao valor dos trabalhos peticionados nos presentes autos, embora em valor inferior ao valor facturado e exigido nos presentes autos – montante relativamente ao qual, em termos estritos de montante, inexiste polémica.

Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito e Culpa “in Agendo”, 2016, pgs. 141 a 145, refere que o abuso do direito é aplicável ao direito de acção judicial ou, mais latamente, ao exercício de quaisquer posições no processo, e aponta o venire contra factum proprium como uma das vias para o abuso do direito de acção (sendo, aliás, através dos processos em juízo que mais se manifesta a necessidade da proibição do venire).

Assinala Baptista Machado, Obra Dispersa, I, pg. 384, que a ideia subjacente a esta proibição é a da exceptio doli generalis (dolus praesens), incidindo a valoração negativa sobre a conduta presente, servindo a conduta anterior como ponto de referência para, tendo em conta a situação criada, se ajuizar da conduta actual, que assim preencherá um exercício ilegítimo do direito, “quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé” (art.º 334.º CCiv).

De acordo com o Autor, serão três os pressupostos para o desencadeamento dos efeitos deste instituto: (i) haver uma situação objectiva de confiança, devendo a conduta de alguém poder ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura; (ii) haver investimento na confiança, surgindo o conflito de interesses e a necessidade da tutela jurídica quando uma contra parte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que surgirão danos, se tal confiança legítima vier a ser frustrada; (III) haver boa fé da contra parte que confiou, só havendo tutela jurídica se foram tomados cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico.

A confiança digna de tutela terá que radicar numa conduta que, em termos objectivos, independentemente de culpa, mas de forma causal, possa, de facto, ser entendida como uma tomada de posição vinculante a uma dada situação futura.

Todos esses requisitos se objectivam na situação dos autos – a Recorrente satisfez a indemnização à proprietária do navio abalroado, assumindo assim perante esta a responsabilidade indemnizatória por força do contrato de seguro celebrado – e vimos atrás como o valor peticionado se pode radicar, em última análise, tanto no contrato de seguro, como na responsabilidade civil da segurada; mais, a própria Recorrente considerou, perante a segurada, como adequado, determinado preço para a prestação de serviços, inferior ao ora peticionado, é certo, mas chegando até a enviar à segurada recibo por esta indemnização inferior.

Constitui-se assim, em comportamento contraditório relevante e inaceitável quando invoca agora inexistir o direito da Autora, enquanto direito radicado na acidente que lhe foi extrajudicialmente reportado e cujas consequências a Recorrente assumiu, perante a segurada e perante terceiros, no decurso do iter negocial.

Esta qualificação da questão como abuso de direito de acção, apesar de não qualificada assim expressamente nos articulados, bem como nas alegações de apelação, foi objeto de contraditório em toda a sua vertente factual, e à luz do princípio da boa fé, pelo que se não mostra necessário ouvir novamente as partes sobre a matéria, por via do disposto no art.º 3º n.º 3 CPCiv.

A consequência do comportamento da Recorrente em abuso de direito deverá ser o da vinculação aos termos genéricos da indemnização, já anteriormente assumida e satisfeita.

Concluindo:

I – O que define a salvação marítima é a noção de “perigo no mar” e a identificação desse perigo, de acordo com o enunciado do art.º 1.º n.º1 al.a) D-L n.º 203/98 de 23 de Julho, remetendo a norma para uma análise casuística, que afasta a salvação marítima quando o tema da acção resulta da colisão ou choque entre dois navios, na origem da prestação de serviços invocada na acção.

II – As consequências do abalroamento entre navios, regulado nos art.ºs 664.º a 675.º do Código Comercial, afastam o regime jurídico especial da salvação marítima.

III – Se a relação contratual que esteve na base da acção, por via da prestação de serviços efectuada a solicitação da Ré segurada, constituiu um contrato a favor de terceiro, verifica-se, quanto à responsabilidade da seguradora, uma situação de sub-rogação legal da Autora/promitente, decorrente da operação de reflutuação do navio, nos termos do disposto no art.º 592.º n.º1 CCiv, sendo a responsabilidade da seguradora decorrente do seguro firmado e da responsabilidade civil do segurado/promissário.

IV – Verifica-se a presunção de culpa na abalroação, do art.º 669.º CCom, face à infracção ao Regulamento Geral das Capitanias, art.º 174.º n.º3, e à obrigação do capitão zelar pelo bom estado de funcionamento do navio e pela ausência de avarias – art.º 6.º al.n) D-L n.º 384/99 de 23/9.

V - Se a Recorrente satisfez a indemnização à proprietária do navio abalroado, assumindo assim perante esta a responsabilidade indemnizatória por força do contrato de seguro celebrado, e mais considerou, perante a segurada, como adequado, determinado preço para a prestação de serviços, inferior ao peticionado na acção, constitui-se em comportamento contraditório relevante e inaceitável, por venire contra factum proprium, modalidade do abuso de direito (art.º 334.º CCiv), quando recusa o direito da Autora, ficando vinculada ao pagamento demonstrado da prestação de serviços.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.


STJ, 12/1/2021


Vieira e Cunha (relator)                                              

Abrantes Geraldes                           

Manuel Tomé Soares Gomes