Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
313/17.2T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: AÇÃO DE REGRESSO
CONDUÇÃO DE VEÍCULO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES
ALCOOLEMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
CASO JULGADO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
LIMITES DO CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
INDEMNIZAÇÃO
SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
PRESUNÇÕES LEGAIS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA CULPA
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
ILICITUDE
CULPA
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Do disposto no art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21-08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o ato de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em ação de regresso, o ónus da sua ilisão, ainda que não se mostre exigível que a influência da alcoolemia ou do consumo de substância psicotrópica seja a causa exclusiva da conduta causadora do acidente, devendo essa influência ser ponderada, para tais efeitos, à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.

II - Quanto à questão de saber se o facto relativo à condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas constitui objeto da ação principal ou apenas da ação de regresso, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art. 321.º do CPC, a solução não pode ser dada de forma taxativa nem abstrata, mas em função do objeto concreto da dita ação principal.

III - Assim, se o objeto da ação principal tiver por fundamento a condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, imputável ao condutor segurado, como infração causal do acidente, esta infração deverá ser, necessariamente, considerada como parte integrante daquele objeto, como pressuposto que é do próprio direito de indemnização ali peticionado, incumbindo ao autor lesado a sua prova e bastando à seguradora ré, auxiliada pelo interveniente acessória, produzir contraprova tendente a tomar esse facto duvidoso nos termos do art. 346.º do CC.

IV - Nesse caso, a decisão que julgue procedente a dita ação principal com fundamento na prova de tal facto constituirá caso julgado material quanto ao interveniente acessório, de acordo com o disposto no artigo 323.º, n.º 4, do CPC, sem prejuízo de assistir a este interveniente a faculdade de o desqualificar ou restringir na ulterior ação de regresso mediante alegação e prova de qualquer das hipóteses previstas nas als. a) e b) do art. 332.º do mesmo código.

V - Já no caso em que a infração da proibição estatuída no art. 81.º, n.º 1, do CE não venha suscitada como objeto da pretensão deduzida pelo autor lesado, mas em que apenas tenha sido invocada pela ré seguradora em ordem a justificar a viabilidade a ação de regresso para efeitos da admissão do chamamento do condutor segurado, nos termos do art. 322.º, n.º 2, parte final, do CPC, não se poderá considerar essa questão integrada no objeto da ação principal, estando, nessa medida, excluída da discussão do litígio nos termos do art. 321.º, n.º 2, do citado diploma De resto, nem faria sentido que ela fosse discutida nessa ação principal no quadro de uma repartição do ónus probatório completamente alheio ao autor lesado, para mais quando ao interveniente acessório, como parte subordinada da ré seguradora, não seria sequer viável exercer o contraditório em face desta.

VI - Na aferição do alcance da autoridade do caso julgado constituído sobre a decisão proferida na ação principal, para efeitos de determinar a sua repercussão em ulterior ação de regresso, há que ter em linha de conta a definição dos respetivos limites objetivos, nomeadamente quanto aos seus fundamentos, segundo o ditame do art. 621.º do CPC.

VII - Uma tal definição requer que se mostrem suficientemente identificados ou objetivados os fundamentos de facto e de direito em que assentou a decisão prejudicial, pois só assim se poderá aferir a sua repercussão sobre o objeto da ação de regresso dela dependente.

VIII - Na ação de regresso instaurada pela seguradora contra o condutor segurado, fundada em condução sob influência de substâncias psicotrópicas, nos termos definidos na al. c), última parte, do n.º 1 do art. 27.º do DL n.º 291/2007, de 21-08, incumbe à autora alegar e provar que o réu, na qualidade de condutor segurado causador do acidente, acusou consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.

IX - Para tal importa ter presente que, nos termos do atual n.º 5 do art. 81.º do CE, se considera sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do mesmo código e de legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.

X - Assim, diferentemente do que sucede nos casos de alcoolemia em que se encontram legalmente estabelecidos quantitativos em função dos quais se considera verificada a condução sob a influência do álcool (art. 81.º, n.º 2, do CE), no caso de substâncias psicotrópicas a sua influência deverá ser determinada especificamente mediante relatório médico ou pericial, nos termos preconizados no n.º 5 do art. 81.º do CE e estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente nos arts. 13.º, n.os 1 e 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17-05, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria n.º 902-A/2007, de 13-08.

XI - Quando a decisão condenatória proferida na ação principal não contenha um juízo de imputação concretamente determinável do nexo de causalidade entre a evidência do consumo de substância psicotrópica e o ato de condução do segurado que originou o acidente, não permitindo saber em que termos se deve ter por verificado, objetivamente, aquele nexo de causalidade, não se afigura lícito concluir que o ali decidido, sobre esse segmento, possa valer com autoridade de caso julgado como decisão indiscutível em relação ao objeto da ulterior ação de regresso.

Decisão Texto Integral:
 

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. A GENERALI – Companhia de Seguros, S.A. (A.), que sucedera à Companhia de Seguros Generali, S.A., intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA (R.) a pedir que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 238.035,84, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde 31.03.2014, à taxa legal, até efetivo pagamento, a título de direito de regresso, alegando, no essencial, o seguinte:

. A A., no exercício da atividade de seguradora, celebrou com o R. um contrato de seguro do ramo automóvel, tendo por objeto o veículo de matrícula ...-...-MX:

. No dia 29/10/2008, o R., conduzindo esse veículo, deu causa, por culpa sua, a um acidente de viação de que resultou o atropelamento de duas pessoas, provocando danos que a A., no âmbito do contrato de seguro obrigatório, ressarciu.

. O R. conduzia aquele veículo sob a influência de substâncias psicotrópicas, o que condicionou a condução do mesmo, diminuindo os reflexos, visão e perceção do respetivo condutor, necessários para evitar o sinistro.

. Os factos alegados quanto à dinâmica do acidente e à condução sob o efeito de substâncias psicotrópicas, bem como no referente aos danos, foram dados como provados no processo judicial que correu termos sob o n.º 465/11..., tendo a ora A. sido ali condenada a pagar uma indemnização no total de € 234.493,12.

. Por ter suportado tal indemnização devida aos sinistrados, assiste agora à A. o direito de regresso relativamente aos montantes pagos, nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08.

2. R. apresentou contestação, invocando a inexistência de nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de produtos estupefacientes e a ocorrência do acidente e afirmando que desconhecia se a A. procedera ao alegado pagamento.

3. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 225-251, de 02/07/ 2019, a julgar a ação procedente condenado o R. a pagar à A. a quantia de € 238.035,84, acrescida de juros de mora, desde a citação, à taxa legal de 4%.

4.  Inconformado, o R. recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sido proferido o acórdão de fls. 271-293/v.º, de 28/04/2020, a julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida e, em sua substituição, absolvendo o R. do pedido.

5. Desta feita, vem a A. pedir revista, para o que formulou as seguintes conclusões:

1.ª - O recurso interposto é apresentado na firme convicção de que se impunha ao Tribunal “a quo” uma interpretação diferente dos factos dados como provados e, consequentemente, uma decisão diferente da seguida.

2.ª - A primeira discordância respeita à interpretação sobre a intervenção acessória do aqui R. no primitivo processo judicial.

3.ª - Com efeito, no processo judicial n.º 465/11..., foi requerida a intervenção acessória do ora R., porquanto se encontrava alegado pelos ali autores que aquele conduzia o veículo seguro na aqui A. sob a influência de estupefacientes.

4.ª -Porque, a provar-se tal circunstância, assistiria à A. direito de regresso sobre o ora R. nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, foi requerida e admitida a intervenção acessória do aqui R..

5.ª – Sendo certo que o Tribunal “a quo”, neste circunstancialismo, entendeu que o chamado está impedido de, na sua defesa, alegar e provar que não conduzia sob a influência de estupefacientes.

6.ª - A interpretação que o Tribunal “a quo” faz da intervenção do aqui R., no primitivo processo, é muito reduzida e restritiva àquela que, no entender da A., de facto, corresponde ao objeto da sua intervenção.

7.ª - Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 322.º CPC, o juiz deve deferir a intervenção quando, nomeadamente, se convença da viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na causa principal;

8.ª - Ademais, a intervenção do chamado está limitada à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada “ex vi” do n.º 2 do artigo 321.º CPC.

9.ª No caso dos autos, a intervenção só foi admitida, porquanto havia sido alegado que o condutor do veículo seguro conduzia sob a influência de estupefacientes.

10.ª - E que, a provar-se essa circunstância, assistiria direito de regresso sobre o ora R. nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08.

11.ª Donde, nos termos do n.º 2 do artigo 321.º CPC, a intervenção do chamado estava limitada à discussão da questão que tinha repercussão na ação de regresso, ou seja, a condução sob a influência de estupefacientes.

12.ª Dito de outro modo e ao contrário da interpretação dada pelo Tribunal “a quo” a este propósito, se havia questão que se impunha ao chamado discutir e fazer prova era precisamente a condução sob a influência de estupefacientes.

13.ª Nessa medida, podia e devia o R. ter produzido prova que impedisse que resultasse provado que conduzia sob o efeito de estupefacientes, sob pena de, como se veio a verificar, tal facto resultar provado e isso ter os efeitos previstos no n.º 4 do art.º 323.º do CPC.

14.ª – Se assim não fosse, qual o âmbito de intervenção do chamado na ação primitiva, quando nessa mesma ação se discutia se ele conduzia sob a influência de estupefacientes? Ou, se não fosse para auxiliar a R. no primitivo processo judicial quanto à questão de se saber se conduzia sob o efeito de estupefacientes, qual o fundamento para ser admitido a intervir como interveniente acessório provocado?

15.ª - É que os fundamentos do direito de regresso de uma seguradora contra a seu segurado estão limitados às circunstâncias que constam do art.º 27.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, donde, ao ser admitido a intervir na ação primitiva, a sua intervenção estava limitada à discussão daquela questão em concreto.

16.ª Com efeito, a única questão que interessava ao aqui R. discutir e provar naqueles primitivos autos era precisamente que não conduzia sob a influência de estupefacientes.

17.ª - Donde, em incidente de intervenção acessória provocada que tem como fundamento eventual ação de regresso se se provar a condução sob o efeito de estupefacientes, o chamado tem a obriga-ção de, nessa ação, fazer prova de que não conduzia em tais con-dições.

18.ª Sob pena de, se se provar que, de facto, conduzia sob o  efeito de estupefacientes, a sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado nos termos previstos no art.º 332.º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior ação de indemnização (n.º 4 do artigo 323.º CPC).

19.ª – A verdade é que no primitivo processo judicial resultou provado que:

“22. O R. conduzia o MX sob influência de substâncias psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução;

   120. O segurado da R. conduzia sob a influência de substâncias psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução.

   121. A presença de substâncias psicotrópicas no organismo do chamado influenciou a sua condução.”

20.ª – Tais factos, nos termos do n.º 4 do art.º 323.º do CPC, formam caso julgado, donde estava o aqui R. impedido de, nos presentes autos, pretender ver discutida e fazer prova sobre se conduzia ou não sob o efeito de estupefacientes.

21.ª - Na verdade, por força do primitivo processo em que o aqui R, assumiu o papel de interveniente acessório, resultou provado que: i) - o aqui R. conduzia sobre a influência de substâncias psicotrópicas; ii) – a presença de tais substâncias influenciou a sua condução.

22.ª - Por força do efeito do caso julgado (autoridade do caso julgado) tais factos estão já provados em termos definitivos.

23.ª – Não podia, por isso, o R, nos presentes autos, pretender discutir se conduzia ou não sobre a influência de substâncias psicotrópicas e, igualmente, se tais substâncias influenciaram ou não a sua condução, pois que são questões que foram já discutidas no primitivo processo judicial.

24.ª – Por violação do caso julgado (autoridade de caso julgado) o facto 32.º, dado como provado, deverá ser eliminado;

25.ª - A interpretação que o Tribunal “a quo” fez do art.º 27º, n.º 1, al.c), do DL 291/2007 não se mostra conforme com a letra da lei.

26.ª - Desde logo, porque a norma apenas se refere a”acusar o consumo”, quando em relação ao álcool já impõe que a taxa seja superior ao limite legal.

27.ª - Depois, o legislador bem sabia do problema em relação à norma do artigo 19.º, alínea c), do revogado Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, e à questão de não ter qualquer referência a uma qual-quer taxa ou limite legal e, consciente disso, apenas estabeleceu esse limite na taxa de alcoolemia.

28.ª – Pelo que se assim o fez é porque pretendeu estabelecer, precisamente, uma diferença: quanto ao álcool impôs que a taxa seja superior à legalmente admitida, já quanto aos estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, o legislador apenas pretendeu exigir que acusasse o consumo.

29.ª - Donde, a melhor interpretação do art.º 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007 é a de que basta que o condutor tenha dado causa ao acidente e acuse o consumo estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.

30.ª – Bastava, pois, a prova de que condutor havia acusado o consumo de estupefacientes e que não lhe era exigível que alegasse e provasse a existência de um nexo de causalidade entre o consumo de estupefacientes e a produção do acidente,

31.ª – A verdade é que, em face dos factos 22, 26 e 27 dados como provados, encontra-se provada a condução sob o efeito de estupefacientes e o nexo causal de tal condução com a responsabilidade no sinistro, pelo que, por maioria de razão, se encontram preenchidos os requisitos previstos no art.º 27.º, n.º 1, al. c), do Dec.-Lei n.º 291/2007.

32.ª - Tendo-se provado nestes autos as quantias pagas pela A. aos lesados, deveria o pedido ter sido julgado totalmente procedente.

33.ª O acórdão recorrido fez uma incorre interpretação do disposto dos artigos 321.º, n.º 2, 322.º, n.º 2, e 323.º, n.º 4, do CPC e do disposto no art.º 27.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08.

Pede a Recorrente que se revogue o acórdão recorrido e se substitua por decisão que julgue a ação procedente.  

6. O Recorrido apresentou contra-alegações a pugnar pela confirmação do julgado.  


II - Delimitação do objeto de recurso

Dado o teor das conclusões da Recorrente em função do qual se delimita o objeto do recurso, a questão fundamental de direito a resolver consiste em saber se da factualidade provada resulta a verificação do pressuposto do direito de regresso peticionado previsto no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, no respeitante ao facto de o condutor segurado ter acusado, aquando do acidente de viação em referência, consumo de estupefacientes.

Todavia, essa questão fundamental convoca a apreciação das seguintes sub-questões:

a) – Qual o alcance do disposto no indicado normativo, no sentido de saber se ali se prescreve ou não, a favor da seguradora, uma presunção do nexo de causalidade entre o consumo de estupefacientes detetado no causador do acidente e a produção deste;

b) – Se, tratando-se de presunção de causalidade, esta reveste natureza iuris et de iure ou simplesmente iuris tantum, nesta hipótese ilidível pelo segurado e com que amplitude;

c) – Qual o alcance do caso julgado material da decisão proferida no âmbito da ação emergente de acidente de viação instaurada pelo lesado ou seus sucessores legais contra a seguradora, em que o condutor segurado tenha intervindo como parte acessória daquela, no respeitante ao referido nexo de causalidade ali apurado, para efeitos da ulterior ação de regresso contra o mesmo segurado;   

d) – Saber se, para tais efeitos, o consumo de estupefacientes detetado no causador do acidente depende de algum limite quantitativo ou de alguma outra objetivação.


III – Fundamentação   

1. Factualidade dada como provada

Vêm dados como provados pelas instâncias os seguintes factos:

1.1. A Generali – Companhia de Seguros, S.P.A., sucursal em Portugal da Assicurazioni Generali, S.P.A., procedeu ao destaque dos bens afetos ao exercício da atividade seguradora por si exercida, incluindo todos os ativos e passivos e as posições contratuais da Sucursal relacionadas com o exercício da sua atividade em Portugal, designadamente a transferência da totalidade da carteira de seguros da Sucursal para a sociedade GENERALI - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Rua Duque de Palmela n..º 11, 1269-270 LISBOA, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de …, sob o número único de matrícula e Pessoa Coletiva 513 300 260, conforme escritura pública outorgada no dia 02 de Janeiro de 2015, lavrada a fls. cento e treze e ss. do livro de notas para escrituras diversas número trinta e dois–A, do Cartório Notarial da Dra. BB, cuja cópia parcial consta de fls. 15 a 21;

1.2. Foi já promovido o pedido de inscrição a registo comercial dos factos titulados pela escritura pública identificada no ponto precedente e foi também promovido o pedido de inscrição a registo comercial, por forma on-line, do encerramento de representação permanente da Generali – Companhia de Seguros, S.P.A. – Sucursal em Portugal (fls. 23 a 30);

1.3. Por efeito da cessão, a GENERALI - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., sucedeu, na totalidade, nos respetivos direitos e obrigações da Generali Companhia de Seguros, S.P.A.

1.4. No exercício da sua atividade, a A. celebrou um contrato de seguro automóvel com o ora R., titulado pela Apólice n.º ...16, através do qual a responsabilidade civil emergente de sinistros ocorridos com o veículo seguro – veículo de marca ..., modelo ..., com a matrícula ...-...-MX, se encontrava transferida para a A. (fls. 31 a 33);

1.5. No dia 29 de outubro de 2008, pelas 18h00, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional n.º … (EN …), ao Km …, em ..., no concelho de ... e envolveu o veículo MX, conduzido pelo aqui R., e os peões CC e DD;

1.6. Junto ao Km ... existe um cruzamento com a estrada que liga ... a ... e que, à data do sinistro, não tinha semáforos nem passagem assinalada para peões.

1.7. Na zona onde ocorreu o acidente, a estrada apresenta uma reta e a faixa de rodagem tem 10,30 metros de largura, com duas vias de trânsito em cada sentido.

1.8. No referido cruzamento e para o lado direito, atenta a posição dos peões, a reta tem um cumprimento superior a 150 metros.

1.9. A velocidade máxima permitida no local era de 70 km/hora.

1.10. O piso encontrava-se seco e em boas condições de conservação.

1.11. Naquele dia e hora, o MX circulava na EN … no sentido .../....

1.12. No dito cruzamento, caminhavam os peões CC e DD, a atravessar a EN ... da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do MX, puxando à mão um atrelado carregado com palha.

1.13. Quando os peões estavam a terminar a travessia da estrada, encontrando-se já em cima da linha delimitadora da faixa de rodagem, do lado direito, atento o sentido de marcha do MX, surge o dito veículo.

1.14. O qual circulava a uma velocidade não inferior a 116,04 km/hora.

1.15. Ao avistar os peões, o condutor do MX travou, com o intuito de tentar evitar o embate,

1.16. E ao ver que seria impossível imobilizar o veículo antes de chocar com aqueles, desviou o veículo para a direita, de forma a evitar colhê-los.

1.17. Contudo, os dois peões, ao invés de pararem, aumentaram o passo em direção à berma da EN ...,

1.18. Razão pela qual o condutor do MX acabou por colhê-los.

1.19. Tendo embatido com a frente lateral esquerda contra os peões e o atrelado puxado pelos mesmos, levando-os na sua frente.

1.20. O R. iniciou a travagem cerca de 10 metros antes do local do acidente, quando avistou os peões, prolongando-se a mesma por uma extensão de 40 metros, com rastos deixados no pavimento, após o que o veículo galgou o talude da estrada e capotou,

1.21. Imobilizando-se 11,5 metros depois, na hemifaixa de rodagem por onde   seguia, junto à berma direita, depois de percorrer 50,30 metros.

1.22. O R. conduzia o MX sob influência de substâncias psicotrópicas, designa-damente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução;

1.23. No âmbito do processo que correu seus termos sob o n.º 465/11…., Juízo de Grande Instância Cível de ... – J..., da Comarca do ..., foi proferida sentença, transitada em julgado, onde foram considerados como provados (de entre outros) os factos constantes dos artigos 5.º a 22.º e se conclui que a causa do sinistro foi imputável ao R.: (…) a causa deste fatídico e violento acidente foi a conduta negligente e até temerária do condutor do veículo MX, que imprimiu ao seu veículo uma velocidade superior a 116 km/h, conduzindo com os seus reflexos, visão e perceção de distâncias, necessariamente diminuídos em face das substâncias psicotrópicas que havia consumido antes de iniciar a condução, sendo este o único culpado na sua produção” (sentença cuja certidão consta de fls. 132 a 161);

1.24. No âmbito do processo mencionado no artigo anterior, eram autores EE, CC e mulher, FF, herdeiros dos peões intervenientes do acidente e que faleceram em sua consequência, era ré a ora A. e interveniente acessório, AA, aqui R.;           

1.25. Por força do mesmo sinistro correu termos um processo-crime comum (tribunal coletivo) sob o n.º 319/08…, Juiz … da Instância Criminal ... – Comarca.., tendo sido proferido acórdão em 13/04/2010, já transitado em julgado, o qual condenou o condutor do veículo ... ... pela prática de dois crimes de homicídio por negligente, p. e p. artigo 137.º, n.º 1 do C.P.P., na pena de 2 anos e 2 meses de prisão por cada um deles e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos de prisão, com pena suspensa. (facto n.º 119 da sentença constante de fls. 132 a 161).

1.26. Da sentença mencionada em 23.º foram, ainda, dados como provado, os seguintes factos:

120. O segurado da ré conduzia sob a influência de substâncias psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução.

121. A presença de substâncias psicotrópicas no organismo do chamado influenciou a sua condução.”

1.27. Da fundamentação da sentença, consta, para além do mais, o seguinte:

“(…) Resultou provado que o condutor do veículo conduzia sob a influência de substância psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução, substâncias que influenciaram a sua condução.

Conjugando todos o factos provados (e não provados), resulta evidente que a causa primária deste acidente, o facto que foi causal na sua produção, foi a velocidade manifestamente excessiva que o condutor do veículo MX imprimia ao seu veículo, que não lhe permitiu parar no espaço livre e visível à sua frente, vindo a embater nos peões em cima da linha delimitadora da faixa de rodagem, do lado direito, atento o seu sentido de marcha, conjugado com o facto de só tardiamente (…) ter visto os peões, eventualmente em consequência do estado em que se encontrava derivado do consumo prévio de substâncias canabinóides que, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade, afectam a visão, a percepção das distâncias e os reflexos. (…).

   Em face destes factos, conclui-se que a causa deste fatídico e violento acidente foi a conduta negligente e até temerária do condutor do veículo MX, que imprimiu ao seu veículo uma velocidade superior a 116km/h, conduzindo com os seus reflexos, visão e percepção de distâncias, necessariamente diminuídos em face de substâncias psicotrópicas que havia consumido antes de iniciar a condução, sendo este o único culpado na sua produção. (…)”

1.28. Em consequência do sinistro dos autos e da sentença mencionada em 23.º, foi a A. condenada a liquidar quantias num total de € 234.932,15, conforme infra se discrimina:

a) – A EE, a quantia de € 112.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora em dobro da taxa legal, contados desde a notificação da decisão até pagamento; e, ainda, a quantia de € 3.271,85, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora em dobro da taxa legal, contados desde a citação até pagamento;

b) - A CC, a quantia de € 112.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora em dobro da taxa legal, contados desde a notificação da presente decisão até pagamento;

c) - A EE e a CC, a quantia de € 6.660,30, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora em dobro da taxa legal, contados desde a citação até pagamento;

1.29. Quantias que a R. pagou.

1.30. O valor de canabinóides apresentada pelo R., no dia do acidente, foi de 14ng/ml (fls. 39);

1.31. A substância detetada corresponde ao “THC-COOH” (fls. 39);

1.32. A substância detetada e referida no artigo anterior é um “metabolismo” [rectius metabolito] inativo do “THC” cujo período de eliminação pode-se prolongar por vários dias após a exposição/consumo da canábis. Considerando que se trata de um “metabolismo [rectius metabolito] farmacologicamente inativo, ou seja, sem efeito fármaco-lógico, embora presente no sangue, não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução (fls. 222).


2. Do mérito do recurso

2.1. Dos contornos do litígio

Antes de mais, importa reter que estamos no âmbito de uma ação, fundada em direito de regresso, ao abrigo do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), parte final, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, intentada pela A., na qualidade de seguradora para quem se encontrava transferida a responsabilidade civil pela circulação do veículo ligeiro de mercadorias, marca ..., modelo ..., com a matrícula ...-...-MX, contra o R. que, como condutor deste veículo, deu causa ao acidente de viação ocorrido em 29/10/2008, por sua culpa exclusiva, conforme o julgado na ação que correu termos sob o n.º …, por sua vez, instaurada pelos sucessores dos peões falecidos em virtude do atropelamento contra aquela seguradora e em que o mesmo R. interveio como parte acessória daquela.

Na referida ação, a ali ré e aqui A. suscitou a intervenção do condutor, ora R., como parte acessória, com vista a ulterior exercício do direito de regresso, ante a alegação de este, no momento do acidente, conduzir sob influência de substância psicotrópica.

Admitida tal intervenção, o interveniente contestou, invocando a culpa das vítimas na produção do acidente.   

Na sentença ali proferida, em 27/02/2014, reproduzida a fls. 132--160, transitada em julgado em 04/04/2014, foi considerado provado, no aqui essencial e nas demais circunstâncias em que ocorreu o embate, que:

19. No local do acidente a velocidade máxima permitida era de 70 km/hora;

22. [o veículo ligeiro de mercadorias, de marca ..., modelo ..., com a matrícula ...-...-MX] circulava a velocidade não inferior a 116,04 km/hora;

23. Ao avistar os peões, o condutor do MX travou;

 24. E ao ver que seria impossível imobilizar o veículo antes de chocar com aqueles, desviou o veículo para a direita (de forma a evitar colhê-los).

25. O condutor de veículo travou a fundo, na esperança de evitar o embate;

26. Os peões efetuavam a travessia da EN ... no “meio” do cruzamento;

 31 O condutor do veículo ... ... foi embater frontalmente com o lado esquerdo do dito veículo contra os peões (…) e o atrelado puxado pelos mesmos, levando-os à frente;

32. O condutor do ... ... podia ter avistado os peões a cerca de 100/150 metros;

33. O condutor de veículo ... ... havia iniciado a travagem cerca de 10 metros antes do local do acidente, prolongando-se a mesma por uma extensão de 40 metros com rastos deixados no pavimento;

34. Após o que o mencionado veículo galgou o talude da estrada e capotou, vindo a imobilizar-se 11,5 metros depois, na hemifaixa de rodagem por onde o veículo seguia;

35. Após o embate o veículo ... ... imobilizou-se junto à berma direita depois de percorrer 50,30 metros;

   (…)

120. O segurado da R. conduzia sob influência de substâncias psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução.

121. A presença de substâncias psicotrópicas no organismo do chamado influenciou a sua condução.


Da motivação de facto consignada na mesma sentença consta que:

O facto 120 resulta do exame toxicológico de fls. 93 [reproduzido a fls. 39 destes autos] e o facto 121 é de conhecimento geral, baseado em dados científicos, sendo coerente com o facto de o condutor da viatura, que podia ter avistado os peões a cerca de 150 m só ter iniciado a travagem pouco mais de 10 m ante do embate.”

E, já em sede da fundamentação de direito, foi ali considerado o seguinte:

«Resultou provado que o condutor do veículo conduzia sob a influência de substância psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução, substâncias que influenciaram a sua condução.

Conjugando todos o factos provados (e não provados), resulta evidente que a causa primária deste acidente, o facto que foi causal na sua produção, foi a velocidade manifestamente excessiva que o condutor do veículo MX imprimia ao seu veículo, que não lhe permitiu parar no espaço livre e visível à sua frente, vindo a embater nos peões já em cima da linha delimitadora da faixa de rodagem, do lado direito, atento o seu sentido de marcha, conjugado com o facto de só tardiamente (…) ter visto os peões, eventualmente em consequência do estado em que se encontrava derivado do consumo prévio de substâncias canabinóides que, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade, afectam a visão, a percepção das distâncias e os reflexos.

(…)

Em face destes factos, conclui-se que a causa deste fatídico e violento acidente foi a conduta negligente e até temerária do condutor do veículo MX, que imprimiu ao seu veículo uma velocidade superior a 116 km/h, conduzindo com os seus reflexos, visão e percepção de distâncias, necessariamente diminuídos em face de substâncias psico-trópicas que havia consumido antes de iniciar a condução, sendo este o único culpado na sua produção. (…)»


Todo o referido circunstancialismo foi integrado na factualidade dada como provada pelas instâncias na presente ação, mas foi ainda tido como provado o seguinte:

30. O valor de canabinóides apresentada pelo R., no dia do acidente, foi de 14ng/ml (fls. 39);

31. A substância detetada corresponde ao “THC-COOH” (fls. 39);

32. A substância detetada e referida no artigo anterior é um “metabolismo” [rectius metabolito] inativo do “THC” cujo período de eliminação pode-se prolongar por vários dias após a exposição/ consumo da canábis. Considerando que se trata de um metabolismo [rectius metabolito] farmacologicamente inativo, ou seja, sem efeito fármacológico, embora presente no sangue, não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução (fls. 222).

Estes factos tiveram por base os documentos juntos a fls. 39 e 222 conforme o consignado na sentença da 1.ª instância (fls. 234).

 Com efeito, já no decurso da audiência final, foi proferido o despacho consignado na ata de fls. 219 a ordenar a notificação do Dr. GG, do Serviço de Toxicologia Forense do Instituto de Medicina Legal – Delegação do Centro, que subscreveu o relatório de fls. 39, para que esclarecesse se as substâncias encontradas no sangue do R., no dia do acidente, poderiam ter, de uma forma total ou parcial, influenciado a sua condução, quer ao nível da sua capacidade de reação face ao obstáculo com que se deparou quer à condução em geral.

 A resposta a esse pedido específico de esclarecimentos foi, literalmente, a constante do documento de fls. 222 e cujo conteúdo se encontra transcrito no ponto 32 dos factos provados.

Todavia, na 1.ª instância, a este propósito, foi considerado que:

«No caso em apreço a causa principal apontada para a ocorrência do sinistro foi a velocidade excessiva em que o réu circulava, mas também foi dado como provado (artigo 121º dos factos provados da sentença mencionada no artigo 23º dos factos provados) que a condução sob o efeito de substâncias psicotrópicas influenciou a condução do réu, para se concluir, na fundamentação da sentença (mencionada em 23º) que, os reflexos, visão e percepção do réu, ficaram afectados.

Não tendo considerado que a condução com a presença de substâncias pricotrópicas foi a causa principal, considerou-a como concausa do sinistro, como relevante.

Ora, não estando a seguradora onerada com a prova do nexo causal, competiria ao réu, nos termos do artigo 350º, n.º 2 do Código Civil, ilidir a presunção legal.

Sobre esta matéria, apenas temos o facto provado no artigo 32º dos factos provados, nos seguintes termos: “A substância detetada e referida no artigo anterior, é um metabolismo inactivo do “THC” cujo período de eliminação pode-se prolongar por vários dias após a exposição/consumo da canábis. Considerando que se trata de um metabolismo fármacologicamente inactivo, ou seja, sem efeito farmacológico, embora presente no sangue, não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução”.

Não afasta a presunção legal.

Não afasta ainda os efeitos de caso julgado que se formaram em relação ao réu, no âmbito do processo identificado no artigo 23º dos factos provados, em que o réu foi chamado como interveniente acessório.

Relativamente ao interveniente acessório forma-se caso julgado em relação aos factos que foram considerados como provados, de acordo com o disposto no artigo 323º, n.º 3 do CPC, nos termos do qual: “A sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos pelo artigo 332º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização.”

O artigo 332º do CPC, sob a epígrafe “Valor da sentença quanto ao assistente”, estabelece que: “A sentença proferida na causa principal constitui caso julgado em relação ao assistente, que é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido, excepto:

a) - Se alegar e provar, na causa posterior, que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegação ou meios de prova que poderiam influir na decisão final;

b) - Se mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova susceptíveis de influir na decisão final e que o assistido não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave.”

 O ora réu não invocou quaisquer uma das circunstâncias previstas pelas alíneas a) e b) do artigo 332º do CPC.

 Por conseguinte, consideramos que, por um lado, o facto provado no artigo 32º da fundamentação de facto não é suficiente para considerar ilidida a presunção legal prevista pelo artigo 27º, n.º 1 al. c), de que beneficia a autora; por outro lado, o nexo de causalidade foi fixado pela primeira sentença em que o ora réu teve intervenção acessória.

 Funciona, deste modo, inquestionavelmente, neste circunstancialismo, a presunção legal que temos por consagrada no art. 27º, n.º 1, al. c) – dispensando consequentemente a seguradora do ónus probatório do facto a que conduz a presunção.

 Por todo o exposto, concluímos pelo preenchimento dos pressupostos legais do direito de regresso reclamado pela autora.»

 Significa isto que a 1.ª instância desatendeu os factos constantes dos pontos 30 a 32 por considerar que os mesmos não se poderiam licitamente sobrepor ao efeito de autoridade do caso julgado material resultante da decisão proferida na ação primitiva ou principal que correu termos no processo n.º 465/11..., mesmo contra o ali interveniente acessório e aqui R. segurado.

Sucede que tal entendimento não foi sufragado no acórdão recorrido, em primeira linha, com as seguintes considerações:

«Divergimos deste entendimento, pelo que ficou dito supra: o nexo de causalidade não faz parte do objecto da acção que constitui causa prejudicial do direito de regresso.

Razão por que as excepções a que se alude neste artigo se reportam necessariamente ao objecto da acção prejudicial, e não à defesa do chamado contra o aí réu, que nenhuma influência jogava naquela acção.

Por outras palavras, este artigo contempla apenas factos susceptíveis de influenciar a decisão da causa - absolvição ou condenação da seguradora m montante inferior -, nunca podendo contemplar a questão do nexo de causalidade em discussão.

Ora, não podendo o interveniente acessório alargar o âmbito do objecto da acção prejudicial, tem que se admitir que ele discuta a questão do nexo de causalidade em apreciação na acção de regresso, sob pena de se violar o princípio do contraditório.

Em síntese: não ocorre autoridade do caso julgado formado na acção prejudicial que impeça que se dê como provada a matéria constante do ponto 32 do elenco dos factos provados.»

Por fim, foi ainda considerado que:

«No rigor dos princípios poderíamos mesmo questionar que no caso em apreço esteja provado o facto que dá origem à presunção, uma vez que, como se explanou em 3.2, não se deve considerar que qualquer quantidade, por mínima que seja, permita desencadear a presunção de que o acidente ficou a dever-se ao consumo de estupefacientes.

A afirmação de que o condutor conduzia sob influência de estupefacientes é conclusiva, pois necessário se torna demonstrar, em primeiro lugar, o teor do consumo.

Assim, a presunção de que o acidente foi influenciado pelo consumo de estupefacientes deveria ter como base um teste, efetuado nos termos regulamentares, cujo resultado fosse superior a 50 ng/ml, visto estar em causa o consumo de canabinóides.

Estando a questão equacionada em termos de saber se deve reconhecer-se à seguradora direito de regresso sobre o apelante por causa do consumo de estupefacientes, a resposta tem de ser seguramente negativa, considerando-se ilidida a presunção de existência de nexo de causalidade entre o consumo de canabinóides e o acidente.

Com efeito, resulta claramente do ponto 32 da matéria de facto que a substância detectada é um metabolismo inactivo do “THC” cujo período de eliminação pode-se prolongar por vários dias após a exposição/consumo da canábis. Considerando que se trata de um metabolismo farmacologicamente inactivo, ou seja, sem efeito farmacológico, embora presente no sangue, não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução (sublinhado nosso).

Por outras palavras, aquela substância não teve qualquer efeito na produção do acidente.»

Neste quadro, a questão fundamental objeto da presente revista centra-se em torno do alcance do caso julgado material a atribuir à decisão proferida no processo n.º 465/11..., relativamente ao ali interveniente acessório e aqui R., mais precisamente no que respeita ao pressuposto da presente ação de regresso relativo ao facto de o condutor causador do acidente ter então acusado, no momento do acidente, consumo de substância psicotrópica.

Apesar de ser essa a questão fulcral do litígio, não poderá deixar de se equacionar, previamente, o alcance do disposto, quanto a esse particular, no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, bem como das demais disposições legais pertinentes com ele conexionadas.              

2.2. Quanto ao alcance do disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08


Traçando os parâmetros em que as seguradoras, em sede de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, podem exercer direito de regresso contra o condu-tor causador do sinistro, o indicado artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, prescreve o seguinte:

«Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros (…) tem direito de regresso:

 (…)

 c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.»  

 Como é sabido, no âmbito do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, que regulava o “seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, o respetivo artigo 19.º, alínea c), prescrevia que a seguradora tinha direito de regresso “contra o condutor, se ele não estivesse legalmente habilitado ou tivesse agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando houvesse abandonado o sinistrado.”

Durante a vigência desse diploma, surgiu então uma acentuada divergência jurisprudencial quanto a saber a qual das partes, em sede de ação de regresso, incumbia o ónus de provar o nexo de causalidade entre o ato de condução causador do acidente e o efeito do estado de alcoolemia de que o condutor fosse portador.

Tal divergência acabou por ser resolvida por via do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ n.º 6/2002, de 28-05, ao consagrar a seguinte orientação:

A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus de prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

Entretanto, aquele diploma foi revogado e integralmente substituído pelo Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, que, transpondo para a ordenamento nacional a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11-05, relativa ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, veio regular, no essencial, toda essa matéria.

Nas alterações introduzidas inclui-se a constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do novo diploma, acima transcrita, versando apenas sobre os casos de condução com taxa de alcoole-mia superior à legalmente admitida e com evidência de consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, passando a figurar na alínea d) do mesmo normativo os casos em que o condutor causador do acidente não estivesse legalmente habilitado ou quando houvesse abandonado o sinistrado.

 Porém, na decorrência dessa alteração legislativa, continuou ainda a persistir uma linha jurisprudencial no sentido de manter a orientação firmada no AUJ n.º 6/2002, como é exemplo disso, o acórdão do STJ, de 06/07/2011, proferido no processo n.º 129/08.7TBPTL.G1.S1, mas que deixou de ser predominante, mormente na jurisprudência deste Supremo Tribunal, como se pode colher dos seguintes acórdãos do STJ citados no acórdão recorrido: de 08/10/2009, proferido no processo n.º 525/04.9TBSTR.S1; de 28/11/2013, proferido no processo n.º 995/10.6TVPRT.P1.S1; de 09/10/2014, proferido no processo n.º 582/11.1TBSTB.E1.S1; de 06/04/2017, proferido no processo n.º 1658/14.9TBVLG.P1.S1; de 07/02/2017, proferido no processo n.º 29/13.9TJVNF. G1.S1; de 07/03/2019, proferido no processo n.º 248/17.9T8BRG.G1.S2.[1]

 Esta última orientação foi reiterada em recentes acórdãos do STJ, nomeadamente no acórdão de 03/11/2020, proferido no processo n.º 2490/18.6T8PNF.P2.S1, e no acórdão de 10/12/ 2020, proferido no processo n.º 3044/18.2T8PNF.P1.S1.

Assim, a linha hoje largamente maioritária é de que, por via daquela alteração, atendendo ao contexto da precedente divergência jurisprudencial e da uniformização sobre esta firmada, o legislador pretendeu desonerar as seguradoras da prova diabólica do mencionado nexo de causalidade, exigindo a estas tão só a prova dos factos ali configurados.

2.3.  Quanto a saber se o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, consagra uma presunção iuris et de iure ou iuris tantum sobre o nexo de causalidade

Apesar da convergência jurisprudencial a que se tem chegado sobre o sentido da alteração legislativa decorrente do normativo em epígrafe em relação ao precedente artigo 19.º, alínea c) do revogado Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, emergiu uma outra divergência consistente em saber se tal prova a cargo da seguradora constituía numa presunção iuris et de iure do nexo de casualidade entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente, conforme foi entendido, por exemplo, no acórdão do STJ, de 09/10/2014, proferido no processo n.º 582/11.1TBSTBTB.E1.S1, ou se estamos perante uma presunção iuris tantum, que incumbe ao segurado ilidir, nos termos do artigo 350.º do CC, como foi assumido no acórdão do STJ, de 06/04/2017, proferido no processo n.º 1658/14.9TBVLG.P1.S1 e que tem vindo a ganhar terreno na jurisprudência recente deste Supremo Tribunal.   

A este propósito, antes de mais, importa considerar que, em sede de regras especiais de segurança, o artigo 81.º, do Código da Estrada (CE), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 114/94, de 03-05, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 44/2005, de 23-05, em vigor à data do acidente, estabelece, no que aqui releva, o seguinte:

«1. É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.

4. Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exa-me realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.»

E segundo o artigo 146.º do mesmo diploma:

«No exercício da condução, consideram-se muito graves as seguintes contraordenações:

 (…)

 m) – A condução sob influência de substâncias psicotrópicas.»

  Por seu turno, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17-05, consta, no que aqui interessa, tal como se destaca no acórdão recorrido, o seguinte:  

«Artigo 8.º

Substâncias psicotrópicas a avaliar

1. Para efeitos do disposto no artigo 81.º do Código da Estrada, são especialmente avaliadas as seguintes substâncias psicotrópicas:

a) Canabinóides;

Artigo 9.º

Indícios

Para efeitos de aplicação do n.º 1 do artigo 157.º do Código da Estrada, deve ser aprovado um guia orientador de indícios de influência por substâncias psicotrópicas, por despacho normativo do membro do Governo responsável pela saúde.

Artigo 10.º

Exame para detecção de substâncias psicotrópicas

A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.

Artigo 11.º

Exame de rastreio

1 - O exame de rastreio é efectuado através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue e serve apenas para indiciar a presença de substâncias psicotrópicas.

(…)

Artigo 12.º

Exame de confirmação

1 - O exame de confirmação é realizado numa amostra de sangue, após exame de rastreio com resultado positivo.

(…)

5 – Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação.

6 – Quando o resultado do exame de confirmação for positivo, a entidade fiscal-zadora procede ao levantamento de auto de notícia correspondente, a que junta o relatório daquele exame.

Artigo 13.º

Exame médico

1 - Quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste, deve este ser submetido a exame médico para avaliação do estado de influenciação por substâncias psicotrópicas.

(…)

3 - A presença de sintomas de influência por qualquer das substâncias previstas no n.º 1 do artigo 8.º, ou qualquer outra substância psicotrópica que possa influenciar negativamente a capacidade para a condução, atestada pelo médico que realiza o exame, é equiparada para todos os efeitos legais à obtenção de resultado positivo no exame de sangue.»

Em conjugação com tal regulamentação, a Portaria n.º 902-A/2007, de 13-08, fixa os requisitos a que estão sujeitos os analisadores quantitativos, o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises laboratoriais, os procedimentos a aplicar na realização das referidas análises e os tipos de exames médicos a efetuar para deteção dos estados de influenciado por álcool ou por substâncias psicotrópicas, dela constando, também conforme destaque feito no acórdão recorrido, o seguinte:

«CAPÍTULO II

Avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas

Secção I

Exame de rastreio

 14.º Nos exames de rastreio a efectuar, pelas entidades fiscalizadoras, em amostras de saliva, suor ou urina, o agente de autoridade deve utilizar os equipamentos aprovados e usar os procedimentos constantes do despacho de aprovação para cada equipamento.

 15.º Nos exames de rastreio na urina, realizado em estabelecimentos da rede pública de saúde, são utilizados imunoensaios apropriados, tendo em conta as substâncias e concentrações previstas no quadro n.º 2 do anexo v, devendo o agente de autoridade que conduzir o examinando entregar ao médico daquele estabelecimento um impresso do modelo do anexo iv.

 16.º Os exames previstos no número anterior devem ser executados, de acordo com os procedimentos do fabricante ou de validação interna, numa amostra de urina com o volume mínimo de 30 ml, sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo v.

 17.º Nos exames de rastreio no sangue, realizado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., são utilizados imunoensaios apropriados, tendo em conta as substâncias previstas no quadro n.º 1 do anexo v.

 18.º Se o resultado do exame de rastreio previsto no n.º 15.º for negativo, o médico deve:

 a) Preencher, completa e correctamente, o impresso do modelo do anexo iv, colocando a sua vinheta de identificação profissional e o carimbo do estabelecimento no original e no triplicado;

 b) Entregar o original ao agente de autoridade, o duplicado ao examinado e arquivar o triplicado no estabelecimento de saúde.

 19.º Se o resultado do exame referido no número anterior for positivo ou na impossibilidade de realização daquele exame, o médico deve providenciar a obtenção de um volume de sangue venoso destinado a exame de rastreio e confirmação, a realizar no Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P.

   (…)

Secção II

Exame de confirmação

 22.º O exame de confirmação da presença de substâncias psicotrópicas no sangue destina-se a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentaram resultados positivos.

 23.º Considera-se que o exame de confirmação é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo v ou de outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança.

   (…)

Exame médico

25.º No exame médico destinado a avaliar o estado de influenciado por substâncias psicotrópicas referido no n.º 1 do artigo 13.º do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas deve ser observado o seguinte (…)»

E do Anexo V da referida Portaria consta, no quadro 1, a menção das seguintes substâncias do grupo canabinóides a analisar:

9 Tetrahidrocanabinol (THC);

11 - Hidroxi - ∆9 tetrahidrocanabinol (11-OH-THC)

11 – Nor – 9 carboxy-∆9 tetrahidrocanabinol (THCCOOH)      

 E, no quadro 2, relativo os valores de concentração para exame de rastreio na urina, consta quanto ao grupo canabinóides, a concentração de 50 (ng/ml).  

 Ora, no indicado acórdão de 09/10/2014, proferido no processo n.º 582/11.1 TBSTBTB.E1.S1, tal como se transcreve no acórdão recorrido, foi considerado o seguinte:

«A lei presume, pois, iuris et de iure, que um condutor que apresente uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l está sob a influência do álcool.

Assim, os pressupostos cumulativos do direito de regresso previsto no art. 27º n.º 1-c) do DL n.º 291/2007, são a responsabilidade civil subjectiva do condutor responsável e a condução com TAS superior à legalmente permitida, deste facto se inferindo (presumindo) ex vi legis que o condutor está sob a influência do álcool…

(…)

Independentemente dessa influência – que o art. 81º n.º 2 do Cód. Estrada pre-sume absolutamente quando igual ou superior a 0,5g/l – o direito de regresso basta-se agora – para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjectiva e do cumprimento da respectiva obrigação de indemnizar - com uma TAS superior à legalmente permitida.

Deixou de relevar para o direito de regresso a questão de saber se in concreto a impregnação de álcool no sangue do condutor medida pela TAS influenciou ou não a condução em termos de constituir a causa remota da actuação culposa do condutor que fez eclodir o acidente: basta que o condutor acuse, no momento do acidente, uma TAS superior à legalmente admitida, para que, se tiver actuado com culpa – e obviamente se se verificarem os demais requisitos da responsabilidade civil subjectiva – possa ser demandado em acção de regresso pela seguradora que satisfez a indemnização ao lesado.

(…)

Com o art. 27º do DL nº 291/2007, a questão foi simplificada: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializava a influência do álcool na condução e que, como se disse, eram relevantes na vigência do DL nº 522/85 na interpretação do AUJ nº 6/2002.

(….)

A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida, perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre nem poderia cobrir os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve.

E dizemos nem poderia cobrir porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atin-gir um limite superior (art. 81º nº1 e 2 do Cód Estrada e 292º do Cód Penal), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280º nº1 CCivil).

(…)

A concentração de álcool no sangue para além de certo limite implica um agrava-mento do risco de acidentes que, por romper o equilíbrio contratual convencionado na proporção entre o risco (normal) assumido e o prémio estipulado e pago não pode deixar de ser juridicamente relevante, em termos de, sem comprometer a indemnização dos lesados, fazê-la repercutir sobre o condutor que deu causa ao acidente.

O direito de regresso emerge, assim, do contrato de seguro e não de responsabilidade extracontratual.

Assim sendo, podemos concluir, tal como o Ac STJ de 28-11-2013 citado, que o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre o grau de TAS do condutor e o acidente: aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respectivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei.

(…)

O agravamento do risco de acidentes pelo excesso de álcool no sangue do segurado (ou de pessoas cuja responsabilidade civil é garantida pelo contrato de seguro automóvel implica a perda da cobertura do seguro; agravamento do risco reconduz-se ao aumento das chances de ocorrência de um sinistro.

(…)

Ora, a seguradora nem teria que fazer essa prova de que, em caso algum, celebraria um contrato de seguro automóvel que cobrisse os riscos da condução automóvel por condutores etilizados, pois, como se disse, tal contrato de seguro nunca poderia ser celebrado.

Não obstante a falta de cobertura do seguro, a seguradora está obrigada a indemnizar os lesados.

Tal só se compreende por razões de interesse público que se prendem com a necessidade de protecção de terceiros lesados, propósito este bem patente no relatório preambular do DL nº 291/2007.»


Diversamente foi considerado no referido acórdão do STJ, de 06/04/2017, proferido no processo n.º 1658/14.9 TBVLG.P1.S1, tal como também se transcreve no acórdão recorrido, e de que consta o seguinte:

«Quanto a este ponto, não temos dúvida que a dita alteração legislativa (apagando a expressão agido sob influência do álcool e substituindo-a pelo – muito mais objectivado – segmento normativo conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) teve como consequência dispensar efectivamente a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução - e que despoletou o acidente e a dita situação de alcoolemia, envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reactiva do condutor alcoolizado.

O sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 será o de ter vindo estabelecer, afinal, uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada – se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados e inteiramente fiáveis – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350º, nº 1, do CC.

É certo que poderá discutir-se se, no regime actualmente vigente, passou a ser absoluta e totalmente irrelevante a existência de um concreto e efectivo nexo causal entre o estado de alcoolização do condutor, culpado na produção do acidente, e o erro ou falta censurável na condução que integra a respectiva culpa.

Na verdade, afigura-se que a dita presunção legal carece de ser interpretada e aplicada em consonância com os princípios fundamentais da culpa e da proporcionalidade, em termos de não criar uma responsabilização puramente objectivada, cega e absolutamente irremediável do condutor/segurado pelas indemnizações satisfeitas ao lesado, precludindo-se a garantia emergente do contrato de seguro sempre e apenas em função da verificação totalmente objectivada de uma situação de alcoolemia: representando esta preclusão da garantia do seguro a imposição ao condutor/segurado de um ónus gravoso, implicando uma responsabilidade patrimonial pessoal particularmente onerosa, é naturalmente indispensável que esta imposição de uma responsabilização definitiva pelas quantias satisfeitas pela seguradora aos lesados se possa conformar com os referidos princípios fundamentais, não traduzindo a imposição ao condutor de um ónus manifestamente excessivo e desproporcionado.

E, assim sendo, por força dos referidos princípios estruturantes da ordem jurídica, não excluímos, que o condutor/demandado possa alegar e demonstrar na acção de regresso, com vista a ilidir a referida presunção legal:

- como exigência do princípio da culpa - que a situação de alcoolemia, impeditiva do legítimo exercício da condução, lhe não é imputável, por não ter na sua base, por exemplo, um comportamento censurável de ingestão de bebidas alcoólicas na altura da condução do veículo (demonstrando, por exemplo, que tal taxa de alcoolemia está ligada a factor acidental e incontrolável, como reacção imprevisível a determinado medicamento);

- como decorrência do princípio da proporcionalidade - que, apesar da taxa de alcoolemia objectivamente verificada, não ocorreu, no caso, qualquer nexo causal efectivo entre tal situação e o acidente – ilidindo, por esta via a presunção legal segundo a qual qualquer situação de alcoolemia objectivamente proibida funciona como causa efectiva do erro ou falta cometida no exercício da condução: não é, pois, a seguradora que tem de provar, como pressuposto do direito de regresso, a existência de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia verificada e o erro de condução que desencadeou o acidente e o evento danoso, como sucedia no regi-me anteriormente em vigor, mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção legal, perspectivada como presunção juris tantum, nos termos do n.º 2 do art. 350º do CC.»

  Também sobre o problema da causalidade nos casos de alcoolemia, para efeitos do direito de regresso no âmbito do seguro automóvel obrigatório, MAFALDA MIRANDA BARBOSA[2], igualmente citada no acórdão recorrido, escreve o seguinte:

«(…) a seguradora cumprirá o seu ónus probatório ao provar a existência do acidente e a taxa de alcoolémia superior ao permitido por lei. A recondução da lesão dos direitos/interesses àquela esfera de risco assim edificada (por mediação da norma) traduz-se num juízo normativo a levar a cabo pelo próprio tribunal. Para tanto, haverá que ter em conta outras esferas de risco, mas a sua comprovação em concreto não fica dependente da prova que seja oferecida pela seguradora, antes correspondendo a um ónus de contraprova do demandado na ação de regresso.

(…)

Ora, o direito de regresso comunga de uma dupla finalidade: por um lado, ele deve ser visto como um mecanismo de salvaguarda do sentido da responsabilização do lesante, evitando a absoluta socialização do risco; por outro lado, ele deve ser entendido como um instrumento de salvaguarda do equilíbrio contratual que foi quebrado. Se tivermos em conta a primeira finalidade, concluiremos que não há justificação para uma quebra da unidade de critérios de determinação da responsabilidade, donde o esquema imputacional esboçado deve continuar operante. Se tivermos em conta a segunda fina-lidade, podemos considerar que, ao conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida, o condutor não só violou os deveres de segurança no tráfego em relação ao lesado, como chamou a si prejuízo. Quer isto dizer que o juízo imputacional não deve ser substituído pela procura da causa efectiva ou da causa próxima, segundo a posição de alguns autores. Quererá isto significar que, afinal, aderimos à posição que rejeitámos ab initio, chegando, em última instância, à defesa da automaticidade do direito de regresso? O facto de se permitir ao lesante provar que a causa do acidente não foi a taxa de alcoolemia no sangue, por mais complexa que se afigure a prova negativa, leva-nos a responder negativamente a esta interrogação.»


Ora, apesar de a lei não se referir, formalmente, a presunção do nexo de causa-lidade nem a distribuição do ónus de prova sobre o mesmo, o certo é que era essa a questão com que se digladiava a jurisprudência anterior em face da conjugação do disposto no art.º 19.º, alínea d), do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, com a regra geral do artigo 342.º, n.º 1, do CC, que esteve na base da orientação firmada no AUJ n.º 6/2002, o que não é suposto ter sido ignorado pelo legislador  ao editar o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08.

Por isso, à luz do ditame hermenêutico do artigo 9.º, n.º 3, do CC, é de presumir que ali foi consagrada da solução tida por mais avisada e que, a todos os títulos, se afigura ser a de fazer incidir esse ónus probatório sobre o segurado prevaricador.

Poder-se-á, no entanto, questionar se o legislador pretendeu ir mais além de modo a salvaguardar o equilíbrio contratual quebrado pelo condutor segurado, ao desrespeitar as especiais regras de segurança de circulação rodoviária constantes do artigo 81.º do CE, independentemente da concreta conexão da infração de tais regras com a produção do resultado danoso, na linha do sustentado no indicado acórdão do STJ, de 09/10/2014, proferido no processo n.º 582/11. 1TBSTBTB.E1.S1.

Mas mesmo aqui deparamos com uma dificuldade que parece fraturar a coerência do sistema legal.

Com efeito, a solução adotada no referido acórdão de 9/10/2014 parece poder ser compaginável com o preceituado no n.º 2 do artigo 81.º do CE, ao considerar sob influência do álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5g/l ou que seja como tal considerado em relatório médico.

Porém, tal solução já não será adequada para os casos de condução automóvel sob influência de substâncias psicotrópicas, na medida em que a lei, não estabelecendo, como no caso de alcoolemia, limites quantitativos, considera como tal o que for considerado em relatório médico pericial, nos termos preconizados no então n.º 4 (atual n.º 5) do artigo 81.º do CE, dependendo assim de avaliação do  estado de “influenciação”, por substância psicotrópica, na capacidade para a condução, como decorre do artigo 13.º, n.ºs 1 e 3, do  Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17-05.

Abrir-se-ia assim uma dicotomia de soluções no tratamento dos casos de alcoolemia e de condução sob influência de substâncias psicotrópicas previstos no artigo 81.º, n.º 1, do CE, para a qual não se encontra uma justificação ponderosa.

 Não se afigura, pois, que do estatuído nos artigos 81.º, n.ºs 1, 2 e 4 (atual n.º 5), do CE, em conjugação com o preceituado no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, resulte a consagração de uma presunção iuris et de iure do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o ato de condução causador do acidente, para efeitos do direito de regresso.

De resto, admitindo que se trata de uma presunção legal sobre o referido nexo de causalidade, a mesma deverá ser qualificada como presunção iuris tantum, só sendo lícito interpretá-la como presunção iuris et de iure quando tal decorra inequivocamente da lei, o que não parece, de modo algum, ser o caso.

Posto isto, conclui-se, tal como foi entendido, de forma convergente, pelas instâncias, que do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade em referência, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em ação de regresso, o ónus da sua ilisão, ainda que não se mostre exigível que a influência da alcoolemia ou do consumo de substância psicotrópica seja a causa exclusiva da conduta causadora do acidente, devendo essa influência ser ponderada, para tais efeitos, à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação, como judiciosamente se equaciona no acórdão do STJ, de 06/04/2017, proferido no processo n.º 1658/14.9 TBVLG.P1.S1

2.4. Quanto ao alcance do caso julgado formado na primitiva ação em que o condutor segurado tenha intervindo como parte acessória

Do que acima ficou exposto resulta que caberia ao condutor segurado, quando demandado em sede de ulterior ação de regresso, ilidir o nexo de causalidade entre o seu estado de alcoolemia ou de evidência de consumo de substâncias psicotrópicas e o ato de condução causador do resultado danoso.

E não parece sofrer dúvida de que assim seja quando essa matéria não tenha constituído objeto da ação instaurada pelo lesado contra a seguradora, mormente nos casos em que o condutor segurado nem sequer tenha sido chamado àquela ação para intervir como parte acessória da seguradora.

Já quando, nessa ação, tenha sido invocada a infração da proibição de condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, como infração, no todo ou em parte, causal do acidente, incumbirá ao autor dessa ação (o lesado) a prova de tal facto, bastando então à seguradora demandada a mera contraprova tendente a tornar duvidoso esse facto nos termos do artigo 346.º do CC, no que poderá ser auxiliada pelo condutor segurado, na qualidade de interveniente como sua parte acessória.

Nesse quadro, importa saber se o caso julgado formado pela decisão proferida nessa ação, em especial quanto ao juízo de ilicitude e culpabilidade imputado ao condutor causador do acidente, na base da infração da proibição estatuída no artigo 81.º, n.º 1, do CE, como infração causal do acidente, é extensível ao condutor segurado que ali intervenha como parte acessória da seguradora.

Nos termos do artigo 321.º do CPC, a seguradora demandada pelo lesado, quando tenha ação de regresso sobre o condutor segurado causador do acidente, pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sendo que a intervenção deste chamado se circunscreverá à discussão das questões que tenham repercussão a ação de regresso invocada como fundamento desse chama-mento.

Para tanto, a admissão dessa intervenção acessória depende de um juízo preliminar de viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na ação principal, como decorre do artigo 322.º, n.º 2, parte final, do CPC.

Por seu lado, o interveniente acessório beneficia do estatuto de assistente nos termos do disposto no artigo 328.º, com as necessárias adaptações, ex vi do artigo 323.º, n.º 1, do mesmo Código, sendo de salientar que a atividade processual dele, como auxiliar, fica subordinada à parte principal em conformidade com o preceituado no n.º 2 do mencionado art.º 328.º.

E quanto à eficácia do caso julgado da sentença proferida na ação principal, o artigo 323.º, n.º 4, do CPC prescreve que a mesma produz efeitos quanto ao chamado nos termos previstos no artigo 332.º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior ação de indemnização, excetuando-se assim as hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do referido artigo 332.º, mais precisamente quando o interveniente acessório:

a) - Alegar e provar, na causa posterior, que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegações ou de meios de prova que poderiam influir na decisão final;

b) – Mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova suscetíveis de influir na decisão final e que a parte principal não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave.

 A propósito do incidente de intervenção acessória, LOPES DO REGO[3], conforme citação feita no acórdão recorrido, considera que:  

«Na base de tal configuração está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexa com a controvertida - é o de mero auxiliar na defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor pondo-se consequentemente a coberto da ulterior acção de regresso ou de indemnização contra ela movida pelo reu na acção principal.

Considerou-se deste modo, em clara divergência com o regime anteriormente vigente no CPC que quem não é reconhecidamente titular ou contitular da relação material controvertida - mas tão somente sujeito passivo, no confronto do réu, de uma eventual acção de regresso ou de indemnização com aquela conexa - e que em nenhuma circunstância poderá ser condenado caso a acção proceda (ficando tão somente vinculado, em termos reflexos, pelo caso julgado, relativamente a certos pressupostos daquela “acção de regresso” a efectivar em demanda ulterior – não deve ser tratado como parte principal.

 (…).

A fisionomia atribuída a este incidente traduz-se, nesta perspectiva, numa intervenção acessória ou subordinada, suscitada pelo réu, na altura em que deduz a sua defesa, visando colocar o terceiro em condições de o auxiliar na defesa, relativamente às questões que possam ter repercussão na acção de regresso ou indemnização invocada como fundamento do chamamento.»

 Também no tocante ao âmbito da intervenção da parte acessória na discussão, na ação principal, das questões com repercussão na ação de regresso, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[4], observam o seguinte:

«3. Caso se concretize o chamamento do terceiro, o estatuto processual deste é o de auxiliar do réu requerente. Dado que o chamado não é titular da relação jurídica existente entre o autor e o réu, toda a sua intervenção na ação, enquanto auxiliar da defesa, é balizada pelas questões aí discutidas que tenham relevo ou repercussão na putativa ação de regresso (…). Assim, se a ação tiver uma amplitude maior do que a futura ação de regresso, o chamado não pode envolver na discussão o que vá para além da causa de pedir e do pedido sobre que será estruturada a ação de regresso.

4. A ação de regresso que justifica este chamamento não se confunde com a hipótese prevista no art. 317.º, preceito que contém uma regulamentação específica no campo da intervenção principal provocada pelo réu (…), mais precisamente na responsabilidade solidária (…)

5. Para os efeitos do art. 321.º, a ação de regresso deverá ser configurada caso a caso, apurando-se em que medida um juízo desfavorável ao réu no processo em causa poderá dar azo a que este se arrogue credor de outrem, estribando o seu crédito indemnizatório naquilo que fundou a condenação decretada.

(…)

Ao fazer intervir na ação o terceiro contra quem poderá dirigir posteriormente uma pretensão, o réu assegura o efeito de caso julgado que se produzirá também relativamente ao terceiro, nos termos do art. 323.º, n.º 4, e que constituirá um pressuposto definitivo a considerar na futura ação de regresso.»

E ainda relativamente ao âmbito objetivo do caso julgado prescrito no artigo 323.º, n.º 4, do CPC, LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[5] consideram que esse âmbito:

«(…) circunscreve-se (…) no âmbito da causa prejudicial (relativamente ao direito de regresso) constituída pelo primeiro processo: para a ação de indemnização fica em aberto a discussão sobre todos os outros pontos de que dependa o direito de regresso; assentes ficam só os pressupostos desse direito que, por respeitarem à relação jurídica existente entre o autor e o réu, condicionam a relação (dependente) entre este e o chamado.»

Também SALVADOR DA COSTA[6], conforme citação feita no acórdão recorrido, sobre o alcance do caso julgado quanto ao interveniente acessório, observa que:   

«(…) o caso julgado torna indiscutíveis, na ação posterior, no confronto do chamado, os pressupostos concernentes à existência e conteúdo de direito a indemnização da titularidade do autor a exercer posteriormente concernentes à existência e ao conteúdo do direito do autor. Decorrentemente em regra, na nova ação de indemnização em que figure como réu o chamado à intervenção, ele fica vinculado ao conteúdo da referida sentença em termos de prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido e no que concerne às questões de que a ação de regresso dependa.»

Por sua vez, MARIA JOSÉ CAPELO, em artigo publicado na Revista JULGAR n.º 43, Janeiro/Abril de 2021, pp. 95 e segs., dando conta problemática sobre a “delimitação da liberdade de atuação da parte acessória” e da sua repercussão no âmbito do caso julgado (pp. 108-109), designadamente quanto a exceções perentórias em sentido próprio, a dado passo, observa o seguinte:

«Na hipótese de ter sido provocada a sua [da parte acessória] intervenção (para “servir” os interesses do réu, pois este quer tornar indiscutível naquela ação as questões de facto e de direito que serão relevantes na futura ação, em caso de procedência), não há qualquer razão para “diferir” para a ação de regresso aquilo que já é suscetível de ser conhecido nos autos pendentes.

No caso de vedarmos a esta categoria de parte acessória (cuja intervenção foi provocada) a invocação desta categoria de exceções corre-se o risco de, na futura ação indemnizatória pela perda da demanda (desencadeada pelo primitivo réu), se reabrir o debate sobre os mesmos pontos (provando-se a exceção de má gestão do processo por banda do primitivo réu.

Ou seja, “desperdiçando-se” a possibilidade de, no processo (que antecede a ação de regresso), se apreciarem factos impeditivos, modificativos ou extintivos invocados pela parte acessória, que deles tem conhecimento e se quer valer em vista da improcedência da causa.»

À luz de todas estas considerações, afigura-se que a resposta a dar à questão de saber se o facto relativo à condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas constitui objeto da ação principal ou apenas da ação de regresso, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 321.º do CPC, não pode ser taxativa nem abstrata, mas sim em função do objeto concreto da dita ação primitiva ou principal.

Assim, se o objeto dessa ação tiver por fundamento a condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, imputável ao condutor segurado, como infração causal do acidente, esta deverá ser, necessariamente, considerada como parte integrante daquele objeto, como pressuposto que é do próprio direito de indemnização ali peticionado, incumbindo ao autor lesado a sua prova e bastando à seguradora ré, auxiliada pelo interveniente acessória, produzir contraprova tendente a tornar esse facto duvidoso nos termos do artigo 346.º do CC, como já foi acima referido.

Nesse caso, a decisão que ali julgue a ação procedente com fundamento na prova de tal facto constituirá caso julgado material mesmo quanto ao interveniente acessório, de acordo com o disposto no artigo 323.º, n.º 4, do CPC, sem prejuízo de assistir a este interveniente a faculdade de o desqualificar ou restringir na ulterior ação de regresso mediante alegação e prova de qualquer das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do art.º 332.º do mesmo Código.      

Já no caso em que a infração da proibição estatuída no artigo 81.º, n.º 1, do CE não venha suscitada como objeto da pretensão deduzida pelo autor lesado, mas em que apenas tenha sido invocada pela ré seguradora em ordem a justificar a viabilidade a ação de regresso para efeitos da admissão do chamamento do condutor segurado, nos termos do art.º 322.º, n,º 2, parte final, do CPC, não se poderá considerar essa questão integrada no objeto da ação principal, estando, nessa medida, excluída da discussão do litígio nos termos do art.º 321.º, n.º 2, do citado diploma, ficando, como tal relegada para sede de ação de regresso. De resto, nem faria sentido que ela fosse discutida nessa ação principal no quadro de uma repartição do ónus probatório completamente alheio ao autor lesado, para mais quando ao interveniente acessório, como parte subordinada da ré seguradora, não seria sequer viável exercer o contraditório em face desta.

Revertendo agora ao caso dos autos, na ação principal, foi dado como provado que o condutor segurado conduzia sob influência de substâncias psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução, e que a presença de substâncias psicotrópicas no organismo do chamado influenciou a sua condução.

Nessa base, tal infração foi tida como causal do acidente de viação em referência, muito embora em conjugação com a infração estradal, de maior peso, de velocidade excessiva prevista nos artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, alínea f), do CE, concorrendo desse modo para o juízo de ilicitude e de culpabilidade ali imputadas ao condutor segurado, determinando, consequentemente, a procedência da ação.

Em tais circunstâncias, à luz do acima exposto, essa decisão seria de molde a constituir caso julgado material mesmo quanto ao interveniente acessório nos termos do n.º 4 do artigo 323.º do CPC.

Acresce que o mesmo segurado nem sequer invocou, em sede da ação de regresso, qualquer das exceções previstas nas alíneas a) e b) do já citado artigo 332.º, pelo que dai resultaria a autoridade do caso julgado material sobre um tal juízo de ilicitude e de culpabilidade, a prevalecer na presente ação, como foi entendido pela 1.ª instância.

Resta, no entanto, saber qual o alcance em concreto desse caso julgado.   


2.5.  Do alcance concreto do caso julgado relativamente ao R.

Como se concluiu no ponto precedente, o juízo de ilicitude e culpabilidade imputado ao condutor segurado, ora R., em parte baseado na condução sob influência de substância psicotrópica, em que se estribou a decisão de procedência da sobredita ação primitiva instaurada pelos sucessores dos lesados contra a ali ré segurada, aqui A., seria, em princípio, de molde a constituir autoridade de caso julgado material em relação àquele condutor causador do acidente, como questão julgada com alcance de prejudicialidade no âmbito da presente ação de regresso.   

Mas, para tanto, importa ainda saber se essa questão foi ali resolvida com o alcance e de forma a constituir decisão indiscutível que, como tal, tenha de ser respeitada na presente ação, tendo em conta as garantias postuladas pelos princípios do dispositivo e do contraditório.

Em especial, no que aqui mais releva, há que ter em linha de conta a definição dos limites objetivos do caso julgado, nomeadamente quanto aos respetivos fundamentos, segundo o ditame do artigo 621.º do CPC, nos termos do qual a sentença constitui caso julgado material nos precisos termos e limites em que julga. Ou seja, uma tal definição requer que se mostrem suficientemente identificados ou objetivados os fundamentos de facto e de direito em que assentou a dita decisão prejudicial, pois só assim se poderá aferir da sua repercussão sobre o objeto da ação de regresso dela dependente.

Nesta ação de regresso, incumbia à A. alegar e provar, além do mais, que o R., na qualidade de condutor segurado causador do acidente, acusou consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, nos termos definidos na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08.

E para tal importa ter presente que, nos termos do n.º 4 (atual n.º 5) do artigo 81.º do CE, se considera sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos deste Código e legislação complementar, seja como tal considerado me relatório médico ou pericial.  

Assim, diferentemente do que sucede nos casos de alcoolemia em que se encontram legalmente estabelecidos quantitativos em função dos quais se considera verificada a condução sob a influência do álcool (art.º 81.º, n.º 2, do CE), no caso de substâncias psicotrópicas a sua influência deverá ser determinada especificamente mediante relatório médico ou pericial, nos termos preconizados no n.º 4 (atual n.º 5) do CE e estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente no art.º 13.º, n.ºs 1 e 3,  do  Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17-05, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria n.º 902-A/2007, de 13-08, acima transcritos.

Porém, o que se verifica é que os juízos probatórios sobre a influência da substância psicotrópica na condução do condutor segurado, constantes da decisão proferida na ação primitiva não se mostram minimamente objetivados quanto às características e efeitos da substância psico-trópica detetada naquele condutor, aquando do acidente, e identificada no relatório de fls. 39 em termos de concretização da sua influência no ato de condução que deu causa ao acidente de viação em referência.

Como se refere no acórdão recorrido, “a afirmação de que o condutor conduzia sob influência de estupefacientes é conclusiva”, tornando-se necessário demonstrar, em primeiro lugar, o teor do consumo. E ali mais se observa que: “a presunção de que o acidente foi influenciado pelo consumo de estupefacientes deveria ter como base um teste, efetuado nos termos regulamentares, cujo resultado fosse superior a 50 ng/ml, visto estar em causa o consumo de canabinóides.”

Com efeito, tais juízos foram alicerçados na mera consideração de que resultavam do exame toxicológico de fls. 39 e do “conhecimento geral, baseado em dados científicos, sendo coerente com o facto de o condutor da viatura, que podia ter avistado os peões a cerca de 150 m só ter iniciado a travagem pouco mais de 10 m ante do embate”. Mas dessa motivação não consta qualquer referência específica ao tipo de influência que a dita substância tivesse na capacidade ou aptidão física ou psíquica de condução do segurado, não constando também uma tal referência do próprio relatório de fls. 39.

Acresce que, na ação de regresso, provou-se que a substância identificada no referido relatório, detetada no condutor, aquando do acidente, era um metabolito farmacologicamente inativo, ou seja, sem efeito farmacológico, embora presente no sangue, e que não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução.

Além disso, do mesmo relatório consta uma quantificação dessa substância na ordem dos 40 ng/ml, quando do quando 2 do Anexo v da Portaria n.º 902-A/2007, de 13-08, os valores de concentração para exame de rastreio, quanto ao grupo canabinóides, deverá ser de 50 (ng/ml).

Nestas circunstâncias, os referidos juízos probatórios formulados na ação principal apresentam-se desprovidos da objetividade e concretude necessárias para que se possa identificar sequer o tipo de influência da referida substância no ato de condução do R. segurado que originou a produção do acidente.

Por outras palavras, o caso julgado formado pela decisão proferida no processo n.º ... não contém um juízo de imputação concretamente determinável do nexo de causalidade entre a evidência do consumo da substância em referência e o ato de condução do R. segurado que provocou o acidente, não permitindo saber em que termos se deve ter por verificado, objetivamente, aquele nexo de causalidade.

Ademais, uma tal indeterminabilidade não permite tão pouco inferir que o condutor segurado tenha acusado, à data do acidente, consumo de substância psicotrópica com características, propriedades e em quantidade suscetíveis de influir na sua capacidade e aptidão física ou psíquica, e que, como tal, tenha sido considerado em relatório médico ou pericial, nos termos e para os efeitos do n.º 4 (atual n.º 5) do artigo 81.º do CE.

E não se pense que poderíamos estar aqui perante uma mera falta ou ininteli-gibilidade de fundamentação de facto ou de erro de facto notório da sentença proferida na ação principal, entretanto consumido pela ocorrência do respetivo efeito de caso julgado.

Não é o que está aqui em causa. Mais do que isso, o que se verifica é a própria indeterminabilidade do alcance desse caso julgado quanto àquele fundamento delimitador, para os efeitos do artigo 621.º do CPC, mais precisamente no que respeita à influência potenciada pela substância psicotrópica em referência.

Perante tão grave indeterminabilidade, não se afigura lícito concluir que o decidido, nesse segmento, na ação principal possa valer com autoridade de caso julgado como decisão indiscutível prejudicial em relação ao objeto da presente ação de regresso.

Assim sendo, nada obsta a que deva prevalecer o juízo probatório da falta desse nexo de causalidade que o R. logrou demonstrar nesta ação de regresso, tal como foi decidido, neste particular, no acórdão recorrido.  


IV - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que por fundamentação não inteiramente coincidente.

As custas do recurso são da responsabilidade da A.


Lisboa, 25 de março de 2021


Manuel Tomé Soares Gomes

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

Nos termos do artigo 15.º-A do Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, aditado pelo Dec.-Lei n.º 20/20, de 01-05, para os efeitos do disposto no artigo 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com o voto de conformidade das Exm.ªs Juízas-Adjuntas Maria da Graça Trigo e Maria Rosa Tching, que não assinam pelo facto de a sessão de julgamento (virtual) ter decorrido mediante teleconferência.


Lisboa, 25 de março de 2021


O Juiz Relator


Manuel Tomé Soares Gomes

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[1] Todos acessíveis no site da dgsi. – www.dgsi.pt.jstj.
[2] In Cadernos de Direito Privado n.º 50, abril/junho 2015, pgs. 22-45.
[3] In Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, p. 313.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, 2020, p. 394.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 2014, p. 636.
[6] In Os Incidentes da Instância, Almedina, 9.ª Edição, p. 114,