Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
370/13.0TBEPS-A.G1.S1
Nº Convencional: 7º SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
OPOSIÇÃO DO EXECUTADO
RENÚNCIA À HIPOTECA
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
ABUSO DE DIREITO
FORMA LEGAL
INVOCABILIDADE DA NULIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES / HIPOTECA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO – PROCESSO DE EXECUÇÃO / OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 731.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 817.º, N.º4.
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGO 542.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28/2/12 E DE 24/10/13, PROFERIDOS PELO STJ NOS P. 349/06.8TBOAZ.P1.S1 E 1673/07.9TJVNF.P1.S1, RESPECTIVAMENTE.
-DE 11/12/14, PROCESSO N.º 1370/10.8TBPFR.P1.S1:
Sumário :
1. Os efeitos da invalidade do negócio jurídico por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, em casos excepcionais, a ponderar casuisticamente, em que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.

2. Actua em violação grosseira do princípio da boa fé, na vertente da protecção da confiança, o Banco que dá à execução determinado crédito hipotecário, desconsiderando o anterior comportamento de um seu funcionário qualificado, gerente de agência bancária, que:

- pôs em circulação cópia de um documento autenticado que cabalmente autorizava a realização do distrate da hipoteca quanto à fracção adquirida, entregando-o à própria executada, após ter embolsado os cheques visados que era suposto titularem o montante do crédito hipotecário em dívida;

- garantiu cabalmente à executada que o distrate das hipotecas estava plenamente assegurado , ao assumir que tal declaração conteria um lapso material na identificação das fracções objecto da autorização de distrate de hipoteca , omitindo indevidamente a fracção que correspondia à garagem, comprometendo-se a proceder à respectiva correcção e a entregar o original da declaração devidamente rectificado ( e só com este pretexto retendo na sua posse o referido original do documento autenticado de renúncia à hipoteca);

- tal comportamento concludente do representante do Banco criou justificada confiança na executada quanto à inverificação de qualquer obstáculo na efectivação do distrate de ambas as hipotecas – só por isso de tendo realizado a escritura de alienação do imóvel.

3. Neste concreto circunstancialismo, fica vedada ao Banco exequente a invocabilidade do défice formal, decorrente de o executado não dispor do original do documento autenticado que titulava a renúncia à hipoteca e autorizava o respectivo distrate, não podendo consequentemente prosseguir os seus termos a respectiva execução hipotecária.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA deduziu oposição à execução que lhe é movida por “Banco BB, S.A.”, alegando que os imóveis descritos no requerimento executivo foram adquiridos por si, em 27 de Junho de 2005, livres e desembaraçados, sem quaisquer ónus, encargos ou quaisquer limitações, nomeadamente, sem qualquer hipoteca, tendo sido o crédito reclamado pelo exequente completamente expurgado por pagamento da ora oponente. Mais alega que a Exequente deixou que passassem cerca de cinco anos sobre o incumprimento contratual - e que os devedores originários fossem declarados insolventes - para reclamar da oponente o valor alegadamente devido e garantido por hipoteca, pelo que apenas não viu o seu crédito satisfeito pelos devedores originários por manifesta culpa própria, sendo legítima a recusa de cumprimento da oponente. Finalmente, entende que, estando apurado pela Exequente o valor de € 103.785,60 além dos juros moratórios vincendos como o valor devido à mesma, constitui este o valor do dano da oponente (causado pela conduta do exequente), requerendo que seja considerada a compensação deste crédito da oponente com o crédito do exequente, com as devidas e legais consequências.

O exequente respondeu, sustentando que os imóveis não foram transmitidos livres de ónus e encargos, não tendo sido apresentado pelo Banco, na escritura, qualquer termo de cancelamento das hipotecas e que a oponente nunca efectuou qualquer pagamento ao exequente, impugnando a demais matéria alegada.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a oposição à execução totalmente improcedente.



2. Inconformada, apelou a oponente, impugnando, desde logo, a decisão proferida sobre a matéria de facto. Tal impugnação foi considerada improcedente, o que ditou a estabilização do seguinte quadro factual:

a) Servindo-se como título executivo de escritura de compra e venda, mútuo e hipoteca, celebrada em 4/9/2003, o Banco BB, S.A. intentou contra AA a execução comum para pagamento de quantia certa a que estes autos se encontram apensos – cfr. cópia da escritura junta aos autos principais em anexo ao requerimento executivo, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

b) A escritura atrás referida foi celebrada entre o exequente e CC e mulher DD, sendo que o empréstimo concedido no valor de € 90 000,00 destinou-se à compra dos imóveis descritos no ponto n.º 3 do requerimento executivo.

c) O exequente tem definitivamente registadas a seu favor hipotecas sobre os bens imóveis descritos no ponto n.º 3 do requerimento executivo, pela Ap. 18 de 2003/08/08 e Ap. 20 de 2003/08/29 – cfr. certidões de Registo Predial disponíveis com o seguinte código de acesso: PP-0741-02427-030602-002826 e PP-0741-02419-030602-002826, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.

d) Os referidos CC e mulher DD deixaram de liquidar as prestações resultantes do contrato supra aludido em a), tendo sido declarados insolventes, por sentenças proferidas em 07/12/2012, no processo n.º 880/12.7JVNF, e em 20-06-2011, no processo n.º 1895/11.TJVNF, respectivamente – cfr. documentos n.º 4 e 5 juntos em anexo ao requerimento executivo.

e) Através de escritura pública, celebrada em 27 de Junho de 2005, no Cartório Notarial de EE, em Vila Nova de Famalicão, a oponente, representada por FF, declarou comprar e a CC e mulher DD, que declararam vender, os imóveis descritos no ponto n.º 3 do requerimento executivo tendo procedido ao registo desta aquisição na Conservatória de Registo Predial de Esposende (descrição n.º 2826/Apúlia – Ap. 11 de 2006/07/13) – cfr. certidão da escritura junta a fls. 49-60 e certidões de Registo Predial atrás referidas, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.

f) Na escritura referida em e) consta como tendo sido declarado pelos primeiros outorgantes, CC e mulher DD, entre o mais, que: "sobre os bens ora vendidos incide uma hipoteca, registada pelas inscrições C-um e C-três, respectivamente, hipotecas essas a favor do Banco GG, S.A.., cujo cancelamento se encontra assegurado."

g) Em 04 de Março de 2005, HH, enviou um fax dirigido ao Banco GG - Barcelos - A/C de II, no qual comunicava a data em que a escritura se realizaria – cfr. fls. 61/62, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

h) Em 27 de Junho de 2005, HH remeteu um fax dirigido ao Banco GG – A/C de JJ, com o seguinte teor: "Conforme conversa telefónica, em anexo somos a remeter cópia das descrições e inscrições das fracções "L" e 1/16 avos da fracção "A", de que é proprietário o n/comum cliente CC, a fim de ser corrigido o respectivo "título de distrate", o que agradecemos com a maior brevidade possível." – cfr. documento de fls. 63 e ss., cujo teor se dá aqui por reproduzido.

i) Servindo-se como título executivo de escritura de compra e venda, mútuo e hipoteca, celebrada em 4/9/2003, o Banco BB, S.A. intentou contra AA a execução comum para pagamento de quantia certa a que estes autos se encontram apensos – cfr. cópia da escritura junta aos autos principais em anexo ao requerimento executivo, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

j) A escritura atrás referida foi celebrada entre o exequente e CC e mulher DD, sendo que o empréstimo concedido no valor de € 90 000,00 destinou-se à compra dos imóveis descritos no ponto n.º 3 do requerimento executivo.

k) O exequente tem definitivamente registadas a seu favor hipotecas sobre os bens imóveis descritos no ponto n.º 3 do requerimento executivo, pela Ap. 18 de 2003/08/08 e Ap. 20 de 2003/08/29 – cfr. certidões de Registo Predial disponíveis com o seguinte código de acesso: PP-0741-02427-030602-002826 e PP-0741-02419-030602-002826, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.

l) Os referidos CC e mulher DD deixaram de liquidar as prestações resultantes do contrato supra aludido em a), tendo sido declarados insolventes, por sentenças proferidas em 07/12/2012, no processo n.º 880/12.7JVNF, e em 20-06-2011, no processo n.º 1895/11.TJVNF, respectivamente – cfr. documentos n.º 4 e 5 juntos em anexo ao requerimento executivo.

m) Através de escritura pública, celebrada em 27 de Junho de 2005, no Cartório Notarial de EE, em Vila Nova de Famalicão, a oponente, representada por FF, declarou comprar e a CC e mulher DD, que declararam vender, os imóveis descritos no ponto n.º 3 do requerimento executivo tendo procedido ao registo desta aquisição na Conservatória de Registo Predial de Esposende (descrição n.º 2826/Apúlia – Ap. 11 de 2006/07/13) – cfr. certidão da escritura junta a fls. 49-60 e certidões de Registo Predial atrás referidas, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.

n) Na escritura referida em e) consta como tendo sido declarado pelos primeiros outorgantes, CC e mulher DD, entre o mais, que: "sobre os bens ora vendidos incide uma hipoteca, registada pelas inscrições C-um e C-três, respectivamente, hipotecas essas a favor do Banco GG, S.A.., cujo cancelamento se encontra assegurado."

o) Em 04 de Março de 2005, HH, enviou um fax dirigido ao Banco GG - Barcelos - A/C de II, no qual comunicava a data em que a escritura se realizaria – cfr. fls. 61/62, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

p) Em 27 de Junho de 2005, HH remeteu um fax dirigido ao Banco GG – A/C de JJ, com o seguinte teor: "Conforme conversa telefónica, em anexo somos a remeter cópia das descrições e inscrições das fracções "L" e 1/16 avos da fracção "A", de que é proprietário o n/comum cliente CC, a fim de ser corrigido o respectivo "título de distrate", o que agradecemos com a maior brevidade possível." – cfr. documento de fls. 63 e ss., cujo teor se dá aqui por reproduzido.

q) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na alínea e), compareceram CC e mulher DD, FF, em representação da oponente, KK, então gerente na agência de Barcelos do banco Exequente, em representação deste e fazendo-se acompanhar do original do documento intitulado "Declaração" junto a fls. 8, e HH, mediador imobiliário e amigo dos vendedores.

r) Nessa altura foram examinados os documentos relativos aos imóveis que seriam objecto da escritura de compra e venda, nomeadamente a declaração de distrate das hipotecas que incidiam sobre os mesmos e os cheques visados que titulavam a quantia correspondente a parte do preço pela sua aquisição.

s) Parte do pagamento correspondente ao preço da compra e venda acordada encontrava-se titulado por cheques visados, por exigência da titular da garantia hipotecária, a aqui Exequente.

t) Acontece que a declaração de distrate das hipotecas que incidiam sobre os imóveis e que foi apresentada pelo referido representante da Exequente, apenas referia o distrate sobre a referida fracção L, sendo omissa quanto à parte da fracção A que iria ser adquirida pela Oponente.

u) Apercebendo-se dessa desconformidade, logo o referido representante da Exequente declarou que a declaração de distrate da Exequente abrangia também a parte de 16/500 da fracção A do referido prédio urbano, reconhecendo esse erro/omissão constante da declaração.

v) E, comprometeu-se a proceder à respectiva correcção e a entregar declaração devidamente rectificada à Oponente.

w) Nesse pressuposto e apenas nessa condição, o representante da oponente acedeu a entregar os cheques visados com os números 00…, datado de 23/3/2005, no valor de € 39 000,00, e 78…, datado de 18/3/2005, no valor de € 16 000,00, que titulavam parte do preço acordado pela compra dos referidos imóveis, ao representante do banco exequente.

x) Recebidos os cheques visados, o referido representante da Exequente entregou ao representante da Oponente, a seu pedido, cópia da declaração junta a fls. 8 ficando na posse daquele o original que seria posteriormente rectificado.

y) De seguida, mas ainda e apenas no pressuposto que os imóveis se encontravam livres e desembaraçados de quaisquer ónus, já que foi garantido pelo representante do banco exequente ali presente que o distrate das hipotecas estava assegurado, foi celebrada a escritura pública supra referida na alínea e).

z) Uma vez realizada a escritura aludida na alínea e), o original da declaração de distrate (documento junto a fls. 8) ficou na posse do representante do exequente pois segundo o mesmo seria necessário para a elaboração da nova declaração abrangendo os dois prédios.

aa) Nem o representante da Exequente, nem ela própria, não mais entregaram a declaração de distrate à Oponente.

bb) Apesar de por diversas vezes ser interpelada pela Oponente e por seus representantes.

cc) O exequente recusa-se a emitir a declaração de distrate relativa à hipoteca que incide sobre a parte da fracção A que foi comprada pela oponente.

dd) O cheque visado n.º 00… entregue pelo representante da oponente ao representante do exequente foi depositado em conta no dia 28/6/2005 e o cheque n.º 78…, entregue nas mesmas condições, foi pago em 28/6/2005.

ee) A escritura da alínea e) apenas se concluiu porque a Exequente, por intermédio do seu representante, exibiu à Oponente a declaração de distrate da hipoteca junta a fls. 8 e declarou à mesma que tal distrate também abrangia a parte da fracção A adquirida aos referidos vendedores.

ff) À data da celebração da escritura aludida na al. e) os vendedores tinham diversos bens.

gg) O cliente do exequente, o Sr. CC, anterior proprietário do imóvel, solicitou ao exequente a emissão de um termo de cancelamento de hipoteca que garantia o empréstimo contratado com o exequente com o argumento de ter vendido uma das fracções hipotecadas e que a respectiva escritura teria lugar num Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão.

hh) Em data que não foi possível apurar, o exequente foi contactado por um representante da oponente que solicitou uma segunda via do termo de cancelamento.



3. Passando a apreciar as questões jurídicas subjacentes ao litígio, a Relação, no acórdão recorrido, julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e decretando procedente a oposição, absolvendo a executada do pedido que contra ela é formulado na execução – e condenando o exequente, como litigante de má fé, em multa de 10 UC e no pagamento à executada de uma indemnização.

Tal decisão assentou nos seguintes fundamentos:


Conforme resulta do que já se disse no despacho proferido pelo relator no âmbito do disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, importa averiguar, antes do mais, se o exequente actua com abuso do direito.

Para este efeito ter-se-á, naturalmente, presente a realidade dada como provada, da qual se destaca que:

- o então gerente na agência de Barcelos do banco Exequente, em representação deste e fez-se acompanhar do original do documento intitulado "Declaração" junto a fls. 8;

- foram examinados vários documentos, nomeadamente a declaração de distrate das hipotecas que incidiam sobre as fracções e os cheques visados que titulavam a quantia correspondente a parte do preço pela sua aquisição;

- parte do pagamento correspondente ao preço da compra e venda acordada encontrava-se titulado por cheques visados, por exigência da titular da garantia hipotecária, o aqui Exequente;

- a declaração de distrate das hipotecas que incidiam sobre os imóveis e que foi apresentada pelo representante do Exequente, apenas referia o distrate sobre a fracção L, sendo omissa quanto à parte da fracção A que iria ser adquirida pela Oponente;

- apercebendo-se dessa desconformidade, logo o representante da Exequente declarou que a declaração de distrate do Exequente abrangia também a parte de 16/500 da fracção A do referido prédio urbano, reconhecendo esse erro/omissão constante da declaração;

- e comprometeu-se a proceder à respectiva correcção e a entregar declaração devidamente rectificada à Oponente.

- nesse pressuposto e apenas nessa condição, o representante da oponente acedeu a entregar os cheques no valor de € 39 000,00 e de € 16 000,00, que titulavam parte do preço acordado pela compra dos imóveis, ao representante do exequente;

- recebidos os cheques visados, o representante do Exequente entregou ao representante da Oponente cópia da declaração de distrate ficando na posse daquele o original que seria posteriormente rectificado;

- de seguida, mas apenas no pressuposto de que os imóveis se encontravam livres e desembaraçados de quaisquer ónus, já que foi garantido pelo representante exequente ali presente que o distrate das hipotecas estava assegurado, foi celebrada a escritura pública supra referida na alínea e);

- a escritura da alínea e) apenas se concluiu porque a Exequente, por intermédio do seu representante, exibiu à Oponente a declaração de distrate da hipoteca e declarou à mesma que tal distrate também abrangia a parte da fracção A adquirida aos referidos vendedores;

- o original da declaração de distrate ficou na posse do representante do exequente pois segundo o mesmo seria necessário para a elaboração da nova declaração abrangendo os dois prédios;

- a declaração de distrate não foi posteriormente entregue à Oponente, apesar das diversas interpelações feitas;

- um dos cheques visados foi depositado em conta no dia 28/6/2005 e o outro foi pago em 28/6/2005.

(…)

Voltando ao caso dos autos, temos que aquando da escritura de compra e venda, em que a aqui executada foi compradora das fracções em causa, o representante do exequente que ali compareceu fez-se acompanhar duma declaração de distrate das hipotecas que incidiam sobre os imóveis, mas que, afinal, apenas mencionava a fracção L; era omissa quanto à (parte da) fracção A. Ao aperceber-se dessa desconformidade, o representante do exequente disse que a declaração de distrate abrangia também a (parte de 16/500 da) fracção A, reconhecendo haver um erro/omissão na declaração, tendo-se comprometido a proceder à respectiva correcção e a entregar uma declaração devidamente rectificada à executada, garantindo que o distrate das hipotecas estava assegurado.

Face a este cenário, no pressuposto de que os imóveis estariam, assim, livres de quaisquer ónus, a executada celebrou a escritura de compra (e venda) e entregou ao representante do exequente cheques de € 39 000,00 e de € 16 000,00, que titulavam parte do preço acordado pela compra dos imóveis.

Porém, a declaração de distrate não foi posteriormente corrigida e o exequente recusa-se a emiti-la.

É evidente que tendo o exequente tido esta conduta, quando agora vem exercer contra os bens da executada os direitos decorrentes das hipotecas, fá-lo "em termos clamorosamente ofensivos da justiça"; há aqui uma "utilização manifestamente anormal, excessiva do direito" e uma evidente ofensa aos princípios da boa-fé.


O exequente actua com abuso do direito na modalidade de "venire contra factum proprium", visto que este pressupõe:

"1.º- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no "factum proprium"); à cfr. w), y) e ee) dos factos provados.

2.º- Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do "factum proprium" seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; à cfr. q), u), v) e y) dos factos provados.

3.º- Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do "factum proprium", de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo "venire") e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; à cfr. w) e ee) dos factos provados.

4.º- Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no "factum proprium") lhe seja de algum modo reconduzível» (Menezes Cordeiro, ROA, 58.º, 1998, pág. 264). à cfr. q), u), v), x), y) e ee) dos factos provados.

Correndo o risco de uma excessiva repetição, sublinha-se que o exequente, através de quem na ocasião o representava, garantiu que o distrate das hipotecas estava assegurado. Só depois disso é que se celebrou a compra e venda, tendo o exequente recebido os cheques visados de € 39 000,00 e de € 16 000,00.

Aqui chegados, agindo o exequente com abuso do direito, não lhe é lícito exercer, contra a executada, os direitos decorrentes das hipotecas identificadas em a) e c) dos factos provados, leia-se não pode executar esta com os fundamentos em que radica a execução.


Resta, na sequência do que se afirmou no já mencionado despacho do relator, apurar se o exequente litiga com má-fé.

Na sua oposição, a executada alegou a tese que, no essencial, veio a ser julgada provada e que está plasmada, designadamente, em q) a y), dd) e ee) dos factos provados.

Já o exequente, na resposta que apresentou à oposição, confrontado com essa versão dos acontecimentos, disse que:

- "quanto à alegada presença do Sr. KK na escritura, é falso pois naquele dia não esteve presente nenhum representante do Banco BB."

- "no que diz respeito ao distrate, é verdade que o cliente do exequente, o Sr. CC, anterior proprietário do imóvel, solicitou ao exequente a emissão de um termo de cancelamento de hipoteca que garantia o empréstimo contratado com o exequente com o argumento de ter vendido uma das fracções hipotecadas e que a respectiva escritura teria lugar num Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão."

- "durante esse processo, aquele Cartório à semelhança de outras situações idênticas, solicitou ao exequente cópia do termo de cancelamento, para conferência e verificação do teor da escritura."

- "posteriormente, o Sr. CC comunicou ao gestor da sua conta que a escritura ficava sem efeito, pelo que não haveria necessidade de ninguém se deslocar ao Cartório Notarial para entregar o termo de cancelamento de hipoteca."

- "face ao referido, o original do termo de cancelamento que sempre se encontrou na agência do exequente em Barcelos foi remetido para o Departamento Executivo Operacional."

- "no dia em que ocorreu a escritura não esteve presente ninguém da parte do exequente, pelo que nunca foi entregue qualquer original de algum documento."

- "quando a compradora outorgou a respectiva escritura de compra do imóvel, fê-lo por sua conta e risco pois garantidamente o original do termo de cancelamento não foi apresentado naquela escritura."

- "impugnam-se um a um e especificadamente todos no seu conjunto, os factos vertidos na oposição, quer por não serem factos do seu conhecimento pessoal ou de que deva ter conhecimento, quer por não corresponderem à verdade, constituindo falsidades ou imprecisões que ao longo desta peça se clarificaram, pelo que vão expressamente impugnados."

Nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC litiga de má-fé quem, "com dolo ou negligência grave, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa".

Pretende-se, por esta via, sancionar "os comportamentos processuais especificados nas várias alíneas deste n.º 2, quer sejam dolosos, quer se devam a negligência grave da parte ou do seu representante ou mandatário – deixando, pois, de valer a ideia segundo a qual a condenação por litigância de má-fé pressupõe necessariamente o dolo, podendo fundar-se em erro grosseiro ou culpa grave" – Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, vol. I, pág. 390.

Constitui, segundo esse n.º 2, actuação ilícita "a apresentação de uma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade" – Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, pág. 220.

E "hoje (art. 542.º do NCPC que corresponde ao mencionado art. 456.º do CPC/61), a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição " cuja falta de fundamento não devia ignorar", ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão", pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização" – Ac. STJ de 20/03/2014 (processo n.º 1063/11.9TVLSB.L1.S1), www.dgsi.pt.


Por isso, não há dúvida que o exequente litiga com má-fé.

Ao impugnar o núcleo da versão da executada e ao relatar-nos uma outra "realidade", é inequívoco que o exequente, ao contrário do que agora diz no seu requerimento de 25-11-2014, alterou "a verdade dos factos".

Não pode, portanto, deixar de ser condenado como litigante de má-fé.

Ao pronunciar-se sobre esta matéria, a executada defende que o exequente litiga com má-fé, "pelo que deverá ser condenada em multa e indemnização condignas, a fixar segundo o livre arbítrio e prudência do Tribunal, o que desde já se requer nos termos e para os efeitos do artigo 543.º do Código de Processo Civil. Considerando o valor, a qualidade das partes e os interesses da causa, deverá tal indemnização ser fixada em valor nunca inferior a € 5.000,00."

Tendo presente o pouco que nesta matéria figura nos autos e o disposto no n.º 3 do artigo 543.º. entende-se como adequado fixar essa indemnização no pagamento das "verbas de despesas e de honorários apresentadas" pela executada, relativas, evidentemente, à execução e à respectiva oposição.



4. Inconformado, interpôs o exequente a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões:

1 - O julgamento da matéria de facto demonstra que o Tribunal da 1ª Instância tomou como verdadeira a narrativa - aliás, inverosímil - construída pela Opoente, aqui Recorrida.

2 - Todavia, não o fez integralmente - pois foi clara e explícita no sentido de que não se provou que o aqui Recorrente tenha recebido as importâncias tituladas pelos cheques.

3 - O Acórdão recorrido decidiu a presente causa num plano meramente moral, pois é a partir desse plano que partem as questões ligadas ao abuso de direito ou à litigância de má fé; porém, ao trilhar esse caminho, o Acórdão recorrido acabou por não analisar as questões que verdadeiramente importava decidir no âmbito da presente acção.

4 - Com efeito, o Acórdão apenas tinha de dar resposta a duas simples questões: (i) se o Exequente é credor hipotecário - e é-o sem dúvida alguma; (ii) e se a hipoteca se extinguiu, por renúncia ou por expurgação - ora, nenhuma delas se verificou.

5 - Para haver renúncia à hipoteca, teria de ser observada a forma legal prevista no artigo 714.° do Código Civil - o que não sucedeu. Embora aquela norma se refira expressamente à "constituição" e à "modificação" da hipoteca, é evidente que ela é igualmente aplicável à renúncia, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 220.° e 221.°, n.° 2 do Código Civil.

6 - Mas também não se verificou expurgação da hipoteca, pois os cheques não foram cobrados pelo ora Recorrente e, ainda que o tivessem sido, não cobririam a totalidade da dívida - circunstância que a sentença do Tribunal de 1ª Instância enfatizou exemplarmente na sua sentença.

7- Como o Acórdão da Relação de Guimarães em nada alterou, neste ponto, a sentença do Tribunal de 1ª Instância, é forçoso concluir que o crédito hipotecário do aqui Recorrente subsiste; e, subsistindo, e inegável que o Recorrente tem o direito de executar o bem hipotecado (artigo 54.°, n.° 2 do Código de Processo Civil).

8 - Se assim não fosse, cair-se-ia na solução absurda de as duas fracções continuarem ad aeternum oneradas com as hipotecas registadas, sem que o credor hipotecário pudesse fazer uso delas.

9 - O Acórdão recorrido, ao considerar que o Recorrente incorreu em abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, foi precipitado, denotou uma incompreensão da problemática tratada nos presentes autos e violou a norma ínsita no artigo 334º do Código Civil.

10 - O aqui Recorrente não pode aceitar que uma alegada e mera promessa de renúncia, em si mesmo formalmente inválida (por inobservância daquele artigo 714.° do Código Civil) e inapta à produção de quaisquer efeitos jurídicos, acarrete, afinal, o efeito extraordinário de substituir a renúncia autêntica, que nunca ocorreu.

11 - O Acórdão recorrido cita profusamente doutrina e jurisprudência em torno do instituto do abuso do direito, mas acaba por interpretar e aplicar erradamente esta figura ao caso dos presentes autos, violando assim o disposto no artigo 334.° do Código Civil.

12 - O Acórdão recorrido andou igualmente mal ao qualificar o aqui Recorrente como litigante de má fé, condenando-o em multa ou indemnização.

13 - Essa qualificação foi sustentada no facto de alegadamente o aqui Recorrente ter "alterado a verdade dos factos", nos termos e para os efeitos do artigo 542.°, n.° 2, al. b) do Código de Processo Civil.

14 - Mas essa qualificação não tem qualquer cabimento jurídico, denota uma severidade inexplicável e mostra-se, à luz de todos os contornos do caso sub judice, profundamente injusta.

15 - A "alteração da verdade dos factos" relatada pelo Acórdão recorrido só pode advir do facto de o ora Recorrente ter relatado (na sua contestação à oposição à execução) que nenhum representante seu esteve presente na escritura de compra e venda dos imóveis e, a final, a sentença do Tribunal de 1ª Instância vir a dar como provado o contrário.

16 - Ora, por si só, esta circunstância é insuficiente para condenar o ora Recorrente como litigante de má fé.

17 - Primo, o ora Recorrente continua a sustentar que o que alegou corresponde apenas e tão-só à verdade - aliás, o Tribunal de 1ª Instância deu como provado o contrário unicamente com base na apreciação que fez da prova testemunhal, apreciação que, naturalmente, é susceptível de dúvidas e de enganos.

18 - Secundo, a condenação como litigante de má fé pressupõe que a "alteração da verdade dos factos" seja feita "com dolo ou negligência grave". Ora, o Acórdão recorrido não diz cabalmente que se verifica esse dolo ou negligência - e dificilmente o poderia fazer, visto que já se passaram quase dez anos desde que se realizou a escritura de compra e venda.

19 - Tertio, a presença ou não de um representante do ora Recorrente naquela escritura mais não é do que um facto instrumental, de escassíssimo relevo para a decisão do mérito da presente causa.

20 - Quarto, a alegação de factos diferentes daqueles que vêm a ser dados como provados em Tribunal não é argumento, por si só, que fundamente a condenação de uma parte como litigante de má fé. Se assim fosse, em todas as acções judiciais a parte vencida seria automática e inelutavelmente condenada como litigante de má fé - solução exagerada e absurda que colidiria com o princípio da tutela jurisdicional efectiva.

21- Portanto, e por ofensa do artigo 542º do Código de Processo Civil, também neste ponto se deve revogar o Acórdão recorrido, suprimindo-se a declaração de que o ora Recorrente litigou de má fé e as condenações respectivas.



A recorrida contra alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, decorrente de, na sua óptica, o requerimento apresentado ser inexistente enquanto requerimento de interposição de recurso, faltando ainda as respectivas conclusões; subsidiariamente, pugna pela confirmação do sentido decisório constante do acórdão recorrido.



5. Importa, antes de mais, salientar que carece manifestamente de fundamento a questão prévia suscitada pela recorrida: na verdade, analisada a peça processual apresentada pelo recorrente, tem de reconhecer-se – naturalmente sem despropositados e exacerbados formalismos - que dela consta, em termos suficientes, a clara manifestação da vontade de impugnar o acórdão proferido nos autos pela Relação, contendo obviamente tal peça processual as conclusões da alegação de recurso, em que se delimitam, em termos aceitáveis e perfeitamente inteligíveis, as questões de direito que constituem objecto da revista; tanto basta para que o recurso se deva ter por interposto, não tendo eficácia preclusiva a circunstância de o recorrente não ter logo indicado o efeito a atribuir à revista, omissão aliás já suprida espontaneamente pelo próprio, bem como pelo despacho de admissão do recurso.


Como é manifesto, o objecto fulcral da impugnação centra-se no preenchimento pela factualidade provada – e que naturalmente não está em discussão no âmbito da presente revista – da figura do abuso de direito que, após audição das partes, o acórdão recorrido teve por efectivamente integrada pela actuação do Banco exequente.

Ora, merecerá censura tal decisão, ao considerar preenchido pela actuação da entidade recorrente o conceito de abuso de direito, por via da frustração da confiança que a executada fundadamente depositou – face ao comportamento concludente do Banco – na renúncia à hipoteca de que este beneficiava sobre os imóveis adquiridos?


Ponderada adequadamente toda a matéria de facto fixada pelas instâncias, considera-se que tem de subsistir inteiramente a decisão de mérito contida no acórdão recorrido, perante o comportamento assumido pelo representante/comissário da exequente aquando dos preliminares da realização da escritura de aquisição do imóvel – pelo qual responde naturalmente o Banco/comitente.

Note-se que o representante / gerente da agência do Banco exequente compareceu efectivamente em tal acto e entregou à executada fotocópia do documento titulado a fls. 8 – ou seja, cópia de uma declaração de cabal renúncia à garantia da hipoteca, autorizando o respectivo cancelamento por já não existir qualquer interesse na respectiva subsistência, proveniente dos legítimos representantes do Banco e objecto do pertinente termo de autenticação.

Ao contrário do que sustenta o recorrente, não estamos obviamente confrontados com a formulação de uma mera promessa de renúncia à hipoteca: o doc. titulado a fls. 8 consubstancia – ao menos quanto à fracção L- uma efectiva declaração de renúncia proveniente do credor hipotecário, devidamente autenticada e subscrita pelos legais representantes do Banco renunciante, apenas obstando ao cancelamento imediato do registo a insuficiência formal, decorrente de se tratar de cópia do original do documento autenticado.

O representante do Banco pôs, deste modo, em circulação, mediante entrega ao interessado no distrate da hipoteca, cópia do documento autenticado que autorizava plenamente o cancelamento da inscrição hipotecária sobre o imóvel transmitido – criando-lhe, deste modo, a legítima e fundada confiança de que nenhum obstáculo existiria quanto ao futuro e efectivo cancelamento de tal garantia real: e a entrega de tal cópia do título de renúncia à hipoteca, determinante da possibilidade de proceder ao respectivo distrate por falta de interesse do credor hipotecário na subsistência da garantia registada, radicou apenas na circunstância de o referido gerente da agência bancária ter espontaneamente reconhecido a existência de um lapso na referida declaração, ao omitir que o distrate deveria abranger também a parcela correspondente à garagem da fracção em causa, ficando – só por isso – na posse do original com o compromisso – que expressamente assumiu – de providenciar pela rectificação do lapso, entregando de seguida o original da referida declaração ao interessado na obtenção do título necessário ao distrate da hipoteca.


Por outro lado, a entrega da cópia da declaração de renúncia à hipoteca, fundamentadora do respectivo distrate, apenas se verificou após o referido gerente ter recebido os cheques visados que titulavam parte do preço da aquisição – não podendo obviamente tal comportamento do gerente da agência bancária deixar de significar que a quantia titulada nos referidos cheques visados traduzia o efectivo montante pecuniário da dívida garantida pela hipoteca sobre as fracções transmitidas: e, tendo o referido gerente – representante do Banco – recebido pessoalmente os cheques visados, não pode naturalmente deixar de ser responsável pelo seu posterior encaminhamento e destino (sendo, nesta óptica, perfeitamente irrelevante apurar qual foi o destino dado efectivamente às quantias pecuniárias tituladas por aqueles cheques visados: se não foram destinadas ao pagamento do crédito hipotecário a que o Banco declarava renunciar, tal facto não poderá deixar de ser imputado ao representante de tal entidade, que recebeu efectivamente tais cheques antes de ter facultado à executada a cópia da declaração destinada a possibilitar o distrate dessa garantia real).


Ou seja: no caso dos autos, o Banco exequente, através de comportamento absolutamente concludente de um seu funcionário qualificado/ gerente de agência bancária:

- pôs em circulação cópia de um documento autenticado que cabalmente autorizava a realização do distrate da hipoteca quanto à fracção adquirida, entregando-o à própria compradora/executada, após ter embolsado os cheques visados que era suposto titularem o montante do crédito hipotecário em dívida;

- garantiu cabalmente à executada que o distrate das hipotecas estava plenamente assegurado : na verdade, tal declaração conteria, segundo esse representante, um lapso material na identificação das fracções objecto da autorização de distrate de hipoteca, omitindo indevidamente a fracção que correspondia à garagem, comprometendo-se a proceder à respectiva correcção e a entregar o original da declaração devidamente rectificado (e só com este pretexto retendo na sua posse o referido original do documento autenticado de renúncia à hipoteca);

- tal comportamento concludente do representante do Banco criou naturalmente justificada confiança na executada quanto à inverificação de qualquer obstáculo na efectivação do distrate de ambas as hipotecas – só por isso se tendo realizado a escritura de alienação do imóvel.


Ora, não pode deixar de se considerar que tal comportamento inteiramente concludente – proveniente de funcionário qualificado do Banco exequente (gerente de agência bancária) e imputável a entidade bancária sujeita a particulares deveres deontológicos na sua actuação na vida jurídica – é susceptível de gerar fundada e inteiramente legítima confiança em que seriam honrados os compromissos cabalmente assumidos perante a ora executada – traduzindo grosseira violação do princípio da boa fé o ter-se feito ulteriormente tábua rasa das garantias e compromissos prestados à executada pelo referido gerente, ao não providenciar pelo suprimento do lapso espontaneamente reconhecido quanto à identificação das fracções objecto de possível distrate e ao negar-lhe inclusivamente a entrega do original do documento autenticado de renúncia à hipoteca quanto à fracção L, retido na sua posse com o pretexto da necessidade de providenciar pelo suprimento do referido lapso material, com o objectivo de inviabilizar o cancelamento do registo das hipotecas enquanto suportado apenas na cópia entregue à compradora.


Assente que o comportamento do Banco, expresso na referida actuação do gerente de agência bancária, plenamente imputável a tal entidade colectiva, envolveu efectiva e grave lesão do princípio da boa fé, importa determinar as consequências a atribuir ao abuso de direito.

No caso dos autos, como se referiu anteriormente, o documento posto em circulação pelo representante do Banco exequente padece de uma deficiência de forma que obsta à feitura do cancelamento do registo das hipotecas, por se consubstanciar, não no documento autenticado original (art. 731º do CC), mas em mera cópia deste, inquinada por lapso material espontaneamente reconhecido pelo representante do Banco, ao omitir a autorização do distrate também da fracção correspondente ao local de garagem.

Sucede que a jurisprudência vem admitindo – embora em termos cautelosos – a paralisação do vício de nulidade formal de um acto quanto a respectiva invocabilidade traduzir abuso de direito da parte, decorrente de lesão gravosa e injustificável da confiança depositada pela contraparte na seriedade do compromisso assumido.

Como se afirma, por exemplo, no Ac. de 11/12/14 , proferido pelo STJ no P. 1370/10.8TBPFR.P1.S1:

As normas que impõem forma solene para a efetivação dos contratos são de interesse público. E seriam, com facilidade e grande prejuízo, mormente quanto a segurança da vida jurídica, desprezadas se, com frequência, se entendesse serem aqueles válidos, apesar da não observância da forma exigida por lei.

Daí que os tribunais tenham que ser muito cautelosos, quanto a eventual paralisação dos efeitos da invalidade.

Todavia, quer a doutrina, quer a jurisprudência vêm deixando uma estreita abertura em ordem a, com base no princípio da boa fé e sua manifestação através do abuso do direito, ser admitida essa paralisação (Assim, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. 437, Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, ed. da AAFDL, II, 92, Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, 532, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 619, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, 2005, I, Tomo IV, 311, Gravato de Morais, Contrato-Promessa em Geral, Constratos-Promessa em Especial, 280 e, na Jurisprudência, entre outros, os Ac.s deste Tribunal de 27-05-2010, processo n.º 148/06.8TBMCN.P1.S1, 29.11.2011, processo n.º 2632/08.OTVLSB.L1, 28.2.2012, processo n.º 349/06.8TBOAZ.P1.S1 e 4.6.2013, processo n.º 994/05.0TBCTNT.C1.S1).

Pais de Vasconcelos (ob. cit., 622) releva, para estes efeitos, os casos em que, com intensidade variada quanto aos efeitos, a falta de forma emerge de atuação ingénua, atuação confiante, atuação oportunista, atuação contraditória e atuação dolosa.

Para o nosso caso apenas interessa a atuação confiante ou, dizendo de outro modo, a tutela da confiança.

No “modelo da tutela da confiança” assenta também Menezes Cordeiro (loc. cit.) os requisitos para que se de verifiquem as “inalegabilidades formais”.

Primeiro, os gerais (situação de confiança, justificação para a confiança, investimento na confiança, imputação da confiança ao responsável que irá arcar com as suas consequências).

Depois, as específicas das “inalegabilidades formais” (o estarem em jogo apenas os interesses das partes envolvidas e nunca terceiros de boa fé, a imputação da situação de confiança à pessoa a responsabilizar e dificuldade em assegurar o investimento na confiança por outra via).

Relativamente aos requisitos gerais da tutela da confiança, a posição deste Ilustre Professor não difere fundamentalmente da defendida, a propósito da figura do “venire contra factum proprium”, por Baptista Machado (Obra Dispersa, I, 416 e seguintes).

No mesmo sentido, vejam-se ainda , por exemplo, os Acs. de 28/2/12 e de 24/10/13, proferidos pelo STJ nos P. 349/06.8TBOAZ.P1.S1 e 1673/07.9TJVNF.P1.S1, onde se decidiu, respectivamente:


As circunstâncias concretas do exercício do direito de invocar a invalidade formal de um negócio jurídico podem excepcionalmente conduzir à paralisar desse exercício, por abuso de direito.


E:

Os efeitos da invalidade por vício de forma podem, apesar disso, ser excluídos pelo abuso de direito, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente, em que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.

Trata-se, pois, de reconhecer a admissibilidade da invocação desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo. “Sempre tendo na devida conta que, nestes casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excepcionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium “ac. STJ, de 30/10/2003 (proc. 03B3125).

Reportando-se aos casos excepcionais em que se justificasse a cedência da nulidade perante a proibição do venire, o Prof. BAPTISTA MACHADO (in “RLJ”, 118º-10/11), propõe o concurso dos seguintes pressupostos: a) ter a parte confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica; b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar posições que ora são irreversíveis, pelo que a nulidade provocaria danos vultuosos, agora irremovíveis através de outros meios jurídicos; e, c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades.

No caso dos autos – e perante a factualidade apurada pelas instâncias – considera-se que o défice formal do acto de renúncia à hipoteca por parte do Banco – decorrente de à executada ter sido entregue mera cópia, em vez do original  do documento autenticado que legitimava o distrate de tal garantia real e omitindo, por mero lapso, espontaneamente reconhecido, referência à autorização para cancelar também o registo da hipoteca quanto à fracção correspondente à garagem – é plenamente imputável ao Banco exequente, criando na executada uma fundada confiança em que este honraria os compromissos claramente assumidos pelo representante/comissário que esteve presente no acto – determinante da imediata realização da escritura de venda sem que concomitantemente se tivesse procedido ao cancelamento da garantia real, criando prejuízo efectivo para a executada a ulterior execução da dívida hipotecária, fazendo o exequente tábua rasa dos compromissos e garantias dados aquando da realização da escritura.


Não pode, por isso, escudar-se o Banco no referido défice formal do acto de renúncia à hipoteca - por ele provocado e de sua inteira responsabilidade - para exigir, à custa dos bens abrangidos por tal garantia real , adquiridos pela executada na justificável convicção da efectividade da renúncia à hipoteca, o pagamento das quantias alegadamente em dívida.


Por outro lado – sendo aplicável à presente oposição à execução o regime anterior à vigência do actual CPC ( cfr. despacho de fls. 30) – vigora plenamente a norma que constava do nº4 do art. 817º do velho CPC, segundo a qual constitui – único-  efeito típico da procedência da oposição à execução a extinção, no todo ou em parte, da instância executiva – sendo, pois, este o único efeito a extrair nos presentes autos do verificado abuso de direito por parte da entidade exequente.



6. Insurge-se ainda o Banco exequente contra a respectiva condenação por litigância de má fé – cabendo a este STJ o exercício do duplo grau de jurisdição quanto a esta matéria ( art. 542º, nº3, do CPC).

Como é evidente, o fundamento essencial de tal condenação assentou na negação cabal de que o gerente bancário da agência em causa tivesse estado presente aquando da realização da escritura de venda, assumindo no acto os comportamentos, atrás relatados, envolvendo reconhecimento expresso e categórico de que nenhum obstáculo se verificaria quanto ao distrate da hipoteca, apesar de não se ter imediatamente facultado à exequente a disponibilidade do original do título de renúncia à hipoteca – comportamentos que estiveram na génese da fundada confiança da executada.

Ora, ao contrário do sustentado pela entidade recorrente, tais comportamentos não se consubstanciam em factos meramente instrumentais, mas antes em factos essenciais para apurar o preenchimento da figura do abuso de direito.

Cabia, pois, à entidade exequente – sujeita , aliás, como instituição de crédito a especiais deveres deontológicos e de protecção da confiança dos cidadãos – perante a alegação da oponente e a circunstância de esta exibir uma cópia do título autenticado de renúncia à hipoteca, ter averiguado diligentemente, junto dos respectivos funcionários, da eventual presença destes no acto e dos possíveis compromissos que aí tivessem assumido perante a executada, explicando em termos consistentes como poderia deter a executada cópia do documento de distrate – em vez de se limitar a negar categoricamente estes factos, com vista a eximir-se de qualquer responsabilidade.

Como é sabido, a litigância de má fé não pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando-se com a negligência grave da parte – considerando-se que a conduta processual do Banco, ao negar categoricamente a presença de qualquer funcionário ou representante aquando da celebração do negócio jurídico de transmissão do imóvel hipotecado, desvalorizando e deixando sem explicação plausível o facto de a executada exibir cópia de um documento autenticado, legitimador do distrate da hipoteca, é susceptível de integrar o referido conceito de negligência grave na alteração da verdade material.

E, nesta óptica, considera-se que não merece censura o decidido pela Relação, ao sancionar tal conduta processual no campo da litigância de má fé.



7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, nega-se provimento à revista, confirmando inteiramente o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 08 de Outubro de 2015


Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor