Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
916/03.2TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: CREDOR SOCIAL
DANO INDIRECTO
PATRIMÓNIO SOCIAL
NORMAS DE PROTECÇÃO DOS CREDORES
RESPONSABILIDADE DOS GESTORES
Data do Acordão: 01/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I- O estatuto económico da sociedade comercial é factor decisório do crédito que lhe é concedido, não se limitando apenas ao capital social, mas também tendo em consideração o estofo patrimonial da empresa (sociedade) que possa «tranquilizar» os seus credores.

II- Aliás, há que ter em atenção que, como ensina o Prof. Pereira de Almeida,  costuma-se dizer que o capital social é a garantia comum dos credores, carecendo tal afirmação de ser explicada.

Na verdade, diz o citado o Professor que «o capital social figura no balanço como «rubrica do passivo» e a garantia dos credores é certamente constituída pelo activo», acrescentando, mais adiante, que «o capital social distingue-se do património, o qual constitui efectivamente a garantia geral dos credores ( artº 601º do C. Civil)».

III- Logo, as normas que tutelam a conservação ou promovam o aumento desse património têm também em vista a sua protecção, na expressão de Ilídio Rodrigues, na obra referida no texto deste aresto.

IV- Só assim se entende que o legislador tenha estabelecido o enlace normativo entre a inobservância culposa das disposições legais destinadas à protecção dos credores sociais e a insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos, na previsão do nº 1 do artº 78º do CSC.

V- Em conclusão, a diminuição do património social produzida pela inobservância de normas legais do direito societário, constitui um dano directo da sociedade, desde que se verifique o necessário nexo de causalidade e um dano indirecto dos credores sociais, desde que essa diminuição se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.

VI- Consequentemente, as normas legais inobservadas, na medida em que da sua violação resultam danos (ainda que indirectos) para os credores da sociedade, visam igualmente evitar tais danos, logo, proteger  também os referidos credores, e não somente lhes aproveitam.

VII- Este é o critério teleológico-racional que se mostra mais ajustado, não só no plano jurídico-societário, como no aspecto da realidade sócio-económica e empresarial.

Decisão Texto Integral: Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

AA, com sede em n.º ....-...., .............., Chung-Ku, Seul, na Coreia do Sul, intentou contra BB, residente na Rua ................, n.º 17, em Cascais, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, pedindo que o Réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de um milhão de euros (€ 1.000.000,00), acrescida de juros de mora desde a citação até ao pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que enquanto responsável pelos serviços financeiros da SPEM [SAMSUNG (PORTUGAL) PRODUTOS ELECTROMECÂNICOS – S.A] e membro do respectivo conselho de administração, o Réu praticou actos, à revelia da administração, que conduziram à insolvência da SPEM, sobre aquela existia um crédito que o Autor adquiriu.

O Réu contestou, requerendo a intervenção principal dos demais administradores da SPEM, arguindo a ilegitimidade do Autor e defendendo-se por impugnação, nos termos constantes da referida peça processual.

Seguiram-se os demais articulados e findos estes, foi proferido despacho onde se considerou que estava em causa uma acção de sub-rogação, que impunha a demanda da devedora, em litisconsórcio necessário com o credor, tendo o A. sido convidado a suprir essa excepção dilatória, e a concretizar alguns dos pontos de facto alegados, em nova petição inicial.

O que o mesmo veio a fazer, mantendo, embora, que a sua pretensão não assentava em direito de sub-rogação, embora nada obstasse à sua invocação.

Seguiu-se nova contestação e réplica.

No despacho saneador reconheceu-se que assistia razão ao A., e que a sua pretensão não era fundada em sub-rogação, tendo sido dado sem efeito o despacho de aperfeiçoamento nessa parte, prosseguindo os autos apenas contra o réu inicial.

          O R. ainda agravou do assim decidido, e apresentou as respectivas alegações, mas, entretanto, declarou não manter interesse na apreciação desse recurso.

No relatório que antecede já foram considerados os articulados “aperfeiçoados”, desconsiderando-se as referências ali feitas à R. SPEM, que, no fundo, nunca o foi, e deixou de o ser formalmente a partir do despacho saneador, posto que o recurso interposto tinha efeito meramente devolutivo.

No despacho saneador foi, ainda, indeferido o incidente de intervenção principal suscitado pelo R. e julgada improcedente a excepção de ilegitimidade do A.

Decisões também abrangidas no recurso de agravo interposto pelo R., admitido a subir diferidamente, em relação ao qual o agravante declarou não manter interesse na sua apreciação.

Os autos prosseguiram para julgamento, realizado com registo da prova produzida, culminando na decisão sobre matéria de facto exarada a fls. 1417 a 1424.

O A. apresentou alegações sobre o aspecto jurídico da causa, defendendo a procedência da acção.

Seguiu-se a sentença, onde a acção foi julgada improcedente, com a absolvição da R. do pedido.

Inconformado, o A. apelou do assim decidido, para o Tribunal da Relação de Lisboa que, todavia, julgou tal recurso improcedente, confirmando, ainda que por fundamentação não coincidente, a decisão recorrida.

Ainda inconformado, o Autor veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

         CONCLUSÕES

                       1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão a quo que, não obstante reconhecer que o Recorrido agiu com culpa e em violação dos seus deveres de administração, concluiu não estarem verificados in casu os pressupostos legais de que depende a responsabilidade dos gerentes ou administradores para com os credores societários, considerando que as disposições legais inobservadas pelo Recorrido causa das perdas da SAMSUNG (PORTUGAL) PRODUTOS ELECTROMECÂNICOS, S.A. (doravante "SPEM") e inerente descaminho da garantia patrimonial do crédito da Recorrente -, não são disposição legais destinadas à protecção dos credores nos termos e para os efeitos do artigo 78.° do CSC.

2. Efectivamente, para a efectivação dessa responsabilidade civil, é corrente aceitar-se que não basta o mero preenchimento dos requisitos previstos no art. 483.°, n.° 1, do Código Civil, exigindo-se ainda que se verifique a violação de normas de protecção dos credores e que essa violação seja causa de insuficiência patrimonial.

3. Todavia, ao contrário do entendimento sufragado no Acórdão a quo, retira-se da doutrina que todas as disposições legais referentes à conservação, contabilização e limitação de uso do património social visam tutelar terceiros, maxime os credores sociais, até porque o património societário constitui a garantia geral e comum dos credores (cfr. artigo 601° do CC).

4. A tutela da confiança e da segurança jurídica impõe como imperativo o princípio da separação de patrimónios para obstar a que os bens ou património dos sócios se confundam com os bens ou património da sociedade, impedindo que retirem da sociedade, indiscriminada e livremente, os bens ou valores que não se comportem nos limites dos rendimentos e lucros distribuíveis (artigos 31° e 32° do Código das Sociedades Comerciais).

5. Por outras palavras: o património social é, em regra, o único garante dos credores da sociedade. O mesmo é dizer que só os bens e créditos sociais inscritos no activo é que constituem a garantia dos débitos da sociedade, ou seja, o património líquido da sociedade.

6. Consequentemente, se só o património social responde perante credores da sociedade, então ele deve ficar reservado à satisfação deles, não podendo ser utilizado em desrespeito das normas imperativas referentes à conservação do capital, à capacidade e objecto social da sociedade e à fiscalização das suas contas. Por outras palavras, aquele que tem poderes de disposição numa sociedade não pode dispor arbitrariamente do património social.

7. É nesta esteira que Vasco da Gama Lobo Xavier perfilha do entendimento de que estão abrangidas pelo artigo 78.°, n.° 1 do CSC, para além das disposições legais que directamente visam proteger os credores sociais, as que protegem os sócios e que, reflexa e complementarmente, têm uma componente de protecção dos credores, incluindo nestas últimas as normas de promoção do bom funcionamento da sociedade.

8. Conforme o Acórdão do Tribunal a quo expressamente consigna, estão in casu verificados à saciedade todos os pressupostos da responsabilidade civil delitual (cfr. pontos 6,13,14,15, 16,17,18,21,23,25 26 e 27 da matéria de facto assente)

9. Reconhece ainda o Acórdão em crise que o Recorrido "realizou operações cambiais de mera especulação financeira, claramente excluídas do objecto social da sociedade administrada, com a dimensão e com os resultados que ficaram evidenciados em sede de matéria de facto", de onde imediatamente se retira que tal conduta constitui uma frontal violação do preceituado no artigo 6.°, n.°s 1 e 4 do CSC, de onde decorre a limitação da actividade social ao fim prosseguido pela sociedade, impondo aos órgãos sociais a obrigação de limitarem a actividade social ao objecto da sociedade.

10. Assim, embora se retire do n.° 4 do artigo 6.° do CSC que o objecto social não restringe a capacidade da sociedade comercial, certo é que cria para os órgãos desta a obrigação de não praticarem actos que se situem fora dele, por não dizerem respeito à sua prossecução.

11. A SPEM tinha por objecto o fabrico e comercialização de produtos eléctricos e electromecânicos em Portugal e foi fora desse objecto social que o Recorrido foi contraindo para a sociedade dívidas com a celebração de contratos especulativos de natureza cambial, bem sabendo que a sociedade que lhe cabia gerir as não podia pagar e que o valor do património societário, em consequência dessa conduta, era já muito deficitário (cfr. ponto 14 e 15 da matéria de facto assente).

12. Somada a conduta do Recorrido verifica-se que apenas sobrou para a SPEM o encargo resultante do acumular de dívidas, contraídas à revelia dos restantes administradores, ficando a sociedade desprovida da possibilidade de desenvolver o objecto social para o qual fora criada e que a personalizava. E, naturalmente, com cujos resultados contava para pagar aos seus credores.

13. Os credores da SPEM, que tinham no património desta e no desenvolvimento da sua actividade social, a protecção e garantia dos seus créditos, viram assim desaparecer essa garantia e essa protecção.

14. De onde decorre que o Recorrido desrespeitou claramente o preceituado no artigo 6.°, n.°s 1 e 4 do CSC, a qual prevê a limitação da actividade social ao fim prosseguido pela sociedade, e a imposição aos órgãos sociais da obrigação de limitarem a actividade social ao respectivo objecto. Sendo, pois, uma norma que tutela directamente os interesses dos credores sociais.

15. Errou assim o Tribunal a quo, ao considerar que a ante referida disposição legal é "uma norma de simples protecção das sociedades, e dos terceiros que com ela contratam, não sendo uma norma de protecção dos interesses dos credores sociais".

16. Com efeito, só por erro manifesto de direito pôde o Tribunal recorrido considerar que entre os terceiros que contratam com a sociedade, que no seu douto entendimento se encontram tutelados pelo artigo 6.° do CSC, não cabem os credores sociais, pois qualquer terceiro é um potencial credor social!

17. Resulta, assim, inequívoco que, ao contrário do que entende o Tribunal a quo, as disposições legais referentes às limitações legais, naturais e estatutárias à capacidade das sociedades comerciais são verdadeiras normas de protecção dos interesses dos credores sociais.

18. Mais, de acordo com o artigo 6.° do CPEREF (actual artigo 18.° do CIRE), cabe à empresa o dever de requerer a declaração da sua insolvência dentro dos sessenta dias seguintes à data da situação de insolvência, o que constitui fundamento de responsabilidade civil extracontratual dos administradores perante os credores (vide Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, p. 129 e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, p. 34).

19. In casu, o atraso na apresentação à insolvência - conseguida por meio da ocultação por parte do Recorrido dos prejuízos acumulados no ano de 1999 - permitiu que prosseguisse a realização das operações cambiais num momento em que, em absoluto, por força da sua gestão, a sociedade já não tinha qualquer património que pudesse assegurar o pagamento das dividas acumuladas com as mesmas operações (cfr. pontos 15,16,17 e 18 da matéria de facto assente).

20. Com efeito, a contracção de novas obrigações por meio da celebração de contratos de forward deixou os credores da SPEM inteiramente desprotegidos, o que teria sido evitado com o cumprimento do dever de apresentação à insolvência que lhe cabia enquanto membro do Conselho de Administração da SPEM, único conhecedor da real situação de incapacidade económica e financeira da sociedade (cfr. ponto 2 da matéria de facto assente).

21. Tal conduta viola directamente as obrigações de qualquer administrador e director financeiro e constitui uma clara inobservância de disposições legais directamente concebidas para defesa dos credores sociais, pois o rigor no conhecimento da situação económico-financeira dela é o primeiro pressuposto da garantia dos credores da manutenção do capital social.

22. Acresce que o Recorrido, enquanto responsável pela contabilidade da SPEM, violou deliberada e intencionalmente os princípios contabilísticos à data em vigor (Cap. 4 do Piano Oficial de Contabilidade, aprovado pelo DL 410/89, de 21 de Novembro), assim frustrando a possibilidade de os credores obterem uma imagem verdadeira e apropriada da situação financeira e dos resultados das operações da empresa (cfr. pontos 2 e 3 da matéria de facto assente)...

23. Tivesse a verdadeira situação financeira da SPEM reflectida fidedignamente na contabilidade da sociedade teriam os credores sociais (incluindo os bancos contraparte nos fowards celebrados) sido alertados para a situação deficitária da empresa a tempo de evitarem com ela contratarem ou exigirem o reforço das suas garantias de crédito.

24. Quanto a este ponto, importa ainda referir que as contas têm de ser verdadeiras ao tempo da sua apresentação - 31 de Dezembro de cada ano - razão pela qual a contabilização de perdas apenas no ano seguinte permitiu ao Recorrido não só enganar todos os destinatários das demonstrações financeiras, incluindo credores e accionistas, entre as quais se encontrava a casa-mãe (SEMCO), como também que, durante mais um ano, continuasse o Recorrido a "tapar os buracos" das contas da sociedade levando-a à ruína através da celebração contínua de novos forwards.

25. Atenta a função da contabilidade, não se pode também deixar de discordar com a conclusão formulada no Acórdão em crise na parte em que refere que "apesar de estarem em causa normas que também visam proteger os interesses dos credores sociais, e de ser clara, e grosseira, a sua inobservância peio réu, julga-se, ainda assim, que não está verificada a previsão do artigo 78°, n.° 1 do CSC, concluindo-se que «(...) só releva para o efeito pretendido a ilicitude que seja causa do dano (...) é certo que pode ser dado por adquirido que, se as contas apresentadas pelo réu relativas ao ano de 1999, tivessem reflectido os resultados negativos de cerca de € 14.0000.0000,00 já então acumulados, não teriam previsivelmente ocorrido as operações que foram realizadas já no ano 2000, e que mais do que quadruplicaram aquelas perdas. Mas a causa desse dano, verificado no ano 2000 não foi a ocultação dos prejuízos já acumulados no ano 1999, mas a continuação das operações cambiais, que a viciação da conta se limitou a encobrir» (destaque nosso).

26. Tal consideração do Tribunal a quo não toma em devida conta o facto de, na eventualidade de estarem correctamente reflectidos os prejuízos na contabilidade da SPEM referentes aos anos de 1999 e 2000, não só os Bancos, contrapartes nos contratos de forwards celebrados, impediriam a continuação das operações, bem como a Recorrente poderia ter recorrido tempestivamente aos meios legais existentes para defesa da garantia patrimonial do seu crédito.

27. Mais: aceitar o raciocínio do Tribunal a quo, levaria à admissão de todas as ilegalidades perpetradas por aqueles que têm como dever a transparência e exactidão das contas, com claro prejuízo para todos quantos se relacionam com a sociedade, nomeadamente os credores sociais e os próprios sócios ou accionistas.

28. Pelo que, dúvidas não restam quanto à ilicitude da actuação do Recorrido, consubstanciada na violação de normas expressamente previstas para a protecção dos sócios e dos credores sociais, designadamente, as previstas no Código das Sociedades Comerciais e no Plano Oficial de Contabilidade e, bem assim, através da ocultação dessa mesma actuação e respectivas consequências.

29. Por outro lado, nos termos do artigo 64.° do CSC os administradores de uma sociedade comercial têm a obrigação legal de a gerirem com prudência, de modo a garantirem que essa gestão não põe em causa os interesses dos credores, legal e contratualmente protegidos, sob pena de responderem pessoalmente pelos actos danosos que praticarem (cfr. Acórdão do STJ de 10.03.2011, Proc. 1706/05.3TBLLE.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

30. In casu, é patente que, no exercício das suas funções, não teve o Recorrido em conta os deveres de diligência a que estava adstrito, uma vez que ficou demonstrado que, enquanto Administrador da SPEM, deixou de assegurar a prossecução do interesse social para deliberadamente contratar, com fins meramente especulativos, os forwards em causa, violando grosseiramente os deveres legais que sobre si impendiam e que se encontram legalmente consagrados no art. 64.° do CSC.

31. Contrariamente ao defendido pelo Tribunal a quo, o art. 64.° do CSC não se limita a impor aos gerentes, administradores ou directores um dever de diligência autónomo circunscrito à defesa dos interesses dos sócios e dos trabalhadores, antes estabeleceu a bitola genérica da gestão criteriosa e ordenada com vista à apreciação de toda a linha da actuação destes, ainda que reflexamente no interesse dos sócios e dos trabalhadores.

32. Não faria, na verdade, qualquer sentido excluir do escopo de protecção da referida norma os credores sociais - como a nova redacção do preceito veio provar -, porquanto os próprios trabalhadores são, a bem ver, credores da sociedade no que tange ao seu salário e demais direitos patrimoniais de natureza laboral.

33. O Recorrido descurou por completo o dever de diligência a que estava adstrito e comportou-se como se o património social fosse a sua conta bancária pessoal, incumprindo, ademais, em absoluto a obrigação de reconduzir a actividade desta ao seu objecto social (cfr. artigo 259.° do CSC aplicável por analogia às sociedades anónimas).

34. Pelo que, não restam dúvidas quanto à ilicitude da actuação do Recorrido, consubstanciada na "inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção" dos credores sociais, o que constituiu a causa da insuficiência patrimonial da SPEM, conforme exigido pelo artigo 78.°, n.° 1 do CSC.

35. Face a todo o exposto, entende a Recorrente que o Acórdão ora em crise interpretou erradamente os preceitos legais acima enunciados e violou os artigos 78.° do Código das Sociedades Comerciais, 483.° do Código Civil e 664.° do Código de Processo Civil.

         Foram apresentadas contra-alegações por banda do Recorrido, pugnando pela manutenção do decidido.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

         Das instâncias, vem dada como provada a seguinte factualidade:

1. SAMSUNG (PORTUGAL) PRODUTOS ELECTROMECÂNICOS – S.A., (doravante designada "SPEM"), dedicava-se ao fabrico e comercialização de produtos eléctricos e electromecânicos em Portugal.

2. O réu integrou no Conselho de Administração da SPEM desde 1998 ate 15 de Setembro de 2000 e era responsável pela tesouraria e contabilidade.

3. Enquanto director financeiro e chefe da contabilidade cabia-lhe a responsabilidade pelos fechos de conta, demonstração de resultados, balanços e demais documentos contabilísticos, reportando funcionalmente e devendo obter autorizações prévias por parte do Presidente do Conselho de Administração daquela sociedade, em tudo o que se relacionasse com transferências bancárias e outras transacções financeiras.

4. O réu era ainda procurador da SPEM desde 1994, nos termos exarados na certidão da procuração junta aos autos de arresto como documento n° 134.

5. SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO., LTD., entregou à SPEM, a pedido desta, matérias-primas, e outros produtos, bem como prestou-lhe serviços (melhor discriminados nos docs n.°s 1 a 128 juntos com o requerimento inicial dos autos de arresto apensos) que totalizaram o valor de USD 14.622.554,77.

6. No exercício da sua actividade, a autora declarou adquirir à sociedade SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO., LTD. e esta declarou ceder-lhe, o crédito que esta detinha sobre a sociedade SAMSUNG (PORIUGAL) PRODUTOS ELECTROMECÂNICOS, S.A., (SPEM), em consequência do referido em 5.

7. Por causa do referido em 5 e 6, a SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO., LTD. emitiu várias propostas de venda do crédito, as quais foram aceites pelo Banco autor, reflectindo, cada uma delas, as condições de pagamento das facturas, acordadas entre a SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO., LTD. e a SPEM.

8. A autora, em consequência, entregou à SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO., LTD., os valores constantes de cada uma das referidas propostas.

9. Factos que foram notificados pela SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO., LTD. à SPEM em 10.10.2000 e em 3.11.2000 por meio dos documentos nºs 129 e 130 (da PI) juntos aos autos de arresto apensos.

10. A SPEM aceitou expressamente os factos acima referidos.

11. Os prazos acordados para pagamento foram de 60 dias após a expedição das mercadorias (facturas juntas como docs. 1 a 82 dos autos de arresto) e 90 dias após a expedição das mercadorias (facturas juntas como dos. 83 a 128).

12. Os valores das mercadorias e serviços constantes das facturas que a SPEM não entregou à SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO., LTD., ascendem, no seu conjunto, a um total de USD 10.949.805,44

13. Actualmente os bens da SPEM são insusceptíveis de satisfazer 1/10 do valor referido em 12.

14. A partir de contas bancárias da SPEM, nos bancos BANIF, Credit Lyonnais, BES, BPA, Banco Mello, BCP, e Totta, o réu realizou, sem o conhecimento dos demais directores e fora do âmbito das suas funções, operações de futuros cambiais que geraram perdas para a SPEM de cerca de 60 milhões de Euros.

15. No fecho de contas do ano de 1999, numa altura em que as perdas relacionadas com as diferenças cambiais negativas já ascendiam a 14 milhões de dólares, o réu ocultou cerca de 3 milhões e quinhentos mil dólares de perdas mediante a intencional não inscrição contabilística de recebimentos de Dezembro de 1999 por facturas da emissão da SPEM, sendo essa situação corrigida só no início de 2000, altura em que a contabilidade voltou a reflectir as perdas existentes.

16. Quatro milhões e quinhentos mil dólares de perdas foram ocultados pelo réu através de adiantamento efectuado em 29 de Fevereiro de 1999 pela empresa MC Factor, no âmbito de um contrato de factoring celebrado entre esta e a SPEM, cuja adequada entrada contabilística só foi levada a cabo em 2 de Janeiro de 2000.

17. O réu ocultou ainda intencionalmente 6 milhões de dólares de perdas cambiais mediante um registo contabilístico tardio (em Janeiro de 2000) de um reembolso de IVA nesse mesmo montante, ocorrido em Dezembro de 1999.

18. Com a intenção de ocultar perdas das operações cambiais que realizou, o réu extraviou documentos contabilísticos.

19. Relativamente à conta 271/02989/001.8, da SPEM, cobrindo o período de 27.04.1999 a 31.12.1999, o réu efectuou as seguintes operações que não constam dos livros da sociedade:

Data      Data valor  Descrição      Ref.   Débito              Crédito                                Doc.

09-07-1999 09-07-1999ESTFX001176282-1  158                        640.850.000    78

30-07-199930-07-1999ESTFX001375431-1  207   1.502.500.000                                 85

30-07-1999 30-07-1999ESTFX001176272-1 208                       1.487.300.000  85

26-08-199926-08-1999ESTFX001403621-1    234   666.225.000                         87
31-08-199931-08-1999ESTFX001407741-1 248 457.230.000 89

31-08-1999 31-0S-1999E8TFXOOI411311-1  249       671.370.000                                    89

31-08-1999 31-0S-1999E8TFXOO1269902-1  251                          453.525.000   89

31-08-1999 31-08-1999E8TFXOO 1209572-1  250                           644.350.000   89

02-09-1999 02-09-1999E8TFXOO 1416791-1  263    911.400.000                                     89

02-09-1999 02-09-1999ESTFXOOI209582-1 264                          890.10C.000    89

30-09-1999 30-09-1999ESTFXOO 1458341-1  324   1.431.375.000                                 96

30-09-199930-09-1999ESTFXOOI458361-1  325       1.101.800.000                                 96

30-09-199930-09-1999ESTFXOO1403702-1  327                          1.422.375.000 96

30-09-199930-09-1999ESTFXOOI269912-1   326                          1.055.775000   96

29-10-1999 29-1 0-1999ESTFXOO 1465341-1  388   1.404.000.000                                 104

29-10-1999 29-1 0-1999ESTFXOO 1500221-1  389   940.650.000                                     104

29-10-1999 29-1 0-1999ESTFXOO 1403692-1  391                        1.419.000.000             104

29-10-199929-10-1999ESTFXOOI269872-1     390                         903.000.000    104

19-11-1999 19-11-1999ESTFXOOI531191-1    442    1.444.125.000                      109     109

19-11-199919-11-1999ESTFXOOI493272-1   443                            1.399.875. 109           109

19-11-199919-11-1999ESTFXOOI531191-S  444                             1.444.125. 109           109

30-11-199930-11-1999ESTFXOOI54S441-1   464      1.480.125.000                                 111

30-11-199930-11-1999ESTFXOOI465371-1   463      1.396.350.000                                 111

30-11-199930-11-1999ESTFXOOI497832-S   466                              1.414.500.000          111

30-11-199930-11-1999ESTFXOOI405202-1   465                               1.424.1 00 .000       111

1O-12-199910-12-1999ESTFXOOI560911-1   496      1.957.500.000                                 113

10-12-1999 1O-12-1999ESTFXOOI560871-1   495     1.444.125.000                                 113

10-12-1999 10-12-1999ESTFXOOI497852-1    497                              1.885.000.000        113

15-12-1999 15-12-1999ESTFXOO 1563071-1   511   1.486.800.000                                 114

15-12-1999 15-12-1999ESTFXOOI531222-1   512                                1.440.750.000       114

17-12-1999 17-12-1999ESTFXOOI473201-1   517     1.402.875.000                                 114

17-12-1999 17-12-1999ESTFXOOI432212-1   518                                1.435.275.000       114

22-12-199922-12-1999ESTFXOOI571931-1   523      1.490.250.000                                 114

22-12-199922-12-1999E8TFXOOI546322-1       524                              1.476.750.0ClO     114

29-12-1999 29-12-1999TRF CRD                         544                              352.050.000           115   

20. A quantia acima referida de 352.050.000$00 foi transferida pelo réu com o objectivo de cobrir perdas resultantes de operações especulativas por si realizadas.

21. Os movimentos da conta acima descritos correspondem a contratos de forward celebrados pelo réu sem o conhecimento dos demais administradores e órgãos da SPEM.

22. O réu efectuou ainda, nas mesmas condições, as seguintes operações, que correspondem a contratos de forward:

Data   Data valor     Descrição        Ref.  Débito                    Crédito   Doc.

05-05-1999 05-05-1999Est1fi60580/0290022   18      508.164.742                62

05-05-1999 05-05-1999Estlfi60580/0300023      19                       508.157.410         62

21-05-199926-05-1999Est1fi60580/0300024      48    504.270.990                65

21-05-1999 26-05-1999EstIfi60580/0310023      49                        504.264.012        65

28-05-199902-06-1999Estlfi60580/0300024       66,5 509.999.993                68

28-05-1999 02-06-1999Est1f160580(0310023  67    509.992.869    68

05-07-1999 07-07-1999Est1fi60580/0320024   145    512.708.937               76

05-07-1999 07-07-1999Estlf 60580!0330023     146               512.701.842   76

21-07-1999 23-07-1999Estlfi60580/0330025     182   506.653.347               81

21-07-1999 23-07-1999Est1fi60580/0340023 183                  506.645.673   81

15-10-199919-10-1999Estlfi60580/0340026    354    537.705.493             100

15-10-1999 I9-10-1999Est1fi60580/0350024     355               537.698.473 100

15-10-1999 20-1 0-1 999Estlfi60580/0350025  356     537.705.493            100

15-10-1999 20-10-1999Estlfr60580/0360024   357     537.698.474             100

23. No ano de 2000, e nas mesmas condições, efectuou as seguintes operações que correspondem a contratos de forward:         

Data valor        Descrição                       Débito                           Crédito                              Doc.

11-02-2000 ESTFX001637401-3    814.140.102,00                                              118    

11-02-2000 ESTFX001587792-1                                          1.563.364.581,0                     118    

11-02-2000  ESTFX001595472-1                                            1.369.145.365,0                     118    

10-03-2002 ESTFX001683461-1         

  2.097.500.000,00           119    

10-03-2002  ESTFX001595902-3                                             2.935.887.923,0                    119    

18-04-2000  ESTFX00I730131-3 620.111.351,00                                                       120    

18-04-2000  ESTFX001742401-1           1.466.080,000,00                                                   120    

18-04-2000  ESTFX001597782-3                                              3.933.333.333,0                   120    

24. No Banco Credit Lyonnais foram efectuados pelo réu movimentos de centenas de milhar de contos relativos a compra a venda de divisas entre uma conta em Escudos, outra em Dólares Americanos e outra em Libras Esterlinas.

25. A maioria das operações de natureza cambial realizadas pelo réu era estranha à actividade comercial prosseguida pela SPEM, e independente de qualquer transacção real desta.

26. Estas operações realizadas pelo réu geraram na SPEM um prejuízo de cerca de sessenta milhões de Euros.

27. Que deixou a SPEM sem capacidade para satisfazer as suas obrigações financeiras vencidas.

                  Como se colhe das conclusões em que o Banco Recorrente sintetizou as suas alegações, o que essencialmente está em causa neste Recurso de Revista é saber se, à conduta ilícita e culposa do Réu é aplicável o disposto no artº 78º/1 do Código das Sociedades Comerciais que assim estatui:

         «Os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.».

Tal significa que importa precisar quando é que o comportamento de tais dirigentes societários é susceptível de infringir disposições legais destinadas à protecção dos credores sociais, problema nada simples, na medida em que a generalidade das infracções de normas de organização e funcionamento da actividade das sociedades comerciais que tenham incidência, ainda que reflexa, na  diminuição patrimonial das mesmas é, em abstracto, idónea para, directa ou reflexamente, afectar a garantia patrimonial dos credores sociais.

Por outras palavras, as violações de normas legais destinadas a tutelar o bom funcionamento da sociedade no exercício da sua actividade, o que, como é evidente, se reflecte no património social, ainda que sob a forma de deveres dos gestores perante a sociedade e seus sócios, podem também atingir, ainda que de forma mediata ou não precípua, os interesses dos credores sociais, para quem o património da sociedade constitui garantia comum.

Efectivamente, a lei não restringe a responsabilidade em referência à exclusividade ou a especificidade da protecção dos credores sociais, podendo as normas de protecção destes ter por escopo a protecção também dos sócios e da sociedade.

Ao fim e ao cabo, todas as normas legais que gizam os deveres dos gerentes, administradores e directores tutelam directa ou reflexamente os interesses dos credores sociais.

Não parece, todavia, ter sido com essa tão ampla abrangência que o legislador quis responsabilizar directamente os gerentes e administradores das sociedades perante do credores destas.

Se assim o pretendesse, bastava referir-se às disposições contratuais ou legais sem o aditamento da expressão « destinadas à protecção destes».

              Concretamente, o nó górdio hermenêutico desta questão consiste na aferição do sentido e abrangência da expressão «disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes», pois é, fundamentalmente, da adequada solução hermenêutica para tal interpretação, que dependerá a sorte do presente litígio.

         Importa, destarte, determo-nos, por alguns momentos, sobre as posições exegéticas dos autores mais reputados na matéria, que a este ponto concreto maior atenção têm consagrado.

Assim e desde logo, indicaremos a observação do Prof. Coutinho de Abreu no seu estudo  “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades”, pag. 70, onde pode ler-se:

«Pressuposto primeiro da responsabilidade em análise é a inobservância das “disposições legais ou contratuais destinadas à protecção” dos credores sociais. A ilicitude, aqui, compreende a violação, não de todo e qualquer dever impendendo sobre os administradores, mas tão-só dos deveres prescritos em “disposições legais ou contratuais” de protecção dos credores sociais

Este conceituado autor não elabora o conceito de «disposições legais ou contratuais” de protecção dos credores sociais», indicando os elementos integrantes e distintivos das restantes disposições legais, antes se limitando a expor alguns exemplos tais como, como bem se observa no Acórdão recorrido, as que provêem à conservação do capital social, ou as que limitam a própria capacidade[1].

Para além dos exemplos indicados em nota de rodapé, o Ilustre Professor cita o caso da norma tuteladora dos interesses dos credores que é a que delimita a capacidade jurídica das sociedades (art. 6.°) 138.

Fora do CSC, cita o art. 18º do CIRE (v. também o art. 19.°), que prescreve o dever de os administrado­res requererem a declaração de insolvência da socie­dade em certas circunstâncias.

Acrescendo a estes exemplos, Coutinho de Abreu esclarece ainda:

«A inobservância de normas de protecção leva à responsabilização dos administradores perante os credores sociais desde que tal inobservância cause (nexo de causalidade) uma diminuição do património social (dano directo da sociedade) que o torna insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos ( dano indirecto dos credores).[2]

         «Tem de haver um dano, portanto, para a sociedade. E decorrente da violação das normas de protecção dos credores sociais. Um dano causado à sociedade pela violação de outras normas é susceptível de conduzir à responsabilidade para com a sociedade, não para com os credores – ainda que estes sejam afectados, medianamente, por aquela dano», acrescenta o Ilustre Professor de Coimbra[3].

O Prof. Pereira de Almeida, depois de salientar que estamos perante uma responsabilidade directa dos administradores para com os credores sociais, não havendo qualquer relação contratual entre eles, pelo que a responsabilidade é necessariamente delitual ou aquiliana, observa que enquanto no regime geral, os prejuízos para terem um nexo de causalidade com a conduta ilícita têm de ser directos, afirma que «aqui a situação é excepcional: os prejuízos são directamente causados no património da sociedade e só indirectamente afectam os credores sociais»[4].

Porém, o referido Professor tem o cuidado de prevenir também de que «não basta que a conduta dos administradores tenha provocado prejuízos à sociedade para os administradores serem directamente responsáveis para com os credores, é necessário que, por causa desses prejuízos, o património social se torne insuficiente  para a satisfação dos respectivos  créditos»[5].

O Prof. Menezes Cordeiro, após notar que o dispositivo legal de que nos ocupamos nesta indagação hermenêutica (artº 78º/1 do Código das Sociedades Comercias) tem como origem mediata o § 823, II do Código Civil alemão (Bürgerlisches Gesetzbuch), por sua vez matriz do artº 483º do nosso Código Civil) escreve que «a lei exige, para este tipo de responsabilidade, a violação de normas de protecção aos credores, protecção essa que seja causa da insuficiência patrimonial. Além disso, haverá que verificar os demais requisitos da imputação aquiliana, com relevo para a ilicitude, a culpa e o nexo causal: Nenhum desses factores se presume: haverá – por parte dos interessados –  que deduzir, com êxito, a competente prova»[6].

Ilídio Duarte Rodrigues, no seu estudo de referência, A Administração das Sociedades por Quotas e AnónimasOrganização e Estatuto dos Administradores, pronuncia-se abertamente da forma seguinte:

« É manifesto que todas as disposições que se propõem prover à realização e à conservação do capital social – não obstante serem distintos os conceitos de património social e de capital social e de ser aquele e não este que constitui a autêntica garantia de terceiros, maxime dos credores sociais – se destinam directamente à protecção dos credores sociais».[7]

Mais adiante, o referido autor assim escreve:

«Para além destas e de outras normas, que indubitavelmente visam directamente a protecção de interesses de terceiros, haverá que apurar, caso a caso, quais as disposições que têm em vista a proteção dos credores sociais, o que se alcançará mediante interpretação adequada tendente a fixar o fim da norma (Normzweck), sendo certo que não basta que a norma também, aproveite ao credor social, antes sendo necessário que ela tenha também em vista a sua protecção»[8] (sublinhado e destaque nossos).

Pupo Correia, que, neste ponto, segue de perto Ilídio Rodrigues, depois de recordar que Vasco Lobo Xavier propôs dois critérios para a indagação das normas legais protectoras do interesses dos credores, por um lado, aquelas que visam a protecção directa dos credores sociais e, por outro, as que, embora destinadas em primeira linha à protecção dos sócios, comportam ainda uma tutela dos credores e outros terceiros,[9] indica, na esteira de CC, como exemplo da primeira categoria, as normas referentes à realização do capital social pois, em seu entender, o capital social exerce  a função de garantia dos credores da sociedade o que «não é o mesmo que dizer que o património do devedor é garantia dos credores, ou seja, que os débitos do seu titular são pagáveis pelas forças do seu património».[10]

Já no tangente à segunda espécie, vale dizer, às normas que precipuamente são destinadas à protecção dos sócios, embora estendam a sua tutela também aos interesses dos credores (protecção directa dos sócios e indirecta dos credores e outros terceiros), o conceituado autor, expressando a sua concordância com CC, cuja posição veremos seguidamente, afirma que tal critério se reveste de « excessiva amplitude»  posto que se torna necessário que «a norma invocada possa ser interpretada teleologicamente como especificamente destinada a proteger os credores sociais e por isso não bastando que eventualmente os beneficie de forma reflexa»[11].

E remata, a finalizar este ponto, do seguinte modo:

«Considero mesmo que, a não ser assim, se poderia chegar a incluir na abrangência deste requisito do nº 1 do artº 78º, praticamente todas as norma aplicáveis ao exercício das funções dos titulares dos órgãos sociais e, portanto, ao cumprimento dos seus deveres funcionais, eliminando, de todo em todo, o alcance restritivo do requisito em questão e criando um estado de total insegurança jurídica no tocante à responsabilidade dos titulares dos órgãos em questão.

Aliás, em boa medida, aquele entendimento teria como consequência criar uma assimilação do alcance deste nº 1 do artº 78º ao nº 1 do artº 72º, restaurando assim, na prática, a presunção de culpa que, como vimos já, o legislador quis manifestamente afastar»[12].

Por último, anotemos que Tânia Meireles da Cunha, na sua dissertação de Mestrado, intitulada Da Responsabilidade dos Gestores das Sociedades perante os Credores Sociais ( A Culpa nas Responsabilidades Civil e Tributária), mostra-se em consonância com as posições citadas, acrescentando que «além de ilícito, o acto tem de ser danoso. Aqui reside a particularidade desta responsabilidade dos gestores: é que o dano sofrido pelos credores é um  dano indirecto; ou seja, os credores não sofrem directamente um prejuízo; sofrem-no de forma indirecta, na medida em que a garantia dos seus créditos foi afectada, total ou parcialmente.

Trata-se do dano indirecto decorrente do facto de o património da sociedade ser insuficiente para a satisfação da dívida ao credor»[13].

         De todas estes posições em pauta, retiramos um denominador comum que consiste em a insuficiência do património da sociedade gerar danos indirectos ou mediatos para aqueles credores, decorrentes de o acervo patrimonial ser insuficiente para a satisfação dos créditos dos mesmos.

É importante ter presente que o estatuto económico da sociedade comercial é factor decisório do crédito que lhe é concedido, não se limitando apenas ao capital social, mas também tendo em consideração o estofo patrimonial da empresa (sociedade) que possa «tranquilizar» os seus credores.

Aliás, há que ter em atenção que, como ensina o Prof. Pereira de Almeida[14],  costuma-se dizer que o capital social é a garantia comum dos credores, carecendo tal afirmação de ser explicada.

Na verdade, diz o citado o Professor que «o capital social figura no balanço como «rubrica do passivo» e a garantia dos credores é certamente constituída pelo activo», acrescentando, mais adiante, que «o capital social distingue-se do património, o qual constitui efectivamente a garantia geral dos credores ( artº 601º do C. Civil)».

Logo, as normas que tutelam a conservação ou promovam o aumento desse património têm também em vista a sua protecção, na expressão de Ilídio Rodrigues, supra citada.

Só assim se entende que o legislador tenha estabelecido o enlace normativo entre a inobservância culposa das disposições legais destinadas à protecção dos credores sociais e a insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos, na previsão do nº 1 do artº 78º do CSC.

Em conclusão, a diminuição do património social produzida pela inobservância de normas legais do direito societário, constitui um dano directo da sociedade, desde que se verifique o necessário de causalidade, e um dano indirecto dos credores sociais, desde que essa diminuição se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.

Consequentemente, as normas legais inobservadas, na medida em que da sua violação resultam danos (ainda que indirectos) para os credores da sociedade, visam igualmente evitar tais danos, logo, a proteger  também os referido credores, e não apenas lhes aproveitam.

Esse é o critério teleológico que, em nossa convicção, se mostra mais ajustado, não só no plano jurídico-societário, como no aspecto da realidade sócio-económica e empresarial.

Na doutrina da especialidade reina o consenso sobre o carácter delitual desta responsabilidade civil, não havendo lugar à presunção da culpa a que se refere o artº 72º do CSC, pelo que o ónus da prova desta segue a regra geral da responsabilidade extracontratual ( artº 487º do C. Civil).

É certo que o nº 5 do artº 78º do CSC remete para o artº 72º do mesmo diploma legal mas, unicamente quanto aos seus nºs 3 a 6.

Assim, como bem salienta Tânia Cunha, o legislador, ao não remeter para o referido nº 1, expressou a sua intenção de não estabelecer nenhuma presunção de culpa no caso previsto no artº 78º, nº 1 do CSC.

 Dito isto, é tempo de lembrar que tratando-se de responsabilidade civil extracontratual a que se verifica na situação prevista no nº 5 do artº 78º, ponto é que se verifiquem todos os requisitos ou pressupostos deste tipo de responsabilidade, designadamente o nexo de causalidade entre a conduta ilícita do autor da lesão e o resultado danoso.

Porém, no caso em apreço, há que ter presente o que decidiu a Relação que, como é consabido, é a entidade soberana no julgamento da matéria de facto, com excepção dos casos excepcionais previstos expressamente no artº 722º/2 do CPC, como comanda o artº 729º do mesmo Código, em que o Supremo Tribunal de Justiça pode sindicar tal julgamento, mas que aqui não ocorrem.

Para tanto, permitimo-nos transcrever um excerto do Acórdão recorrido, justamente sobre a falada conexão causal entre a conduta ilícita do Réu e o invocado dano do Banco Autor:

«Nesta parte, para além de voltar a fazer apelo ao dever de diligência dos administradores e directores, estabelecido no art. 64.º do CSC, o apelante invoca a violação dos princípios e regras de contabilidade, traduzidas na falta de registo de operações de forward na escrita da sociedade, na ocultação dos resultados negativos dessas operações nas contas da sociedade relativas ao ano de 1999, e no extravio de documentos.

Ora, nesta sede, parece seguro que as normas que regulam a escrita e, em particular a apresentação de contas da sociedade, não visam proteger apenas os interesses da sociedade, destinando-se também aos terceiros em geral, que possam estar, ou vir a estar em relação negocial com a sociedade, incluindo, designadamente, os credores sociais.

De facto, designadamente as contas da sociedade, e o relatório de gestão que as deve acompanhar, têm como objectivo a apresentação da situação patrimonial da sociedade, naquele momento, e destinam-se não apenas aos sócios, mas a qualquer potencial interessado nessa informação, onde deverão ser incluídos os credores sociais, naturalmente interessados na garantia dos seus créditos.

Mas, apesar de estarem em causa normas que também visam proteger os interesses dos credores sociais, e de ser clara, e grosseira, a sua inobservância pelo réu, julga-se, ainda assim, que não está verificada a previsão do art. 78.º, n.º 1 do CPC.

É que, nos termos já referidos, só releva para o efeito pretendido a ilicitude que seja causa do dano e, no caso, não se vê que possa ser estabelecido nexo de causalidade entre a inobservância das boas regras, digamos assim, na apresentação das contas e o dano verificado.

É certo que pode ser dado por adquirido que, se as contas apresentadas pelo réu, relativas ao ano de 1999, tivessem reflectido os resultados negativos de cerca de €14.000.000,00 já então acumulados, não teriam previsivelmente ocorrido as operações que foram realizadas já no ano 2000, e que mais do que quadruplicaram aquelas perdas. Mas a causa desse dano, verificado no ano de 2000, não foi a ocultação dos prejuízos já acumulados no ano de 1999, mas a continuação das operações cambiais, que a viciação das contas se limitou a encobrir.

Parecendo seguro que só pode relevar como fundamento do dano a inobservância da norma legal em relação ao próprio lesado, não está demonstrado nos autos que o facto de as contas apresentadas pelo réu não estarem certas tivesse determinado o autor à prática de qualquer acto de que tivessem resultado danos. Mais concretamente, e a título exemplificativo, não está provado que a decisão do autor de adquirir os créditos da casa mãe sobre a SPEM, tivesse, de alguma forma, sido determinada por essas contas.

E julga-se que só na medida em que a apresentação de contas erradas tivesse determinado o autor à prática, ou à omissão, de qualquer acto, de que lhe tivessem advindo danos, é que poderia ser julgada verificada a existência de danos resultantes da inobservância de uma disposição legal destinada à protecção dos credores sociais.

Também aqui se julga não verificado este pressuposto da responsabilidade do administrador perante o autor.

Por fim, já foi referido que ao realizar operações cambiais de mera especulação financeira, claramente excluídas do objecto social da sociedade administrada, com a dimensão e com os resultados que ficaram evidenciados em sede de matéria de facto, o réu desrespeitou o preceituado no art. 6.º, n.°s 1 e 4 do CSC, de onde decorre a limitação da actividade social ao fim prosseguido pela sociedade, e a imposição aos órgãos sociais da obrigação de limitarem a actividade social ao respectivo objecto.

Mas esta também é, em princípio, uma norma de simples protecção das sociedades, e dos terceiros que com ela contratam, não sendo uma norma de protecção dos interesses dos credores sociais. Só assim não será nos casos em que a inobservância do fim social seja mais grave, afectando a própria capacidade da sociedade, como será o caso dos actos, não apenas estranhos ao fim social, mas contrários a esse mesmo fim. Como são, designadamente, os actos gratuitos, fora dos casos previstos no n.º 2 do referido art. 6.º.

Estando apenas em causa a prática de actos estranhos ao fim social, mas não contrários a esse fim, por muito imprudentes que possam ser considerados, também não é possível fundar aqui o direito de indemnização que o autor se arroga na presente acção.

Pretensão que, assim deve ser julgada improcedente.» (destaque e sublinhados nossos).

Contra este entendimento do Acórdão recorrido, insurge-se o Autor nas suas doutas alegações, cuja matéria se acha condensada na conclusão 25ª do seguinte teor:

«Atenta a função da contabilidade, não se pode também deixar de discordar com a conclusão formulada no Acórdão em crise na parte em que refere que "apesar de estarem em causa normas que também visam proteger os interesses dos credores sociais, e de ser clara, e grosseira, a sua inobservância peio réu, julga-se, ainda assim, que não está verificada a previsão do artigo 78°, n.° 1 do CSC, concluindo-se que «(...) só releva para o efeito pretendido a ilicitude que seja causa do dano (...) é certo que pode ser dado por adquirido que, se as contas apresentadas pelo réu relativas ao ano de 1999, tivessem reflectido os resultados negativos de cerca de € 14.0000.0000,00 já então acumulados, não teriam previsivelmente ocorrido as operações que foram realizadas já no ano 2000, e que mais do que quadruplicaram aquelas perdas. Mas a causa desse dano, verificado no ano 2000 não foi a ocultação dos prejuízos já acumulados no ano 1999, mas a continuação das operações cambiais, que a viciação da conta se limitou a encobrir» (destaque nosso)»

Tem razão o Autor, adiante-se desde já!

Não foi feliz a Relação ao se referir ao nexo de causalidade entre a ilicitude e o dano (mediante a expressão a ilicitude que seja causa do dano) pois,  na verdade, tal conexão será sempre entre a conduta ilícita e o dano ou lesão.

No entanto, facilmente se entende a afirmação proferida, no sentido, não de ilicitude enquanto conceito normativo, mas de conduta ilícita e da relação causal dessa conduta com o dano alegado pelo Banco autor.

É certo que não vem provado quando é que o BancoAA ora Autor, adquiriu o crédito que a sociedade-mãe SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO, LTD tinha sobre a sociedade-filha SAMSUNG ( PORTUGAL) PRODUTOS ELECTROMECÂNICOS, S. A, designada no presente acórdão pela sigla SPEM.

Por outras palavras, não vem provado quando é que o Autor se tornou credor da sociedade SPEM da qual era administrador o ora Réu BB.

No entanto, há elementos – esses provados – que relevam para esta questão, que são os factos 6º a 10º do acervo factual apurado e definitivamente fixado, dos quais pontificam dois ( factos 9º e 10º) que é o das datas em que a SPEM foi notificada pela sociedade Electro-Mechanics ( sociedade-mãe) da cessão de créditos de que tratam os autos e da aceitação desta.

Tais factos provados, reportando-se aos factos 6º a 8º, têm o seguinte teor:

Facto 9: Factos que foram notificados pela SAMSUNG ELECTRO MECHANICS CO., LTD. à SPEM em 10.10.2000 e em 3.11.2000 por meio dos documentos nºs 129 e 130 (da PI) juntos aos autos de arresto apensos.

Facto 10: 10. A SPEM aceitou expressamente os factos acima referidos.

  Daqui deflui que a referida cessão de créditos só foi notificada à SPEM nas datas referidas no facto 9º, nada se conhecendo que anteriormente a tais datas tenha a ver com a dita cessão.

Doutra banda, vem provado que o Réu BB integrou o Conselho de Administração da SPEM desde 1998 a 15 de Setembro de 2000, sendo responsável pela tesouraria e contabilidade.

Portanto, socorrendo-nos apenas dos factos provados, como não poderia deixar de ser, temos que quando a SPEM foi notificada nos termos do facto 9º, acabado de transcrever, já o Réu não era administrador (não integrava o C.A. da SPEM).

 Tal aspecto é de considerável relevância, pois quando o AA adquiriu o crédito como cessionário, o mesmo não deveria ignorar o estado do património da SPEM e a insuficiência do mesmo para solver a dívida correspondente ao crédito adquirido.

Esta situação factual não se presume e, como tal, carecia de ser alegada e provada como facto constitutivo do direito do Banco demandante.

De resto, tratando-se de um Banco, portanto, de uma entidade profissionalmente ligada às actividades comerciais de créditos e demais aspectos financeiros, dificilmente se presumiria tal ausência de indagação.

Deste modo, em princípio estaria correcta a asserção da Relação, ao referir que «não está provado que a decisão do autor de adquirir os créditos da casa mãe sobre a SPEM, tivesse, de alguma forma, sido determinada por essas contas.

Já não procede, todavia, a asserção seguinte, deste teor:

E julga-se que só na medida em que a apresentação de contas erradas tivesse determinado o autor à prática, ou à omissão, de qualquer acto, de que lhe tivessem advindo danos, é que poderia ser julgada verificada a existência de danos resultantes da inobservância de uma disposição legal destinada à protecção dos credores sociais».

Assim seria, na verdade, se o Autor não tivesse adquirido tal crédito por via da cessão de créditos celebrada entre ele, AA como cessionário e a sociedade Samsung Electro Mechanics Co, Ltd como cedente do crédito.

É que ao adquirir o crédito que a sociedade Samsung Electro Mechanics Co, Ltd detinha relativamente à sociedade SPEM, o cessionário adquiriu todos as garantias e outros acessórios da sociedade cedente.

Neste sentido, pode ver-se Menezes Leitão, que assim escreve:

«A transmissão do crédito verifica-se com todas as vantagens e defeitos que o crédito tinha, abrangendo, portanto, garantias e outros acessórios (artº 582º do C.Civil)»[15]

Trata-se, como ressalta à evidência, da decorrência lógica do princípio «acessorium principale sequitur» e, como anotam P. Lima e A.Varela no seu Código Civil anotado, «como direitos acessórios, transmitem-se o direito aos juros, as penas convencionais, os direitos potestativos ligados ao crédito, como o direito de escolha na obrigação alternativa. etc».[16]

Já vimos que estamos no domínio da responsabilidade extracontratual e, como tal, na dependência dos requisitos ou pressupostos dessa forma de responsabilidade civil.

É de convocar, aqui e agora, uma breve passagem do estudo de Raul Ventura e Brito Correia, intitulado «Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Anónimas e dos Gerentes das Sociedades por Quotas», onde aqueles Ilustres Autores escrevem:

«Tem natureza delitual ou extracontratual, que não obrigacional ou contratual, pois não existe, anteriormente ao acto ilícito, qualquer direito de crédito do credor social perante o administrador. Existe apenas um interesse juridicamente protegido a que corresponde um dever de carácter geral».[17]

Sendo assim, tem indiscutível interesse relembrar, aqui e agora, o que se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de Dezembro de  2006[18], de que foi Relator o Exmº Juiz Conselheiro Borges Soeiro, assim se mostra sumariado:

«I - A responsabilidade do sócio-gerente perante o credor social depende dos seguintes requisitos:

a) que o facto do gerente constitua numa insolvência culposa de disposições legais destinadas á protecção dos interesses dos credores sociais;

b) que o património social se tenha tornado insuficiente  para a satisfação dos respectivos créditos.

c) que o acto do gerente possa considerar-se causa adequada do dano.

II – Tendo a ré, enquanto sócia-gerente de uma sociedade, contraído empréstimos em nome desta e aplicado o dinheiro na compra de bens próprios, torna-se responsável pelos prejuízos sofridos pelo credor social que, por esse facto, deixa de ver pago o seu crédito»

No texto do referido aresto, teceram-se as considerações seguintes que têm aqui inteiro cabimento:

«Não se trata de saber se o administrador tem ou não o dever de cumprir a obrigação da sociedade para com o credor social, mas antes de saber se o administrador tem ou não, perante certo credor social, o dever de não afectar o património social em violação das leis destinadas a proteger os credores sociais»

O administrador ou gerente constitui-se no dever de indemnizar os credores sociais sempre que pratique um acto danoso, ilícito e culposo, com os elementos específicos indicados no n" 1 do aludido art. 78a do CSC.

A responsabilidade só surge se o dano atingir o património social e o devedor o tornar insuficiente para a satisfação dos créditos dos credores da sociedade

Há-de ser, consequentemente. um dano patrimonial para a sociedade.

E depende dos seguintes requisitos cumulativos131' a) que o facto do gerente constitua urna inobservância culposa de disposições legais destinadas à protecção dos interesses dos credores sociais; b) que o património social se tenha to/nado insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos: c) que o acto do gerente possa considerar-se causa adequada do dano.

Na verdade, este preceito consagra uma acção pessoal e directa dos credores contra os titulares do órgão de gestão, destinada a fazer valer um direito próprio a ressarcimento de prejuízos sofridos com a insuficiência do património social.

Não se trata, pois, de uma acção sub-rogatória destinada a fazer valer um direito indemnizatório da sociedade face aos apontados credores.

É o que resulta do confronto do n° l com o n" 2 ambos do art. 78" do C.S.C.».

Mais adiante, assim se ponderou no citado aresto:

«Em suma: a "ratio"do art. 78° n" 1 consiste em facultar aos credores uma garantia legal pessoal do pagamento dos seus créditos para com a sociedade, impondo essa obrigação de garantia aos membros dos órgãos sociais a titulo de sanção aquiliana pela violação com culpa das normas de protecção de credores».

         No caso em apreço verifica-se a existência de todos os pressupostos da responsabilidade extracontratual do ora Réu perante o credorAA como, aliás, nos dá conta o próprio acórdão recorrido (fls. 30/31), ao afirmar o que, pela sua manifesta relevância, se impõe aqui transcrever:

«Como já se deixou anotado, está em causa uma forma de responsabilidade extracontratual, pois que não assenta em qualquer vínculo obrigacional, havendo, pois que verificar os pressupostos desta forma de responsabilidade.

Remetendo para a anterior apreciação em sede de matéria de facto, dá-se por verificada a actuação do agente, traduzida numa multiplicidade de operações designadas por “contratos forward”, e respectivos “roll overs”, realizadas pelo ora apelado em nome da SPEM, e a partir de contas bancárias desta; e na ocultação dessas operações nas contas da sociedade, incluindo o extravio de documentos.

Do mesmo modo se considera verificada a existência do dano alegado pelo autor. Da actuação do réu resultaram enormes perdas para a sociedade que, em síntese, a tornaram insolvente e, designadamente, incapaz de fazer face à satisfação do crédito do aqui autor AA. Nos termos do ponto 13.º do elenco da matéria de facto assente, actualmente os bens da SPEM são insusceptíveis de satisfazer 1/10 do valor desse crédito.

Sendo que o montante peticionado nos autos é muito inferior à medida da perda da garantia patrimonial que resultou da actuação do réu.

Não suscita, igualmente, qualquer dúvida a conclusão de que foram os inúmeros “contratos forward”, e respectivos “roll overs”, realizadas pelo ora apelado em nome da SPEM, e a partir de contas bancárias desta que deram causa à situação de incapacidade financeira, mesmo de insolvência, da SPEM, existindo, pois nexo de causalidade entre os actos ilícitos do réu e a verificação dessa incapacidade financeira, que consubstancia o dano invocado pela apelante.

Também não oferece dúvidas, e já acima se deixou afirmada, a existência de culpa do réu em toda esta sua actuação, de que resultaram tais perdas para a sociedade e a perda da garantia patrimonial do crédito do autor. No sentido de que, nas circunstâncias em que actuou, lhe era exigível outro comportamento, consentâneo com os seus deveres de administrador e de director financeiro da SPEM.

Assim:

Nos termos julgados provados, o réu realizou operações cambiais de mera especulação financeira, claramente excluídas do objecto social da sociedade administrada, com a dimensão e com os resultados que ficaram evidenciados em sede de matéria de facto. Desrespeitando, assim, e desde logo, o preceituado no art. 6.º, n.°s 1 e 4 do CSC, de onde decorre a limitação da actividade social ao fim prosseguido pela sociedade, impondo aos órgãos sociais a obrigação de limitarem a actividade social ao objecto da sociedade. Dever que foi grosseiramente desrespeitado pelo réu no caso dos autos.

Depois o réu também desrespeitou regras atinentes à organização da contabilidade da empresa, actividade pela qual era o responsável directo, tentando ocultar de outros responsáveis da sociedade, ao menos temporariamente, as operações cambiais que foi realizando.

E desrespeitou claramente o dever de diligencia que lhe era imposto pelo art. 64.º do CSC, nos termos do qual, na redacção vigente na data dos factos, “Os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.

Como concluiu o Sr. Perito DD no seu relatório “..não se pode dizer que a decisão de expor ao risco maiores quantidades de moeda fosse uma decisão prudente, quando comparada com a decisão de abandonar os investimentos especulativos.”

Era, pois, exigível ao réu outro comportamento, pautado pela abstenção de operações cambiais de pura especulação, estranhas ao objecto social da empresa, e da sua ocultação dos demais responsáveis da sociedade, designadamente não as reflectindo na contabilidade da empresa, nem extraviando documentos respeitantes à actividade da empresa. Limitando, no fundo, a sua intervenção à área da sua competência funcional, no respeito das competências convergentes dos demais administradores e directores, e sempre no âmbito do objecto social da SPEM, que não era a especulação financeira».

Eis-nos chegados ao fim desta longa escalpelização dos pressupostos da responsabilidade extracontratual do Réu, que ao abrigo do disposto no artº 78º/2 do Código de Sociedades Comerciais, impõe a sua condenação na obrigação de indemnizar o Autor, por tudo o que exarado se deixou, nos termos pedidos.

Estão, na verdade, reunidos todos os requisitos para a evidenciação clara da procedência da acção, sendo certo que, como bem ponderou o Tribunal da Relação no seu Acórdão, ora em recurso, que «o montante peticionado nos autos é muito inferior à medida da perda da garantia patrimonial que resultou da actuação do Réu».

Procedem, destarte, as conclusões da douta alegação do Autor, o que linearmente conduz à procedência da presente acção, com a consequente condenação do Réu no pedido formulado pelo Autor.

DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a Revista, revogando-se o Acórdão recorrido e condenando-se o Réu BB, a pagar ao Autor, AA a quantia peticionada, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Custas pelo Recorrido, neste Supremo Tribunal e nas Instâncias, por força da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 12  de Janeiro de 2012

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

João Trindade

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[1]Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades, Almedina, pg. 70, onde Coutinho de Abreu escreve o seguinte:

«É o caso das que provêem a conservação do capital social (v. g., artºs. 31.°-34.°, 514.°; 236.°, 346.°, l, 513.°; 220.°, 2, 317.°, 4): proibição, em princípio, de distribui­ção de bens sociais aos sócios sem prévia deliberação destes, proibição de distribuição de bens sociais quando o património líquido da sociedade seja ou se tornasse (em consequência da distribuição) inferior à soma do capital e das reservas legais e estatutárias, interdição da distribuição de lucros do exercício em certas circuns­tâncias e de reservas ocultas; ilicitude da amortização de quotas e de acções sem ressalva do capital social; ilicitude da aquisição de quotas e de acções próprias sem ressalva do capital social. E também o caso das normas relativas à constituição e utilização da reserva legal (artºs. 218º, 295.°, 296.°).

Considera igualmente normas de protecção dos credores as que proíbem a subscrição de acções próprias (art. 316.°, 1), bem como certas aquisições e detenções de acções próprias (artºs. 317.°, 2, e 323.º, entre outros)».
 
[2] Op. cit, pg 72.
[3] Idem, ibidem.
[4] António Pereira da Silva, Sociedades Comerciais, 3ª edição, 2003, pg. 174/5.
[5] Idem, ibidem.
[6] Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais, Lex, pg. 494,5.
[7] Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades por Quotas e AnónimasOrganização e Estatuto dos Administradores, Livraria Petrony, Lda, 1990, pg. 222.
[8] Op. cit, pg. 223.
[9] Miguel Pupo Correia, Sobre a Responsabilidade por Dívidas Sociais dos Membros dos Órgãos da Sociedade, in ROA, ano 61 (Abril 2001),pg. 667.
[10]  Ibidem.
[11]  Ibidem.
[12]  Ibidem.
[13] Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores das Sociedades perante os Credores Sociais ( A Culpa nas Responsabilidades Civil e Tributária), 2ª edição, Almedina. pg.68.
[14] Pereira de Almeida, op.cit, pg. 212.
[15] Menezes Leitão, Direito das Obrigações II (Transmissão e Extinção das Obrigações, Não Cumprimento e Garantias de Crédito), 7ª edição, 2010, pg. 25.
[16] P.Lima e A.Varela, Código Civil, anotado, I, pg. 598.
[17] Raul Ventura e Brito Correia, Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Anónimas e dos Gerentes das Sociedades por Quotas, BMJ, 195,pg. 66.
[18] Col. Jur (Acs. STJ),