Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2686/08.9TBAMD.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
PROMESSA UNILATERAL
PROMESSA BILATERAL
NULIDADE
FALTA DE ASSINATURA
SINAL
TRADIÇÃO DA COISA
ÓNUS DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
BOA FÉ
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – O instituto da redução constitui uma manifestação dos princípios gerais do favor negotii e da conservação dos negócios jurídicos, e baseia-se numa ideia de proporcionalidade entre a causa de invalidade e o efeito.

II – O contrato-promessa bilateral de compra e venda de imóvel para habitação, assinado apenas pelo promitente-vendedor, acompanhado de convenção de sinal e entrega das chaves (traditio), é parcialmente nulo, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da redução previsto no artigo 292.º do Código Civil e não o regime da conversão (artigo 293.º do Código Civil), que tem como pressuposto a nulidade total do negócio, exigindo ao interessado na validade do contrato o ónus de alegação e de prova dos requisitos da conversão.

III – Nos termos da 2.ª parte do artigo 292.º do Código Civil, é sobre o contraente interessado na invalidade total do negócio que recai o ónus de alegação e prova dos factos demonstrativos de que o mesmo “não teria sido concluído sem a parte viciada”, i.e., que o mesmo não teria sido celebrado se não fosse bilateral.

IV – A análise desta questão de direito sempre dependerá de uma avaliação casuística dos factos de cada caso e dos ditames da boa fé.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório

1. AA e BB intentaram a presente ação contra CC, formulando os seguintes pedidos:

A) Ser julgada abusiva, ilegítima, não titulada e de má-fé, a posse que a Ré exerce sobre a fração “E”, correspondente ao 2.º andar direito do prédio sito na Rua ..., na ...;

B) A condenação da Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre aquela fração;

C) A condenação da Ré, no pagamento aos Autores da quantia de €20.000,00, a título de indemnização pela ocupação e utilização da referida fração;

D) A condenação da Ré no pagamento aos Autores de uma indemnização não inferior a €20,00 por cada dia que durar a mais, a contar da citação da presente ação à ocupação da referida fração.

E) A condenação da Ré no pagamento de uma indemnização de €5.000,00, a título de sanção pecuniária compulsória.

 

Para fundar a sua pretensão alegou, em síntese, que:

- Os Autores são legítimos proprietários da fração autónoma descrita no art. 1.º e 3.º, da petição inicial, que adquiriram por compra;

- O referido prédio, encontra-se ocupado pela Ré, sem e contra o consentimento dos Autores, a qual se arroga a qualidade de filha de DD, com quem os Autores, em meados do ano de 1985 celebraram um contrato promessa de compra e venda da fração autónoma em causa, não tendo sido celebrado o contrato definitivo, por circunstâncias e contrariedades várias, quer do Sr. DD, quer dos Autores.

- Após várias interpelações infrutíferas feitas ao DD com vista à outorga da escritura de compra e venda, tomaram os autores conhecimento, em 2007, de que era a Ré quem, conjuntamente com a sua filha, genro e neta, residia naquele andar.

- Contactada que foi a Ré por parte dos Autores, mostrou a mesma interesse na aquisição da fração reivindicada, desde que conseguisse empréstimo bancário.

- Apesar das várias propostas de solução apresentadas por parte dos Autores, a Ré nunca apresentou qualquer resposta.

- A Ré ocupa, assim, de forma ilegítima e abusiva a fração pertença dos autores. 


2. Regularmente citada, contestou a Ré a presente ação. Defende-se por exceção e por impugnação.

- Invoca a ineptidão da petição inicial, bem como ilegitimidade passiva da R., desacompanhada dos restantes herdeiros de DD.

- Impugna serem os Autores proprietários da fração em causa;

- Alega ter título legítimo para ocupar a fração autónoma em causa, porquanto, logo após a outorga do contrato promessa em causa, os Autores entregaram as chaves da fração reivindicada a DD que passou de imediato a habitá-la na companhia da Ré, com pleno conhecimento e aceitação dos autores.

- Por conta do preço acordado pagou o DD a quantia de Esc:1.000.000,00,00.

- Pese embora tenha sido concedido a DD empréstimo com vista ao pagamento do remanescente do preço acordado, a escritura de compra e venda não foi outorgada por facto exclusivamente imputável aos Autores.

Pugna a final pela improcedência da ação.


3. Deduziu ainda a Ré pedido reconvencional, pedindo:

A) Se reconheça e declare a aquisição da propriedade, por usucapião, a favor da Ré, sobre a fração autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao 2.º andar direito, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho ..., descrito sob o n.º ...7 da freguesia ..., na ... Conservatória do Registo Predial ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...03, da referida freguesia, ou, subsidiariamente:

B) Seja proferida decisão judicial que substitua a declaração negocial dos autores, enquanto promitentes faltosos, destinada à celebração da escritura pública de compra e venda prometida, nos precisos termos e condições estipulados no contrato promessa junto aos autos.

Alega para o efeito, que DD seu pai celebrou com os Autores um contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma supra descrita, tendo entregue àqueles, a título de sinal, a quantia global de Esc: 1.000.000,00.

Munido dos documentos necessários com vista à celebração da escritura pública, DD procurou, sem sucesso, os Autores.

DD e a Ré passaram a residir na referida fracção desde 19 de setembro de 1985, data da celebração do contrato promessa em causa, onde fixaram a sua habitação permanente; sempre residiram e a Ré ainda reside, sem qualquer oposição dos autores ou de quem quer que fosse, o que fizeram de boa-fé, na convicção de não violarem o direito de outrem, sendo reconhecidos por todos como proprietários da fração.

DD faleceu a .../.../1994, continuando a Ré a residir na fração em causa.

Apenas por carta datada de 3/7/2007, se dirigiram os Autores à Ré.


Mais alega que o contrato promessa em causa apenas não foi cumprido por culpa exclusiva dos Autores.


Mais requereu a Ré, em tal peça processual, a intervenção principal, como seus associados, dos seus irmãos EE e FF, sucessores do promitente comprador DD, que foi deferido, não tendo os mesmos apresentado qualquer articulado, apesar de regularmente citados.


4. Os Autores apresentaram réplica, respondendo à nulidade e excepção deduzida, mantendo a posição por si assumida em sede de petição inicial.

Mais invocaram em sede de réplica a nulidade do contrato promessa em causa, por o mesmo não se mostrar assinado pelo promitente comprador, alegando que apenas com a junção do contrato pela R. aos autos ficaram a saber que o mesmo não foi assinado por DD.

Impugnam ainda a versão apresentada pela Ré que fundamenta o pedido reconvencional

Pugnam a final pela improcedência do pedido reconvencional.

Foi dispensada a realização de audiência prévia.

Foi admitido o pedido reconvencional.

Foi julgada improcedente a invocada exceção de ineptidão da petição inicial e foi julgado prejudicado o conhecimento da invocada exceção de ilegitimidade, face à intervenção de terceiros.

 

Foi proferido despacho saneador, no qual se afirmou a competência do tribunal; a inexistência de nulidades que afetem todo o processado; a legitimidade, personalidade e a capacidade judiciária das partes.

Verificou-se a inexistência de quaisquer outras nulidades, exceções ou questões prévias, que obstem ao conhecimento da causa.

O Tribunal fixou o objeto do litígio e enunciou dos temas da prova.


5. Procedeu-se a julgamento e, a final, foi proferida Sentença onde se decidiu o seguinte:

«1) Por todo o exposto, e com base nas citadas disposições legais, julgo a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:

A - Condeno a Ré CC a reconhecer o direito de propriedade dos Autores AA e BB. sobre a fracção autónoma designada pela letra

E”, correspondente ao 2.º andar direito, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho ..., descrito sob o n.º ...7 da freguesia ..., na ... Conservatória do Registo Predial ..., e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...03, da referida freguesia;

B - Absolvo a Ré dos demais pedidos contra si deduzidos.

2) Por todo o exposto, e com base nas citadas disposições legais, julgo a Reconvenção improcedente por não provada e, em consequência absolvo os Autores dos pedidos contra si deduzidos».

         

6. Inconformados com esta decisão, vieram os autores interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa decidido “Julgar improcedente o recurso interposto pelos AA. mantendo-se em consequência a Sentença proferida nos autos”.

7. Novamente inconformados, vieram os autores, AA e BB, nos termos do disposto noS artigos 637.º, 638.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2, al. c), 671.º, n.ºs 1 e 3, 672.º, n.º 1, al. c), e 674.º, n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Civil (CPC), interpor recurso de Revista Excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«A. O regime do contrato promessa está submetido ao princípio da equiparação, aplicando-se em geral ao contrato promessa os requisitos e efeitos do contrato prometido.

B. Nos termos do disposto no n.º 2 do art. 410.º do Cód. Civil, o contrato promessa de compra e venda de imóveis só é validamente celebrado se constar de documento assinado por ambas as partes.

C. O contrato promessa de compra e venda em causa nos autos encontra-se assinado exclusivamente pelo promitente vendedor.

D. Um contrato promessa de compra e venda, por natureza bilateral e sinalagmático, assinado por um só promitente é nulo por inobservância da forma legal.

E. A doutrina e jurisprudência divergem como à forma de aproveitamento daquele contrato nulo.

F. No Acórdão recorrido apontou-se o caminho da redução do contrato (cf. art. 292.º do CC)

G. Já no Acórdão fundamento, na esteira do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-89, a solução eleita passou pela consagração da tese da conversão do contrato (cf. art. 293.º do CC).

H. A aplicação de um ou de outro instituto tem gravosas implicações quanto ao ónus de alegação e de prova dos respetivos pressupostos de aplicação.

I. No que se refere à aplicação do regime da conversão, a parte não subscritora do contrato-promessa, interessada na validade da promessa em termos de unilateralidade, terá de alegar e provar os requisitos gerais da conversão – art. 293.º do CC.

J. O que não aconteceu nos presentes autos.

K. O Tribunal não pode conhecer oficiosamente da conversão do contrato.

L. A Ré nunca suscitou a questão da conversão do contrato promessa nulo, estando o tribunal a quo impedido de suscitar e apreciar a possibilidade de recorrer à conversão ou redução do contrato promessa declarado nulo.

M. O instituto da conversão é o que melhor realiza a justiça no caso concreto.

N. A Ré não alegou, e muito menos provou, qualquer facto que permita supor que as partes teriam pretendido a validade da promessa unilateral se tivessem antecipado a nulidade da promessa bilateral entre si celebrada.

O. Não se verificam, no caso concreto, os requisitos exigidos no art. 293.º do CC, não podendo o contrato promessa em crise valer como promessa unilateral de venda, por força da aplicação do instituto da conversão.

P. Face à nulidade do contrato promessa de compra e venda e à impossibilidade de o mecanismo da conversão (e da redução!) operar no caso concreto, a Ré carece de título que legitime a recusa da restituição da fração reivindicada.

Q. Qualquer que seja o instituto aplicável, o recurso aos ditamos da boa-fé funciona como válvula de escape da realização de justiça.

R. A conduta dos Recorrentes, ao invocarem a nulidade do contrato, ainda que depois de pretenderem ver concretizado o negócio com a Recorrida, não viola o princípio da boa-fé, antes visou a resolução expedita do litígio.

S. Os Recorrentes só com a notificação da Contestação adquiriram conhecimento que o contrato promessa nunca haveria sido assinado pelo promitente comprador.

T. O comportamento da Recorrida, ao longo de todo o litígio (extra e judicialmente), configura uma situação de violação dos ditamos da boa-fé, atenta todas as manobras dilatórias utilizadas, que visaram adiar ad aeternum (em benefício exclusivo da Recorrida) uma decisão transitada em julgado.

U. O contrato promessa bilateral em causa nos autos é nulo por falta de observância da forma legal.

V. Esse contrato não poderá valer como promessa unilateral de venda, face ao não preenchimento dos requisitos do instituto da conversão.

W. O Acórdão recorrido, ao contrário do entendimento explanado no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 25-11-2003, proc. n.º 03ª3583, relatado por AZEVEDO RAMOS (CF. Acórdão fundamento (doc. 1) o Assento do STJ de 29-11-89, que se debruçou num caso com contornos semelhantes, aplica o instituto da conversão em detrimento do regime da redução.

X. O Acórdão recorrido violou, assim, o disposto nos artigos 292.º, 293.º e 410.º, n.º 2, todos do Código Civil.

Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o Acórdão recorrido revogado e substituído por douto Acórdão que:

8. A ré apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção do decidido.

9. A Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC admitiu o presente recurso de revista excecional, com base no artigo 672.º, n.º 2, al. c), do CPC, em virtude da invocada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 25-11-2003 (proc. n.º 03A3583). 

A questão de direito tratada em ambos os acórdãos, e que tem sido objeto de controvérsia doutrinal e jurisprudencial é a da validade do contrato promessa bilateral, reduzido a escrito, mas assinado apenas por um dos promitentes, na situação presente, apenas assinado pelo promitente-vendedor. A questão reside em saber se à situação dos autos se aplica a redução do negócio jurídico (artigo 292.º do Código Civil), e uma presunção de validade parcial do negócio, tal como decidido pelo acórdão recorrido, ou o instituto de conversão do contrato-promessa nos termos do artigo 293.º do Código Civil, tal como entendeu o acórdão fundamento, cujo ónus de alegação e prova caberia ao interessado na validade.

10. Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a decidir é a da validade do contrato promessa bilateral reduzido a escrito, mas apenas assinado pelo promitente-vendedor.

       Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A - Os factos

         

Factos Provados:

1 - Mostra-se inscrita, através da AP. n.º ...59 de 2019-02-01, a propriedade a favor dos Autores, sobre a fração autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao 2.º andar direito, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho ..., descrito sob o n.º ...7 da freguesia ..., na ... Conservatória do Registo Predial ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...03, da referida freguesia.

2 - A qual foi por si adquirida, por compra, em 16-04-1982.

3 - Tendo sido constituída propriedade horizontal sobre o prédio urbano referido em 1), em 26-08-1983.

4 - Em 05-01-2007 a Caixa Económica declarou autorizar o cancelamento das inscrições hipotecárias n.º C-1, Ap. ...5 de 1982/04/16 e C-2, Ap. ...3 de 1982/06/30, registadas a seu favor na Conservatória do Registo Predial ... 2.ª, mas tão somente quanto às frações autónomas designadas pela letra “B”, “E” e “N”, do prédio urbano descrito na mesma Conservatória sob o número ...47, da Freguesia ....

5 - Os Autores pagaram a 2.ª prestação do IMI referente ao ano de 2007, relativa à fração autónoma descrita em 1).

6 - Os Autores prometeram vender a DD, que por sua vez lhes prometeu comprar, a fração autónoma descrita em 1).

7 - Para o efeito, foi outorgado, em 19 de setembro de 1984, o documento particular, denominado “Contrato de Promessa de Compra e Venda”, do qual consta apenas a assinatura do promitente-vendedor, nos termos do qual o Autor AA, prometeu vender a DD, que prometeu comprar, livre de ónus ou encargos, pelo preço Esc: 3.600.00$00 (três milhões e seiscentos mil escudos), a fração descrita em 1), nos precisos termos constantes de fls. 105 a 105v, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.

8 - Os Autores tomaram conhecimento através da administração do condomínio, “C..., Lda.” que era a Ré quem, juntamente com uma sua filha, genro e neta, residia naquela fração.

9 - A pedido e em representação dos Autores, foi dirigida e remetida à Ré, que a recebeu, missiva datada de 03-07-2007, cuja cópia se mostra junta a fls. 24, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, nos termos da qual, foi indagada a disponibilidade da Ré com vista a reunir no escritório do Advogado subscritor de tal missiva, com vista a poder fazer o levantamento da situação, também, jurídica, da posse da fração, que, conforme informação da Administração do prédio, V. Exa habita.

10 - Em julho de 2007 teve lugar uma reunião entre, pelo menos, o Autor marido e a Ré, na qual esta mostrou interesse em adquirir a fração em causa, desde que conseguisse obter empréstimo bancário para o efeito,

11 - Mais informando que iria falar com os seus irmãos e solicitou algum tempo para dar uma resposta.

11A- Com data de 30/10/2007, a pedido e em representação dos Autores, foi dirigida e remetida à Ré, que a recebeu e à qual não apresentou resposta, de onde consta:

“Ultrapassados que estão todos os prazos normais, solicitados, aliás, por v. Exa, com vista a ser encontrada uma solução, acordada, venho, na sequência do nosso último contacto, pessoal, no passado dia 24 e numa derradeira tentativa de resolução extrajudicial deste assunto, apresentar nova proposta para aquisição por v.Exa. da fracção de que sou proprietário (…). Assim, tendo em atenção o interesse, sempre manifestado, de V. Exa. Na aquisição daquela fracção e a regularização imediata do assunto, reduzo para €95.000,00 o valor de €110.000,00 inicialmente pedido para a venda da fracção.

Assim, é a seguinte a proposta que agora apresento a V. Exa.:

- Preço de venda da fracção: €95.000,00 (noventa e cinco mil euros); - Assinatura imediata do contrato promessa de compra e venda;

- Entrega do sinal, no valor de €9.500,00, até 30/11/2007;

- Outorga da escritura de compra e venda até 31/1/2008.

Fico, pois, a aguardar que até ao próximo dia 8 de Novembro impreterivelmente, seja dada uma resposta a esta minha proposta (…).”(ponto da matéria de facto aditado pelo Tribunal da Relação, nos termos do artigo 662º, n.º 1, do CPC).

12 - A pedido e em representação dos Autores, foi dirigida e remetida à Ré, que a recebeu e à qual não apresentou resposta, missiva datada de 13 [por manifesto lapso, na sentença consta 31, o que aqui se rectifica]-11-2007, cuja cópia de mostra junta a fls. 30, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, nos termos da qual, foi concedido, à Ré, até ao próximo dia 20, me seja dada uma resposta e, caso V. Exa. opte pela aquisição da fração, deverá enviar-me fotocópia dos BI’s e dos Cartões de Contribuinte, do ou dos promitentes compradores.

Por último, posso informar que o Sr. AA está apto e disponível para outorgar a escritura a todo o momento, quer da fração, aqui em assunto, quer do rés-do-chão esquerdo ou do sexto andar.

Mais consta desta carta:

“Face à sua total indiferença às minhas várias interpelações escritas, bem como às que o meu cliente, directamente, lhe tem feito, com vista a poder ser regularizada, extrajudicialmente, uma situação que se arrasta há quase 25 anos (…) e da qual, apenas V. Exa. Tem beneficiado, sem quaisquer custos ou encargos, venho, pela última vez, reiterar a proposta que lhe foi apresentada na carta (…) datada de 30.10.2007, com as seguintes alterações:

- Preço de venda da fracção: €90.000,00;

- Assinatura imediata do Contrato de promessa de compra e venda; - Entrega do sinal (5%), no valor de €4.500,00 até 31.12.2007;

- Outorga da escritura de compra e venda até 31.03.2008.

Não obstante, V. Exa., ter, sempre, afirmado o seu interesse na aquisição da fracção, o meu cliente apresenta, em, alternativa, a seguinte proposta:

- pagamento a V. Exa. da quantia correspondente a 10 vezes o valor entregue pelo Sr. DD, a título de sinal, como contrapartida da entrega da fracção, livre de pessoas e bens, até 31.03.2008” (redacção da matéria de facto aditado nos termos do art.º 662º, n.º 1 do Código de Processo Civil, conforme fundamentação infra).

13 - Por missiva datada de 30 de novembro de 2007, cuja cópia se mostra junta a fls. 33 e cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, que o Autor marido remeteu à Ré, que a recebeu e à qual não apresentou resposta, além de lhe ter apresentado propostas com vista à resolução amigável do diferendo, conclui do seguinte modo:

“Se nenhuma destas propostas a senhora aceitar, fica desde já resolvido o contrato promessa de compra e venda do 2.º andar direito assinado com o Sr. DD, colocando à disposição dos seus herdeiros o dobro do sinal que eu recebi e tudo o que de lei lhes der direito. (…).”

Mais constava desta carta:

“Acabei de ser informado (…) da carta que (…) enviou no dia 28 de Novembro. Não quero deixar, no entanto, de lhe dizer que o contrato promessa foi feito com o seu pai, aceito que o Sr. DD seria o seu pai, creio que no ano de 1983. A seu pedido, deixei-o ir para o andar contra o pagamento de uma renda mensal de Esc. 20 000$00 até fazer-se a escritura, mas que nunca me foi paga. Penso que em 1985, o Sr. DD pediu um empréstimo ao Banco para fazer a escritura, mas que nunca foi feita, porque estava no andar sem pagar nada.

Há uma situação que se arrasta desde 1983 e que tem de ser resolvida agora de uma vez por todas. (…) quero propor o seguinte: a venda do andar por €90.0000,00, assinatura do contrato promessa de compra e venda até ao fim do ano, com a entrega do sinal de apenas €500,00, a escritura a fazer-se até 31 de Maio de 2008.

Quero dizer que vendo o andar por aquele preço, quer à D. CC quer a qualquer seu familiar. No caso de não querer comprar o andar, dou-lhe €25.000,00, mas tem de desocupar o andar até ao fim de Março de 2008.” (redação da matéria de facto aditada pelo Tribunal da Relação, nos termos do artigo 662º, n.º 1, do CPC).

14 - Com a assinatura do acordo referido em 7), DD entregou ao Autor marido a quantia de Esc: 200.000,00 (correspondente a novecentos e noventa e sete euros e sessenta cêntimos), a título de sinal e princípio de pagamento.

15 - Por força daquele acordo, DD obrigou-se a reforçar o referido sinal, até ao dia 5 de outubro de 1984, pelo montante de Esc: 800.000,00 (correspondente a três mil e novecentos e noventa euros e trinta e oito cêntimos), obrigação que cumpriu, tendo entregue ao autor marido, cheque visado n.º ...78, emitido em 04 de outubro de 1984.

16 - Tendo em vista a celebração da escritura pública de compra e venda prometida, em fevereiro de 1985 DD solicitou e obteve, junto do então Banco 1..., um empréstimo bancário no montante de capital de Esc: 2.400.000$00 (correspondente a onze mil e novecentos e setenta e um euros e quinze cêntimos), para pagamento do remanescente do preço da fração autónoma prometida comprar.

17 - DD promoveu e custeou o registo de aquisição provisória a seu favor da fração autónoma designada pela letra “E”, bem como o registo provisório da hipoteca voluntária a favor do Banco 1..., para garantia do pagamento do referido capital de Esc: 2.400.000$00 (correspondente a onze mil e novecentos e setenta e um euros e quinze cêntimos), tendo em vista a celebração da escritura de compra e venda prometida, cujos atos se mostram registados através das inscrições ... e ..., relativas às Apresentações n.º...4 e ...5 de 22-02-1985.

18 - Pelo menos em meados do ano de 1985, os Autores entregaram, as chaves da fração autónoma designada pela letra “E” a DD, que passou a habitar a mesma, com autorização e aceitação dos Autores.

19 - Ficou estabelecido no acordo referido em 7) que a escritura pública destinada a concretizar a promessa de compra e venda aí referida seria celebrada no prazo de 6 meses a contar da data da celebração do referido contrato promessa, não ficando estipulado a quem incumbiria proceder à marcação de escritura (redação aditada nos termos do artigo 662º, n.º 1 do CPC).

20- A Ré fixou a sua habitação permanente na fração referida em 1), onde continua a residir.

21 - DD e a Ré são reconhecidos pelos vizinhos e amigos como donos da fração referida em 1).

22 - DD, desde a data referida em 18), e a Ré desde de data não apurada, residiram de forma permanente na fração referida em 1) sem oposição dos Autores ou de quem quer que fosse, na convicção de não violarem o direito de outrem.

23 - DD faleceu a .../.../1994, no estado civil de viúvo.

24 - A Ré e os intervenientes FF e EE são filhos de DD, natural do ....

Factos não provados

1 - Os Autores residem, desde meados do ano 1985, em ....

2 - Os autores têm sido interpelados por pessoas interessadas na aquisição da fração referida em 1).

3 - Circunstâncias e contrariedades várias, quer do DD, quer dos Autores, não permitiram que fosse outorgada a escritura de compra e venda no prazo acordado em 6).

4 - Os Autores interpelaram DD por diversas vezes, pessoalmente, com vista à outorga da escritura de compra e venda.

5 - Nas circunstâncias referidas em 9) a Ré recusou fazer prova da sua qualidade de filha de DD.

6 - Munido da certidão registral com as inscrições referidas em 17), bem como dos demais documentos respeitantes à sua identificação, DD procurou os Autores para celebrarem a escritura de compra e venda, pessoas que, no entanto, aquele nunca mais encontrou.

7 - DD procurou obter informações sobre o paradeiro dos autores junto de outras pessoas que habitavam o prédio e que igualmente haviam prometido comprar as frações em que residiam.

8 - Contudo, nenhum dos demais residentes em questão sabia do paradeiro dos Autores, encontrando-se os mesmos em situação análoga à de DD.

9 - A Ré passou a residir na fração dos autos nas circunstâncias de tempo e modo referidas em 18).

10 - Desde meados de 1985 que era desconhecido o paradeiro dos Autores por parte de DD que tentou obtê-lo, o que impossibilitou a celebração da escritura pública do contrato de compra e venda.

11 - Os Autores mantiveram-se ausentes em parte incerta desde meados de 1985 até à data referida em 9), não tendo estabelecido, ou tentado estabelecer qualquer contacto com a Ré ou DD.

12 - A escritura pública de compra e venda no prazo estabelecido no acordo referido em 7), não foi celebrada no prazo aí estabelecido, nem posteriormente, exclusivamente pelo facto dos Autores, no início do ano de 1995, haverem desaparecido para parte incerta e terem apenas aparecido no mês de julho de 2007.

13 - Os Autores não ficaram com cópia ou fotocópia do acordo referido em 7), contendo a assinatura de DD, ficando apenas a saber, com a junção aos autos.

14 - A Ré sempre residiu na fração referida em 1) com conhecimento e consentimento dos Autores.

         

           

B – O Direito

1. Os recorrentes entendem que um contrato promessa de compra e venda, por natureza bilateral e sinalagmático, assinado apenas por uma das partes, in casu, o promitente vendedor, é nulo por falta de forma. Sustentam que a nulidade só pode ser suprida pela figura da conversão (artigo 293.º do Código Civil) e não pelo instituto da redução (artigo 292.º do Código Civil), como decidiu o acórdão recorrido. Prosseguem o seu raciocínio, sustentando que, uma vez que a Ré não alegou nem provou qualquer facto que permita supor que as partes teriam pretendido a validade da promessa unilateral caso tivessem antecipado a nulidade da promessa bilateral entre si celebrada, não poderá o contrato promessa em crise valer como promessa unilateral de venda, por força da aplicação do instituto da conversão, por falta de verificação dos requisitos exigidos no artigo 293.º do Código Civil. Em consequência, sendo o contrato totalmente nulo, a Ré careceria de título que legitimasse a recusa da restituição da fração reivindicada.


2. O contrato-promessa está definido no Código Civil como sendo “a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato” (410º, n.º 1, do Código Civil), designando-se este último por contrato prometido. Trata-se de um verdadeiro contrato e não de um mero acordo preparatório ou preliminar que obriga à futura celebração de um outro contrato determinado. A obrigação assumida por contrato-promessa corresponde, pois, a uma prestação de facto positivo jurídico consistente na emissão de uma declaração de vontade negocial destinada a celebrar um outro contrato.

O Código Civil prevê que os contratos-promessa possam ser bilaterais ou sinalagmáticos ou unilaterais.  

No contrato promessa bilateral ambas as partes se vinculam à celebração do contrato prometido. Por seu turno, no contrato-promessa unilateral apenas uma das partes se vincula à celebração do contrato prometido, ficando a contraparte livre de celebrar ou não este último contrato. Todavia, enquanto promissário a contraparte fica titular de um direito de crédito dirigido à celebração do contrato prometido. Não obstante poder não ocorrer qualquer fixação de prazo pelas partes, dentro do qual o vínculo é eficaz, tal não significa que a promessa se tenha de manter indefinidamente, podendo o promitente requerer em tribunal a fixação de um prazo ao promissário para o exercício daquele seu direito, sob pena de caducidade do mesmo (artigo 411.º do Código Civil).

Já no contrato-promessa bilateral (sinalagmático) sobre ambas as partes incidem obrigações de idêntica natureza unidas por um vínculo de reciprocidade, na medida em que ambas as partes se vinculam à celebração do prometido contrato. Estaremos aqui em face de um sinalagma perfeito ou de primeiro grau.

A lei estabelece determinadas exigências de forma para a celebração destes contrato, nomeadamente e para o que aqui interessa, o que se prevê no n.º 2 do art.º 410º do Código Civil: “Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.”

Daqui decorre que caso a lei exija para o contrato prometido a necessidade de o mesmo revestir a forma escrita, o respetivo contrato promessa deverá ser, igualmente, reduzido a escrito e conter a assinatura de ambas as partes ou só de uma delas consoante ambas se vinculem à celebração do contrato prometido (promessa bilateral) ou apenas uma das partes se vincule à sua celebração (promessa unilateral). Quer isto significar que, no caso de promessa unilateral, apenas será necessário a assinatura do promitente sendo suficiente, do lado do promissário, uma simples manifestação de vontade informal. Ou seja, deve assinar o contrato-promessa quem seja, de facto, promitente. Trata-se de uma formalidade “ad substanciam” pelo que a sua inobservância acarretará, em princípio, a nulidade do contrato-promessa (nos termos do artigo 220.º do Código Civil).

3. O contrato-promessa dos autos é uma promessa bilateral que se encontra assinada apenas pelo promitente-vendedor, invocando os autores, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, do Código Civil, em conjugação com o artigo 220.º do mesmo diploma, a sua nulidade por falta de forma, bem como a insusceptibilidade de conversão num contrato promessa-unilateral, por falta de alegação e prova dos requisitos do artigo 293.º do Código Civil.

Os factos do caso, para o que aqui releva, são os seguintes:

Ao abrigo deste contrato promessa nulo, os autores, em meados de 1985, entregaram a chaves do imóvel a DD (promitente-comprador), que passou a habitar o imóvel desde essa data (facto provado n.º 18), e, desde data não apurada e até hoje, a filha de DD, agora ré, fez deste imóvel a sua habitação permanente (facto provado n.º 20), tendo ambos aí residido sem oposição dos autores nem ninguém (facto provado n.º 22). A matéria de facto dá por provada a existência de um contrato promessa entre o autor e DD, apesar de o contrato não estar assinado pelo promitente-comprador (factos provados n.º 6 e 7: 6- Os Autores prometeram vender a DD, que por sua vez lhes prometeu comprar, a fracção autónoma descrita em 1); 7- Para o efeito, foi outorgado, em 19 de Setembro de 1984, o documento particular, denominado “Contrato de Promessa de Compra e Venda”, do qual consta apenas a assinatura do promitente-vendedor, nos termos do qual o Autor AA, prometeu vender a DD, que prometeu comprar, livre de ónus ou encargos, pelo preço Esc: 3.600.00$00 (três milhões e seiscentos mil escudos), a fracção descrita em 1), nos precisos termos constantes de fls. 105 a 105v, cujo teor se dá integralmente por reproduzido). Dá-se também como provado que o pai da ré pagou sinal e um reforço de sinal (factos provados n.º 14 e 15) e que pediu empréstimo bancário para pagar o preço do imóvel, bem como procedeu ao registo de aquisição provisória do imóvel, bem como ao registo de hipoteca voluntária a favor do Banco (factos provados n.ºs 16 e 17). O prazo estipulado para a escritura era de seis meses após a celebração do contrato promessa, que não continha qualquer cláusula a afirmar a qual das partes competia proceder à marcação da escritura pública de compra e venda, que nunca se chegou a celebrar.

4. Neste contexto fáctico, o acórdão recorrido, tal como a sentença do tribunal de 1.ª instância, consideraram o contrato-promessa dos autos válido como promessa unilateral do promitente-vendedor, agora autor marido, por força do instituto da redução do negócio jurídico previsto no artigo 292.º do Código Civil, com os seguintes fundamentos:

«A questão que aqui se coloca, e que tem sido alvo de controvérsia e debate pela Doutrina e Jurisprudência, prende-se com a validade do contrato promessa bilateral reduzido a escrito mas apenas assinado por um dos promitentes, no caso (e como sucede na maioria das situações) apenas assinado pelo promitente-vendedor.

Concordando a doutrina e jurisprudência que tais contratos padecem do vício da nulidade, por inobservância de forma legal, conf. art.º 220º do Código Civil, já não colhe unanimidade a solução a dar quanto ao aproveitamento destes contratos.

(…)

A este respeito, e como aliás é abordado pelos AA. nas suas alegações de recurso, duas soluções têm sido adiantadas.

Sobre a redução do negócio dispõe o art.º 292º do Código Civil: “A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada”.

A conversão encontra-se prevista no art.º 293º, nos seguintes termos: “O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade.”

Decorre da Lei que o instrumento da redução visa o aproveitamento do negócio jurídico, depois de expurgada a parte atingida pela invalidade.

Desta forma, no caso de contrato-promessa bilateral assinado apenas por um dos contraentes, o negócio restringe-se a um contrato-promessa unilateral.

Ainda assim, tal não ocorrerá se o contraente que nisso tenha interesse demonstre que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada, o que acarreta a invalidade do negócio.

Assim, o contraente interessado na invalidade total do contrato-promessa tem o ónus de alegação e prova dos factos demonstrativos que o mesmo não teria sido celebrado se não fosse bilateral. No caso de um contrato-promessa de compra e venda assinado só pelo promitente-vendedor, sobre este recai o ónus de alegação e prova de que não teria celebrado o contrato e assumido a inerente obrigação de vender sem a correspectiva obrigação de comprar por banda da contraparte. Só nesse caso, o contrato-promessa será totalmente inválido. Por seu turno, o contraente interessado no aproveitamento do contrato-promessa, embora restringido a um contrato-promessa unilateral, encontra-se desonerado de provar que a vontade hipotética das partes seria a de manter o contrato-promessa ainda que limitado ao esquema de promessa unilateral, pois tem a seu favor uma presunção legal (art.º 350.º n.º 1 do Código Civil).

Já a aplicação do instituto da conversão implica que se considere que a falta de assinatura de um dos contraentes origina a nulidade de todo o contrato-promessa, pelo que aqui incumbirá ao interessado na sua manutenção o ónus de prova de que a vontade hipotética de ambas as partes era a do aproveitamento do contrato-promessa convertido numa promessa unilateral.

Na Jurisprudência igualmente se mostra controvertida a opção pela aplicação de um destes institutos jurídicos.

 (…)

Ponderando os argumentos avançados, tendemos a aderir à tese da redução do negócio, com a primazia da validade do negócio sobre a formalidade em causa, sem prejuízo da válvula de escape que a norma prevê e de onde pode decorrer a invalidade do negócio, quando o interessado nessa invalidade assim o demonstre, nos termos previstos.

 (…)

No caso, resultou assente que ambas as partes se quiseram vincular à celebração do contrato promessa, datado de 19/9/1984 e que do contrato reduzido a escrito não consta a assinatura do promitente comprador – factos 6., 7., 14., 15., 16., 17., 19. – resultando ainda desta factualidade que o promitente comprador veio a cumprir com a entrega do sinal e posterior reforço, solicitou e obteve um empréstimo bancário, promoveu e custeou o registo da inscrição da aquisição provisória a seu favor, bem como o registo provisório da hipoteca para garantia do pagamento do referido empréstimo para essa mesma aquisição da fracção em causa.

Acompanhando a doutrina e jurisprudência que subscreve a tese da redução do negócio, não se afigura que decorra indubitavelmente da matéria assente nos autos que os AA. não teriam celebrado o negócio caso o promitente comprador não tivesse assinado o mesmo.

Decorre ainda do art.º 412.º do Código Civil que o complexo de direitos e obrigações que integram o contrato-promessa são, em princípio transmissíveis por morte ou por acto entre vivos, só assim não ocorrendo com aqueles direitos e obrigações emergentes do contrato-promessa de natureza exclusivamente pessoais, o que não é o caso.

Desta forma, assente fica que a posição assumida no contrato promessa pelo promitente comprador se transmitiu para a R. e seus irmãos.

Sem prejuízo do que se acabou de dizer, o que resulta sem qualquer margem para dúvidas é que a invocação da nulidade do negócio, perante a conduta assumida pelos AA., de pretender ver concretizado o negócio com a R., remetendo-lhe várias propostas que se baseiam na promessa anteriormente assumida, se configura como violadora da boa fé nos termos supra expostos, conduzindo-nos à redução do negócio e consequente validade do mesmo, ao contrário do que pretendem os AA., improcedendo desta forma a sua pretensão de ver declarada a nulidade do negócio.

Conclui-se assim que o contrato celebrado é válido como promessa unilateral de venda por parte dos AA. do imóvel em causa.»


5. A preocupação do legislador tem sido, no regime jurídico dos contratos-promessa de compra e venda para habitação, a proteção do promitente-comprador, proibindo o afastamento da execução específica do contrato (artigo 830.º, n.º 3, do Código Civil) e exigindo culpa daquele para que o promitente vendedor se possa prevalecer da falta do reconhecimento presencial das assinaturas e da falta de certificação da existência da licença de utilização ou de construção (artigo 410.º, n.º 3, do Código Civil). Esta disciplina especial embora se justifique particularmente no caso de unidades habitacionais, abrange também a edificação que não se destina a habitação (cfr. Ana Afonso, “Comentário ao artigo 410.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, p. 82). A omissão destas formalidades não pode ser invocada por terceiros (Assento n.º 15/94) e também não pode oficiosamente ser conhecida pelo tribunal (Assento n.º 3/95). Estamos perante uma espécie de invalidade que não se identifica totalmente, no seu regime jurídico, com a nulidade (artigos 285.º e 286.º do Código Civil) e que a doutrina tem designado por invalidade atípica ou nulidade mista (Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, 2.ª edição, Atualizada por Miguel Pestana de Vasconcelos e Rute Teixeira Pedro, Almedina, Coimbra, 2020, p. 266), que apenas o promitente comprador pode invocar a todo o tempo, ou como uma “inoponibilidade direccional da nulidade” (Carvalho Fernandes, “Nulidade atípica do contrato promessa por vício de forma”, RDES, 1997, pp. 276-284), para significar a restrição do círculo dos sujeitos legitimados para a invocar.

No caso vertente, estamos perante a questão de saber qual o valor jurídico de um contrato de promessa de compra e venda de imóvel para habitação, bilateral, mas assinado apenas pelo promitente-vendedor, que invoca a nulidade por falta de forma a fim de se desvincular do contrato-promessa que assinou.

O ponto de partida deste debate é o Assento n.º 1/90 (agora Acórdão Uniformizador de Jurisprudência) que decidiu que “(…) o contrato-promessa bilateral de compra e venda de imóvel exarado em documento assinado apenas por um dos contraentes é nulo, mas pode considerar-se válido como contrato-promessa unilateral, desde que essa tivesse sido a vontade das partes” (Assento 1989.11.29, Castro Mendes (Relator), DR/I 1990.02.23, BMJ 391:101). O citado Assento afastou a tese da nulidade total do negócio jurídico, considerando-a tributária de um pensamento conceitualista, de raiz positivo-voluntarista, e contrária ao estipulado no artigo 411.º do Código Civil que expressamente admitiu a figura do contrato promessa unilateral. Assim, o Assento apoiou a tese da nulidade parcial do contrato de promessa assinado apenas por um dos promitentes, e aceitou a ideia de um contrato onde um dos contraentes fica vinculado a contratar e o outro tem o direito de optar: «Daí que devamos aceitar a ideia da nulidade do contrato-promessa bilateral por falta de forma, ex vi do disposto no artigo 220 do Codigo Civil, mas nulidade apenas parcial, por serem autónomos os negócios e o vicio registado afectar apenas o suporte volitivo da declaração do contraente que não assinou o documento titulador do negócio jurídico viciado». Prossegue o Assento n.º 1/90, afirmando que «A tese que expomos parece-nos, salvo o devido respeito, a única capaz de abrir caminho a solução mais justa que o problema comporta - pragmatismo que repugna ao filósofo, mas que não pode deixar indiferente o magistrado.»

Ora, os termos em que o Assento analisou a questão não incluiu a sua qualificação jurídica como redução (artigo 292.º do Código Civil), nem como conversão (artigo 293.º do Código Civil) do negócio jurídico. Como já se afirmou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 16-12-1999, Revista n.º 989/99 - 1.ª Secção, «O Assento do STJ de 29-11-89, que vale hoje como acórdão uniformizador de jurisprudência, ao estabelecer que o contrato-promessa bilateral, exarado em documento assinado apenas por um dos contraentes, se pode considerar válido, como promessa unilateral, desde que tivesse sido essa a vontade das partes, não toma expressamente posição sobre se tal validade se alcançará através da redução ou da conversão». Em tese, as duas figuras são suscetíveis de ser aplicadas à situação da nulidade por falta de forma e a fronteira entre ambas na prática é esbatida. Todavia, a fundamentação do Assento expressamente afasta a nulidade total ou necessária do contrato-promessa bilateral assinado apenas por um dos contraentes e enquadra a situação na nulidade parcial destes contratos. Contudo, tem sido assinalada pela doutrina a imprecisão do assento (Por todos, cfr. Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 13.ª edição, Almedina, Coimbra, pp. 60-61, entendendo que o Assento se inclina para a tese da redução consagrada no Código Civil alemão que é favorável à invalidade total em caso de dúvida sobre a vontade conjetural das partes, tese que é criticada pela doutrina alemã por excesso de liberalismo – ibidem, p. 54). Por um lado, o Assento opta por uma presunção de divisibilidade do contrato promessa e de nulidade parcial no caso de falta de assinatura do promitente-comprador, mas, por outro lado, quando se refere ao regime do ónus da prova, afirma expressamente um ónus probatório a cargo do sujeito interessado na redução, parecendo afastar a presunção de divisibilidade contida no regime jurídico do artigo 292.º do Código Civil, na medida em que, nas palavras do Assento, «E será a parte onerada com a prova tendente a ilidir a presunção de vontade hipotética (demonstrando, por todos os meios, que, apesar da falta da parte viciada do contrato, este teria sido querido por ambos os contraentes, quanto à parte restante, como tal devendo ser mantido) aquela interessada na validade parcial, como defende A. Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudencia, n. 119, n. 326». Ou seja, será a pessoa interessada na validade parcial a ter de alegar e provar, por todos os meios, que, apesar da falta da parte viciada do contrato, este teria sido querido por ambos os contraentes, quanto à parte restante, como tal devendo ser mantido. Solução que a doutrina tem considerado ser desadequada ao direito português que tem uma norma específica sobre a redução do negócio jurídico, o artigo 292.º do Código Civil, que privilegia o aproveitamento da parte válida do negócio, preferência justificada pela exigência de estabilidade e segurança contratual, bem como pela proteção de terceiros de boa fé (cfr. Calvão da Silva, ob. cit., p. 54).

           

6. Após a prolação do Assento, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 25-03-1993 (processo n.º 083047), veio aderir à tese da redução, afirmando no seu sumário que «I – O contrato-promessa bilateral de compra e venda, subscrito só por um dos promitentes, sofre de invalidade parcial, conduzindo, em princípio à sua conservação quanto à declaração da parte que assinou o documento. II – Será, porém, nulo, se o contraente que o subscreveu alegar e provar que o contrato não teria sido celebrado sem a parte viciada. III – O Assento de 29 de Novembro de 1989 tem de ser interpretado no sentido de consagrar a nulidade parcial do negócio e, portanto, a sua redução.»

No mesmo sentido, se pronunciou outro Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (28-02-2008, Revista n.º 41/08 - 6.ª Secção), que sumariou, para o que aqui releva, o seguinte: «V - A doutrina consagrada no Assento do STJ de 29-11-1989, que tem actualmente a força própria dos Acórdãos para Uniformização de Jurisprudência, mantém-se actual, porquanto a mudança de redacção do n.º 2 do art. 410.º do CC, em substância não altera o regime que constava na versão inicial do Código Civil.  VI - De acordo com o Assento citado, o contrato-promessa bilateral apenas assinado por um dos contratantes enferma de nulidade, podendo considerar-se que valerá como contrato-promessa unilateral, desde que essa tivesse sido a vontade das partes. Estão em causa as figuras da redução do negócio jurídico - art. 292.º do CC - ou da conversão - art. 293.º.  (…) VIII - Daí que consideremos existir nulidade parcial da obrigação assumida pelo Autor (considerando, assim, reduzido o contrato), pelo facto do Autor não ter assinado o documento, o que vale, por dizer que o contrato em causa é um contrato-promessa unilateral de compra e venda, por via da redução».  – destaque nosso

A esta posição veio também a aderir, em 2013, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-10-2013 (Revista n.º 4739/05.6TBAMD.L1.S1 - 1.ª Secção), onde se sumariou o seguinte: «III - Trata-se de uma nulidade parcial, que atinge apenas a declaração dos promitentes-compradores, nada impedindo, em princípio, a validade da declaração dos promitentes-vendedores, já que, em relação a ela, foi observada a forma legal exigida e a lei permite o contrato-promessa unilateral. IV - O contrato-promessa bilateral a que falte a assinatura do promitente-comprador é divisível objectivamente, caindo-se, assim, no regime de redução do negócio jurídico previsto no art. 292.º do CC (e não no regime da conversão – art. 293.º do CC – que tem como pressuposto a nulidade total).  V - Só assim não será, nos termos do citado art. 292.º, quando se mostre que o negócio não teria sido concluído (isto é, querido), sem a parte viciada, sendo a regra, estabelecida no preceito, o aproveitamento da parte válida do negócio e a excepção a invalidade total». – destaque nosso

A posição Supremo Tribunal tem oscilado, havendo também acórdãos que entendem ser aplicável a figura da conversão aos contratos promessa bilaterais assinados apenas por um dos promitentes, assim interpretando a doutrina do Assento n.º 1/90 (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-02-2006, Revista n.º 4329/05; de 08-05-2003, Revista n.º 03A3583; de 23-10-2001, Revista n.º 2707/01; de 23-10-2001, Revista n.º 2707/01).

Nos Tribunais da Relação verifica-se idêntica divergência jurisprudencial: a favor da tese da redução do negócio jurídico, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, 16-09-2008, Processo n.º 4701/2008-7 e de 06-12-2007, Processo n.º 8937/2006-2, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08-06-2006, Processo n.º 831/06-2. A favor da tese da conversão, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-12-2007, Processo n.º 9208/2007-1 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07-04-2014, Processo n.º 1370/10.8TBPFR.P1.


7. A doutrina tem defendido, maioritariamente, a tese da aplicação do instituto da redução do negócio jurídico (cfr. Almeida Costa, Contrato-Promessa, Almedina Coimbra, pp. 25 a 30; Idem, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 392-396; Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, ob. cit., pp. 50 e ss.; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 15.ª edição, Almedina, 2018, pp. 219-220; Gravato Morais, Contrato-Promessa em Geral – Contratos-Promessa em Especial, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 51-52).

Ribeiro de Faria (Direito das Obrigações, Vol. I, 2.ª edição, atualizada e ampliada por Miguel Pestana Vasconcelos e Rute Teixeira Pedro, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 266 e seguintes, em particular, p. 273), evoluiu, nas palavras do autor, de uma “figura da redução sem mais e na simpleza de uma presunção e do aproveitamento do contrato como de promessa unilateral”, para outra em que sujeita a redução ao afastamento da presunção contrária, ou seja, à alegação e prova de uma vontade conjetural dos contraentes no sentido da validade parcial do negócio, sempre com o filtro do princípio da boa fé, quase equiparando o ónus da prova da redução ao ónus da prova da conversão. Esta tese costuma designar-se por redução corrigida e foi primeiro defendida por Antunes Varela, Sobre o contrato-promessa, Coimbra Editora, 1989, pp. 35-36, que entendia que em face do caráter bilateral e sinalagmático do contrato, se deve “(…) presumir que o contraente cuja declaração persiste não teria querido o negócio, se tivesse previsto a não vinculação da outra parte. E esta presunção (…) necessita de ser eliminada, pelo menos mediante contraprova, para que o princípio geral da redução (…) possa funcionar.». O ónus da prova caberia à parte interessada na validade parcial do contrato.

Para Ana Afonso («Validade do contrato-promessa bilateral assinado apenas por um dos promitentes», in Juris et de Jure: Nos 20 anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa-Porto, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 1998, pp. 390-391), o propósito de proteção do promitente-comprador será melhor conseguido com uma solução de redução, nos termos do artigo 292.º, fazendo intervir o princípio da boa fé como princípio corretor dos  resultados a que se chegue pela via da redução, que pode ser afastada quando a sua verificação envolva consequências por ela não permitidas. Já no círculo mais restrito das hipóteses contempladas no n.º 3 do artigo 410.º do Código Civil, quando se defenda que esta norma abarca também o caso em que o requisito omitido é a própria falta de assinatura do documento (e não só a falta do reconhecimento presencial das assinaturas), admite a autora que seja preservada a validade do negócio jurídico como promessa bilateral (Ibidem, pp. 404-405).

Em defesa da aplicação do instituto da conversão ao contrato-promessa bilateral assinado por um dos contraentes, pronunciou-se Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 1997, pp. 110-116, considerando que a tese da redução atribui uma extraordinária vantagem ao contraente que não assinou o contrato: o subscritor ficava vinculado, enquanto o que não assinou podia optar pelo não cumprimento. No mesmo sentido, v. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 10.ª edição, Almedina, 2000, p. 326, entendendo que o Assento consagra a tese da conversão em promessa unilateral, nos termos gerais do artigo 293.º do Código Civil.

Já Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, Vol. II, Direito das Obrigações, Tomo II, Contratos, Negócios unilaterais, Almedina, 2010, p. 345) adota uma tese que se pode designar de intermédia, preconizando “uma interpretação-aplicação conjunta dos dois preceitos” a que acrescenta o artigo 239.º, com o seu apelo à boa fé, devidamente concretizado.

  

8. A opção pela aplicação de um ou outro instituto tem implicações ao nível dos ónus de alegação e prova.

O instituto da redução visa o aproveitamento do negócio jurídico, transformando o contrato promessa bilateral nulo por falta de forma num contrato promessa unilateral e tem como pressuposto a ideia de que os negócios jurídicos são passíveis de divisão. O negócio reduzido é ainda o mesmo negócio, que se apresenta quantitativamente diminuído em alguns dos seus efeitos. Este instituto constitui uma manifestação dos princípios gerais do favor negotii e da conservação dos negócios jurídicos, e baseia-se numa ideia de proporcionalidade entre a causa de invalidade e o efeito (cfr. Pedro Eiró/Teresa Silva Pereira, “Comentário ao artigo 292.º”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 727). A lei estabeleceu uma presunção de que o negócio afetado em parte do seu conteúdo não é inválido no seu todo, mas apenas parcialmente, bem como uma presunção de divisibilidade do negócio. Assim, conforme resulta da 2.ª parte do artigo 292.º do Código Civil, é sobre o contraente interessado na invalidade total do negócio que recai o ónus de alegação e prova dos factos demonstrativos de que o mesmo “não teria sido concluído sem a parte viciada”, i.e., que o mesmo não teria sido celebrado se não fosse bilateral.

Em sentido diverso, na aplicação do instituto da conversão do negócio, o pressuposto de que se parte é o de que o contrato promessa a que falte a assinatura de um dos contraentes é totalmente nulo, pois é todo o acordo negocial que é atingido, dado o caráter bilateral ou sinalagmático do contrato. Nos termos desta figura, prevista no artigo 293.º do Código Civil, recai sobre o contraente interessado na manutenção do contrato o ónus da prova de que a vontade de ambas as partes era a do aproveitamento do contrato-promessa convertido numa promessa unilateral.  

Em consequência, por aplicação das regras do ónus da prova, se o julgador ficar na dúvida sobre a direção em que se manifestaria a vontade hipotética, deve declarar-se a validade do contrato promessa unilateral.

Todavia, em qualquer das situações, dado que se verifica um problema de integração do contrato, deve intervir o princípio da boa fé, de acordo com o artigo 239.º do Código Civil (cfr. Almeida Costa, Contrato-Promessa, ob.cit, pp. 26-27, admitindo que mesmo em face de uma vontade conjetural contrária à redução, pode impô-la a boa fé).


9. Para a análise desta questão há que ter em conta que o Assento afirmou expressamente como mais justa a tese da validade parcial, rejeitando a tese da nulidade total do negócio jurídico. Assumimos, pois, ser este o ponto de partida da solução do caso: a invalidade parcial constitui a regra e a invalidade total a exceção.

Tendo em conta a interpretação teleológica do Assento e dos seus fundamentos, pensamos que a questão deve ser tratada não tanto à luz da rigidez dos conceitos jurídicos, mas da ponderação dos interesses em jogo e do princípio da boa fé.

Prevendo a lei a figura dos contratos promessa unilaterais (artigo 411.º do Código Civil) nenhum obstáculo se coloca à tese da nulidade parcial, tanto mais que, no caso sub judice, se trata de um contrato nulo em que houve pagamento de sinal pelo promitente-comprador e entrega das chaves pelo promitente vendedor, representando, por isso, a nulidade total um efeito destrutivo de uma situação jurídica que se prolongou, sem oposição dos proprietários, agora autores, por mais de 20 anos. É precisamente neste tipo de contextos que faz sentido o princípio da conservação dos negócios jurídicos, na vertente da redução, que permite o aproveitamento da parte válida, cabendo o ónus da prova da nulidade total ao promitente que pretende beneficiar dela. A tese da redução é assim a mais adequada aos casos em que já houve pagamento de sinal, pois permite manter a validade da convenção de sinal. Nas palavras do autor «Na verdade, a tese da conversão não salvaguarda a manutenção do sinal, caso este tenha sido constituído já que, pretendendo-se que o contrato-promessa bilateral é totalmente nulo e apenas se converte em promessa unilateral, então essa conversão não poderia abranger a convenção de sinal bilateral, considerada nula. Já a tese da redução, considerando esta situação como uma mera hipótese de invalidade parcial, permitiria manter a sanção do sinal em relação á parte que permanecesse vinculada á celebração do contrato-definitivo, o que julgamos ser a solução mais adequada, já que o afastamento dos direitos atribuídos pelo art. 442.º representaria um grande prejuízo para o promitente fiel.» (cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, ob. cit., p. 219).

Neste sentido aponta também o argumento sistemático de interpretação, pois estamos perante um contrato que diz respeito à promessa de venda de uma unidade habitacional e que, portanto, está abrangido pelo regime protetor do promitente adquirente previsto no artigo 410.º, n.º 3, do Código Civil, que proíbe ao promitente vendedor, que subscreveu o contrato promessa, invocar a nulidade por omissão das formalidades ali previstas (p.ex. reconhecimento presencial das assinaturas ou licença de utilização), a não ser que prove que a omissão se ficou a dever a culpa do promitente comprador. 

Dentro desta linha de pensamento legislativo, compreende-se que, no caso dos autos, recaia sobre o promitente-vendedor a alegação e a prova de que a vontade hipotética seria a da não aceitação do negócio sem a vinculação dos dois contraentes, demonstração que também não resulta da factualidade dos autos, em que ficou provado que o promitente-vendedor recebeu o pagamento do sinal e do reforço do sinal, entregou as chaves ao promitente comprador em 1985 e deixou que este procedesse ao registo de aquisição provisória e ao registo provisório da hipoteca voluntária a favor do Banco, permitindo ainda que o promitente comprador e a filha habitassem o imóvel durante mais de duas décadas. Assim, mesmo que optássemos pela via da conversão ou pela tese da redução corrigida, teria que se considerar também que, à luz dos interesses em jogo e dos ditames da boa fé, decorre da presente factualidade a demonstração da vontade conjetural das partes de que se tivessem previsto a nulidade teriam querido um contrato promessa unilateral. Na verdade, o essencial da questão é que seja preservada a justiça negocial, confiando a solução à análise flexível de cada caso concreto (cfr.  Menezes Cordeiro, “O novíssimo regime do contrato-promessa”, in Estudos de Direito Civil, vol. I, p. 71, nota 28 e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 391).

Nas circunstâncias objetivas do caso dos autos, os autores não lograram provar que a vontade hipotética das partes, à data da conclusão do contrato, seria a da nulidade total do contrato ou a sua sobrevivência sem a parte viciada. O que releva é a vontade que as partes teriam tido aquando da conclusão do negócio e não a sua vontade efetiva ou real, nem a sua vontade atual. E a vontade hipotética deduz-se da finalidade do contrato – a habitação do promitente-comprador, imediatamente autorizada pelo proprietário com a entrega das chaves – e da convenção de sinal, bem como das demais circunstâncias fácticas do caso, interpretadas de acordo com os ditames da boa fé.

Importa também avaliar, na ótica da justiça contratual, os factos alegados e provados pelos autores, segundo os quais estes apresentaram várias propostas contratuais de compra e venda do imóvel à ré, para solucionar o problema, às quais esta nunca respondeu (factos provados 11A, 12 e 13), o que na perspetiva dos autores significaria má fé. Todavia, ainda que a ausência de resposta às propostas contratuais seja, com efeito, uma postura não colaborativa da ré, há que enquadrar esta atitude no facto de o seu pai, promitente-comprador (posição jurídica na qual a ré encabeçou por via sucessória), confiando na vinculação do promitente-vendedor, ter pago sinal e reforço do sinal, bem como pedido empréstimo bancário, e feito do imóvel a habitação permanente da família, sem oposição de ninguém. Assim, o silêncio da ré perante as propostas dos autores não constitui má fé porque as propostas apresentadas não transmitem a vontade por parte dos autores de cumprir a promessa a que se obrigaram, mas sim uma tentativa de convencer a ré a aceitar novas propostas de venda, por um preço manifestamente superior àquele que consta da promessa efetuada.

A constatação que o cumprimento do contrato-promessa se afigura desfavorável para o promitente-vendedor, em virtude de a elevada taxa de inflação verificada nas décadas de 80 e de 90 ter desvalorizado o dinheiro correspondente ao montante do preço em dívida pelo promitente comprador, não pode, por si, configurar uma exceção ao princípio pacta sunt servanda (artigo 406.º do Código Civil), sobretudo tendo em conta que não se provou ter sido imputável ao promitente-comprador o atraso no cumprimento do contrato-promessa. Antes pelo contrário, o que decorre da matéria de facto é que este tudo fez para estar em condições de o cumprir, pagando o reforço do sinal e pedindo empréstimo. Para fazer face ao desequilíbrio contratual gerado pela inflação o instrumento próprio seria o regime da norma ínsita no artigo 437.º do Código Civil, aqui não invocada, e que permitiria a resolução ou a modificação do contrato verificados os pressupostos nela fixados, e não uma ação de reivindicação, em que o autor faz tábua rasa do compromisso assumido.

Como concluiu o acórdão recorrido, se os Autores se mantiveram durante mais de 20 anos sem reagir à ocupação do imóvel, nem exigir qualquer contrapartida monetária por tanto, tal facto apenas lhes será imputável não podendo, sem mais e sem que para tanto haja acordo da ré, alterar os termos do contrato inicial.

Pelo que, tem de se considerar parcialmente válido o contrato-promessa bilateral assinado apenas pelo promitente-vendedor (factos provados n.ºs 5 e 7) por força do instituto da redução do negócio jurídico (artigo 292.º do Código Civil) e válido também o acordo de traditio.

Tal como entenderam as instâncias, posição que não veio questionada na revista, não houve mora, nem incumprimento definitivo de qualquer das partes. Nestes termos, o que as partes deverão fazer é proceder às necessárias definições de prazo e interpelações para cumprir a promessa em causa, sem o que não é possível falar em mora e posterior incumprimento definitivo.


10. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – O instituto da redução constitui uma manifestação dos princípios gerais do favor negotii e da conservação dos negócios jurídicos, e baseia-se numa ideia de proporcionalidade entre a causa de invalidade e o efeito.

II – O contrato-promessa bilateral de compra e venda de imóvel para habitação, assinado apenas pelo promitente-vendedor, acompanhado de convenção de sinal e entrega das chaves (traditio), é parcialmente nulo, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da redução previsto no artigo 292.º do Código Civil e não o regime da conversão (artigo 293.º do Código Civil), que tem como pressuposto a nulidade total do negócio, exigindo ao interessado na validade do contrato o ónus de alegação e de prova dos requisitos da conversão.

III – Nos termos da 2.ª parte do artigo 292.º do Código Civil, é sobre o contraente interessado na invalidade total do negócio que recai o ónus de alegação e prova dos factos demonstrativos de que o mesmo “não teria sido concluído sem a parte viciada”, i.e., que o mesmo não teria sido celebrado se não fosse bilateral.

IV – A análise desta questão de direito sempre dependerá de uma avaliação casuística dos factos de cada caso e dos ditames da boa fé.


III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas da revista pelo recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 8 de novembro de 2022


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)